1. Para efeitos de nulidade dos acórdãos da Relação como fundamento em omissão de pronúncia, consideram-se definidores das questões solvendas:
a) – por um lado, os invocados erros de direito na determinação, interpretação e aplicação das normas convocáveis para o caso, à luz do disposto no art.º 639.º, n.º 2, do CPC;
b) – por outro lado, em sede de impugnação da decisão de facto, a especificação dos pontos de facto tidos por incorretamente julgados e que cumpre ao impugnante indicar nos termos do art.º 640.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código.
2. Já não constituem questões, para aqueles efeitos, os argumentos jurídicos ou probatórios discreteados no âmbito das questões assim definidas.
3. O não atendimento de determinado meio de prova, em sede de apreciação da decisão de facto, não se traduz em omissão de pronúncia, mas, quando muito, em erro de julgamento.
4. A preterição das proibições de celebração de escrituras públicas que envolva transmissão de prédios urbanos, sem a prova suficiente da existência da correspondente licença de utilização ou de construção, consoante o caso, e sem a certificação da existência da ficha técnica de habitação, respetivamente nos termos do artigo 1.º do Dec.-Lei n.º 281/99, de 26-07, e do art.º 9.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 68/2004, de 25-03, importa a nulidade do negócio celebrado com infração dessas proibições, nos termos do art.º 294.º do CC.
5. A tais proibições subjazem interesses de ordem pública que, para além da proteção dos consumidores, visam obviar à construção clandestina e promover a transparência e segurança do mercado habitacional, como resulta da evolução legislativa neste domínio e como vem sendo reconhecido pela jurisprudência.
6. Aquelas formalidades traduzem-se assim em requisitos legais habilitantes da celebração do negócio e concomintantes desta.
7. Do quadro de sanções contra-ordenacionais e acessórias previsto nos artigos 5.º e 6.º do Dec.-Lei n.º 281/99, de 26-07, e dos artigos 13.º e 14.º do Dec.-Lei n.º 68/2004, de 25-03, não resulta que tais sanções alcancem, especificamente, os comportamentos violadores daquelas proibições.
8. Assim, tendo em conta os fins visados por aquela normas proibitivas, o teor perentório dos comandos nelas contidos e não resultando da lei outra solução sancionatória, a preterição dessas normas não pode deixar de implicar a nulidade do negócio, por força do preceituado no artigo 294.º do CC.
9. Essa nulidade é arguível, nos termos do art.º 286.º do CC, por qualquer interessado, afetado pela celebração do negócio, a quem é legítimo contar com tais proibições.
I – Relatório
1. AA (A.) instaurou, em 2006, junto do Tribunal Judicial de Esposende, ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, em que demandou BB e cônjuge CC (1.ºs R.R.), bem como DD e cônjuge EE (2.ºs R.R.), alegando, em resumo, que:
. O A. é legítimo portador de uma letra de câmbio, no montante de € 20.869,50, sacada em 04/01/2006, aceite pelos 1.ºs R.R. e vencida em 04/04/2006, a qual nunca foi paga, apesar de sucessivas interpelações para tal;
. Em face disso, o ora A. instaurou uma ação executiva com base nessa letra, no decurso da qual veio a constatar-se que os 1.ºs R.R. não possuíam qualquer património, mas que, em 16/02/2006, tinham celebrado uma escritura pública, em que declararam vender aos 2.ºs R.R. um prédio urbano de que eram proprietários, o que fizeram, simuladamente, com o único propósito de lesar os interesses patrimoniais do A.;
. Além disso, para a celebração daquela escritura, os R.R. fizeram, deliberadamente, a exibição de um alvará de utilização e de uma ficha técnica respeitantes a um outro prédio confinante com o dos 1.ºs R.R..
O A. concluiu, pedindo:
A – Em primeira linha, que fosse:
a) – declarado nulo e de nenhum efeito o contrato de compra e venda celebrado entre o 1.º R. marido e o 2.º R. marido, titulado pela escritura pública de 16/02/2006, reproduzida a fls. 88 e seguintes do livro de notas para escrituras diversas n.º 296-E do Cartório Notarial de Esposende, relativa ao prédio indicado;
b) – e ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos efetuados com base no ato referido, designadamente o registo de aquisição a favor dos 2.ºs R.R., bem como aqueles que se seguirem e que resultem diretamente daquela transmissão;
B – Subsidiariamente, que fosse:
a) - declarado ineficaz, em relação ao A., o ato de compra e venda titulado pela escritura pública, celebrada em 16/02/2006, relativo ao sobredito prédio, restituindo-se o bem assim alienado ao património do 1.º R. marido;
b) – e ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos efetuados com base no ato declarado ineficaz, bem como aqueles que se seguirem e dele resultem diretamente;
2. Regularmente citados, apenas os 2.ºs R.R., DD e cônjuge EE, contestaram, impugnando a alegada simulação e sustentando que a licença e ficha técnica apresentadas na outorga da escritura de compra e venda em causa se deveu a mero lapso dos 1.ºs R.R..
Concluíram pela improcedência da ação.
3. Findos os articulados, foi proferido despacho saneador e selecionada a matéria de facto tida por relevante com organização da base instrutória.
4. Realizada a audiência final e decidida a matéria de facto contro-vertida, foi proferida sentença final, a julgar a ação totalmente improcedente.
5. No recurso dessa decisão então interposto pelo A., o Tribunal da Relação de Guimarães julgou parcialmente procedente a apelação, confirmando a decisão da 1.ª instância na parte respeitante à improcedência da ação sobre a pretensão fundada em simulação e/ou em impugnação pauliana, mas anulando parcialmente o julgamento e determinando o adiamento de dois novos artigos à base instrutória para efeitos de apreciação da questão fundada na alegada nulidade da escritura de compra e venda por falta de licença de habitabilidade.
6. Repetido o julgamento sobre a matéria aditada, foi proferida nova sentença a fls. 1256-1265, datada de 02/04/2013, a julgar a ação procedente, quanto à pretensão ainda subsistente, decidindo-se:
a) – declarar a nulidade do contrato de compra e venda, bem como a correspetiva escritura pública, celebrado em 16/02/2006, respeitante ao prédio urbano composto por casa com dois pavimentos e logradouro, sito na Av. …, freguesia de Forjães, concelho de Esposente, descrito na respetiva Conservatória do Registo Predial sob o n.º …, correspondente ao art.º … da matriz;
b) – determinar o cancelamento dos registos efetuados ao abrigo da referida escritura.
7. Desta feita, vieram os 2.ºs R.R. apelar daquela decisão para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, através do acórdão de fls. 1366-1382, datado de 22/01/2015, julgou a apelação improcedente, confirmando a decisão da 1.ª instância.
8. Mais uma vez inconformados, vêm os mesmos R.R. recorrer de revista, formulando as seguintes conclusões:
1.ª - Os recorrentes não se conformam com o teor de acórdão recorrido, pelo que interpõem o presente recurso de revista extraordinária, não sem antes arguir da constatação de duas nulidades por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC;
2.ª - Constando dos autos que o prédio possuía licença de construção à data da outorga da escritura pública ora em crise, o Tribunal não se pronunciou sobre essa questão, aflorada pelos recorrentes em sede do seu recurso;
3.ª - Por outro lado, no acórdão é também ausente a fundamentação da decisão que determina a inadmissibilidade de junção do documento junto aos autos;
4.ª - O documento junto aos autos consiste na licença de utilização reportada ao prédio vendido por escritura pública a 16 de fevereiro de 2006, pelos 1.º R aos 2.º R., que o Tribunal entendeu declarar nula, face à inexistência de licença, à data da sua outorga;
5.ª - Com efeito, o acórdão, ao não admitir a junção aos autos da junção da licença de utilização respeitante ao prédio objeto da transmissão ora em causa, não emite qualquer juízo fundado sobre a oportunidade da sua junção e mais importante que tudo, sobre a sua necessidade ou pertinência;
6.ª - A decisão que não admite a junção aos autos da licença de utilização, não identifica sequer o documento junto, não aprecia os fundamentos nos termos do qual se considerou que a sua apresentação não foi possível (alegados pelos recorrentes) bem como não justifica porque é que o documento em causa se mostra irrelevante para a decisão em causa (quando a escritura de compra e venda neste autos, é declarada nula, precisamente pela inexistência do documento ora junto aos autos).
7.ª - O acórdão limitou-se a afirmar que "além do mais, o documento em questão se mostra irrelevante para a decisão da causa", sem haver emitido um juízo fundado sobre a sua desnecessidade ou impertinência;
8.ª - Relembra-se que o documento em causa, não só não é irrelevante para a decisão da causa, como a sua inexistência até à data, é a própria razão de ser desta causa, e sobre a qual o tribunal tem de se pronunciar, em concreto: quais as consequências da transmissão de prédio urbano, quando o mesmo não possui licença de utilização, exigível por força do artigo 1.º do DL 281/99.
9.ª – É legitima e fundada a reapreciação da decisão em crise, não obstante tratar-se de decisão que confirma a proferida em 1.ª Instância;
10.ª - Assim defendem os recorrentes na medida em que a presente causa é questão cuja apreciação, pela sua relevância é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, nos termos do artigo 672.º, n.º 1, al. a), do CPC;
11.ª - Nos termos do artigo 671.º, n.º 1, al a), há relevância jurídica necessária para uma melhor aplicação do direito quando se trate de questão manifestamente complexa, de difícil resolução, cuja subsunção jurídica imponha um importante e detalhado exercicio de exegese, um largo debate pela doutrina e jurisprudência com o objetivo de se obter um consenso em termos de servir de orientação;
12.ª - Essa orientação impõe-se quer para as pessoas que possam ter interesse jurídico ou profissional na resolução de tal questão a fim de tomarem conhecimento da provável interpretação com que poderão contar das normas aplicáveis, quer para as instâncias, por forma a obter-se uma melhor aplicação do direito;
13.ª - Tal questão exige definição, quer para as pessoas que possam ter interesse profissional na sua resolução, quer para as instâncias, sobretudo quando em causa divergências nas consequências legais da celebração de ato notarial, com omissão de um elemento exigido nos termos do artigo 1.º, n.º 1. do DL n.º 281/99;
14.ª - Com efeito, enquanto o Tribunal no caso em apreço, entende que a mesma deve ser sancionada com nulidade, as instâncias notarias (Instituto de Registo e Notariado) têm tratado esta questão como uma irregularidade sanável, tal como se demonstrou pela junção de Doc. 1 e 2 - veja-se excerto de Parecer emitido pelo Conselho Técnico do Instituto de Registos e Notariado, a 17/12/2007, junto como Doc.:
(. . .) A violação da norma plasmada no artigo 1.º. apesar de imperativa. não acarreta. contudo. a nulidade do negócio jurídico. A escritura de transmissão da propriedade das fracções autónomas que não refira a exibição da licença de utilização, embora enferme de irregularidade, não afecta a validade do acto nela titulado, pelo que a omissão pode ser sanada posteriormente mediante a junção daquela licença ao pedido de registo correspondente, sob pena de o mesmo ser lavrado como provisório por dúvidas
15.ª - Ou ainda excerto da deliberação do Presidente do Instituto de Registos e Notariado de 06/08/2007, cuja cópia se junta como doc. 2:
«Não obstante, realizada como se mostra a escritura em apreço, o facto de não constar da dita a certificação por parte do notário da existência da ficha técnica de habitação e da entrega da mesma ao comprador, em conformidade com a exigência legal inserta no citado artigo 9. o do D. L. n. o 68/2004, de 25 de Março, não é determinante da nulidade do acto , mas apenas da sua irregularidade formal, pelo que tal omissão poderá ser sanada, em sede de pedido de conversão do registo, através da apresentação da ficha em causa, por parte do interessado - na eventualidade da obtenção, entretanto conseguida, da requerida licença de utilização e consequente elaboração da FTH Considerando que a norma do preceito legal em causa não determina, ela própria, a consequência da nulidade para o caso da sua violação, não consagrando também uma outra sanção, a nulidade pode resultar da aplicação_ do art. o 294. c.c., depois de feita a interpretação do preceito violado, como também, atenta a ressalva aí feita, nem todas as violações de normas imperativas acarretam a nulidade do negócio jurídico.»
16.ª - Assim, o tratamento jurídico adequado desta questão importa sobremaneira por razões que se prendem com a proteção do interesse geral na boa aplicação do direito, em termos em que se possa seguramente determinar qual a sanção efetiva para a violação do preceituado no art.º 1.º, n.º 1, do DL n.º 281/99? Será a nulidade absoluta, ou pode essa nulidade, vir a ser derrogada, considerados os interesses em presença e o escopo visivelmente visado pelo legislador?
17.ª - O artigo 294.º do CC diz que os «negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei»;
18.ª - A expressão «salvo nos casos em que outra solução resulte da lei», visa excetuar do principio geral da nulidade dos atos, contrários à disposição legal de carácter imperativo, apenas aqueles casos em que a nulidade resulta pouco adequada, considerados os interesses em presença e o escopo visivelmente visado pelo legislador.
19.ª - Na perspetiva dos Recorrentes, considerado o histórico processual, in casu, o tipo de ação, o pedido principal (impugnação pauliana), os interesses em presença e o escopo da lei, e a regularização da situação que deu causa à nulidade, tem-se esta por muito pouco adequada;
20.ª - Em suma, e com o devido respeito, de todos os interesses que a presente decisão teria o mérito de defender, (o do ordenamento do território, a segurança jurídica, a protecção de adquirente de boa fé) só defende um: ... o de um credor com interesse na presente nulidade porquanto logrou registar penhora anterior à da aquisição;
21.ª - Em suma, porquanto não se trata meramente da apreciação de uma questão com relevância para as partes, mas sim de uma questão com relevância necessária para uma melhor aplicação do direito, entendem os Recorrentes, que a decisão proferida deve ser submetida à sindicância deste Supremo Tribunal, para que este se pronuncie se perante a celebração de uma escritura em contravenção do disposto no artigo 1.º, n.º 1, do DL n.º 281/99 pode e dever ter a aplicabilidade a 2.a parte do artigo 294.° do CC, ponderados os interesses em presença e o escopo do legislador;
22.ª - Por outro lado, o acórdão recorrido está em contradição com outro já transitado em julgado, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 18-02-2012;
23.ª - Com efeito, o sumário do acórdão ora em crise contraria o acórdão-fundamento que no domínio da mesma legislação entende que a proibição estabelecida pelo n.º 1 do art.º 1.º do DL n.º 281/99, estipula tão só que a escritura celebrada em contravenção a tal comando determina a aplicação de coimas e outras sanções acessórias.
24.ª - Face ao exposto, e pela reunião, in casu, dos pressupostos a que alude o artigo 672.º, n.º 1, alíneas a) e c), do CPC, é inegável estarmos perante interesses de particular relevância jurídica que devem ser submetidos à douta sindicância deste Supremo Tribunal de Justiça, até porque não se trata de questão pacifica face à junção do acórdão-fundamento.
9. Por sua vez, apresentou contra-alegações, a pugnar pela improcedência da revista, rematando com o seguinte quadro conclusivo:
a) – Tendo o acórdão recorrido confirmado, sem voto de vencido e com a mesma fundamentação, a decisão da 1.ª instância, ocorre dupla conforme a tornar inadmissível a revista, nos termos do n.º 3 do art.º 671.º do CPC;
b) – O Tribunal “a quo” pronunciou-se sobre a alegada sanação da nulidade prevista no artigo 1.º, n.º 1, do D.L. n.° 281/99;
c) - A não admissão da junção de documento foi objeto de decisão de fls. 1334 e 1335, a qual não foi impugnada pelos Recorrentes;
d) - A decisão do Tribunal “a quo” encontra-se devidamente fundamentada;
e) - Não se vislumbra em que medida a questão mencionada no recurso ora interposto seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;
f) - Os pareceres ou deliberações do IRN não são enquadráveis no conceito de doutrina ou jurisprudência;
g) – Caso a lei não determine sanção diversa, a violação de normas imperativas conduz à nulidade do negócio, nos termos do artigo 294.º do CC;
h) - O artigo 70.º do Código do Notariado não é aplicável ao presente caso, dado não estarmos perante um vício de forma;
i) - O A. é interessado na arguição de nulidade, visto que o mesmo é titular de um direito conflituante com o direito de propriedade alegado pelos RR. e que resulta da escritura viciada;
j) – Não estamos perante qualquer nulidade atípica e sanável;
k) – O acórdão recorrido e o acórdão fundamento não se debruçam sobre a mesma questão fundamental de direito, pelo que não se verifica o circunstancialismo previsto no artigo 672.º, n.º 1, alínea c), do CPC;
l) – Não existe qualquer fundamento para a revista excepcional pretendida pelos Recorrentes, pelo que não deve a mesma ser admitida.
10. Tendo a revista sido interposta a título excecional, ao abrigo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art.º 672.º do CPC, os autos foram remetidos, para apreciação preliminar, à formação dos três juízes deste Supremo prevista no n.º 3 do indicado normativo que, através do acórdão de fls. 1513-1514, de 18/06/2015, deliberou não se colocar, por ora, a aplicação daquele regime, uma vez que, atenta a data da propositura da ação, não opera o impedimento da dupla conforme.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Delimitação do objeto dos recursos
Antes de mais, cumpre referir que, atenta a data da propositura da ação (em 2006), o valor da alçada da Relação então em vigor (€ 14.963,94) e o valor da causa (€ 14.963,95), tendo o acórdão recorrido sido proferido em 22/01/2015 e sendo a sucumbência dos Recorrentes total, o presente recurso de revista é admissível, nos termos do atual n.º 1 do art.º 629.º do CPC, aplicando-se o regime recursal decorrente do Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24-08, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, em vigor desde 01/09/2013, nos termos do n.º 1 do art.º 7.º desta Lei, ressalvado o impedimento da dupla conforme e a admissibilidade em função do valor da causa e da sucumbência, para o que relevam então os requisitos de admissibilidade em vigor à data da propositura da ação, como acima ficou referido.
Como é sabido, no que aqui releva, o objeto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, e 639.º, n.º 1, do CPC.
Dentro de tais parâmetros, o objeto do presente recurso de revista abarca as seguintes questões:
a) – a invocada nulidade do acórdão recorrido com fundamento em omissão de pronúncia sobre a existência da licença de construção à data da outorga da escritura pública aqui impugnada;
b) – a nulidade fundada na falta de fundamentação da decisão de não admissão do documento da licença de utilização respeitante ao prédio objeto da transmissão;
c) – o erro de julgamento quanto à nulidade do contrato de compra e venda ajuizado, em face do disposto nos artigos 1.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 281/99, de 26-07, e 9.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 68/2004, de 25-03, conjugados ainda com o art.º 294.º do CC.
III – Fundamentação
1. Factualidade dada como provada pelas Instâncias
Vem dada como provada pelas instâncias a seguinte factualidade:
1.1. O A. é portador de uma letra de câmbio no montante de € 20.869,50, sacada em 4 de janeiro de 2006, vencida no dia 4 de abril de 2006 e aceite pelos R.R. BB e CC;
1.2. Munido da referida letra, o A. instaurou uma execução contra os R.R. BB e CC para pagamento da quantia indicada na aludida letra e que corre termos sob o nº 698/06.6TBEPS, do 2º Juízo do Tribunal de Esposende;
1.3. Após ter instaurado a referida execução, o A. verificou que o 1.º R. marido, mediante a realização de uma escritura pública datada de 16 de fevereiro de 2006, lavrada de fls. 88 e seguintes do livro de notas para escrituras diversas nº 296-E do Cartório Notarial de Esposende, declarou vender ao 2.º R. marido e este declarou comprar o prédio urbano composto por casa com dois pavimentos e logradouro, sito na Av. …, freguesia de Forjães, concelho de Esposende, descrito na Conservatória do Registo Predial de Esposende sob o n.º … de Forjães, correspondente ao artigo … da matriz.
1.4. Os 1.ºs R.R., BB e CC, continuam a habitar a casa referida no ponto anterior, onde pernoitam, fazem as suas refeições e recebem visitas.
1.5. Os 2.ºs R.R. nunca foram vistos no referido prédio após a celebração da escritura pública acima referida.
1.6. No momento da celebração da dita escritura pública, foi exibido ao notário o alvará de licença de utilização n.º …/2004, emitido pela Câmara Municipal de Esposende e o exemplar de ficha técnica depositada na mesma entidade em 16/02/2006, documentos que dizem respeito a outro prédio, situado em terreno que confronta com o dos 1.ºs R.R..
1.7. Entre os 1.ºs e os 2.ºs R.R. foi subscrito o acordo que intitularam de “contrato de arrendamento”, datado de 1 de março de 2006, nos termos do qual o 2.º R. marido, DD, declarou dar de arrendamento, para habitação, aos 1.ºs R.R. o prédio acima referido, mediante a renda mensal de € 1.000,00.
1.8. A Caixa Geral de Depósitos, S.A., autorizou o cancelamento das hipotecas e do ónus de afetação ao cumprimento de obrigações hipotecárias que a seu favor se encontravam registadas na Conservatória do Registo Predial de Esposende, pelas inscrições C-2 e C-3 e que incidiam sobre o prédio urbano descrito na dita Conservatória sob o nº …-freguesia de Forjães, concelho de Esposende.
1.9. O prédio em causa acima referido era o único bem de que o 1.º R. marido era proprietário, não possuindo os 1.ºs R.R. quaisquer outros bens.
1.10. Existe uma relação comercial entre os 1.ºs e os 2.ºs R.R., pelo menos desde janeiro de 2002.
1.11. No âmbito da referida relação comercial, os 2.ºs R.R. encomendam aos 1.ºs R.R., em concreto à sociedade “FF, Ldª”, bem como às filhas destes, “GG, Ldª”, confeção a feitio.
1.12. Encontrando-se aquele imóvel hipotecado, cuidou o 2.º R. marido de desonerá-lo, encetando negociações com a instituição bancária detentora da hipoteca sobre o imóvel e procedendo ao pagamento de € 75.035,25.
1.13. Os 2.ºs R.R. não careciam do referido imóvel para a sua habitação e acordaram com os 1.ºs R.R. que estes aí continuariam a residir.
1.14. Os 1.ºs R.R. não pagaram, até à data, o montante constante da letra de câmbio referida em 1.1 e 1.2.
1.15. Os 2.ºs R.R. encarregaram um agente imobiliário de tratar de apurar o valor do prédio em questão para ponderarem a viabilidade da sua aquisição.
1.16. O prédio objeto da escritura aludida em 1.3 não tem licença de habitabilidade emitida pela Câmara Municipal de Esposende, nem ficha técnica depositada nesta instituição.
2. Do mérito do recurso
2.1. Quanto à invocada omissão de pronúncia
Os recorrentes argúem, em primeira linha, a nulidade do acórdão recorrido com fundamento em omissão de pronúncia, ao abrigo do 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, por não se ter ocupado da “questão” da existência de licença de construção do prédio ajuizado à data da outorga da escritura pública aqui em causa, aflorada pelos recorrentes em sede do seu recurso de apelação.
Ora, de harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 608.º do CPC, aplicável aos acórdãos da Relação por via da norma remissiva do n.º 2 do art.º 663.º do mesmo Código, o tribunal deve conhecer de todas as questões de mérito suscitadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso, salvo se as considerar prejudicadas pela solução dada a outras questões.
Parta tal efeito, no que aqui releva, constituem questões, por exemplo, cada uma das causas de pedir múltiplas que servem de fundamento a uma mesma pretensão, ou cada uma das pretensões, sob cumulação, estribadas em causas de pedir autónomas, ou ainda cada uma das exceções perentórias invocadas pela defesa ou que devam ser suscitadas oficiosamente.
E particularmente, na fase de recurso, constituem questões solvendas, as que delimitam o objeto daquele e que se traduzem:
a) – por um lado, nos invocados erros de direito na determinação, interpretação e aplicação das normas convocáveis para o caso, à luz do disposto no art.º 639.º, n.º 2, do CPC, como parâmetros definidores dessas questões;
b) – por outro lado, em sede de impugnação da decisão de facto, a especificação dos pontos de facto tidos por incorretamente julgados e que cumpre ao impugnante indicar nos termos do art.º 640.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código.
Assim, para tais efeitos, não se integram no conceito jurídico-processual de “questão” os argumentos jurídicos ou probatórios discreteados no âmbito das questões a solucionar, nem tão pouco as situações em que o tribunal porventura deixe de atender a factos alegados pelas partes ou licitamente introduzidos durante a instrução da causa, nos termos do art.º 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC, quando tais factos se mostrem indispensáveis para a decisão. Perante estas hipóteses, a sua invocação em sede de recurso, sendo procedente, impõe que o tribunal de recurso atenda ao facto em falta, se o mesmo se encontrar provado, ao abrigo do disposto no artigo 607.º, n.º 3, e 4, 2.ª parte, aplicável por força da norma remissiva do n.º 2 do artigo 663.º, ambos do CPC. Mas, se o facto em falta não se encontrar provado e for indispensável para a resolução da causa, então haverá que anular a sentença e determinar a ampliação da matéria em foco, ordenando a baixa do processo à primeira instância para repetição do julgamento, nessa parte sem prejuízo de apreciação de outros pontos da matéria de facto, de modo a evitar contradições, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), parte final, e n.º 3, alínea c), do CPC. Neste caso, o que releva, ao fim e ao cabo, é o erro de procedimento consistente em não se ter submetido a prova o facto em falta; daí que a consequência seja a anulação da sentença.
Em suma, o não atendimento pelo tribunal recorrido de um facto oportunamente alegado pelas partes ou licitamente adquirido para os autos, com relevância para a decisão de direito, jamais constitui fundamento de omissão de pronúncia, sem prejuízo de poder ser considerado, quando assente, em sede de erro de julgamento de facto ou, quando controvertido, como fundamento de repetição do julgamento para produção de prova sobre o mesmo.
No caso vertente, perante a sentença da 1.ª instância, os Recorrentes instruíram as suas alegações do recurso de apelação com o documento de fls. 1280-1282, intitulado “certidão n.º …/2012”, datado de 21/09/2012, emitido pelo Chefe de DARH da Câmara Municipal de Esposende, visando provar com ele a atribuição ao prédio em causa da licença de construção, de modo a sustentar a validade do contrato de compra e venda aqui em discussão.
Sobre tal requerimento de junção o Exm.º Relator do Tribunal de Guimarães proferiu o despacho de fls. 1334-1135, datado de 04/07/2014, em que não admitiu tal junção, considerando, nos termos conjugados dos artigos 524.º e 693.º-B do CPC, no essencial, que:
- por um lado, os recorrentes não demonstraram que não tivessem podido apresentar o documento em causa até ao momento do encerramento da discussão em 1.ª instância;
- por outro lado, não resulta que a sua apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior.
Na sequência disso, vieram ainda os Recorrentes requerer, em 12/ 08/2014, a junção do documento de fls. 1340, intitulado “Alvará de Autorização de Utilização n.º …/2014”, no processo n.º …/2000”, emitido pela Câmara Municipal de Esposende, em 23/07/2014.
Porém, o acórdão recorrido, a fls. 1381, voltou a considerar que, para essa junção tardia os Recorrentes não tinham igualmente demonstrado que não pudessem ter apresentado tal comprovação até ao encerramento da discussão em 1.ª instância nem que ela só se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência ulterior, além de considerar aquele documento irrelevante para a decisão da causa.
Em face deste contexto processual, tanto basta para, à luz do quadro normativo acima equacionado, se concluir que não ocorre o alegado vício de omissão de pronúncia.
Termos em que improcedem as razões dos Recorrentes neste particular.
2.2. Quanto à invocada nulidade por falta de fundamentação sobre a não admissão dos documentos juntos com a apelação
Os recorrentes invocam também a nulidade, fundada na falta de fundamentação, da decisão de não admissão dos documentos cuja junção foi requerida em sede de apelação.
Segundo o artigo 205.º, n.º 1, da Constituição, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. Esta diretriz constitucional está concretizada no artigo 154.º do CPC que reza o seguinte:
1 - As decisões sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada são sempre fundamentadas.
2 – A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
Por sua vez, o artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC sanciona com a nulidade da decisão as hipóteses de violação grave do dever de fundamentação.
Assim, a falta de fundamentação ocorre quando não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão.
Com efeito, a falta ou a ininteligibilidade da fundamentação de uma decisão só releva quando for de tal forma que não permita sequer a formulação de um juízo de mérito sobre a mesma, o que não sucede, por exemplo, em caso de mera mediocridade dessa fundamentação.
No caso vertente, as decisões do tribunal recorrido sobre a não admissão dos documentos juntos com o recurso de apelação mostram-se suficientemente explícitas sobre a falta de justificação para a pretendida junção tardia ou superveniente daqueles documentos, como se deixou acima referido.
Termos em que improcedem também aqui as razões dos Recorrentes.
2.3. Quanto à questão de fundo
A questão aqui em destaque consiste em saber se a não exibição de licença de utilização do prédio urbano em referência nem da correspondente ficha técnica, à data da outorga da escritura de compra e venda em apreço, respetivamente, nos termos prescritos no artigo 1.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 281/99, de 26-07, e do art.º 9.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 68/ 2004, de 25-03, implicam a nulidade daquele contrato, por força do disposto no art.º 294.º do CC ou se não afetam a sua validade, sendo essa inobservância apenas sancionada por via contra-ordenacional e de outras sanções acessórias.
Ambas as instâncias decidiram no sentido da nulidade do referido contrato.
Por sua vez, os Recorrentes sustentam a tese contrária, além do mais, ancorados no parecer do Instituto dos Registos e do Notariado n.º 125/2007 DSJ-CT, de 06/08/2007, junto a fls.1431-1457, e no acórdão da Relação de Lisboa, de 18/12/2012, proferido no processo n.º 1591/ 10.3TVLSB-A.L1-7, junto a fls. 1452-1460.
Vejamos.
O art.º 1.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 281/99, de 26-07, na redação em vigor à data da escritura pública aqui em referência[1], preceitua que:
Não podem ser celebradas escrituras publicas que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas sem que se faça perante o notário prova suficiente da inscrição na matriz predial, ou da respectiva participação para a inscrição, e da existência da correspondente licença de utilização, de cujo alvará, ou isenção de alvará, se faz sempre menção expressa na escritura.
E o art.º 2.º do mesmo diploma, no que aqui releva, dispõe que:
1 – A apresentação do alvará de licença de utilização, no caso de já ter sido requerido e não emitido, pode ser substituído pela exibição do alvará de licença de construção do imóvel, independentemente do respectivo prazo de validade, desde que:
a) – O transmitente faça prova de que está requerida a licença de utilização;
b) – O transmitente declare que a construção se encontra concluída, que não está embargada, que não foi notificado de apreensão do alvará de licença de construção, que o pedido de licença de utilização não foi indeferido, que decorreram mais de 50 dias sobre a data do seu requerimento e que não foi notificado para o pagamento das taxas devidas.
Por sua vez, o n.º 1 do artigo 5.º do mencionado diploma estabelece que:
Constituem contra-ordenações as declarações a que se referem a alínea b) do n.º 1 e n.º 2 do art.º 2.º quando emitidas em desconformidade com a verdade.
E o art.º 6.º prescreve que:
As contra-ordenações previstas no n.º 1 do artigo anterior podem ainda determinar, quando a gravidade da infracção o justifique, a aplicação das seguintes sanções acessórias:
a) – A interdição do exercício no município, até ao máximo de dois anos, da profissão ou actividades cujo exercício dependa de título público ou de autorização ou homologação de autoridade pública;
b) – A privação do direito a subsídios outorgados por entidade ou serviços públicos.
Por seu lado, o Dec.-Lei n.º 68/2004, de 25-03, veio estabelecer um conjunto de mecanismos que visam reforçar os direitos dos consumidores à informação e à proteção dos seus interesses económicos no âmbito da aquisição de prédio urbano para habitação, bem como promover a transparência do mercado, introduzindo a elaboração de uma ficha técnica da habitação.
Assim, o artigo 9.º, n.º 1, desse diploma estabelece que:
1 – Sem prejuízo de outras normas aplicáveis, não pode ser celebrada a escritura pública que envolva a aquisição da propriedade de prédio ou fracção destinada a habitação sem que o notário se certifique da existência da ficha técnica da habitação e de que a mesma é entregue ao comprador.
A par disso, o artigo 13.º do indicado diploma prevê diversas contra-ordenações, sem prejuízo de outras sanções aplicáveis, para as hipoteses ali figuradas respeitantes à elaboração da ficha técnica, mas que não compreendem a inobservância do preceituado no citado artigo 9.º, n.º 1, prevendo também o artigo 14.º sanções acessórias para os casos em que a gravidade dessas infrações o justifique.
Ora, as formalidades exigidas quer pelo artigo 1.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 281/99 quer pelo art.º 9.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 68/2004, embora visando reforçar a proteção dos consumidores adquirentes, têm também como finalidade essencial obviar à construção clandestina e promover a transparência e segurança das transações do mercado habitacional, assumindo, nessa medida, uma natureza imperativa e de ordem pública, subtraída, portanto, à disponibilidade das partes. Daí a proibição taxativa de celebração de escrituras públicas sem a apresentação da licença de utilização ou de construção de obra não concluída, bem como da respetiva ficha técnica.
De resto, como se observa no douto acórdão da Relação de Coimbra, de 02/03/2011, proferido no processo n.º 300/10.1TBTCS.C1, no âmbito de uma escritura pública de justificação notarial[2], a preocupação legislativa em evitar a construção clandestina mediante a exigência de comprovação da existência de licença de utilização remontará ao Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), aprovado Dec.-Lei n.º 38382, de 07/08/1951, que introduziu, sob o respetivo art.º 8.º, a necessidade de licença municipal para a utilização de qualquer edificação nova, reconstruída, ampliada ou alterada, quando da alteração resultem modificações importantes das suas características.
Mais tarde, o Dec.-Lei n.º 445/74, de 12/09, denominado “lei das rendas”, veio, no seu art.º 11.º, n.º 1, estabelecer a obrigatoriedade de exibição de licença de utilização na celebração de contratos que implicassem a transmissão da propriedade de fogos destinados a habitação ou de prédios urbanos que comportassem um ou mais fogos, bem como a exigência da sua menção no respetivo ato formal. Entretanto, o Dec.-Lei n.º 148/81, de 04/07, que revogou aquele diploma, também no seu art.º 13.º, estabeleceu a proibição de celebração de contratos que envolvessem a transmissão da propriedade de prédios urbanos destinados a habitação sem que se fizesse perante o notário prova suficiente da existência da correspondente licença de construção ou de habitação, quando exigível, da qual se faria sempre menção menção na escritura.
Posteriormente, a Lei n.º 46/85, de 20/09, que revogou o Dec.-Lei n.º 148/81, de 04-06, no seu artigo 44.º, n.º 1, na redação dada pelo Dec.-Lei n.º 74/86, de 23-04, manteve que não podiam ser celebradas escrituras públicas que envolvessem a transmissão da propriedade de prédios urbanos sem que se fizesse perante o notário prova suficiente da inscrição na matriz predial e existência da correspondente licença de construção ou de utilização, quando exigível, da qual se faria sempre menção menção na escritura.
Sucede que a expressão quando exigível suscitou divergências, levando à sua clarificação por via do Dec.-Lei n.º 281/99, de 26-06, como se alcança do respetivo preâmbulo, diploma este que então revogou o n.º 1 do art.º 44.º da Lei n.º 46/85.
Dessa evolução legislativa colhe-se a ideia de um continuado reforço da proibição de celebração de escrituras públicas que envolva a transmissão da propriedade de prédios urbanos sem que se faça prova suficiente da correspondente licença de utilização.
Por outro lado, tem-se vindo a consolidar uma linha de orientação jurisprudencial no sentido de considerar impeditiva da execução específica de contratos-promessa a falta de comprovação da existência da competente licença de utilização ou de construção, estribada precisamente na proibição estatuída seja no precedente art.º 44.º da Lei n.º 46/85, de 20/ 09, seja no subsequente art.º 1.º do Dec.-Lei n.º 281/99, de 26-07, como se expõe no acórdão da Relação de Lisboa, de 26/02/2004, proferido no processo n.º 9839/2003[3], em que se citam, nomeadamente os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11/03/1997, in C/Acs. do STJ, 1997, I, pag. 148, e de 24/02/1999, in BMJ 484.º, pag. 186.
No mesmo sentido, sublinhando a proibição do art.º 1.º do Dec.-Lei n.º 281/99 e os interesses de ordem pública que lhe subjazem, bem como a sua preterição como impeditiva de execução específica de contrato-promessa ou de celebração de outras escrituras de venda de prédios urbanos, se pronunciaram, respetivamente, os acórdãos do STJ de 03/12/2001, proferido no processo n.º 02A1283, e de 18/06 proferido no processo n.º 03B1747[4].
Não se ignoram, no entanto, posições doutrinárias contrárias, no sentido de retirar àquelas proibições a sanção negativa de nulidade dos contratos celebrados com inobservância da formalidades ali exigidas, entendendo que das razões dessa proibição se poderá extrair solução diversa para os efeitos da ressalva final do art.º 294.º do CC, como, aliás, se afigura decorrer dos pareceres do Instituto dos Registos e Notariado juntos a fls. 1431-1443, relativamente ao Dec.-Lei n.º 281/99 e a fls. 1444-14551 respeitante ao Dec.-Lei n.º 68/2004.
Porém, não se sufraga aqui tal entendimento, tendo em conta os interesses de ordem pública de obviar à construção clandestina e à transparência e segurança do mercado habitacional, evidenciados no crescente reforço legislativo daquelas proibições, como se parece perfilar no desenho evolutivo acima traçado. De que serviria afinal uma proibição literalmente tão perentória de celebração dos contratos ali visados para os fins preventivos tidos em vista, como são as dos artigos 1.º Dec.-Lei n.º 281/99 e do art.º 9.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 68/2004, se não tivesse repercussão na validade dos contratos celebrados sem tais formalidades.
Com efeito, embora essas formalidades não digam respeito à forma do negócio nem aos respetivos elementos essenciais, constituem ainda assim requisitos legais habilitantes da celebração do negócio e com esta concomitantes[5], cuja inobservância implicará a sua nulidade, salvo se outra solução resultar da lei, nos termos do artigo 294.º do CC, que nos parece não resultar.
É certo que os diplomas em referência prevêem sanções contra-ordenacionais e acessórias nos artigos 5.º e 6.º do Dec.-Lei n.º 281/99, de 16-07, e nos artigos 13.º e 14.º do Dec.-Lei n.º 68/2004, de 25-03, mas, salvo o devido respeito, diversamente do sustentado no acórdão da Relação de Lisboa junto a fls. 1452-1460, tais sanções não compreendem os casos figurados, respetivamente nos artigos 1.º e 9.º daqueles diplomas, o que significa que, sendo as normas destes artigos de natureza imperativa, a sua inobservância não encontra solução diversa a coberto de tais sanções.
Em suma, conclui-se que a preterição das proibições constantes dos artigos 1.º Dec.-Lei n.º 281/99, de 16-07, e do art.º 9.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 68/2004, de 25-03, importa a nulidade do negócio celebrado com infração das mesmas, por via do art.º 294.º do CC, sendo essa nulidade invocável por qualquer interessado, nos termos dos artigos 286.º do mesmo Código, na medida em que a celebração desse negócio afete aquele a quem é legítimo contar com tais proibições.
No caso vertente, da factualidade provada resulta que o prédio objeto da escritura pública de compra e venda referida em 1.3 não tinha então licença de habitabilidade emitida pela Câmara Municipal de Esposende, nem ficha técnica depositada nesta instituição. E nem sequer dos documentos juntos pelos Recorrentes a fls. 1280-1281 e 1340 resulta que existisse tal licença e ficha técnica à data da outorga da escritura pública em causa, razão pela qual tais documentos foram, além da não justificada junção tardia, tidos por irrelevantes para a resolução do pleito.
Nessas circunstâncias, não pode deixar de se concluir pela nulidade daquele contrato.
Termos em que se tem por acertada a decisão recorrida e, por consequência, improcedentes as razões dos Recorrentes.
IV - Decisão
Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
As custas do recurso ficam a cargo dos Recorrentes.
Lisboa, 29 de outubro de 2015
Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)
Carlos Alberto Andrade Bettencourt de Faria
João Luís Marques Bernardo
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[1] Ao referido artigo foi, entretanto, dada nova redação pelo Dec.-Lei n.º 116/2008, de 04/07, mas sem relevo para o presente caso.
[2] Acórdão relatado por Pedro Martins, acessível na Internet - http://www.dgsi.pt/jtrc.
[3] Acórdão relatado por Tibério Silva, no âmbito de um caso em que se discutia o incumprimento definitivo de um contrato-promessa e a irrelevância da falta de comparência do promitente-comprador à outorga da escritura do contrato definitivo, desde logo, inviabilizada pela falta de licença de utili-zação do prédio em causa – este acórdão encontra-se acessível na Internet – http:www.dgsi.pt.jtrl.
[4] Relatados, respetivamente por Armando Lourenço e Neves Ribeiro, acessíveis na Internet – http: www.dgsi.pt.jstj
[5] Sobre a caracterização de uma formalidade habilitante da celebração do negócio e concomitante com ela e a sua repercussão na validade do mesmo, embora num contexto diverso dos destes autos, vide acórdão do STJ, de 19/06/2012, relatado por Alves Velho, no processo 178-E/2001.C1.S1.