I - Por meio deste recurso para fixação de jurisprudência pretende-se a resolução de um suposto conflito jurisprudencial relativo a matéria contra-ordenacional protagonizado por dois acórdãos do mesmo tribunal de Relação, estando em discussão em ambos a imputação de uma contra-ordenação prevista no DL 257/2007, de 16-07.
II - Mas este recurso extraordinário, regulado nos arts. 437.º e ss. do CPP, não tem aplicação nessa matéria. Só a poderia ter pela via do art. 41.º, n.º 1, do DL 433/82, de 27-10, mas não é o caso.
III -Com efeito, o DL 433/82, no art. 75.º, n.º 1, depois de definir o âmbito do recurso interposto da decisão de 1.ª instância, nos casos em que é admissível, estabelece que das decisões do tribunal de 2.ª instância «não cabe recurso». Podendo os recursos ser ordinários e extraordinários, deve entender-se que o termo recurso, sem qualquer restrição, abrange as duas espécies, em consequência do que das decisões da 2.ª instância não é admissível qualquer tipo de recurso para o STJ, seja ele ordinário ou extraordinário. Só assim não seria se da lei se colhessem indicações que impusessem uma interpretação restritiva da parte final da disposição do n.º 1 do art. 75.º, de modo a considerar que ali se tem em vista apenas o recurso ordinário, o que não acontece.
IV -Com efeito, a conclusão de que essa norma veda também a interposição de recursos extraordinários das decisões das Relações para o STJ resulta do facto de o DL 433/82 prever instrumentos que têm proximidade ou se identificam com os recursos extraordinários previstos no âmbito do processo criminal: os recursos para fixação de jurisprudência e de revisão de sentença.
V -Assim, destinando-se o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, regulado nos arts. 437.º e ss. do CPP, a assegurar, tanto quanto possível, a uniformidade da jurisprudência na interpretação da lei, de modo a que seja aplicada a todos por igual, o DL 433/82 contém normas que têm essa mesma finalidade. Nomeadamente, o art. 73.º, depois de no n.º 1 elencar os casos em que a decisão de 1.ª instância admite recurso [normal], estabelece no n.º 2 que, para além desses casos, «poderá a relação (...) aceitar o recurso (...) quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência».
VI -Do mesmo modo, prevê nos arts. 80.º e 81.º um regime especial de revisão das decisões sobre matéria contra-ordenacional, revisão essa que cabe ao tribunal de 1.ª instância, no caso de decisão de autoridade administrativa, ou ao tribunal de 2.ª instância, no caso de decisão judicial. Nunca, em casos como o presente, ao STJ.
VII - Nestes termos, se a lei geral das contra-ordenações contém o seu próprio regime de recursos especiais e extraordinários, não sobra espaço para a aplicação subsidiária no âmbito do direito de mera ordenação social dos recursos extraordinários previstos no processo penal, tal como aí se encontram regulados.
VIII - E se é certo que o recurso especial para a melhoria da aplicação do direito ou para a uniformidade da jurisprudência a que se refere o n.º 2 daquele art. 73.º tem um âmbito muito mais limitado do que o recurso extraordinário previsto nos arts. 437.º e ss. do CPP, também o é que é bem diversa a natureza e relevância dos interesses ou valores que estão em jogo no campo do direito criminal e no do direito de mera ordenação social. Por isso mesmo é que não é admissível recurso ordinário de todas as decisões judiciais condenatórias proferidas em processo de contra-ordenação, ao contrário do que se verifica no processo criminal.
IX -Deve, pois, concluir-se que o processo de contra-ordenação não comporta recursos cujo julgamento caiba a tribunal superior ao de 2.ª instância, estando por isso em casos como o presente excluído o recurso para o STJ, ao abrigo dos arts. 437.º e ss. do CPP.
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
AA, tendo a qualidade de arguida, interpôs em 24/02/2015 recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido no processo nº 44/14.5TBORQ.E1 em 06/01/2015, transitado em julgado em 23/01/2015, alegando que se encontra em oposição com o acórdão da mesma Relação proferido no processo nº 42/14.9TBORQ.E1 em 16/12/2014, transitado em julgado em 13/01/2015.
Concluiu a sua motivação nos termos que se transcrevem:
«Enquanto no Aresto recorrido se considera que a qualidade de proprietária do veículo é suficiente para a fazer ser considerada “pessoa que efectua o transporte” para efeitos de responder pela contra-ordenação regida pelo DL 257/2007, nos termos do art. 33º respectivo, no Acórdão fundamento considera-se, pelo contrário, que da qualidade de proprietário não se pode inferir ser a mesma, para efeitos do art. 33º referido, a “pessoa que efectua o transporte”, antes podendo não ser tal pessoa, tendo a prova de “transporte efectivo” que ser feita. E enquanto aquele aresto defende a aplicação no caso do art. 135º/3 do CE este acórdão afasta expressamente tal aplicação».
Respondendo, o MP junto do tribunal recorrido pronunciou-se no sentido de haver oposição de julgados e estarem verificadas todas as condições de admissibilidade do recurso, devendo este prosseguir.
No Supremo Tribunal de Justiça, o senhor Procurador-Geral-Adjunto foi de parecer que não existe oposição de julgados, devendo, consequentemente, o recurso ser rejeitado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Fundamentação:
Por meio deste recurso para fixação de jurisprudência pretende-se a resolução de um suposto conflito jurisprudencial relativo a matéria contra-ordenacional protagonizado por dois acórdãos do mesmo tribunal de Relação, estando em discussão em ambos a imputação de uma contra-ordenação prevista no DL nº 257/2007, de 16 de Julho.
Mas este recurso extraordinário, regulado nos artºs 437º e seguintes do CPP, não tem aplicação nessa matéria. Só a poderia ter pela via do artº 41º, nº 1, do DL nº 433/82, de 27 de Outubro [«Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal»]. E não é o caso.
Com efeito, o DL nº 433/82, no artº 75º, nº 1, depois de definir o âmbito do recurso interposto da decisão de 1ª instância, nos casos em que é admissível, estabelece que das decisões do tribunal de 2ª instância «não cabe recurso». Podendo os recursos ser ordinários e extraordinários, deve entender-se que o termo recurso, sem qualquer restrição, abrange as duas espécies, em consequência do que das decisões da 2ª instância não é admissível qualquer tipo de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, seja ele ordinário ou extraordinário. Só assim não seria se da lei se colhessem indicações que impusessem uma interpretação restritiva da parte final da disposição do nº 1 do artº 75º, de modo a considerar que ali se tem em vista apenas o recurso ordinário.
E não colhe. Bem pelo contrário.
Na verdade, a conclusão de que essa norma veda também a interposição de recursos extraordinários das decisões das Relações para o Supremo Tribunal de Justiça resulta do facto de o DL nº 433/82 prever instrumentos que têm proximidade ou se identificam com os recursos extraordinários previstos no âmbito do processo criminal: os recursos para fixação de jurisprudência e de revisão de sentença.
Assim, destinando-se o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, regulado nos artºs 437º e seguintes do CPP, a assegurar, tanto quanto possível, a uniformidade da jurisprudência na interpretação da lei, de modo a que seja aplicada a todos por igual, o DL nº 433/82 contém normas que têm essa mesma finalidade. Nomeadamente, o artº 73º, depois de no nº 1 elencar os casos em que a decisão de 1ª instância admite recurso [normal], estabelece no nº 2 que, para além desses casos, «poderá a relação (…) aceitar o recurso (…) quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência».
Do mesmo modo, prevê nos artºs 80º e 81º um regime especial de revisão das decisões sobre matéria contra-ordenacional, revisão essa que cabe ao tribunal de 1ª instância, no caso de decisão de autoridade administrativa, ou ao tribunal de 2ª instância, no caso de decisão judicial. Nunca, em casos como o presente, ao Supremo Tribunal de Justiça.
Nestes termos, se a lei geral das contra-ordenações contém o seu próprio regime de recursos especiais e extraordinários, não sobra espaço para a aplicação subsidiária no âmbito do direito de mera ordenação social dos recursos extraordinários previstos no processo penal, tal como aí se encontram regulados.
E se é certo que o recurso especial para a melhoria da aplicação do direito ou para a uniformidade da jurisprudência a que se refere o nº 2 daquele artº 73º tem um âmbito muito mais limitado do que o recurso extraordinário previsto nos artºs 437º e seguintes do CPP, também o é que é bem diversa a natureza e relevância dos interesses ou valores que estão em jogo no campo do direito criminal e no do direito de mera ordenação social. Por isso mesmo é que não é admissível recurso ordinário de todas as decisões judiciais condenatórias proferidas em processo de contra-ordenação, ao contrário do que se verifica no processo criminal.
Deve, pois, concluir-se que o processo de contra-ordenação não comporta recursos cujo julgamento caiba a tribunal superior ao de 2ª instância, estando por isso em casos como o presente excluído o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo dos artºs 437º e seguintes do CPP.
Para além do que se disse, não se vê como poderia compatibilizar-se esse recurso com o regime especial previsto no nº 2 do artº 73º do DL nº 433/82. Efectivamente, se fosse aplicável em matéria contra-ordenacional, o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência seria admissível em todos os casos em que houvesse oposição de julgados, mesmo naqueles em que os acórdãos em conflito tivessem decidido recursos interpostos ao abrigo dessa norma, com vista à uniformidade da jurisprudência, o que se traduziria numa desnecessária e incongruente sobreposição de mecanismos com a mesma finalidade.
Pode assim dizer-se que em matéria de contra-ordenações, atenta a menor relevância dos valores ou interesses em jogo comparando com o direito penal, a lei se satisfaz com a uniformidade da jurisprudência que se realiza através do recurso ordinário. Por isso e porque esse recurso só está previsto para certos casos, abre-se a possibilidade de, naqueles em que o não está, ser aceite pelo tribunal que decide em última instância, se o considerar manifestamente necessário, designadamente, para aquele fim: a uniformidade jurisprudencial. Por outras palavras, porque se confere ao recurso ordinário a função de, além do mais, uniformizar a jurisprudência, com essa finalidade pode ele ser aceite mesmo nos casos em que, nos termos gerais, não é admissível.
Esta solução é defendida por Paulo Pinto de Albuquerque nos seguintes termos:
“(…) não é aplicável no processo contra-ordenacional o recurso para uniformização da jurisprudência, com fundamento no artigo 437º do CPP (…). A regulamentação expressa do artº 73º, nº 2, do RGCO afasta a aplicação subsidiária do CPP, como resulta, aliás, também de modo claro do artigo 75º do RGCO, que proíbe expressamente o recurso de decisões do TR” (Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, Universidade Católica Editora, página 304).
Deste modo, o presente recurso para fixação de jurisprudência não é admissível, impondo-se por isso a sua rejeição, de acordo com o disposto no artº 441º, nº 1, do CPP.
Decisão:
Em face do exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso.
O recorrente vai condenado a pagar as custas, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça.
Lisboa, 28/05/2015
Manuel Braz (relator)
Isabel São Marcos (com voto de vencida porquanto «(…) não existindo no RGCO um mecanismo próprio que, equivalente ao existente no art. 437º e ss. do CPP, permita uniformizar a jurisprudência antagónica, com os efeitos e o alcance prescritos no mesmo, impõe-se, nos termos do art. 41.º, n.º 2, do mesmo RGCO, aplicar, subsidiariamente, a este o regime do processo criminal, sob pena de restringir-se o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (art. 205.º da CRP), postulados do direito ao recurso, expressão das garantias de defesa que, nos termos constitucionais (art. 32.º, n.º 1, da CRP), o processo criminal assegura a todos os cidadãos. Por via disto, admitiria, se se preenchessem os pressupostos exigidos pelos arts. 437.º e 438.º do CPP, o presente recurso para fixação de jurisprudência»
Santos Carvalho (Presidente da Secção, com voto de desempate)