I - O cumprimento da decisão sem qualquer reserva constitui ato inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer (art. 632.º, n.º 3, do NCPC).
II - A declaração do recorrido constante das alegações de recurso visando demonstrar a discordância do acórdão e a sua vontade de recorrer, não releva enquanto declaração de reserva pois já é ulterior ao ato praticado inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer.
III - O entendimento de que um ato de cumprimento da decisão sem reserva constitui facto incompatível com a vontade de recorrer não sofre alteração pelo facto de o recurso a interpor da decisão proferida ter efeito suspensivo ou meramente devolutivo.
1) Banco AA, S.A.. reclama para a conferência da decisão de 5-2-2015 que não admitiu o recurso interposto para este Supremo Tribunal de Justiça por se entender que houve renúncia tácita ao recurso.
2) Nessa decisão de 5-2-2015 referiu-se o seguinte:
1. Banco AA, S.A., notificado do despacho/parecer proferido pelo juiz relator, vem, em sede de contraditório, considerar que não houve da sua parte renúncia ao recurso por estas razões, em síntese:
- Nas alegações e conclusões do recurso o recorrente tomou posição expressa sobre o conteúdo da informação veiculada pelo autor.
- O facto de o Banco ter feito lançamentos a débito e a crédito e aplicado, até ao trânsito em julgado, a mensalidade inicialmente contratada, não significa qualquer aceitação por parte do Banco quanto ao decidido porque a decisão não tinha transitado em julgado.
- Os movimentos não traduzem qualquer aceitação de pagamento espontâneo, livre e voluntário, sem qualquer reserva ou declaração sobre o mesmo, pois o Banco nunca disse à aqui autora que concordava com a decisão ou que iria prescindir do seu direito ao recurso
- A autora não assumiu tais atos da ré como renúncia ao recurso
- A autora recorre de outros segmentos decisórios, não podendo, quanto a eles, valer o pagamento como renúncia tácita ao recurso.
Apreciando
2. A renúncia só faz sentido até ao trânsito em julgado da decisão
3. A renúncia tanto pode ocorrer face a decisões que sejam suscetíveis de recurso com efeito suspensivo ou com efeito meramente devolutivo.
4. O documento agora junto não foi apresentado pelo recorrente em resposta ao requerimento apresentado pela BB e, por isso, não foi nem podia ter sido considerado na decisão proferida de não conhecimento do recurso.
5. Esse documento não constitui nenhuma reserva por parte do Banco pois nem sequer foi emitido pelo Banco. É anterior ao pagamento.
6. O recorrente pode restringir o objeto do recurso. Não é disso que aqui se trata. A aceitação tácita vale quanto a toda a decisão. No caso de se emitir declaração de reserva é que se pode discutir o âmbito da reserva.
7. Não interessa o entendimento da parte recorrida sobre a questão, pois a declaração de reserva compete à parte que pratica ato incompatível com a vontade de recorrer, como é o caso do pagamento.
8. A circunstância de o Banco não ter declarado que concordava com a decisão ou que iria prescindir do seu direito de recurso não interessa para o presente caso que tem em vista a aceitação tácita e não a aceitação expressa.
9. Nada temos, por conseguinte, a alterar ao despacho/parecer proferido no passado dia 9-12-2014 que se mantém nos seus precisos termos, salvo, na parte em que se assumia como parecer, pois, agora, trata-se de decidir, como se decide, no sentido da inadmissibilidade do recurso por aceitação tácita.
3) Escrevemos no despacho/parecer de 9-12-2014, anterior à decisão de 5-2-2015 ora sob reclamação, acima transcrita, o seguinte:
1. BB - Sociedade de Administração de Patrimónios. S.A. propôs no dia 27-12-2012 ação declarativa com processo ordinário contra o Banco AA, S.A.. pedindo a sua condenação na restituição da soma dos montantes mensais entregues pela A. por aplicação da taxa que não a taxa euribor acrescida do correspondente montante pago a título de imposto de selo que a 30-9-2012 ascende respetivamente a 34.497,69€ e 1379,91 euros, a serem devidamente atualizados até à data da reposição do regime contratual, bem como do valor de comissões indevidamente cobradas, acrescida dos correspondentes juros moratórios desde a citação.
2. Alegou a A. que celebrou contrato de empréstimo no montante de 430.000 euros tendo em vista a aquisição de um imóvel destinado a arrendamento.
3. Além da taxa euribor, foi estipulado um spread de 2%. O prazo de reembolso do empréstimo foi de 180 meses. O empréstimo foi garantido por livrança subscrita pelo administrador da autora e garantido por duas hipotecas incidentes sobre o imóvel adquirido e sobre outro imóvel objeto do direito de superfície titulado pela autora.
4. No entanto, ao abrigo de cláusula nunca negociada de que a autora só teve conhecimento com a assinatura do contrato, o spread foi alterado em 5-11-2010 de 2% para 6,8% e em 13-12-2011 de 6,8% para 8,55%, passando a autora a suportar uma prestação mensal de 2.550 euros quando suportava com o spread de 2% uma prestação de 880 euros.
5. Invoca a autora a violação pela ré do regime das cláusulas contratuais gerais com a estipulação da cláusula 5.ª do contrato ao abrigo da qual vem sendo sucessivamente aumentado o spread.
6. A ação foi julgada improcedente por sentença de 3-2-2014.
7. Interposto recurso pela autora, a Relação deu-lhe provimento por acórdão de 26-6-2014, revogando a sentença apelada e declarando nula e excluída do contrato sub judice a cláusula contratual geral, 5.ª do contrato de empréstimo, por violação do disposto nos artigos 5.º, n.º2 e 6 e 19.º, alínea d) com referência aos artigos 8.º, alíneas a) e b) e 12.º todos da L.C.C.G.; mais decidiu que, mercê de tal nulidade, devem ser restituídas à autora todas as quantias que foram pagas à ré ao abrigo das alterações do contrato que a mesma impôs fundada na referida ccg, sendo o respetivo montante a liquidar por dependente de cálculo. Vencem as quantias que vier a apurar-se serem devidas juros à taxa legal desde a citação e até efetivo pagamento.
8. O acórdão foi notificado às partes em 27-6-2014.
9. No dia 4-9-2014 a autora juntou aos autos requerimento nos seguintes termos:
" Para os devidos efeitos, a BB - Sociedade de Administração de Patrimónios, S.A., autora no processo em epígrafe, vem informar o Tribunal que considera o seu direito, controvertido no processo identificado, cabalmente atendido pelo cumprimento da decisão constante do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, por parte da sociedade Banco AA, S.A., ré nesse processo.
Esse cumprimento, sem qualquer condição ou restrição, consistiu na entrega, pelo réu, do montante de 75.927,31 €, no dia 7-8-1914, e na cobrança, a partir da notificação do acórdão, da mensalidade inicialmente contratada, cabendo o devido elogio à forma pronta e inequívoca com que a ré se conformou com a decisão".
10. O requerimento foi notificado à parte contrária que não pôs em causa a veracidade do que a autora expôs nesse requerimento.
11. No dia 17-9-2014 o réu interpôs recurso de revista que foi admitido por despacho de 30-10-2014.
12. Constatando-se que o acórdão foi cumprido espontaneamente e sem qualquer reserva, estamos diante de facto inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer, traduzindo aceitação tácita (ver artigo 632.º/2 do C.P.C.; cf. Ac. da Relação de Évora de 11-12-1990 (rel. Manuel Fernandes), B.M.J. 402-691, Ac. do S.T.J. de 27-11-1990 (rel. Meneres Pimentel) B.M.J., 401-543, Ac. do S.T.J. de 25-11-2010 (rel. Alberto Sobrinho), revista n.º 204/1998.P1.S1- 7.ª secção, Ac. do S.T.J. de 16-10-2012 (rel. João Camilo), agravo n.º 1282/05.7TBOVR-M.C1.P1.S1 - 6.ª secção, Ac. do S.T.J. de 29-1-2004 (rel. Azevedo Ramos), revista n.º 357/11.8TBEVR.E1.S1 - 6.ª secção)
4) Na presente reclamação para a conferência o Banco AA, SA sustenta o seguinte:
- Que a informação da autora de que considera o seu direito satisfeito pelo cumprimento da decisão constitui uma conclusão da autora.
- Que essa conclusão é incorreta considerando que o Banco tomou posição expressa sobre o conteúdo da informação nas suas alegações e conclusões de recurso, negando que se tenha conformado com a decisão do acórdão da Relação de Lisboa
- Que o facto de não ter cobrado o diferencial, não quer dizer que não haja considerado tais quantias devidas, tanto mais que poderia sempre exigir tal pagamento, desse diferencial em falta, até ao trânsito em julgado
- Que os pagamentos efetuados não traduzem qualquer aceitação de pagamento espontâneo, livre e voluntário, sem qualquer reserva ou declaração, pois o Banco nunca disse à aqui A. que concordava com a decisão ou que iria prescindir do seu direito ao recurso, dando apenas cumprimento ao efeito devolutivo do recurso e evitar a execução, ainda que provisória do acórdão.
- Que a prática de facto incompatível com a vontade de recorrer, como, por exemplo, o pagamento, não produz, só por si, aceitação tácita e inequívoca, desde que a parte se reserve o direito de interpor o recurso
- Que existe um segmento da decisão que em nada é tacitamente afastado quanto à eventual desistência tácita do recurso peio alegado pagamento feito à A; trata-se do segmento em que se considerou abusiva a cláusula 5.ª por violação do disposto no artigo 19.º, alínea d) da LCCG.
Apreciando
5) Traduz aceitação tácita o pagamento pelo condenado da quantia do pedido sem qualquer reserva.
6) O Banco cumpriu a decisão, pagando e passando a cumprir a mensalidade inicialmente contratada.
7) Fê-lo sem reserva. É questão sobre a qual não se vê existir divergências de entendimento.
8) Veja-se:
- " O ato de cumprimento voluntário da sentença (v.g. o pagamento pelo demandado da quantia em que foi condenado) vale como aceitação tácita da mesma, a menos que se faça expressa reserva de recorrer. Se tal reserva ocorrer, com o ato de cumprimento voluntário apenas se pretende evitar a execução forçada (Manual dos Recursos em Processo Civil, Fernando Amâncio Ferreira, 8.ª edição, Almedina, pág. 126).
- " A aceitação tácita tem de derivar da prática de qualquer ato 'inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer'(no C.P.C. de 1939, a expressão equivalente era a de 'prática, sem reserva alguma, de um facto incompatível com a vontade de recorrer'. O pagamento imediato, pelo réu condenado, da quantia pedida pelo autor, após o proferimento da decisão e sem qualquer reserva, constitui uma forma tácita de a aceitar" (Código de Processo Civil Anotado,José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes, volume 3.º,Tomo I, 2.ª edição, 2008, pág. 32).
9) A decisão condenatória foi cumprida, foi cumprida sem reserva, não relevando, para se considerar que houve aceitação tácita da decisão, que o recurso tenha efeito devolutivo ou suspensivo ou que a parte tenha entretanto mudado de ideias ou que tenha, para si, pressuposto que o ato praticado não constitui aceitação tácita da decisão.
10) Cumprindo a decisão, como cumpriu, sem reserva, praticou ato inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer (artigo 632.º/3 do CPC).
11) O recurso ou é admissível ou não é admissível. As razões da discordância da decisão - considerou o acórdão que uma determinada cláusula contratual era nula - apenas são atendíveis se a decisão for passível de recurso. Não há que segmentar, para este efeito, a decisão.
Concluindo:
I- O cumprimento da decisão sem qualquer reserva constitui ato inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer (artigo 632.º/3 do CPC)
II- A declaração do recorrido constante das alegações de recurso visando demonstrar a discordância do acórdão e a sua vontade de recorrer, não releva enquanto declaração de reserva pois já é ulterior ao ato praticado inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer.
III- O entendimento de que de um ato de cumprimento da decisão sem reserva constitui facto incompatível com a vontade de recorrer não sofre alteração pelo facto de o recurso a interpor da decisão proferida ter efeito suspensivo ou efeito meramente devolutivo.
Decisão: indefere-se a reclamação
Custas pelo reclamante
Lisboa, 28-5-2015
Salazar Casanova (Relator)
Lopes do Rego
Orlando Afonso