DIREITO DE PREFERÊNCIA
PRÉDIO CONFINANTE
DESCRIÇÃO PREDIAL
SERVIDÃO DE PASSAGEM
USUCAPIÃO
ABUSO DO DIREITO
SIMULAÇÃO DE CONTRATO
PREÇO
Sumário


I - O terreno descrito na CRgP como prédio rústico, utilizado como tal ao longo do tempo, de modo independente da casa de habitação, a partir do qual se faz o acesso a esta e por meio de um pátio, sendo realidade diversa de um logradouro, não constitui parte componente de prédio urbano, que é pressuposto da excepção ao direito de preferência prevista no art. 1381.º, al. a), do CC.

II - Dizendo a lei – art. 1555.º, n.º 1, do CC – que o direito de preferência é concedido ao dono do prédio serviente “qualquer que tenha sido o título constitutivo”, neste se inclui necessariamente a servidão legal de passagem constituída por usucapião.

III - Não agem com abuso do direito de preferência, os autores que pretendem exercê-lo pelo preço declarado na escritura (€ 648,44), inferior ao valor real do prédio (€ 30 000), quando não tinham outra alternativa, na falta de elementos, para provar a simulação do negócio e a existência de um outro preço, o real, diferente do declarado.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Resumo dos termos essenciais da causa e da revista

AA e mulher BB propuseram uma acção ordinária contra CC e mulher DD, EE, FF, GG e mulher HH, pedindo:

a) Que seja reconhecido aos autores o direito de preferir na venda do prédio rústico que identificam no artº 1º da petição inicial, a que se refere a escritura pública junta como doc. 4, inscrito na matriz sob o artº ... e descrito na CRP do ... sob o nº ..., da freguesia de ...;

b) Que seja considerada sem qualquer efeito jurídico a escritura realizada e consequente­mente cancelados todos os registos efectuados sobre o prédio com base nela, e outros conse­quentes com base na mesma que se encontrem inscritos a favor dos primeiros réus.

Alegaram que têm o direito de preferência na venda por serem donos e legítimos possuido­res de um terreno rústico que confina com o terreno rústico vendido (artº 1380º do CC), e ainda por sobre o seu terreno recair uma servidão de passagem, constituída por usucapião, a favor do terreno vendido (artº 1555º do CC).

Apenas os réus CC e mulher DD contestaram; por impugnação, pondo em causa a propriedade dos autores sobre o pré­dio confinante, a natureza do prédio como rústico e a relevância da servidão constituída por usucapião como fundamento de preferência; por excepção, invocando a caducidade e o abuso do direito dos autores preferirem por um preço declarado muito inferior ao valor real do imóvel (logradouro) em causa.

Para o caso de assim não se entender pediram, em reconvenção, a condenação dos autores a pagar-lhes o valor de 30.000 €, correspondente ao valor real do prédio à data da transacção.

Realizado o julgamento, foi proferida em 28/2/14 sentença nos seguintes termos:

“Pelo exposto, de facto e de direito, decide-se:

I) Julgar procedente, por provada, a presente acção e consequentemente:

a) Reconhece-se aos AA. o direito de preferir na venda do prédio inscrito na matriz sob o artº ... e descrito na CRP do ... sob o nº..., da freguesia de ..., ..., melhor identificado sob al.G) supra, e de o haverem para si, substituindo-se assim ao Réu comprador, CC, na compra e venda de que este foi objecto através da escritura pública mencionada em K);

b) Ordenando-se que, após trânsito em julgado, se comunique à Conservatória de Registo Predial competente o teor desta sentença (com certidão da mesma com nota de trânsito em julgado e do registo de fls 566-8) para averbamento oficioso da alteração correspondente;

c) Absolvendo-se todos os RR. de tudo o mais contra si peticionado;

II) Julgar improcedente, por não provada, a reconvenção e consequentemente absolver os AA. recon­vintes do pedido reconvencional.

III) Julgar improcedente o incidente de litigância de má-fé e consequentemente absolver os RR. do respectivo pedido.

Custas da acção e reconvenção pelos RR”.

Os réus apelaram, mas sem êxito, pois a Relação de Coimbra, por acórdão de 21/4/15, jul­gou a apelação improcedente, confirmando a sentença.

Mantendo-se inconformados, os réus interpuseram recurso de revista para o STJ, susten­tando a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que os absolva do pedido ou, em alternativa, julgue a reconvenção procedente, condenando os autores a pagar-lhes a quantia de 30 mil €.

Fizeram-no com base nas seguintes conclusões úteis:

1ª - À data em que se constituiu o direito de preferência – 22/2/2001 – o prédio referido em A) formava com o referido em X) da base instrutória uma unidade material e física, constituindo o seu logradouro; aplica-se, assim, a excepção do artº 1381º, a), do CC;

2ª - O disposto no artº 1555º do CC não se aplica às servidões constituídas por usucapião;

3ª - Constitui flagrante abuso do direito a pretensão dos autores de adquirir o prédio objecto da prefe­rência por um valor que é quarenta e seis vezes inferior ao seu;

4ª - Em caso de colisão de direitos – direito de preferência e direito de propriedade – deve dar-se preva­lência a este quando o exercício daquele exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim económico e social do direito;

5ª - O acórdão recorrido violou os artºs 334º, 335º, 437º, 1380º, 1381º e 1555º do CC.

Os autores contra alegaram, defendendo a manutenção do julgado.

Tudo visto, cumpre decidir.

II. Fundamentação

1. Matéria de Facto (circunscrita ao seu núcleo essencial, tendo em atenção o âmbito do re­curso):

A) Encontra-se descrito na CRP de ... sob o n.º 01647/021003 o predito rústico denomi­nado ..., inscrito na matriz sob o artigo ..., composto de terra de pastagem, com a área inscrita de 290 m2, a confrontar do norte com II, do nascente com GG, do sul com JJ e do poente com caminho.

 B) Pela Ap.02/021003 este prédio rústico encontra-se inscrito a favor da Autora BB, casada com o Autor AA, constando como causa de aquisição “partilha extrajudicial da herança de II e mulher KK”; e

C) inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ..., constando AA como titular inscrito do direito ao respectivo rendimento.

D), E) e F) Os Autores, por si e pelos seus ante possuidores, ocupam esse prédio há mais de 30 anos, pagando as respectivas despesas de conservação do mesmo, designadamente os impostos devidos, o que ocorre continuamente e sem qualquer interrupção, à vista de toda a gente, sem oposição de qualquer pessoa, agindo os Autores e os seus ante possuidores na convicção de exercerem um direito próprio e sem lesarem direitos de outrem.

G) Encontra-se descrito na CRP de ... sob o n.º 00.../081097 um predito rústico denomi­nado …, sito nas …, inscrito na matriz sob o artigo ..., composto de terra de semeadura com videiras, com a área de 2350 m2, a confrontar do norte com cami­nho, do nascente com LL e outro, do sul com MM e do poente com II.

H) e I) Pela Ap.1 de 2001/02/28 este prédio encontra-se inscrito a favor do Réu CC, casado com a Ré DD, constando como causa de aquisição “compra a EE, FF e GG, casado com HH”, aquisição esta registada como provisória por dúvidas, tendo sido convertida pela AP.03/280201.

J) Este prédio rústico encontra-se na matriz predial rústica sob o artigo ..., constando GG como titular inscrito do direito ao respectivo rendimento.

K) Por escritura pública denominada “Compra e Venda”, celebrada no dia 22/2/01, no 2º Cartório Notarial de Viseu, em que interveio como primeiro outorgante Dr. NN, advogado, em representação dos co-Réus EE, FF e GG, casado com a co-Ré HH sob o regime da comunhão de adquiridos, e como segundo outorgante o co-Réu CC, o primeiro outorgante declarou que, pelo preço de um milhão de escudos, que já recebeu, em nome dos seus representados vende ao segundo outorgante, e este decla­rou aceitar a venda, dos prédios constantes de um documento complementar, organizado nos termos do artigo sessenta e quatro do Código do Notariado, que faz parte integrante desta escritura, adiantando que tais prédios vieram à posse dos representados do primeiro outorgante por óbito de GG, de quem foram os únicos herdeiros, conforme es­critura de habilitação de herdeiros, exarada a folhas noventa e nove e seguintes do livro du­zentos e três-H deste Cartório.

L) Consta como verba nº 7 desse documento complementar “um prédio rústico composto de uma terra de semeadura com videiras, pastagem e palheira, sito ao ..., no lugar de ..., freguesia e concelho ditos, inscrito na matriz sob artigo ..., com o valor de­clarado de cento e trinta mil escudos.

M) No dia 13 de Fevereiro de 2001 o co-Réu CC entregou um termo de declaração na Repartição de Finanças de ..., declarando pretender pagar a SISA devida pela mencionada aquisição.

N) Correram termos no Tribunal Judicial de ... os autos de procedimento cautelar de rati­ficação judicial de embargo de obra nova n.º91/04.5TBSAT, no âmbito do qual foram reque­rentes os aqui co-Réus CC e DD, tendo a Autora BB sido citada no âmbito de tais autos por carta remetida no dia 13 de Abril de 2004.

O) No âmbito desse procedimento cautelar os aí requerentes alegaram no artigo 1.º da peti­ção inicial que são donos do prédio rústico referido em G);

P) No artigo 10.º da petição inicial alegaram que os aí requeridos são donos do prédio rústico referido em A) a C);

Q) No artigo 12.º da petição inicial alegaram que o prédio referido em A) a C) sempre foi atravessado por uma servidão de passagem com a largura de 2,50 metros no sentido po­ente/nascente, sendo a entrada da mesma localizada no lado poente junto a uma rua locali­zada nas ..., atravessando o prédio dos requeridos no cumprimento de cerca de 30 metros em linha recta encostada ao lado sul do seu prédio urbano;

R) No artigo 13.º da petição inicial alegaram que tal servidão de passagem a pé, com carro de mão, carro de bois, tractor agrícola com reboque e carros ligeiros, onera o prédio dos reque­ridos desde tempos imemoriais, em virtude de o prédio dos requerentes se encontrar encra­vado e sem acesso à via pública.

S) Por escritura pública denominada “Habilitação de Herdeiros e Partilha”, celebrada no dia 17/10/02, no 1º Cartório Notarial de Aveiro, em que intervieram como primeiros outorgan­tes OO e mulher PP, como segundos outorgantes BB e marido AA e como terceiro outorgante QQ, o primeiro outorgante declarou que é cabeça de casal e que no dia 31/1/87 faleceu o seu pai II, no estado de casado com KK, mais afirmando que o falecido não fez testamento ou qualquer disposição de última vontade, deixando como herdeiros legiti­mários a sua mulher KK, o declarante, BB e QQ.

T) Nessa escritura de habilitação e partilha o primeiro outorgante mais referiu que no dia 30/11/01 faleceu a sua mãe KK, mais afirmando que a falecida não fez testamento ou qualquer disposição de última vontade, deixando como her­deiros legitimários o declarante, BB e QQ, seus filhos.

U) Na mesma escritura todos os outorgantes afirmaram que “na qualidade de únicos interes­sados vêm proceder à partilha dos bens da herança daqueles II e KK, que são os constantes do documento complementar elaborado nos termos do número um do artigo sessenta e quatro do Código do Notariado”.

V) Consta da verba nº 42 deste documento complementar o “prédio rústico, composto de terra de pastagem, sito no ..., com a área de duzentos e noventa metros quadrados, a confrontar do norte com o proprietário, sul com JJ, nascente com GG e poente com caminho, inscrito na matriz sob o artigo ...”.

W) Na escritura referida em S) todos os outorgantes disseram que à outorgante RR é adjudicada, além do mais, o bem constante da dita verba nº 42.

X) Encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de ..., sob o artigo 69, o prédio urbano sito no lugar de ..., composto de casa de r/c e 1º andar, com a área total do terreno de 300,0000 m2, área de implantação do edifício de 126,000m2, área bruta de construção de 255,0000m2, área bruta dependente de 3,0000m2 e área bruta privativa de 252,0000m2, a confrontar do norte com Rua …, do sul com o proprietário, do nascente com SS e do poente com Rua, constando como titulares inscritos do direito ao respectivo rendimento OO e QQ, na proporção de metade para cada um.

Y) Por escritura pública denominada “Venda”, celebrada no dia 5/1/77, no Cartório Notarial de ..., em que intervieram como primeiros outorgantes TT e mulher UU, os quais outorgaram por si e o marido na quali­dade de procurador de VV, de XX e mulher ZZ, de AAA e mulher BBB e de CCC, e DDD, que outorga na qualidade de procurador de EEE e mulher FFF, e como segundo outorgante II, casado no regime da comunhão geral de bens com GGG, pelo primeiros outorgantes foi dito que pelo preço de quatro mil escudos, que já receberam do segundo outorgante, a este fazem a venda de dois quintos indivisos de um cabeço sito ao ..., limite do dito lugar de ..., a confrontar do nascente com GG, poente e sul com caminho público e norte com II, inscrito na matriz sob o artº ….

Z) No dia 11/11/76 II entregou um termo de declaração na Repartição de Finan­ças de ..., declarando que pretende pagar a SISA devida pela mencionada aquisição.

AA) O prédio referido em A) encontra-se onerado com uma servidão de passagem a favor do prédio aludido em G), nos termos mencionados em Q) e R).

AA-1) A servidão mencionada em AA) não foi declarada por sentença judicial. (qtº45).

EE) Os prédios referidos em A) e G) são confinantes entre si (qtº 1).

FF) Os prédios referidos em A) e G) têm uma área de 352,05 m2 e 2.976,98 m2, respectiva­mente (qtºs 2 e 29).

GG) Os Autores apenas tiveram conhecimento do negócio referido na escritura de compra e venda aludida em K) quando foram citados no âmbito do referido procedimento cautelar de ratificação judicial de embargo de obra nova (qtº 3).

HH) O prédio referido em A) foi adjudicado à Autora BB através da mencionada es­critura de habilitação e partilhas (qtº 11).

II) O prédio rústico referido em A) é confinante com o prédio urbano mencionado em X) (qtº 15).

JJ) O prédio referido em A) era utilizado por II e mulher KK (qtº 19), ao qual acediam designadamente através do pátio da casa de habitação referida em X) (qtº 20), passando por uma abertura existente no muro (qtº 21).

KK) II e mulher KK colocavam lenha no pré­dio referido em A) (qtº 22), onde guardavam o carro de bois (qtº 25), secavam cereais (qtº 26), malhavam o milho na laje ali existente (qtº 23), e secavam-no num espigueiro ali colo­cado (qtº 24).

LL) O prédio referido em G) situa-se em zona urbana de acordo com o Plano Director Muni­cipal do ... (qtº 30).

MM) À data da celebração da escritura de compra e venda aludida em K), o prédio referido em G) valia pelo menos trinta mil euros (qtº 31).

2. Matéria de Direito

a) Os recorrentes começam por sustentar que se verifica a excepção prevista no artº 1381º, a), do CC porquanto o imóvel pertencente aos autores identificado em A) é um prédio urbano sem autonomia material e física relativamente ao identificado em X), do qual constitui o logra­douro.

Os factos apurados, no entanto, desautorizam  esta conclusão.

Assim, e desde logo, importa salientar que o imóvel está descrito nos livros Conservatória como prédio rústico, circunstância esta que, não sendo embora absolutamente decisiva para o efeito aqui em causa, sem qualquer dúvida indicia e faz presumir a sua autonomia – auto­nomia real, de facto, e não somente jurídica ou em termos registrais – pois que, segundo o artº 79º do CRP, a descrição tem por fim a identificação física, económica e fiscal dos prédios (nº 1), cabendo a cada prédio uma descrição distinta (nº 2). Depois – e agora já com carácter determinante para o ponto em questão – é preciso atender a que o prédio, conforme se pro­vou (alíneas JJ e KK), já era utilizado pelos pais da autora, a quem esta sucedeu na sua titula­ridade, para colocar lenha, secar cereais, malhar milho na laje e secá-lo num espigueiro aí existente, bem como para guardar o carro de bois, sendo certo que o acesso a ele se fazia através do pátio da casa de habitação onde viviam (alínea X), mas passando por uma aber­tura existente no muro. Ora, o conjunto destes factos mostra com bastante clareza, em nosso entender, que o prédio em causa foi e continua sendo muito mais do que o logradouro da referida casa de habitação; foi e é, falando com inteiro rigor, uma realidade bem diversa dum simples logradouro; e isto porque a descrição de que foi objecto, a utilização que dele vem sendo feita ao longo do tempo e o modo como se processa o acesso até ele a partir da casa de habitação, vistos na sua globalidade e articuladamente, levam a concluir que estamos perante um imóvel rústico autónomo, independente, que não se encontra subordinado, ao serviço ou na dependência de nenhum outro, urbano, com o qual forme uma unidade e de que seja um mero complemento susceptível, por isso mesmo, de juridicamente ser qualificado como um logradouro.

b) Sustentam os recorrentes, a seguir, que o artº 1555º (preferência legal) não se aplica, por ra­zões sistemáticas e de fundo,  às servidões constituídas por usucapião.

Também esta conclusão não procede.

O artº 1555º, nº 1, do CC, ao estabelecer “que o proprietário onerado com a servidão legal de passa­gem, qualquer que tenha sido o título constitutivo, tem direito de preferência, no caso de venda, dação em cumprimento ou aforamento do prédio dominante”, é tão claro na sua formulação que mal se compreende, salvo o devido respeito, a dúvida suscitada no recurso. Na verdade, dizendo a lei que o direito de preferência é concedido ao dono do prédio serviente “qualquer que tenha sido o título constitutivo” da servidão, não se vê como há-de ser possível exclui-lo quando a servidão tenha sido constituída por usucapião. Quer a jurisprudência, quer a doutrina lar­gamente dominantes não colocam presentemente qualquer dificuldade ou objecção a tal respeito; e nós não vemos nenhuma razão válida para abandonar a orientação que vem sendo seguida. Basta que o conceito de servidão legal de passagem não seja adulterado, antes assi­milado e aplicado com o necessário rigor, para que a norma em análise não suscite dificulda­des na sua interpretação e aplicação prática. É o que se tem verificado em numerosos acórdãos do STJ, que se justifica referir aqui pela profundidade e precisão da fundamentação utilizada.

Assim, por exemplo, o acórdão de 8/5/07 (Procº 07A767), com o seguinte sumário:

- O conceito de servidão legal de passagem, para os fins de exercício do direito de preferên­cia na alienação do prédio encravado, previsto no artº 1555º C. Civil, abrange as servidões constituídas por qualquer título, mas que, se não fosse a existência desse título, podiam ser judicialmente impostas, e não apenas as que tenham por título a sentença, concedendo-se o direito de preferência aos proprietários de prédios onerados com o encargo legal de consti­tuição de servidão, encontrando-se esta efectivamente constituída, qualquer que tenha sido o título, nomeadamente por usucapião.

Neste aresto diz-se a dado passo o seguinte:

....

Decorrendo mediatamente da lei, a servidão legal, podendo ser constituída por sentença, onde encontra a sua fonte mais natural por poder ser imposta coercivamente, também pode ser constituída por qual­quer das outras formas admitidas na lei – art. 1547º-2 C. Civil.

Nada obstará, pois, que uma servidão legal de passagem possa ter como título constitutivo a usucapião ou outra forma de constituição voluntária. Será até natural, desde logo por razões de boa vizinhança, que se aceite que o confinante encravado exerça passagem para normal exploração de seu prédio sem exigência de declaração judicial e indemnização. Trata-se, afinal, de reconhecer um direito.

Por isso se tem afirmado que, correspondendo ao direito potestativo de a constituir, a servidão legal só mediatamente decorre da lei, resultando a sua verdadeira fonte ou modo de constituição da vontade das partes, de sentença constitutiva ou de acto administrativo, “com suporte naquele direito”. Essencial para a constituição da servidão legal é a situação de prédio encravado (ac. STJ, de 18/11/04 e de 9/7/98, ITIJ-proc. n.º 04B3602 e 98A517).

Com efeito, explicitando melhor, na servidão legal confere-se o poder legal para constituir a servidão. A servidão é imposta por lei embora não resulte imediatamente dela, isto é, a lei não basta para a sua constituição.

Para que tais servidões se constituam é necessário, na falta de acordo das partes, que se verifique se existem ou não as condições legais para eu seja imposta a servidão e a sua constituição autorizada.

Enquanto a servidão não está constituída traduz-se numa restrição legal ao direito de propriedade mas, uma vez constituída, fica sujeita ao regime que as outras servidões cuja constituição não é imposta por lei têm.

Por isso se referiu já que quando se fala em servidão legal se tem em vista o também mencionado poder legal para a constituição, correspondente a um primeiro momento atinente ao encargo legal sobre o prédio. Depois, há um segundo momento, a distinguir daquele, em que a restrição legal se transforma, como em qualquer outra servidão, em encargo excepcional, em servidão propriamente dita. Tal sucede quando o titular da restrição legal, por acordo com o outro proprietário ou através de acção judicial e coactivamente vê constituída a servidão.

Na verdade, sendo as servidões legais apenas impostas por lei mediatamente, tal significa e exige que a sua constituição fique dependente da intervenção das pessoas, da prática “de um facto voluntário do qual imediatamente derivam” (PIRES DE LIMA, “Lições de Direito Civil –Direitos Reais”, comp. de DAVID A. FERNANDES, 3.ª ed., 302 e 317).

Assim, a par das servidões voluntárias propriamente ditas, pode falar-se em servidões consti­tuídas voluntariamente, apesar de poderem ser impostas coercivamente. Tratar-se-á daquelas hipóteses em que, concorrendo os pressupostos de constituição da servidão (legal) por via judicial, os interessa­dos, reconhecendo-os, constituem o encargo por acordo.

Quando tal suceda, a coincidência e coexistência dos requisitos de constituição da servidão legal, no momento da constituição da servidão voluntária com o mesmo conteúdo, é de molde a justificar a apli­cação do mesmo regime, independentemente da forma de constituição ou, nas palavras da lei, “qual­quer que tenha sido o título constitutivo”.

Efectivamente, sendo o escopo da preferência legal “pôr cobro a situações em que se possa recorrer a meios de soberania para constituir servidões ou em que a ameaça a esse recurso conduza, ou possa con­duzir, a uma «contratação» não inteiramente livre” (MENEZES CORDEIRO, “Servidões legais e direito de preferência”, CJ XVII-I-77), não se vê que, perante o que se deixou dito, essa ratio legis não esteja presente.

Conclui-se, pois, com a jurisprudência largamente dominante, que o conceito de servidão legal, para os fins previstos no art. 1555º, abrange as servidões constituídas por qualquer título, mas que, se não fosse a existência desse título, podiam ser judicialmente impostas, e não apenas as que tenham por título a sentença, concedendo o direito de preferência aos proprietários de prédios onerados com o en­cargo legal de constituição de servidão, encontrando-se esta efectivamente constituída, qualquer que tenha sido o título, nomeadamente por usucapião (cfr, por todos, o ac. deste Supremo de 24/2/99, in BMJ 484º-389 (98A1016-ITIJ)”.

Também o acórdão deste STJ de 24/6/10 (Procº 2370/04.2.TNVFR), apesar de versar um caso em que a servidão se constituiu, não por usucapião, mas por destinação do pai de família), é muito esclarecedor a respeito do assunto. Veja-se:

“ Na anotação ao acórdão deste Supremo Tribunal de 23 de Março de 1995, em Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 129º, pág, 187 e segs., Manuel Henrique Mesquita escreveu: “segundo enten­dimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, o direito de opção que o artigo 1555º atribui ao pro­prietário do prédio serviente pressupõe apenas a existência de uma servidão legal de passagem – isto é, de uma servidão estabelecida em benefício de um prédio encravado, seja qual for o título por que se tenha constituído. Como é sabido, uma servidão legal pode constituir-se por qualquer dos títulos de constituição das servidões voluntárias e, além disso, por sentença e, no caso de certas servidões de águas, por decisão administrativa”.

O mesmo entendimento se encontra, por exemplo, em Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ªed., Coimbra, 1984, pág. 644 e segs., onde se sustenta que a redacção do nº 1 do artigo 1555º – “qualquer que tenha sido o título constitutivo” – pôs termo à dúvida, que se colocava face ao direito anterior, “de saber se a preferência só existia no caso de a servidão de passagem se ter constituído mediante sentença ou se estendia aos próprios casos em que ela nascera de destinação do pai de família ou de negócio entre as partes” (pág. 645).

....

Com efeito, resulta do disposto no nº 1 do artigo 1555º do Código Civil que “o proprietário de prédio onerado com a servidão legal de passagem, qualquer que tenha sido o título constitutivo, tem direito de preferência, no caso de venda (…) do prédio dominante”.

Para tanto, exige-se que a servidão de passagem que onera o seu prédio seja imposta por lei, isto é, que o prédio que dela beneficia se encontre numa situação à qual corresponda a atribuição ao seu proprietá­rio do direito (potestativo) de constituir uma servidão de passagem, pela via judicial se necessário. A servidão que, nessa situação, se constitua é uma servidão legal.

Em termos práticos, e como decorre no nº 1 do artigo 1550º do Código Civil, é necessário, mas não suficiente, que o prédio se encontre encravado (no sentido dos nºs 1 e 2 deste mesmo artigo); para além do encrave, é imprescindível que a servidão tenha sido constituída em data anterior ao exercício do direito de preferência.

Mas é irrelevante, para o efeito da atribuição do direito de preferência, o modo concreto como se consti­tuiu a servidão legal de passagem (nºs 1 e 2 do artigo 1547º do Código Civil).

O recorrente discorda desta afirmação, como se viu. No entanto, a relevância da situação de encrave e da constituição da servidão, por um lado, e a irrelevância do título constitutivo, por outro, é o que re­sulta da letra da lei e da sua razão de ser.

É desde logo este o sentido que se retira da conjugação do nº 1 do artigo 1555º do Código Civil, quando se refere a qualquer título constitutivo, com os nº 1 e 2 do artigo 1547º, dos quais resulta que as servi­dões legais podem ser constituídas, “conforme os casos”, por sentença judicial ou por decisão adminis­trativa, ou ainda por qualquer uma das formas previstas no nº 1 (contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família). A distinção entre os dois números explica-se, naturalmente, pela cir­cunstância de só poderem ser exercidas coactivamente as servidões impostas por lei.

....

Ora é manifesto que a forma de constituição de uma servidão de passagem é irrelevante para averiguar se ocorre ou não a razão que levou a lei a reconhecer ao proprietário de um prédio onerado com uma servidão de passagem o direito de preferência, em caso de venda do prédio dominante.

Como se escreveu já no acórdão de 10 de Julho de 2008 (www.dgsi.pt, proc. 07B1994), “traduzindo-se na atribuição ao preferente, por lei, da faculdade de, em igualdade de condições, se substituir ao adqui­rente de uma coisa, em certas formas de alienação, o direito legal de preferência afecta significativa­mente o poder de disposição que integra o direito de propriedade, já que retira ao proprietário o direito de escolha do outro contraente. A sua criação resulta, portanto, da verificação da existência de razões de interesse público que se sobrepõem àquela liberdade de escolha, enquanto integrante dos poderes do proprietário.

A verdade, todavia, é que essas razões de interesse público acabam, em regra, por se reconduzir à pro­tecção da mesma plenitude do direito de propriedade, considerada, agora, do ponto de vista da situação resultante do acto de alienação.

....

Nos casos da preferência conferida ao proprietário do prédio onerado com uma servidão de passagem (artigo 1555º do Código Civil), com o direito de superfície (artigo 1535º do Código Civil) ou com um arrendamento (…) o objectivo é o de reunir numa mesma pessoa as faculdades que, contidas no direito de propriedade plena, se encontravam repartidas entre diversos titulares: entre o proprietário e o titu­lar do direito real menor, nas duas primeiras hipóteses, entre aquele e o arrendatário na terceira (não interessando agora a discussão quanto à natureza do seu direito, já que o arrendamento onera o direito de propriedade de forma quase tão intensa como os direitos reais menores).”

Justifica-se, assim, que a lei o reserve às situações que ela própria considera exigirem a servidão, com a consequente sobreposição de direitos reais; por isso o restringe, no nº 1 do artigo 1555º, às servidões legais.

No caso de um prédio encravado, é pois a sua situação de encrave que justifica, primeiro, que se con­ceda ao seu proprietário o direito de constituir uma servidão de passagem sobre os prédios vizinhos e, depois, caso a servidão se constitua, que se compense os proprietários dos prédios onerados com a pos­sibilidade de provocarem a extinção dessa oneração preferindo na venda do prédio dominante (mas já não na hipótese inversa). Mas é indiferente, neste quadro, o título constitutivo do direito de servidão”.

Por último, cabe mencionar o acórdão de 2/12/12 (Procº 1241/07.5TBFIG.C1.S1) [1], cujo su­mário, resumindo com todo o rigor a fundamentação nele adoptada, é do seguinte teor:         

I - A servidão predial é um direito real de gozo sobre coisa alheia (ou direito real limitado), mediante o qual o dono de um prédio tem a faculdade de usufruir ou aproveitar de vantagens ou utilidades de prédio alheio (ius in re aliena) em benefício do seu, o que envolve correspondente restrição ao gozo efectivo do dono do prédio onerado, na medida em que este fica inibido de praticar actos susceptíveis de prejudicar o exercício da servidão.

II - O critério decisivo diferenciador entre servidões legais e voluntárias reside exclusivamente na cir­cunstância de as primeiras, ao invés do que acontece com as últimas, poderem ser impostas coactiva­mente, sendo que, pela circunstância destas não terem sido impostas coercivamente, por terem os do­nos dos prédios servientes aceite voluntariamente a inerente sujeição, não perdem essa natureza.

III - Do art. 1550.º do CC retira-se que, existindo encrave de um prédio, que tanto pode ser absoluto, se não tiver qualquer comunicação com a via pública, como relativo, se não tiver

condições de a estabelecer sem excessivo incómodo ou dispêndio ou a comunicação que tem com a via pública se mostrar insuficiente, o seu dono pode impor coactivamente a passagem e a servidão daí re­sultante é considerada legal.

IV - O art. 1555.º do CC faz depender o direito de preferência na alienação do prédio encravado de dois pressupostos essenciais: a) que o prédio do proprietário preferente esteja onerado com servidão legal de passagem, ou seja, sujeito ao regime de servidão imposta por lei, ao abrigo do regime do art. 1550.º do CC; e, b) que a servidão de passagem esteja constituída, isto é, não bastará a situação de encrave e a possibilidade de exercício do direito de exigir a passagem; tem de haver já um título que legitime a pas­sagem sobre o prédio do preferente para acesso ao prédio alienado.

V - O conceito de servidão legal, para os fins previstos no art. 1555.º do CC, abrange as servidões constituídas por qualquer título, mas que, se não fosse a existência desse título, podiam ser judicial­mente impostas, e não apenas as que tenham por título a sentença, concedendo-se, nessa medida, o direito de preferência aos proprietários de prédios onerados com o encargo legal de constituição de ser­vidão, encontrando-se esta efectivamente constituída, qualquer que tenha sido o título, nomeadamente por usucapião.

No caso dos autos não há qualquer dúvida sobre a existência duma servidão de passagem consti­tuída por usucapião a favor do prédio objecto da preferência em data anterior à da respectiva alienação (alíneas Q), R) e AA); a questão suscitada na conclusão 2ª do recurso, por isso, não pode proce­der.

c) A terceira e última questão posta diz respeito ao abuso do direito imputado aos autores por pretenderem, segundo os recorrentes, adquirir um prédio por preço 46 vezes inferior ao seu valor real.

Torna-se patente, no entanto, a insubsistência de semelhante alegação.

Não podemos senão manifestar a nossa inteira concordância com o que se diz no acórdão recorrido, na parte que interessa, tornando-se ocioso acrescentar seja o que for.

É o seguinte:

“Na verdade, os autores apenas dispunham de duas alternativas: ou preferiam pelo preço aparente (o declarado) ou, se entendessem que este era simulado, pelo preço real. Não podiam preferir pelo valor real, a não ser, eventualmente, pela via da simulação, e depois de esta ser declarada (Galvão Teles, Ma­nual dos Contratos em Geral, pág. 182).

Ora, se não podiam preferir pelo valor real, e se, para o exercício do direito de preferência não tinham outra alternativa que não fosse a de preferirem pelo preço declarado na escritura, não se pode dizer que os autores tenham abusado do direito de preferência, excedendo os limites impostos pela boa fé ou pelos bons costumes, sob pena de, com o pretexto de que existe abuso de direito, se estar a negar-lhes, na prática, o exercício desse direito. E a inviabilizar esse exercício em todas as situações em que, por qual­quer motivo, as partes declaram um preço muito inferior ao valor real do bem e os preferentes não têm elementos para provar que o preço declarado é simulado e é outro o preço real.

Se os preferentes não têm outra alternativa senão a de preferirem pelo preço declarado, não se pode asseverar que estão a afrontar a boa fé ou a exceder os limites impostos pelos bons costumes. Não se pode afirmar que existe desproporcionalidade entre a vantagem auferida por eles, como titulares do direito, e o sacrifício imposto aos réus. Se os réus declararam comprar por € 648,44 (130.000$00), e assumiram esse preço, por que razão se há-de entender que, com a preferência, o desapossamento do bem representa para eles um sacrifício injusto?

É evidente que a preferência por aquele preço se traduz num enriquecimento para os autores, na me­dida em que pagam apenas € 648,44 por um bem que vale, pelo menos, €30.000.

Porém, não se pode dizer que este enriquecimento seja injusto (ou injustificado). Não se provou que os compradores declararam aquele preço e pagaram outro. E, por isso, não se vê razão para que os autores paguem mais do que os adquirentes, que vão substituir. O enriquecimento dos autores não se apre­senta, pois, como injustificado, à luz das concepções ético-jurídicas dominantes”.

Improcedem, assim, ou mostram-se deslocadas todas as conclusões do recurso.

3. Decisão

Nega-se a revista.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 27 de Outubro de 2015

Nuno Cameira (Relator)

Salreta Pereira

João Camilo

__________________
[1] Todos os acórdãos citados no texto estão acessíveis em www.stj.pt.