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ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANO BIOLÓGICO
Sumário
I - A indemnização pelo dano não patrimonial deve englobar a consideração do "dano moral", propriamente dito, na vertente do "pretium doloris" (ressarcimento da dor física sofrida) e na vertente do dano existencial e psíquico (o dano da vida de relação e o dano da dificuldade de "coping", ou seja, da dificuldade em lidar com a sua actual incapacidade, bem como a dificuldade nas relações sociais), a ansiedade sentida em relação a básicos actos da vida corrente, os sofrimentos emocionais permanentes, em suma o prejuízo de afirmação pessoal. II - Os valores a que se reportam as tabelas indemnizatórias da Portaria n° 377/08 (e daquela que a substituiu, Portaria n° 679/09), são valores que, na esteira das Directivas Automóvel, visam a solução rápida de litígios e a prevenção do litígio judicial, estabelecendo critérios orientadores de "propostas razoáveis" a apresentar pelas Seguradoras, que não quaisquer critérios (nunca por nunca derrogadores de lei) que se impusessem de per se aos tribunais. III - O peão de 68 anos de idade, reformado, com ocupações parciais, mas activo, que passou a padecer de incapacidade permanente geral de 9% e especificamente psiquiátrica de 10%, alcançando o "pretium doloris" o grau 4, em 7, vê o respectivo dano não patrimonial equitativamente indemnizado no montante de € 23 000 e o respectivo dano biológico também equitativamente indemnizado na quantia de € 15 000.
Texto Integral
• Rec. 11/08.8TBSJM.P1. Relator – Vieira e Cunha (decisão de 1ª instância de 12/01/2012). Adjuntos –Des. Maria Eiró e Des. João Proença Costa
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo ordinário nº11/08.8TBSJM, do 1º Juízo da Comarca de S. João da Madeira. Autor – B…….. Ré – C……, S.A.
Pedido
Que a Ré seja condenada a pagar ao Autor a quantia total de € 91.233,04, acrescida dos juros de mora, calculados à taxa legal, a contar da citação.
Tese do Autor
No dia 20/12/06, pelas 19,05h., na Rua Aliança F. Clube, da cidade de S. João da Madeira, ocorreu um acidente de viação envolvendo o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-NS, da propriedade e conduzido por D….., e o peão aqui Autor.
O acidente ocorreu quando o Autor circulava no passeio e foi colhido pelo veículo que, estacionado na via, mas não correctamente imobilizado, foi, com ausência de condutor, colher o Autor e passando com os rodados por cima do mesmo.
Computa o valor do dano patrimonial e não patrimonial no montante peticionado. Tese da Ré
Impugna motivadamente a natureza e o montante liquidado para o valor dos danos sofridos.
Sentença Recorrida
Na sentença, o Mmº Juiz “a quo”, na parcial procedência do pedido, condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia total de € 39 129,10, sendo € 1 129,10 a título de danos patrimoniais, € 23 000 a título de danos não patrimoniais e € 15.000 a título de dano biológico, quantia global essa acrescida de juros, à taxa civil, desde a citação até integral pagamento.
Conclusões do Recurso de Apelação da Ré:
1-A ora Apelante não se pode conformar com a douta sentença, no que respeita unicamente à sua condenação a pagar á demandante a quantia de 23.000,00€ a título de indemnização pelos danos não patrimoniais.
2-Apesar da situação clínica da ora Apelada ser digna e merecedora de tutela jurídica, não pode a mesma justificar a atribuição do montante designado no Tribunal “a quo”.
3-A quantificação relativamente aos danos não patrimoniais rege-se pelos critérios de equidade (quantificação equitativa). A sentença, pecou por excesso, não atendendo aos reais critérios de justiça e ponderação para onde se dirige este princípio.
4- Como resulta do relatório médico elaborado pelo IML, e consequentemente da douta sentença, ficou provado que:
- O Autor sofreu traumatismo torácico, com fractura de costelas, esterno e fractura de L1. Feridas na face e joelho esquerdo.
- Período de incapacidade temporária geral total desde 20-12-2006 a 30-01-2007.
- Período de incapacidade temporária geral parcial desde 31-01-2007 até 13-05-2007.
- A data de consolidação médico legal é fixável em 13-05-2007.
- Um Quantum Doloris no grau 5 em sete.
- O autor ficou a padecer de uma IPG de 9 pontos num total de cem pontos.
- O autor á data do acidente tinha 62 anos.
5- Na modesta opinião da recorrente, o valor da indemnização que mais se ajusta ao caso em apreço será de 12.500€.
6- Neste sentido, existe uma desproporcionalidade e desadequação, atento o caso concreto, na determinação do valor dos danos não patrimoniais. Não atendeu a douta sentença aos imperativos de justiça e aos critérios que a lei manda atender, aquando se deve aplicar o princípio da equidade.
7- No que se refere ao montante arbitrado a título de dano biológico € 15.000, o mesmo é manifestamente descabido e desajustado.
8- O dano biológico, já encontra actualmente consagrado no Direito Português, através da Portaria 337/2008 de 26 de Maio e revista pela Portaria 679/2009 de 25 de Junho ( Anexo IV).
9- As referidas portarias estabelecem os critérios sobre os quais incide o arbitramento de uma indemnização a título de dano biológico.
10- No caso em concreto foi fixada ao Autor um IPG de 9 pontos, tendo o mesmo 62 anos à data do acidente.
11- Nos termos da referida portaria a compensação devida pela violação do direito à integridade física e psíquica – Dano Biológico, varia entre € 384,84 e € 528,39.
12- A atribuição de uma indemnização a título de Dano biológico ao Autor, no montante de € 500 é ajustada e adequada
13- Pelo que fica supra alegado, o douto tribunal “a quo”, violou o disposto na lei processual, desde logo, o disposto nos artigos 496º e 494º ambos do Código Civil e os princípios da equidade, adequação e igualdade.
Em contra-alegações, o Autor pugna pela improcedência do recurso.
Factos Julgados Provados
A) No dia 20.12.2006, pelas 19h50m, na Rua Aliança F. Clube, a cerca de 10 metros da casa com o n. de polícia 293, atento o sentido Norte/Sul, em S. J. da Madeira, ocorreu um acidente de viação em que intervieram o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-NS, conduzido e pertencente a D….., e o Autor que circulava como peão e foi atropelado pelo referido veículo.
B) No local a Rua Aliança F. Clube, atento o sentido Norte/Sul, tem uma inclinação descendente acentuada.
C) A faixa de rodagem nessa via tem a largura total de cerca de 6,85m e é ladeada por passeios com pelo menos cerca de 1m de largura cada um.
D) A dado momento, poucos minutos antes do acidente, o condutor do NS estacionou o seu veículo na via em causa, parcialmente sobre o passeio em direito, atento o sentido Norte/Sul, com a frente do mesmo voltada a Sul, cerca de 10 metros da casa com o referido n. de polícia 293.
E) Ainda poucos minutos antes do acidente, o Autor caminhava integralmente pelo passeio direito da referida Rua Aliança F. Clube, atento o sentido Norte/Sul.
F) Súbita e inesperadamente, porque não foi parqueado com a devida segurança, nomeadamente porque o travão de mão não foi devidamente accionado, o veículo NS retomou sozinho a sua marcha.
G) E de forma desgovernada, desceu a Rua em causa, adquirindo uma velocidade não inferior a 20km/h, galgou e subiu o passeio direito, atento o já indicado sentido Norte/Sul.
H) E foi embater com violência nas costas do Autor, projectando-o ao chão.
I) Após o que passou por cima do mesmo, apenas se imobilizando por força do impedimento do corpo que o corpo do Autor lhe provocou.
J) O embate deu-se sobre o passeio direito, atento o sentido Norte/Sul.
L) Quando o NS se imobilizou sobre o corpo do Autor, tinha apenas as rodas do lado esquerdo sobre a faixa de rodagem, ficando o restante do veículo sobre o passeio direito, atento o indicado sentido.
M) O condutor do NS não tomou as devidas precauções, quando imobilizou o seu veículo pelo que provocou o acidente.
N) O veículo ..-..-NS encontra-se seguro na Ré através do contrato de seguro do ramo automóvel titulado pela apólice nº 198026023 celebrado com D…...
O) Cerca de 10 minutos após o embate, o Autor foi transportado de urgência ao H. D. de S. J. da Madeira, mas dada a gravidade das lesões foi de imediato transferido para o Hospital de S. Sebastião, em Santa Maria da Feira.
P) Nos referidos estabelecimentos hospitalares foi submetido a diversos exames médicos, dado que apresentava vários traumatismos e lesões, tendo-lhe sido diagnosticado, nomeadamente:
-Traumatismo torácico;
-Fractura do 3º, 4º, 5º, 6º e 7º arcos costais esquerdos e dois arcos costais à direita;
-Fractura do manúbrio esternal;
-Traumatismo da coluna com dor lombar alta;
-Fractura da L1, tipo “burst” com acentuado acunhamento anterior e recuo do muro posterior;
-Ferida extensa no pavilhão auricular direito;
-Escorições na face e no joelho esquerdo;
-Rabdomiolise significativa;
-Insuficiência pulmonar.
Q) O Autor ficou internado no Hospital de S. Sebastião durante 25 dias, tendo estado 5 dias nos cuidados intermédios.
R) Durante o internamento o Autor esteve com ventilação assistida durante 5 dias, desenvolveu várias infecções e teve febre.
S) No dia 15.107, o Autor teve alta, com colete cervical, e esteve 30 dias em casa em repouso absoluto.
T) Posteriormente, o Autor foi acompanhado através de consulta externa.
U) O Autor nasceu em 21.3.44, tendo 62 anos à data do acidente.
V) À data do acidente, o Autor encontrava-se reformado, recebendo uma pensão mensal (catorze vezes por ano) de €363,00.
X) Por força do acidente o Autor ficou com um “quantum doloris” de 4 numa escala de 7.
1º) Após a embate o Autor ficou cerca de 5 minutos debaixo do veículo, em perfeita agonia, cheio de dores e pensando que ia morrer.
2º) Durante o internamento o Autor desenvolveu estados febris.
3º) Durante o internamento o Autor não se podia mexer, apenas se movimentava com a ajuda de terceiros, teve fortes dores e receou pela sua vida.
4º) Durante o internamento o Autor foi suturado na orelha direita.
5º) Após ter alta, no dia 15.1.2007, durante os 30 dias que esteve em casa, o Autor esteve dependente de terceiros.
6º) Apesar de ter sido submetido aos actos médicos supra referidos o Autor não ficou totalmente curado.
7º) O Autor sofreu traumatismo torácico, com fractura de costelas, esterno e fractura de L1. Feridas na face e joelho esquerdo. Tendo ficado com as sequelas de toracalgias e dores lomosagrada.
8º) Como consequência directa e necessária do acidente o Autor ficou com uma IPG de 9 pontos.
9º) Ainda como consequência directa e necessária do acidente, o Autor sofreu ou apresenta, também, sintomas ansiosodepressivos, receio de repetição do acidente, marcada insegurança, perturbação média nas suas capacidades de relacionamento interpessoal a nível de situações sociais e profissionais, alterações de humor, dificuldades de concentração e de memória.
10º) Como consequência directa e necessária do acidente, por força dos factos descritos o Autor ficou a padecer, neste particular, de IPP psicológica/psiquiátrica de, pelo menos, 10%;
11º) Acresce que nessa data o Autor efectuava serviços de barbeiro, nomeadamente cortando cabelos, a amigos e conhecidos, do que retirava um rendimento mensal não inferior a €100,00;
12º) Como consequência directa e necessária do acidente, o Autor ficou a totalmente incapacitado para o trabalho e quaisquer outros serviços, desde a data do acidente até 30.3.2007;
13º) Durante esse período o Autor não pode prestar os serviços de barbeiro que prestava, tendo perdido €320,00;
14º) O Autor desde a data do acidente até ao presente momento, teve a necessidade de adquirir regularmente medicamentos, efectuar diversas consultas, tratamentos e exames médicos e deslocações, nos quais gastou €509,10;
15º) Como consequência directa e necessária do acidente, o Autor danificou e perdeu os seguintes bens:
-Um par de luvas, no valor de €10,00;
-Um casaco no valor de €25,00;
-Um par de botas, no valor de €25,00;
-Umas calças no valor de €60,00;
-Um pólo no valor de €30,00;
-Uma camisa no valor de €50,00;
-Um aliança no valor de €150,00;
No valor total de €300,00.
16º) Como consequência directa e instantânea do acidente, o Autor sofreu dores atrozes no momento do atropelamento, tendo por força das mesmas perdido a consciência;
17º) Nos meses que se seguiram ao acidente, o Autor sofreu dores de forma permanente e aguda, sendo forçado a permanecer quase completamente imobilizado até 30.1.2007 e sempre dependente do apoio de terceiros;
18º) O Autor sofreu muitas dores durante todo o desenrolar do processo médico, nomeadamente com as mencionadas assistências clínicas, e sofreu muitos incómodos, nomeadamente porque não podia ficar muito tempo de pé ou sentado e tinha muita dificuldade na sua locomoção;
19º) Dores que se prolongam e permanecem nesta data, designadamente com o esforço físico acentuado e com determinado tipo de acções que impliquem o movimento;
20º) No momento do embate e nos que lhe sucederam o Autor sentiu angústia, medo e receou pela sua própria vida;
21º) Durante esse lapso de tempo, o Autor temeu ficou permanentemente incapacitado;
22º) Durante o período de tempo da ITS o Autor viveu angustiado por se ver impossibilitado de cumprir os seus compromissos, nomeadamente por não poder gerir a sua actividade pessoal e dedicar-se à sua família;
23º) O Autor era, antes do acidente, uma pessoa saudável, independente, activa e vivia com prazer e alegria;
24º) Após o acidente, e como consequência do mesmo, o Autor tornou-se uma pessoa triste, revoltada coma sorte que o destino lhe reservou, nomeadamente por se sentir fisicamente incapacitado e diminuído;
25º) Antes do acidente, o Autor jogava habitualmente futebol com o seu neto, de que gostava muito, o que deixou de poder fazer;
26º) Como consequência do acidente o Autor ficou com uma pequena cicatriz;
27º) Por força do acidente, o Autor ficou com um dano estético de 1 numa escala de 5.
Fundamentos
As questões substancialmente colocadas pelo recurso de apelação prendem-se com a quantificação do dano não patrimonial e do dano biológico do Autor, efectuada na douta sentença recorrida.
Apreciemos tais questões.
I
Começando pela avaliação do dano não patrimonial – segundo a Ré, deverá descer para € 12 500; a douta sentença recorrida fixou-o em € 23.000.
O cálculo respectivo não pode dispensar o recurso à equidade, conforme disposto nos artºs 496º nº3 e 566º nº3 CCiv.
Na ausência de uma definição legal, a doutrina portuguesa acentua que o julgamento pela equidade “é sempre o produto de uma decisão humana que visará ordenar determinado problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas; distingue-se do puro julgamento jurídico por apresentar menos preocupações sistemáticas e maiores empirismo e intuição” (Prof.Menezes Cordeiro, O Direito, 122º/272).
Sublinha-se, a propósito da equidade, que:
a) opera, dentro da aplicação do Direito, como um mecanismo de adaptação da lei geral às circunstâncias do caso concreto;
b) só o juiz, e não a lei em abstracto, poderá adaptar a própria lei ao caso concreto;
c) a equidade opera não apenas a respeito de normas jurídicas, mas também no momento de apreciar a prova dos factos (Alejandro Nieto, El Arbitrio Judicial, Barcelona, 2000, pgs. 234 e 235).
O artº 496º nº3 C.Civ. manda fixar o montante da indemnização pelo dano não patrimonial por forma equitativa, tendo em conta as circunstâncias referidas no artº 494º CCiv., ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas e os correspondentes sofrimentos, mais levando em conta, em todo o caso, quer os padrões geralmente adoptados na jurisprudência, quer as flutuações do valor da moeda (por todos, S.T.J. 25/6/02Col.II/128).
Poderemos dizer de outro modo que, ao liquidar o dano não patrimonial, o juiz deve levar em conta os sofrimentos efectivamente padecidos pelo lesado, a gravidade do ilícito e os demais elementos do “fattispecie”, de modo a achar uma soma adequada ao caso concreto, a qual, em qualquer caso, deve evitar parecer mero simulacro de ressarcimento.
Os critérios jurisprudenciais constituem importante baliza para o raciocínio, posto que aplicáveis, ainda que por semelhança, ao caso concreto.
Não poderão todavia deixar de ser equacionados os factores de ponderação do dano levados em conta na sentença em crise, designadamente os demais factos apurados nos autos, pela gravidade que assumiram.
Afigurar-se-ia útil reelencar os factos provados, conforme supra, não fora a respectiva veemência se impor a qualquer repetição.
Ou seja, seguindo uma classificação doutrinal, meramente auxiliar de um raciocínio sobre os padecimentos morais, os autos patenteiam um dano já significativo, na vertente do “dano moral”, propriamente dito, não tanto com base na incapacidade permanente (9% de incapacidade geral), mas antes na vertente do “pretium doloris” (ressarcimento da dor física sofrida – grau 4, em 7) e na vertente do dano existencial e psíquico (o dano da vida de relação e o dano da dificuldade de “coping”, ou seja, da dificuldade em lidar com a sua actual incapacidade), bem como a dificuldade nas relações sociais, a ansiedade sentida em relação a básicos actos da vida corrente, como “andar na rua” (tudo traduzido no sofrimento emocional permanente, ilustrado numa incapacidade psiquiátrica de 10%), em suma um pronunciado prejuízo de afirmação pessoal. Há que atentar também na incapacidade temporária geral e profissional, bem como nas pronunciadas dores sofridas no momento do acidente e nos dias que se lhe seguiram. O prejuízo estético é de grau 1 em 5.
Tais danos consubstanciam-se numa considerável lesão sofrida pelo Autor na sua integridade física (as dores físicas e as lesões determinantes da referida incapacidade) e psíquica (os sofrimentos e abalos psicológicos).
No acórdão do S.T.J. de 15 de Novembro de 2004, cit. inS.T.J. 30/9/10 in www.dgsi.pt, pº nº 935/06.7TBPTL.G1.S1, fixou-se uma indemnização de € 29 928 a uma lesada de 24 anos, que ficou a sofrer uma IPP de 10% que não se demonstrou vir a afectar o desenvolvimento de qualquer profissão, apenas o tornando mais penoso, considerando a actividade profissional previsível como docente.
No Ac.S.T.J. 7/10/2010 in www.dgsi.pt, pº nº 2171/07.6TBCBR.C1.S1, “considerando o período de incapacidade temporária, geral e profissional, total e parcial, fixável em 382 dias, o «quantum doloris», fixável no grau 4, os internamentos, intervenção cirúrgica, consultas e sessões de recuperação, o prejuízo estético de grau 2, e a incapacidade parcial permanente de 8%, elevável para 13%, sofridos pelo autor, que em nada contribuiu para o acidente, à data do qual tinha 45 anos de idade, percebendo o ordenado mensal ilíquido de € 972,00, em comparação com o estatuto de solidez económica da ré seguradora, mostra-se equitativa a fixação da correspondente compensação, por danos de natureza não patrimonial, no montante de € 35.000,00”.
No Ac.S.T.J. 9/9/2010, in www.dgsi.pt, pº nº 2572/07.0TBTVD.L1, considerou-se que, em caso de incapacidade permanente parcial de 10%, com que ficou um sinistrado em acidente de viação, de 22 anos, deve ser majorado para € 30 000,00 o montante compensatório de € 10 000,00, fixado pela Relação, relativamente aos danos não patrimoniais do mesmo sinistrado que, em virtude do acidente, foi sujeito a internamentos hospitalares com intervenções cirúrgicas, teve de estar acamado com imobilização e dependência de terceira pessoa em casa durante cerca de 3 meses, teve enjoos e dores (estas em grau 3 numa escala de 7), esteve longo período sem poder, em absoluto, trabalhar (este na sua vertente não patrimonial) e que, como sequelas permanentes, ficou com uma cicatriz na região dorso lombar de 14 cm e a sofrer de lombalgias que se agravam no final do dia de trabalho.
Os exemplos doutrinários e jurisprudenciais supra, acrescendo as circunstâncias do caso concreto, mostram que a indemnização pelo dano não patrimonial do Autor, que foi fixado, na sentença recorrida, em € 23 000 se houve dentro dos parâmetros habitualmente utilizados em decisões judiciais, merecendo assim integral adesão.
II
A segunda questão é a de saber se o montante do chamado “dano biológico” foi equitativamente fixado; na verdade, entende a Recorrente que a indemnização por um tal dano se deve fixar em € 384,84 e € 528,39 (decidindo em contrário, no entender da Recorrente, violou o tribunal as normas dos artºs 3º e 4º Portaria nº 377/2008).
A incapacidade permanente parcial provada é, a nível psiquiátrico, de 10%, a nível geral de 9%.
É maioritário o entendimento que trata o conceito de “dano biológico” como integrado no dano patrimonial, como sucedâneo de uma indemnização pela perda de capacidade aquisitiva, quando os parâmetros desta capacidade aquisitiva se não encontrem definidos ou de todo não existam (seja porque nos encontramos perante pessoas menores, ainda não entradas no mercado de trabalho, seja porque, p.e., nos encontramos, como no caso dos presentes autos, perante pessoas simplesmente já retiradas do mercado de trabalho, por via de uma idade mais avançada).
Em termos muito latos, foi este o tratamento conceptual dado ao chamado “dano biológico”, enquanto “dano biológico com reflexo patrimonial”, nos Acs. S.T.J. 1/10/09inwww.dgsi.pt, pº nº 1311/05.4TAFUN.S1, relator: Souto Moura, S.T.J. 18/6/09inwww.dgsi.pt, pº nº 81/04.8PBBGC.S1, relator: Armindo Monteiro, S.T.J. 12/11/09inwww.dgsi.pt, pº nº 258/04.6TBMRA.E1.S1, relator: Oliveira Rocha, S.T.J. 14/7/09in www.dgsi.pt, pº nº 630-A/1996.S1, relator: Fonseca Ramos, S.T.J. 26/5/09in www.dgsi.pt, pº nº 3413/03.2TBVCT.P1, relator: Paulo Sá, S.T.J. 19/5/09inwww.dgsi.pt, pº nº 298/06.0TBSJM.S1, relator: Fonseca Ramos, S.T.J. 23/4/09inwww.dgsi.pt, pº nº 292/04.6TBVNC.S1, relator: Salvador da Costa ou S.T.J. 1/10/09inwww.dgsi.pt, pº nº 21/01.7GTLRA.C1.S1, relator: Sousa Fonte (o elenco é apenas exemplificativo).
Outros, em menor número, classificam o “dano biológico” como uma componente autónoma do dano não patrimonial – “tem-se distinguido modernamente, na esteira da que também julgamos mais esclarecida jurisprudência em matéria de avaliação de danos corporais – a italiana – dentro do chamado dano corporal, o dano corporal em sentido estrito (o dano biológico), o dano patrimonial e o dano moral; e, ao contrário do dano biológico, que é um dano base ou um dano central, um verdadeiro dano primário, sempre presente em cada lesão da integridade físico-psíquica, sempre lesivo do bem saúde, o dano patrimonial é um dano sucessivo ou ulterior e eventual, um dano consequência, entendendo-se em tal contexto, não todas as consequências da lesão mas só as perdas económicas, danos emergentes e lucros cessantes, causadas pela lesão” (cf. S.T.J. 25/2/10inwww.dgsi.pt, pº nº 172/04.5TBOVR.S1, relator: Serra Batista; em idêntico sentido, S.T.J. 24/9/09inwww.dgsi.pt, pº nº 09B0037, relatora: Mª dos Prazeres Beleza, e S.T.J. 17/12/09inwww.dgsi.pt, pº nº 197/2002.G1.S1, relator: Serra Batista).
Trata-se basicamente, mesmo na lei e na doutrina italianas, de um conceito de “importação” médico-legal.
Enquanto conceito médico-legal, por dano biológico entende-se uma forma de dano que se caracteriza pelo seu carácter “in se” (“danno evento statico”), por oposição ao dano à saúde, cujo enfoque cai sobre o direito de um concreto cidadão singular de desfrutar, naquele modo e tempo que lhe aprouver, de bem-estar psico-físico (“danno evento dinamico”).
Digamos que as duas componentes se completam, na avaliação do dano corporal, sendo uma a avaliação em abstracto, e a que a generalidade das pessoas faz jus, e outra a avaliação do dano sofrido por força de lesões à saúde quanto àquele cidadão concreto, considerados, v.g., a sua idade, trem de vida, vitalidade anterior, etc. (cf. Lodovico Molinari, Manuale per il Rissarcimento del Danno, CEDAM, Pádua, 2003, pg. 359).
A jurisprudência italiana passou a tratar esta matéria autonomamente, face precisamente às dificuldades suscitadas por aqueles casos em que o “dano” não podia ser avaliado como “dano moral” (o Código Civil previa um elenco de ressarcibilidade dos danos não patrimoniais apenas nos casos “determinados por lei” e aconteciam danos à saúde que a lei não previra), mas também não podia avaliar tais danos como “dano patrimonial”, face à ausência do que a lei considerava “um concreto prejuízo patrimonial” (como acontece no caso das pessoas retiradas do mercado de trabalho).
É assim que o Tribunal de Génova começa, na conjugação dos artºs 32º da Constituição da Rep. Italiana e 2043º C.Civ.It., a construir a ressarcibilidade de um terceiro dano, precisamente o “direito à saúde”, enquanto dano injusto, ressarcível mas independente dos danos patrimonial ou moral (“moral” era a própria designação do Código italiano, ao contrário da designação portuguesa – dano “não patrimonial”, que aponta logo para uma possibilidade de mais ampla interpretação).
A decisão do Tribunal Constitucional Italiano nº 184/1986 consagrou definitivamente o “tertium genus” na ressarcibilidade dos danos em Itália.
Basicamente, aquilo que foi consagrado foi a tutela do direito à saúde como um direito fundamental, primário e absoluto, plenamente operante nas relações entre privados, caracterizado como “un danno di per se, anchorché non incidente sulla capacitá di produrre reddito ed anzi indipendentemente da quest´ultimo” (Cass. 6.6.1981, nº 3675, GC, 1981, 1903 – citado inMauro Sella, La Quantificazione dei Danni da Sinistri Stradale, UTET, Turim, 2005, pg. 73).
Podemos assim assentar em que, para a doutrina italiana, existem de um lado um dano moral subjectivo, e um dano patrimonial, que são danos em sentido estrito, e, de outro lado, um dano biológico, resultante de um facto lesivo para a saúde “de per se” e constituindo uma categoria autónoma face aos anteriores: não apenas por referência à esfera produtiva, mas também por referência à esfera espiritual, cultural, afectiva, social, desportiva e a esfera de qualquer outro âmbito e modo em que o sujeito envolva a respectiva personalidade; como tal, em suma, todas as actividades em que a pessoa humana se realize (Corte Const., 18/7/91, nº 356, FI 1991, I/2967, cit. inMauro Sella, op. cit., pg. 24).
Pois bem: entendemos por mais adequada, face à situação da lei e da doutrina em Portugal, a consideração daqueles que entendem o “dano biológico” como um verdadeiro dano ressarcível, mas integrado, seja numa componente do dano patrimonial, seja numa componente do dano não patrimonial, tudo dependendo das consequências do dano, respectiva relevância e, em termos jurídico-formais e práticos, da alegação das partes.
Neste sentido decidiram os Acs. S.T.J. 20/1/10inwww.dgsi.pt, pº nº 203/1999.9TBVRL.P1.S1, relatora: Isabel Pais Martins, S.T.J. 17/12/09inwww.dgsi.pt, pº nº 340/03.7TBPNH.C1.S1, relator: Custódio Montes, S.T.J. 25/11/09inwww.dgsi.pt, pº nº OGEBNV.S1, relator: Raul Borges e S.T.J. 27/11/09, inwww.dgsi.pt, pº nº 560/09.0YFFLSB, relator: Sebastião Póvoas.
Tem sido este Colectivo da Relação do Porto do entendimento de que incidindo o dano sobre a necessidade de aquisição ou produção de rendimentos, por parte do lesado, pode ser ressarcido atribuindo um capital a pagar de imediato e antecipadamente, mas que, por um lado, produza rendimentos, por outro, se venha a esgotar no final da vida do lesado (“vida do lesado”, e não apenas a respectiva “vida activa”, pois que, mesmo na situação de pensionista, existem, na normalidade da vida, trabalhos e actividades que se desenvolvem e que envolverão esforço necessariamente superior).
E é essa precisamente a situação do Autor – tendo mais alguns anos de vida, de acordo com os padrões médios de duração de vida, de indivíduos do sexo masculino em Portugal (75 anos), o Autor verá diminuída a sua capacidade de realização e de mera actividade, em todas as tarefas do dia-a-dia, seja efectuar cortes de cabelo a clientes que lho pediam, mas também acompanhar os netos ou simplesmente conviver.
Desta forma, pensamos que a sentença recorrida se houve com adequação ao fixar este dano no quantitativo de € 15 000, montante ao qual francamente também aderimos nesta instância, desta forma, conferindo também resposta a uma das pretensões formuladas por via do recurso.
III
E quanto ao valor das normas dos artºs 3º e 4º Portaria nº 377/2008?
Diga-se, em primeiro lugar, que a legislação e as normas regulamentares invocadas se não aplicariam à fixação de indemnização de um acidente que ocorreu antes da respectiva entrada em vigor, nos termos do disposto no artº 12º nº1 C.Civ.
Afirme-se, porém, que o disposto no artº 64º nº7 Lei do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, introduzido que foi pela redacção do D.-L. nº 153/2008 de 5 de Agosto, de forma alguma pode, em qualquer eventual contexto, servir para minorar a indemnização que ao lesado fosse devida por via da aplicação do direito ordinário nacional.
Na verdade, a Nova L.S.O. (D.-L. nº 291/2007 cit.) constituiu-se na transposição obrigatória, pelo Estado Português, da Directiva nº 2005/14/CE, do Parlamento e do Conselho, de 11 de Maio (“5ª Directiva sobre Seguro Automóvel”).
Esta Directiva contém um considerando (16), segundo o qual “os danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, que constituem habitualmente a parte mais vulnerável num acidente, deverão ser cobertos pelo seguro obrigatório do veículo envolvido no acidente, caso tenham direito a indemnização, de acordo com o direito civil nacional. Esta disposição não condiciona a responsabilidade civil nem o nível de indemnização por um acidente específico, ao abrigo da legislação nacional.”
Tal considerando ficou plasmado, após, na introdução do artº 1º-A no texto da Directiva nº 90/232/CEE, do Conselho.
Ora, por um lado, a novel norma do artº 64º nº7 LSO colide frontalmente com o disposto nos artºs 562º a 566º C.Civ.
E, no que concerne peões e ciclistas a pedal, a lei portuguesa de transposição, a ter alguma preocupação, sempre seria a de especial protecção daqueles utentes das vias, visto o discorrido na Directiva com efeito vertical directo. Outra interpretação violaria o princípio estabelecido na jurisprudência europeia da “interpretação conforme”, o qual decorre de artigos como o 4º TUE (Tratado de Maastricht, com as suas sucessivas alterações), como desenvolvimento de conceitos como os de “cooperação leal” e de “efeito útil”. Como sublinhou o Acórdão Von Kolson, de 1984, a margem de apreciação de transposição das directivas é concedida aos Estados no pressuposto de uma interpretação e aplicação conformes às exigências do direito comunitário, e desde que as disposições das directivas em causa possuam conteúdo incondicional e suficientemente preciso – cf. Ac. C.I.A. Security, de 1996, e Unilever, de 2000 (e pese embora as excepções encontradas, para um tal efeito, em matéria de responsabilidade penal) – neste sentido, Luca Barani, Limites de l`Autonomie Supranationale de la Cour de Justice Européenne, 2010, pg. 152.
De todo o modo, sempre a citada norma do artº 64º nº7 LSO colidiria com a totalidade das Directivas sobre Seguro Automóvel, cujo objectivo sempre foi, sucessivamente, ampliar os montantes de cobertura dos seguros.
Deve também salientar-se que os valores a que se reportam as tabelas indemnizatórias da Portaria nº 377/08 (e daquela que a substituiu, Portaria nº 679/09), são valores que, na esteira das Directivas Automóvel, visam a solução rápida de litígios, bem como a prevenção do litígio judicial, estabelecendo critérios orientadores de “propostas razoáveis” a apresentar pelas Seguradoras, que não quaisquer critérios (nunca por nunca derrogadores de lei) que se impusessem de per se aos tribunais – neste sentido, a jurisprudência do S.T.J., de que respigamos S.T.J. 11/3/10Col.I/123 e S.T.J. 1/7/10Col.II/139.
A fundamentação poderá resumir-se por esta forma: I – A indemnização pelo dano não patrimonialdeve englobar a consideração do “dano moral”, propriamente dito, na vertente do “pretium doloris” (ressarcimento da dor física sofrida) e na vertente do dano existencial e psíquico (o dano da vida de relação e o dano da dificuldade de “coping”, ou seja, da dificuldade em lidar com a sua actual incapacidade, bem como a dificuldade nas relações sociais), a ansiedade sentida em relação a básicos actos da vida corrente, os sofrimentos emocionais permanentes, em suma o prejuízo de afirmação pessoal. II – Os valores a que se reportam as tabelas indemnizatórias da Portaria nº 377/08 (e daquela que a substituiu, Portaria nº 679/09), são valores que, na esteira das Directivas Automóvel, visam a solução rápida de litígios e a prevenção do litígio judicial, estabelecendo critérios orientadores de “propostas razoáveis” a apresentar pelas Seguradoras, que não quaisquer critérios (nunca por nunca derrogadores de lei) que se impusessem de per se aos tribunais. III – O peão de 68 anos de idade, reformado, com ocupações parciais, mas activo, que passou a padecer de incapacidade permanente geral de 9% e especificamente psiquiátrica de 10%, alcançando o “pretium doloris” o grau 4, em 7, vê o respectivo dano não patrimonial equitativamente indemnizado no montante de € 23 000 e o respectivo dano biológico também equitativamente indemnizado na quantia de € 15 000.
Com os poderes que lhe são conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República, decide-se neste Tribunal da Relação:
Julgar improcedente, por não provado, o interposto recurso de apelação e, em consequência, confirmar a douta sentença recorrida.
Custas pela Apelante.
Porto, 22/V/2012
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
João Carlos Proença de Oliveira Costa