Na vigência do artigo 1091.º do CC, introduzido pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, o arrendatário, há mais de três anos, de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, não tem direito de preferência, sobre a parte arrendada ou a totalidade, na compra e venda ou na dação em cumprimento desse mesmo prédio.
AA e BB propuseram acção declarativa, sob a forma de processo ordinária, contra CC e mulher DD, EE e FF pedindo que fosse reconhecido aos autores o direito de preferência na venda do 1º andar do prédio urbano, sito na Rua dos Combatentes da Grande Guerra, nº … em … e, em consequência de haverem para si essa fracção, pelo preço proporcional de € 40.000,00 e, se assim não se entendesse, por o prédio não estar constituído em propriedade horizontal nem ser possível a constituição por decisão judicial, que fosse reconhecido o direito de preferência na venda da totalidade do prédio e, em consequência de haverem para si todo o prédio.
Alegaram que, no dia 01 de Abril de 1968, foi celebrado entre GG e o autor contrato de arrendamento verbal, para habitação, do 1º andar do prédio urbano, sito na Rua dos Combatentes da Grande Guerra, n.º .., em …; o rés-do-chão e os três andares do prédio, não constituído em propriedade horizontal, constituem unidades independentes entre si; o 2.º réu (que, juntamente com o 3.º réu, sucedeu ao senhorio) comunicou ao autor, por carta de 14 de Junho de 2011, que pretendia vender o prédio pelo preço de 200.000 euros, e o autor, por carta de 04 de Julho de 2011, declarou pretender exercer o direito de preferência relativamente ao 1.º andar pelo preço proporcional, o que levou o 2.º réu, por carta de 11 de Julho de 2011, a esclarecer não pretender fazer a separação do 1.º andar e que o direito de preferência ficava sem efeito; em 10 de Julho de 2012, o 2.º e os 3.ºs réus venderam o prédio ao 1.º réu pelo preço de 200.000 euros.
Citados, os réus impugnaram o valor da acção e sustentaram a inexistência do direito de preferência dos autores relativamente ao 1.º andar ou à totalidade do prédio vendido: ali, porque o objecto vendido foi a totalidade do prédio e, não estando o prédio constituído em propriedade horizontal, não constitui o 1.º andar uma coisa com autonomia jurídica; aqui, porque na carta de 04 de Julho de 2011, os autores expressamente declararam pretender preferir apenas na compra do locado, o 1.º andar, e não da totalidade do prédio, tendo caducado o direito de preferência em relação a este último.
Pediram a improcedência da acção.
Foi realizada audiência prévia.
Após, foi proferida sentença, que julgou a acção improcedente.
Os autores interpuseram recurso de apelação e o tribunal da Relação, por acórdão, manteve a decisão recorrida.
Inconformados, os autores interpuseram recurso de revista excepcional, que a Formação de Apreciação Liminar deste Tribunal admitiu, e formularam as seguintes conclusões:
1ª
Os AA. são arrendatários habitacionais do 1º andar do prédio dos autos, desde 01.04.1968, prédio não submetido ao regime de propriedade horizontal.
2ª
Propuseram contra os RR. a presente acção de preferência, pedindo que lhes seja reconhecido o direito de haverem para si o andar arrendado, pelo valor proporcional de € 40.000,00 ou a totalidade do prédio, se não for possível constituir o regime de propriedade horizontal, por via de decisão judicial.
3ª
A primeira instância, sem curar de saber se é, ou não, possível constituir o regime de propriedade horizontal mediante decisão judicial, julgou improcedente quer o pedido principal, quer o subsidiário.
4ª
O pedido principal, por o local arrendado não ter autonomia jurídica; o pedido subsidiário, por entender que o art. 1091° do C.C. consagra o denominado princípio da "coincidência", segundo o qual o exercício do direito de preferência não pode exceder o locado.
5ª
A segunda instância apadrinhou a decisão da primeira, indo até mais longe: por via da interpretatio abrogans do disposto no art. 1091° do C.C., expurgou deste diploma o direito de preferência quanto a arrendatários de partes não autonomizadas do prédio locado.
6ª
Para a primeira instância, o art. 1091° do C.C. consagra o direito de preferência, mas não pode ser exercido; para a segunda instância, trata-se de "um não direito"; em qualquer caso, dois entendimentos "esquisitos" da ordem jurídica nacional.
7ª
A dupla conforme, assim estabelecida, vedaria o acesso a este Venerando Supremo Tribunal de Justiça, não fora a circunstância de a decisão das instâncias afectar, não apenas o direito dos AA., mas inserir-se em corrente jurisprudencial, da mesma origem, com relevantes implicações sociais e jurídicas, além de se mostrar em contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Janeiro de 2012, transitado em julgado.
8ª
Neste douto Acórdão (acórdão-fundamento) postulou-se que: "... de acordo com a Jurisprudência prevalente do STJ, temos que a preferência existe para a fracção autónoma arrendada, no caso de o prédio estar constituído em propriedade horizontal, ou para todo o imóvel se este não estiver legalmente parcelado, uma vez que não havendo parcela autónoma, a preferência não pode incidir, apenas, sobre a parte arrendada, não sendo de interpretar restritivamente o art. 47° n.° 1 do RAU. A preferência na compra e venda de todo o imóvel pode ser em concorrência com outros eventuais locatários...".
9ª
O regime jurídico do arrendamento urbano, decorrente da Lei n.° 6/2006, de 27.02, não inovou no que respeita à preferência reconhecida aos arrendatários de pretérito, pelo que se está "no domínio da mesma legislação".
10ª
Não inovou: - por um lado, porque a expressão usada pelo RAU e pelo NRAU é a mesma - "local arrendado"; - por outro lado, porque a circunstância de o art. 1091° do C.C. não integrar disposição equivalente à do n.° 2 do art. 47° do RAU se explica pelo facto deste último dispositivo conter matéria adjectiva, já regulada no art. 1460° do C.P.C.
11ª
Não inovou, por disposição expressa do legislador do NRAU, constante do art. 59° n.° 2 deste diploma, para a qual se não logra outro sentido que não seja o de que se quis manter, quanto à preferência dos arrendatários, nos arrendamentos de pretérito, o regime do RAU.
12ª
Que não inovou será, também, Jurisprudência expressa no douto acórdão-fundamento, no qual se escreveu: "O actual art. 1091° n.° 1 a) do CC comporta redacção idêntica à do art. 47° n.° 1 citado condicionando, todavia, o direito de preferência a arrendamentos feitos há mais de três anos".
13ª
É, outrossim, o que decorre da mais recente e melhor Doutrina, nomeadamente dos ensinamentos do autor Abílio Neto, que escreveu, em Março de 2015, in "Manual da Propriedade Horizontal", 4a Edição - reformulada - "... continua, pois, plenamente actualizado o entendimento segundo o qual, não estando constituída a propriedade horizontal, no caso de venda, qualquer dos arrendatários que preencha aquele requisito temporal tem de exercer o direito de preferência em relação a todo o imóvel...".
14ª
A tese das instâncias cria uma divisão dicotómica nos arrendatários: os que podem e os que não podem exercer o direito de preferência (os que têm e os que não têm esse direito, para a segunda instância).
15ª
A tese das instâncias cria inquilinos de primeira e inquilinos de segunda, sendo de presumir que os de segunda serão mais numerosos nos grandes centros urbanos, onde ainda há prevalência de prédios não submetidos ao regime de propriedade horizontal.
16ª
Sendo tais consequências inadmissíveis, a questão versada nos presentes autos terá a relevância social a que alude o disposto na alínea b) do n.° 1 do art. 672° do C.P.C.
17ª
Mas a tese das instâncias vai mais fundo: além de violar o princípio constitucional, ínsito no art. 65° da C.R.P., de acesso à habitação própria, relativamente a muitos milhares de inquilinos, viola o princípio da igualdade perante a lei, ínsito no art. 13° da lei fundamental.
18ª
Para as instâncias, todos os arrendatários serão iguais perante a lei, mas, como se viu, uns serão mais iguais que outros: os arrendatários de fracções autónomas.
19ª
Ora, as questões de constitucionalidade, que a tese das instâncias suscita, terão a relevância jurídica exigida pelo disposto na alínea a) do n.° 1 do art. 672° do C.P.C. e a resolução das mesmas será claramente necessária para uma boa aplicação do direito.
20ª
Na conclusão 8a do recurso de apelação arguiu-se de inconstitucional a interpretação restritiva que a primeira instância fez - e aplicou - do disposto no art. 1091° do C.C.
21ª
A segunda instância não tomou posição explícita sobre tal arguição, pelo que cometeu a nulidade prevista na 1a parte da alínea d) do art. 615° n.° 1, ex vi do art. 666°, n.° 1, 1a parte, ambos do C.P.C., constituindo a invocação desta nulidade um dos fundamentos da presente revista.
22ª
Se o art. 1091° n° 1, alínea a) do C.C. é inconstitucional se aplicado restritivamente, como o fez a primeira instância, por mais forte razão o é a interpretatio abrogans, do mesmo normativo, feita pela segunda instância.
23ª
Mas esta posição da segunda instância implica a não aplicação, ao caso dos autos, do disposto no art. 416° do mesmo diploma, por não existir, então, a "obrigação de preferência do senhorio", o que continua consubstanciando violação da lei substantiva, por parte da decisão da mesma instância.
24ª
As instâncias expulsaram pela porta a questão posta pelos RR., de saber se os AA. renunciaram ou deixaram caducar o direito de preferência e deixaram entrar pela janela questões sobre as quais se debruçaram longamente; o "princípio da coincidência" e o "não direito" à preferência, questões estas que nenhuma das partes colocou.
25a
Em tese, para os RR., o direito dos AA. à preferência sobre todo o prédio é inquestionável, como resulta dos arts. 29° e 30° da contestação e das alíneas D) e G) das conclusões da contra-alegação do recurso de apelação.
26ª
Poderá então afirmar-se que as instâncias, com tal posicionamento, "foram mais papistas do que o papa".
27ª
O R. FF, quiçá premunido da posição que as instâncias vieram a assumir, nada comunicou aos AA., assim violando o disposto no art. 416° do C.C.
28ª
O R. EE comunicou aos AA., por carta de 14.06.2011, a pretensão de celebrar contrato de compra e venda do imóvel arrendado, mas só em 18.05.2012 foi obtida a licença de utilização do prédio e só em 10.07.2012 foi celebrada a escritura de compra e venda.
29ª
Tal significa que não foi comunicado o tempo e o modo de pagamento do preço, o mesmo é dizer, não foram comunicadas aos AA. as cláusulas referidas no art. 416° do C.C.
30ª
Tal significa que os AA., só dispondo da quantia de € 150.000,00, em 04.07.2011, conseguiriam reunir, mais de um ano depois (em 10.07.2012), a quantia de € 200.000,00 para pagamento do preço.
31ª
As instâncias, por erro de interpretação e aplicação e também por erro de determinação da norma aplicável, violaram o disposto nos arts. 416° e 1091°, n.° 1, alínea a) do C.C., art. 59°, n.° 2 do NRAU, arts. 13° e 65° da C.R.P. e a segunda instância, ainda, o disposto no art. 615°, n.° 1, alínea d), 1a parte, ex vi do art. 666°, n.°1, 1a parte do C.P.C.
Os réus apresentaram contra-alegações, concluindo pela verificação de abuso do direito pelos autores e pedindo a improcedência do recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Estão provados os seguintes factos:
1. Por acordo verbal de 01/04/1968, GG cedeu ao A., para habitação, o uso e fruição do 1º andar do prédio sito na Rua dos Combatentes da Grande Guerra nº …, em …, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Loures sob o artº …25 e descrito na 1ª CRP de Loures sob o nº …93 da freguesia de Loures.
2. O dito prédio não se encontra constituído em propriedade horizontal e é composto de rés-do-chão para comércio e 1º, 2º e 3º andares para habitação.
3. A propriedade relativamente àquele prédio chegou à titularidade dos 2º e 3º réus por herança e subsequente partilha.
4. O réu EE dirigiu ao A. carta datada de 14/06/2011 que se encontra a fls. 20, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
5. O autor respondeu a essa missiva pela sua carta datada 20/06/2011 que se encontra a fls. 21 dos autos e cujo teor se dá por reproduzido.
6. A essa carta do autor respondeu o réu EE pelo escrito datado de 27/06/2011, que se encontra a fls. 22 dos autos e cujo teor se dá por reproduzido.
7. De novo respondeu o autor ao réu EE pela carta datada de
04/07/2011 que se encontra a fls. 23 dos autos e cujo teor se dá por reproduzido.
8. O réu EE dirigiu então ao autor a carta datada de 11/07/2011 que se encontra a fls. 24 dos autos e cujo teor se dá por reproduzido.
9. Em 10/07/2012 os 2º e 3º réus venderam ao 1º réu, pelo preço de € 200.000,00, o prédio sito na Rua dos Combatentes da Grande Guerra nº …, em … (acima identificado em 1), encontrando-se a aquisição a seu favor registada pela Ap. 1949 de 11/07/2012.
Apreciando:
Nos termos do disposto nos artsº. 608.º, nº 2, 635.º, nº 3 e 690.º, nº 1, do Código de Processo Civil (doravante CPC), e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal.
Nesta conformidade, são a seguintes as questões de direito a decidir suscitadas no recurso de revista:
1. Nulidade do acórdão;
2. Direito de preferência dos autores e inconstitucionalidade na interpretação do artigo 1090.º do CC;
3. Abuso do direito pelos autores.
1. Nulidade do acórdão
Alegam os recorrentes que, ao não tomar posição explícita sobre a arguição, na apelação, da inconstitucionalidade da interpretação restritiva do artigo 1091.º do CC, feita pela 1.ª instância, o acórdão da Relação é nulo, ao abrigo do disposto no artigo 615.º, n.º1, al. d), primeira parte, do CPC.
Este artigo, aplicável ao recurso de apelação por força do artigo 666.º do CPC, comina a nulidade do acórdão quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.
Cumpre saber se era questão a apreciar a referida inconstitucionalidade.
Na acção, os autores pediram o reconhecimento do direito de preferência sobre parte ou sobre a totalidade do prédio vendido pelos réus com fundamento na qualidade de arrendatários.
A questão, em face do objecto do processo, a resolver, consistiu em saber se os autores tinham o direito de preferência a que se arrogavam, à luz do disposto no artigo 1091.º do CC, em vigor à data da alienação.
A sentença da 1.ª instância entendeu, no tratamento dessa questão, que os autores não tinham qualquer direito de preferência e absolveu os réus do pedido.
Na apelação, as questões suscitadas e a resolver, como enunciadas no acórdão recorrido, foram apenas a da (1) ampliação dos factos assentes, (2) a existência do direito de preferência dos autores, e, (3) a caducidade do exercício desse direito.
Com efeito, a questão a inconstitucionalidade da interpretação restritiva do artigo 1091.º do CC não era questão a resolver, tanto porque se inseria no corpo dos argumentos avançados pelos recorrentes na defesa da correcta interpretação do artigo 1091.º do CC, e assim se reconduzia à questão, a resolver, da existência do direito de preferência dos autores, como porque, também ela foi enunciada de forma argumentativa e apenas nas conclusões.
Quanto a este último aspecto, na alegação, os recorrentes afirmaram somente que o direito de preferência do locatário tinha dignidade constitucional, por força do disposto no artigo 65.º, n.º 2 al., c) da CRP; e, na 8.ª conclusão, apenas que entender o nosso ordenamento jurídico, no plano da lei ordinária, como restringindo ou visando restringir esse direito, quando, nos termos da sentença apelada, o mesmo “não se pode exercer”, seria propósito ou interpretação gravemente ofensiva do nosso ordenamento constitucional, já que o imperativo constitucional, de acesso à habitação própria, que presidiu à criação da preferência na locação habitacional, se mantém em vigor, actualmente, na alínea c) do n.º2 do art. 65.º da CRP.
Não cuidando saber se a conclusão enunciada tem correspondência na alegação (as conclusões são apenas a sínteses dos fundamentos e, por consequência, neles se devem conter, cf. artigo 639.º, n.º 1 do CPC), certo é que os recorrentes, como sobressai das conclusões 4.ª a 7.ª e da expressão “entender o ordenamento jurídico, no plano da lei ordinária, como restringindo ou visando restringir esse direito”, subordinaram a constitucionalidade da interpretação restritiva da norma à questão matricial da existência do direito de preferência.
Portanto, não foi questão, mas argumento da resolução da questão, a arguição da (in)constitucionalidade da interpretação do artigo 1091.º do CC.
Ora, só as questões colocadas em recurso é que devem ser objecto de pronúncia pelo tribunal, já não os motivos, argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos esgrimidas pelas partes e estruturantes do sentido com que pretendem vê-las resolvidas – cf. Acs. STJ de 01.06.1973, in BMJ 228, pág. 136 e de 06.01.1977, in BMJ. 263, pag. 187.
Daí que, ao conhecer e fundamentar a questão da existência do direito de preferência, não se intuindo ao colectivo de juízes qualquer inconstitucionalidade da interpretação que sufragaram do artigo 1091.º do CC, não se lhe referiram e daí não decorre qualquer nulidade da decisão.
Pelo exposto, improcede o primeiro fundamento do recurso.
2. Direito de preferência dos autores e inconstitucionalidade na interpretação do artigo 1090.º do CC.
Tem sido entendimento unânime do Supremo Tribunal de Justiça que a lei reguladora do direito de preferência é a vigente na data em que se concretizou o acto de alienação, por o direito legal de preferência não passar de uma faculdade que integra o conteúdo do direito do arrendatário que, só a prática do negócio translativo da propriedade, sem que o senhorio lhe tenha oferecido a preferência, o transforma em direito potestativo – Acs. STJ de 05.05.1994, in BMJ 437-477; de 09.03.1995, CJ, STJ, II, 1, 118-II; de 28.01.1997, processo n.º 87557 e 12.11.2009, processo n.º 1842/04.3TVPRT.S1, ambos in www.dgsi.pt.
No seguimento, tendo o autor celebrado contrato de arrendamento do 1.º andar do prédio urbano em 01 de Abril de 1968 (facto 1.) e tendo o prédio urbano sido vendido pelos segundos e terceiro réus ao primeiro réu em 10 de Julho de 2012 (facto 9.), a existência e os pressupostos do direito de preferência do autor serão aferidos no confronto da lei em vigor nesta última data.
Vigorava então (como agora) o artigo 1091.º do Código Civil (inserido na subsecção VI – Direito de preferência, intitulado “Regra Geral”) na seguinte redacção, dada pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro e aplicável ao contrato de arrendamento em questão por força do disposto nos seus artigos 4.º, 59.º, n.º1 (o n.º2 terá de ser conjugado com o entendimento acima exposto, no sentido de que a entrada em vigor do NRAU não afasta o direito de preferência verificado em data anterior, isto é, nascido de alienação ou dação então ocorrida) e 65.º, n.º1:
“1. O arrendatário tem direito de preferência:
a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos; (…)
2. (…).
3. (…)
4. É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º do Código Civil”.
Não suscita dúvida que (1) o autor era arrendatário e há mais de três anos, ante o confronto da matéria de facto provada (facto 1.) com o disposto nos artigos 1022.º e 1023.º do CC, e, que (2) ocorreu uma compra e venda do prédio urbano do qual o 1.º andar constitui o locado.
As questões a resolver, ante o âmbito do recurso e os pedidos formulados na acção, consistem em saber se, primeiro, os autores arrendatários têm direito de preferência sobre a parte arrendada do prédio vendido, e, segundo, se não o tendo, têm direito de preferência sobre a totalidade do prédio vendido.
A propósito, as instâncias entenderam que o inquilino não tinha qualquer direito de preferência com os seguintes argumentos:
- o artigo 417.º, n.º1, para que remete o artigo 1091.º, n.º4, ambos do CC, aplica-se à venda da coisa juntamente com outra ou outras e, à luz da noção de coisa vertida no artigo 202.º do CC, a venda foi apenas de uma coisa, o prédio, nela não cabendo uma parte (p. ex. um andar) do prédio se não constituído em propriedade horizontal (não sendo de resto imposto ao proprietário a sua constituição).; e,
- a alteração da redacção do direito de preferência do arrendatário, desde o artigo 1117.º do CC, na versão originária, passando pela Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto, após pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro e agora com o artigo 1091.º, n.º1 do CC, leva a concluir que o direito de preferência do arrendatário se circunscreve ao “local arrendado”, de modo que terá de haver coincidência do objecto que funda a preferência com o objecto da preferência, sob pena de o direito não existir, como em concreto não existe (já que o andar, objecto que funda a preferência não coincide, em extensão, com objecto da preferência, o prédio urbano que abarca vários andares).
Vejamos.
Rememorando o quadro fáctico provado, temos como ponto de partida que:
- desde 1968, o autor é arrendatário do 1.º andar de um prédio urbano, não constituído em propriedade horizontal;
- em 2012, o prédio urbano foi vendido pelos segundos e terceiro réu, senhorios, ao primeiro réu.
Quanto à preferência sobre o 1.º andar do prédio.
Entendem os recorrentes que, na venda do prédio urbano operada pelos réus, têm direito a preferir no 1.º andar arrendado, pelo preço proporcional.
Fundam-se no disposto no artigo 417.º, n.º1 do CC, que o artigo 1091.º, nº4, do CC, considera aplicável ao direito de preferência do arrendatário.
O artigo 417.º, n.º1 do CC prevê que “se o obrigado quiser vender a coisa juntamente com outra ou outras, por um preço global, pode o direito ser exercido em relação àquela pelo preço que proporcionalmente lhe for atribuído (…)”
A previsão legal exige a venda de uma coisa juntamente com outra ou outras.
Portanto, no mínimo, a venda tem de abranger duas coisas.
Em concreto, tal não aconteceu.
Apenas foi vendido uma coisa, o prédio urbano.
Ainda que existisse autonomia física do andar arrendado, inserido nesse mesmo prédio urbano, ele não tinha autonomia jurídica ante o conceito de coisa definido pelos artigos 202.º e 203.º, ambos do CC.
A autonomia jurídica só seria alcançada se o prédio fosse constituído em propriedade horizontal – artigos 1414.º e 1415.º, ambos do CC.
E, a constituição do prédio em propriedade horizontal por decisão judicial não é defensável, por três razões:
Primeiro, porque ela apenas pode ter lugar em acção de divisão de coisa comum ou em processo de inventário, não em acção declarativa comum como a presente – artigo 1417.º, n.º1 do CC;
Segundo, porque embora timidamente a refiram, os recorrentes nunca pediram, expressa ou implicitamente, a constituição da propriedade horizontal e, a eventual decisão nesse sentido configuraria violação clara do princípio do dispositivo – artigo 609.º, n.º 1 do Código de Processo Civil;
Terceiro, porque tal decisão não teria qualquer fundamento, visto que, ou existe previamente direito de preferência e o seu exercício é facultado ao arrendatário, ou, ele não existe e não se o vai buscar na imposição da constituição futura do prédio em propriedade horizontal, ingerindo de forma inadmissível na esfera dos poderes do proprietário, a quem compete a decisão livre de o fazer ou não.
Tudo o que fica exposto é suficiente para não ser concedido, por via do artigo 417.º, n.º1 do CC, o direito de os autores arrendatários preferirem em parte do prédio vendido.
Pelo que, também nesta parte, improcede o segundo fundamento do recurso.
Quanto à preferência sobre o prédio.
A questão resolve-se pela interpretação da redacção do artigo 1091.º, n.º1 do Código Civil (atrás transcrito).
A consagração do direito de preferência do arrendatário na compra e venda do local arrendado sugere, só por si, que o legislador teve em vista o locado e não também o prédio urbano indiviso que o abrange mas nele não se esgota.
É indefensável o alargamento do local arrendado ao prédio onde se insere o locado porque a parte sobrante não foi objecto do arrendamento e não se pode considerar arrendado; já o local poderá ter maior ou menor extensão física, comportando tanto o andar, a garagem, ou o prédio.
Não oferece ambiguidade ou polissemia a expressão empregue pelo legislador; local arrendado é, repete-se, o exacto espaço que as partes acordaram ser objecto do arrendamento: nem mais, nem menos.
Quando se prova, então, que as partes acordaram na cedência do gozo e fruição do 1.º andar do prédio sito na Rua dos Combatentes da Grande Guerra nº …, em …, o local arrendado é o 1º andar do prédio e não todo o prédio.
O texto do n.º1 do artigo 1091.º tem, por aqui e desde já, a função negativa de eliminar o sentido de o local arrendado abranger, não apenas o andar, também o prédio que não foi objecto do contrato de arrendamento; e, tem a função positiva de, comportando um só sentido – o de que local arrendado é o locado contratualmente definido – ser esse o sentido da norma.
Também cumpre considerar a evolução legislativa que a consagração do direito de preferência do arrendatário conheceu, e, bem assim, a polémica jurisprudencial e doutrinária que, a paripassu, foi suscitando, tudo em ordem a compreender a redacção actual do referido artigo 1091.º do Código Civil.
Na versão original do Código Civil, o direito de preferência do arrendatário comercial foi acolhido no artigo 1117.º nos seguintes termos:
“1. Na venda, dação em cumprimento ou aforamento do prédio arrendado, os arrendatários que nele exerçam o comércio ou indústria há mais de um ano, sucessivamente e por ordem decrescente das rendas.
2. É aplicável, neste caso, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º.
3. O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima dos direitos de preferência conferidos ao senhorio directo e ao proprietário do solo na alínea c) do artigo 1499.º e no artigo 1535.º.
4. Sendo dois ou mais preferentes, abrir-se-á entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante”.
Também a Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto, justificando preambularmente ser dever constitucional do Estado adoptar uma política de acesso à habitação própria para que poderia contribuir conferir aos arrendatários habitacionais direito de preferência, veio a consagrá-lo nos artigos 1.º e 2.º da seguinte forma:
“Artigo 1.º
1. O locatário habitacional de imóvel urbano tem o direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do mesmo.
2. O locatário habitacional de fracção autónoma de imóvel urbano também goza do direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento da respectiva fracção.
Artigo 2.º
1. Quando mais de um locatário habitacional exercer o direito de preferência, abrir-se-á entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante.
2. Quando num imóvel urbano existirem um ou mais locatários habitacionais e um ou outro de diferente natureza, também com direito de preferência, proceder-se-á nos termos do número anterior.”
Na vigência destes preceitos, a jurisprudência dos tribunais superiores entendia que, quando não se achasse instituído o regime de propriedade horizontal e o direito de preferência existisse a favor dos locatários, habitacionais ou para comércio ou indústria, o arrendatário duma parte ou os arrendatários coligados podiam exercer o direito de preferência em relação à totalidade do prédio vendido onde se situe o local arrendado; se a propriedade horizontal estivesse constituída, o direito de preferência limitar-se-ia à fracção respectiva – cf. Acs. STJ de 26.09.1981, BMJ 409-779, de 10.04.1986, BMJ 356-333, de 03.10.1989, BMJ 390-408, e de 28.01.1997, in CJ, STJ, T I, ano I, pág. 77, Acs. da RP de 25.07.1985, CJ X-4-241, de 16.06.1988, BMJ 378-785, de 04.7.1989, BMJ 389-646.
Os argumentos avançados eram (1) a finalidade de a preferência concretizar a política de acesso à habitação própria, com consagração constitucional, como evidenciado no preâmbulo do diploma, e o afrontamento da lei no caso de se acolher o sentido contrário; e, (2) a consagração de licitação entre vários preferentes que, não podendo ocorrer entre arrendatários de fracções autónomas de prédio constituído em propriedade horizontal, teria o seu campo de aplicação aos arrendatários de partes de prédios não constituídos em propriedade horizontal com direito de preferência relativamente à totalidade do prédio.
O D.L. n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, que aprovou o Regime de Arrendamento Urbano (RAU), confrontado com a existência de regimes não coincidentes de preferências comerciais e habitacionais no Código Civil e naquele diploma, revogou-os e uniformizou a matéria nos seguintes termos:
Artigo 47.º (Direito de Preferência)
1. O arrendatário de prédio urbano ou de sua fracção autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano.
2. Sendo dois ou mais preferentes, abre-se entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante”
O confronto desta redacção com a redacção daqueles artigos 1117.º do Código Civil e 1.º e 2.º da Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto, evidencia que o legislador não reproduziu totalmente os textos anteriores: por um lado, ao invés de continuar a falar no direito de preferência do prédio arrendado ou do imóvel urbano passou a referir do local arrendado; por outro lado, no preâmbulo afirmou que “Nessa tarefa codificadora, teve-se sempre a preocupação de valorar os textos anteriores perante a jurisprudência dos tribunais de Portugal (…) Nesta linha e na medida do possível foram mantidos os textos anteriores quando, sobre eles, houvesse já uma concretização jurisprudencial que importasse conservar”, e, manteve consagrado a licitação entre dois ou mais preferentes.
A jurisprudência e doutrina maioritárias, na interpretação deste preceito, seguiram o entendimento anterior: o arrendatário de parte indivisa tem direito de preferência na venda da totalidade do prédio urbano – cf. Acs. de 26.09.1991, BMJ 409.º - pag. 779, de 08.10.1992, BMJ 420.º- pag. 502; de 28.01.1997, CJ, STJ. T.V, ano I, pag. 77; de 13.02.1997, CJ, STJ, T.V, ano I, pag. 104; de 10.12.1997, BMJ – 472.º-454; de 30.04.1997, processo n.º 885/96 , 2.ª secção, Cons. Pereira da Graça; de 02.06.1999, Co. Ac. STJ, VII, 2.º, 129; de 22.10.1999, BMJ, 490-270; de 13.01.2000, revista n.º 991/99 – 2.ª secção; de 29.04.2003, revista n.º 706/2003 – 6.ª secção, de 06.07.2004, proc. 07B1554 e de 31.05.2007, processo n.º 07B1554, in www.dgsi.pt, ; de 20.10.2009, revista n.º 563/2001.S1, de 22.10.2009, revista n.º 446/09.9YFLSB, de 12.11.2009, revista n.º 1842/04.3TVPRT.S1, de 25.03.2010, revista n.º 5541/03.5TBVFR.P1.S1, de 12.01.2012, revista n.º 72/2001.L1.S1; Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 6.ª Edição, Almedina, 2002, pag. 314; Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 3.ª Edição, Almedina, pags. 639 e 640; Romano Martinez, Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, 1.ª Edição, 2000, pág. 247, nota 1; Pires de Lima/Antunes Varela, CCAnot, II, cit. anot. 8 ao art. 47.º RAU; Luís Miguel Monteiro, Direito e Obrigações Legais de Preferência no Novo Regime Jurídico do Arrendamento Urbano, Lisboa, 1992, AAFDL; Agostinho Cardoso Guedes, o Direito de Preferência (2006), 172-208.
Os argumentos subjacentes a este entendimento eram (1) o alargamento do direito de preferência a todos os arrendamentos urbanos vinculísticos (que não apenas os destinados a comércio, indústria, profissões liberais ou habitação) e a consagração de novos direitos de preferência, designadamente a favor dos titulares de novo arrendamento e do senhorio em caso de trespasse; (2) a manutenção das designações de “prédio urbano” e “fracção autónoma”, o que implicaria que a limitação ao local arrendado apenas diria respeito aos casos de venda de prédio já constituído em propriedade horizontal; (3) a manutenção da norma que mandava proceder à licitação em caso de concurso de preferente, que ficaria sem campo de aplicação caso não se perfilhasse o entendimento de que estes poderiam preferir na totalidade do prédio; e, (4) o preâmbulo do diploma.
A alteração daquela redacção motivou porém o surgimento, minoritário é certo, do entendimento contrário: o inquilino duma fracção de um prédio não constituído em propriedade horizontal não tem direito de preferência no caso de o senhorio pretender vender o prédio todo – cf. Ac. STJ do STJ de 30.04.1997, BMJ 466º - 501; M. Januário Gomes, in Arrendamentos Comerciais, 2.ª ed. P. 204 e Oliveira Ascensão, Subarrendamento e Direitos de Preferência no Novo Regime de Arrendamento Urbano, in R.O.A., ano 51.º, I, 1991, p.68.
Esta posição alicerçou-se no seguinte: (1) a lei contempla com relevância preferencial a fracção autónoma ou o prédio urbano, pelo que, se o arrendamento tem por objecto a fracção autónoma e ela é vendida, ou se tem por objecto o prédio urbano e ele é vendido, existe, nestes casos, direito de preferência do arrendatário; (2) a lei não contempla no seu texto o direito de preferência de arrendatário de parte alíquota sobre a totalidade do prédio urbano indiviso, pelo que defendê-lo não tem arrimo legal e contraria a própria lei; (3) a regra da licitação entre os preferentes tem aplicação no caso de o prédio ou a fracção poder ter vários arrendatários e cada um deles pretender exercer o respectivo direito; (4) a expressão “local arrendado” constitui uma restrição relativamente à legislação precedente.
Por fim, por força da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, chegámos ao artigo 1091.º do Código Civil, acima transcrito.
Quanto ao preâmbulo, esta lei já não o tem.
Por consequência, já não se pode afirmar ter sido intenção do legislador manter as soluções normativas e correntes jurisprudenciais dominantes anteriores (como constava do preâmbulo do D.L. n.º 321-B/90, de 15 de Outubro) quanto à melhor interpretação da extensão do direito de preferência do arrendatário Januário Gomes, chegou mesmo a afirmar “ … que num quadro de desvinculação do regime do arrendamento, a manutenção de direitos de preferência na venda não faz muito sentido” (in Vida Judiciária, n.º 108, 2007, p.9).
Quanto à fórmula legislativa – por confronto com as anteriores constantes dos artigos 1117.º do Código Civil, 1.º e 2.º da Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto e artigo 47.º do RAU – três notas há a fazer:
Primeiro, contrariamente àqueles primeiros três artigos, manteve-se a preferência do arrendatário na compra e venda e dação do local arrendado, como já constava do RAU (fundamento em que se filiava, na vigência do RAU, aquela segunda corrente minoritária), ao invés do prédio urbano ou imóvel, constante dos artigos 1117.º do original CC e 1.º e 2.º da Lei n.º 63/77;
Segundo, foram removidas as designações prédio urbano e fracção autónoma;
Terceiro, abandonou-se a referência, constante de todos os diplomas anteriores, à licitação entre dois ou mais preferentes, fundamento em que a primeira corrente maioritária se ancorava.
A finalidade da lei, ao atribuir direito de preferência aos arrendatários na compra ou na dação em cumprimento, visou facultar-lhes o acesso à habitação ou instalações próprias, pondo, nesse caso, termo ao arrendamento.
O preceito consagrador da preferência legal reveste-se, porém, de índole excepcional, pois traduz uma limitação da liberdade de contratar – artigo 405.º do CC – na vertente relativa à escolha da contraparte, e, de índole imperativa/injuntiva, pois que lhe subjazem razões de interesse público.
Por consequência, o intérprete está obrigado a confiná-la imperativamente aos casos expressamente previstos na lei – neste sentido, Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado, 3.ª Edição, Quid Juris, 2009, pág. 430.
“A preferência não se poderia exercer sobre a totalidade porque até aí não se estende o direito do arrendatário. Não seria possível, nesta hipótese, exercer a preferência: esta não tem por fim propiciar a expansão do direito para além do seu objecto” (Oliveira Ascensão, ob. cit, pág. 67). Admiti-lo seria “interferir no mercado, dando uma vantagem ao arrendatário que transcende o fim da lei. Transformar o inquilino de um fogo em dono do prédio (só) porque este não estava em propriedade horizontal, é uma operação de todo fora do objectivo legal, que apenas visaria lucrativos negócios imobiliários” (Códigos Comentados da Clássica de Lisboa – Lei do Arrendamento Urbano Anotadas, Coordenação: António Menezes Cordeiro, Almedina, 2014, pág. 261).
Na verdade, se o direito de preferência nasce do direito de arrendamento e justifica-se na relação próxima (tendencialmente duradoura) entre o arrendatário e a coisa locada, afigura-se ajustado, equilibrado, e proporcional que o primeiro não suplante o segundo quanto ao objecto, e antes haja rigorosa identidade entre a extensão da coisa locada e a da coisa preferida.
O princípio da coincidência entre o objecto do arrendamento e o objecto da preferência, que se afirma como racionalmente defensável na interpretação da extensão do direito de preferência do arrendatário, entronca na expressão legal “local arrendado”, a qual, como antes já se assinalou, suporta literalmente apenas o sentido do objecto do arrendamento, e agora, no tratamento do elemento racional, justifica-se naquele princípio. Tal expressão, “surgiu no anterior Regime do Arrendamento Urbano, mantendo-se a sua terminologia inalterada desde então. O objectivo da inclusão deste preceito foi o de retirar dúvidas quanto à extensão do objecto da preferência do arrendatário, nomeadamente nos casos em que o inquilino habitava uma fracção autónoma de um prédio em propriedade horizontal” (José Pedro Carneiro Cadete, in “Da Preferência do ArrendatárioHabitacional”https://repositorioaberto.up.pt/bitstream/10216/63905/2/Relatorio/20de/20Mestrado.pdf).
A supressão de tal princípio “levaria, no limite, à concessão do direito de preferência ao locatário que arrendou o telhado para colocação de um cartaz publicitário ou uma antena retransmissora), dado que tal arrendamento encontra-se agora sujeito à disciplina do arrendamento urbano”, o que é inadmissível (Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, ob cit. pág. 435).
Por fim, os casos paralelos de preferência no ordenamento jurídico não permitem extrair argumento decisivo na interpretação do preceito.
Ainda assim, saliente-se que o legislador não utilizou a expressão “local arrendado” apenas na norma constante do artigo 1091.º do CC.
Também, por exemplo, no artigo 1067.º do CC, a respeito do “fim do contrato”, estabeleceu, no n.º 2, “quando nada se estipule o local arrendado pode ser gozado no âmbito das suas aptidões”: aqui, é igualmente claro que o “local arrendado” é o objecto físico do contrato de arrendamento, como também já entendido naqueloutro artigo.
O legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados – artigo 9.º, n.º 3, do CC, e coerentes, não se permitindo por aqui sustentar a ambivalência ou polissemia da expressão quando empregue naquele primeiro preceito.
Portanto, o sentido a extrair do disposto no artigo 1091.º, n.º1 do CC – coincidente com o extraído pelas instâncias – é o seguinte:
1. o direito de preferência do arrendatário está limitado ao local arrendado, objecto do contrato de arrendamento, se se tratar de bem jurídico autónomo;
2. caso o prédio vendido não tenha sido constituído em propriedade horizontal, o arrendatário de parte dele, sem autonomia jurídica, não tem direito de preferência sobre ele ou sobre a totalidade do prédio, em caso de venda ou dação em cumprimento deste último.
Esta posição constitui, hoje em dia, a doutrina maioritária – Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, ob cit; Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Coordenação: António Menezes Cordeiro e José Pedro Carneiro Cadete, “Da Preferência do Arrendatário Habitacional”,pag12,inhttp://repositoriaberto.up.pt/bitstream/10216/63905/2/Relatorio%20de%20Mestrado.pdf.; em sentido contrário, filiando-se apenas em “antecedentes históricos no nosso direito positivo” ver Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 4.ª edição, 2007, Almedina, pag. 778 e sgs.
Saliente-se que o Acórdão do STJ junto a fls. 213 a 238 debruça-se sobre a questão na vigência do RAU e não na vigência do actual artigo 1091.º do CC.
Por fim, resta tratar da questão da constitucionalidade da interpretação a que se chegou.
Os recorrentes entendem que a interpretação do artigo 1091.º do CC no sentido firmado pelas instâncias, e agora por este Tribunal, viola o disposto nos artigos 13.º e 65.º da CRP.
O artigo 13.º, intitulado “princípio da igualdade”, prescreve no n.º1 que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, e, no n.º 2 que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
Por sua vez, o artigo 65.º, consagra, no n.º1, que Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar e, no n.º2, que para assegurar tal direito, incumbe ao Estado: a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social; b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais; c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada; d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução.
Os recorrentes sustentaram na alegação a inconstitucionalidade nos seguintes termos:
“A invocada inconstitucionalidade traduz-se na violação do princípio de acesso à habitação própria consagrado no art. 65.º da Constituição da República Portuguesa e na violação do princípio da igualdade, consagrado no art. 13.º do mesmo diploma fundamental.
Para as instâncias todos os cidadãos será iguais perante a lei, todavia … uns são mas iguais que outros … uns terão direito de preferência na venda do local arrendado, outros não … uns terão direito a aceder à habitação pelo exercício do direito de preferência, outros não!”.
Tratemos a questão.
Comece-se por referir que não se alcança – nem os recorrentes explicam – em que medida a interpretação do disposto no artigo 1090.º do Código Civil, na dimensão normativa de que os arrendatários de parte alíquota do prédio não têm direito de preferência na sua venda, briga com o comando constitucional afirmado no art. 65.º da CRP.
Nele, apenas se afirma o direito dos cidadãos à habitação e não à habitação própria, como dito pelos recorrentes na mira de justificarem, por detrás desse direito, a consagração do direito de propriedade sobre a habitação.
O que o preceito afirma é o direito à habitação, que no caso dos autores está assegurado por via do contrato de arrendamento, e não também, o direito de propriedade ou à habitação própria, com o que poderia contender o não reconhecimento do direito de preferência.
Também dele não consta, na densificação desse direito, qualquer dever de o Estado implementar política conducente à obtenção de habitação própria no âmbito dos contratos de arrendamento, o que poderia sugerir, entre outras soluções, a eleição do direito de preferência do arrendatário na compra do imóvel arrendado como sua concretização primacial.
Portanto, por aqui, não ocorre qualquer inconstitucionalidade material.
E, também não se crê que ela existe por putativa afronta ao artigo 13.º da CRP.
O significado da redacção de tal princípio está, por um lado, na proibição das desigualdades (sentido primário negativo), que consiste na vedação de privilégios e de discriminações, e, por outro lado, na imposição de tratamento igual de situações iguais (ou tratamento semelhante de situações semelhantes) e de tratamento desigual de situações desiguais (sentido positivo) - Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, pág. 121.
A igualdade jurídico-formal proclamada pela lei, que abrange, quaisquer direitos e deveres existentes na ordem jurídica portuguesa e o seu âmbito de protecção comporta três dimensões: (i) proibição do arbítrio, no sentido em que são inadmissíveis, quer diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; (ii) proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjectivas ou em razão dessas categorias; e (iii) obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural – J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra Editora 2007, pág. 339.
O princípio constitucional da igualdade caracteriza-se, pois, como proibição do arbítrio, permitindo apenas que se possam estabelecer diferenciações de tratamento, razoável, racional e objectivamente fundadas, sem as quais se incorrerá nesse arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes. É essencial que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada – cfr. Ac. TC nº 319/00, Diário da República, II série, de 18/10/2000, pág. 16785/16786.
O princípio da igualdade reclama, essencialmente, que seja conferido tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais, asserção repetidamente salientada na jurisprudência do Tribunal Constitucional - cf. Acórdãos n.ºs 186/90, 563/96, 14/2000, 187/2001, 509/2002 e 232/2003, publicados, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16º volume, 383 e segs., idem, 33º volume, 47 e segs., Diário da República, I Série-A, de 16 de Maio de 1996, idem, II Série, de 19 de Outubro de 2000, idem, idem, de 26 de Junho de 2001, idem, I Série-A, de 12 de Fevereiro de 2003, e de 17 de Junho de 2003.
Em concreto, ainda que possa haver coincidência entre a parte do prédio indiviso e a fracção autónoma do prédio constituído em propriedade horizontal, que, quando arrendadas, não facultarão, no primeiro caso, e, facultarão, no segundo caso, direito de preferência na venda, tal coincidência é meramente física e não jurídica.
Com efeito, no primeiro caso, aquela parte não é, no mundo do direito, e mais propriamente por força do disposto nos artigos 202.º e 203.º, ambos do CC, uma coisa, e, por consequência, não tem autonomia jurídica, pelo que não pode por si ser objecto autónomo de relações juridicamente válidas, invalidando, por força do disposto no artigo 1090.º, n.º1 e 417.º, ambos do CC, o exercício do direito de preferência; já no segundo caso, inversamente, a fracção autónoma decorrente da opção voluntária de constituição do prédio em propriedade horizontal tomado pelo proprietário, é uma coisa, que o sistema reputa de juridicamente autónoma, e do que faz decorrer a possibilidade de poder destacar-se de todo o prédio e ser, apenas ela, objecto de negócios jurídicos e fonte, por isso do direito de preferência a favor do arrendatário – artigos 1416.º e 1417.º, ambos do CC.
Sendo os objectos do arrendamento, no caso de um andar de um prédio não constituído e de uma fracção de um prédio constituído em propriedade horizontal, realidades jurídicas diferentes, existe, na base, uma situação que o sistema diversifica e que legitima o tratamento diferenciado, e coerente, na negação e na atribuição, respectiva, do direito de preferência.
As situações não são, pois, iguais, legitimando a desigualdade jurídica do objecto o tratamento diferenciado do feixe de direitos que se lhes associam.
Por aqui, então, não existe qualquer afronta do direito de igualdade.
Também não haverá quando esteja em causa o direito de preferência em relação à totalidade do prédio, visto que, e desde já, em passo algum se afirma a existência do direito de preferência do arrendatário de fracção autónoma sobre a totalidade do prédio, antes tendo, pela nossa parte, concluído que o direito de preferência se circunscreve, originariamente, ao “local arrendado”, se passível de autonomização.
Ora, somente do reconhecimento do direito de preferência do arrendatário da fracção autónoma relativamente a todo o prédio, poderia decorrer a interrogação sobre o tratamento desigualitário do arrendatário de parte do prédio indiviso, o que se negou.
Também por aqui, não ocorre qualquer inconstitucionalidade.
3. Abuso do direito pelos autores.
A questão do abuso do direito pelos autores acha-se prejudicada pela improcedência das questões colocadas no recurso de revista e manutenção do decidido pela Relação.
O recurso improcede na totalidade.
III – DECISÃO
Nesta conformidade nega-se a revista e confirma-se o Acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 21 de Janeiro de 2016
Tavares de Paiva (Relator)
Abrantes Geraldes
Tomé Gomes