I. O art.º 640.º, do CPC exige ao recorrente a concretização dos pontos de facto a alterar, assim como dos meios de prova que permitem pôr em causa o sentido da decisão da primeira instância e justificam a alteração da mesma e, ainda, a decisão que, no seu entender deve ser proferida sobre os pontos de facto impugnados.
II. Tendo o recorrente indicado os depoimentos que, na sua perspetiva, justificam a alteração dos pontos de facto impugnados, tendo para o efeito identificado as testemunhas, assim como a matéria sobre a qual foram ouvidas, referenciado as datas em que tais depoimentos foram prestados e o CD onde se encontra a respetiva gravação, indicando o seu tempo de duração, para além de transcrever e destacar a “negrito” as passagens da gravação tidas por relevantes e que, em seu entender, relevam para a alteração do decidido, tem-se por adequadamente cumprido o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, consagrado no art. 640.º, n.ºs 1, al. b), e 2, al. a), do CPC.
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça
I.
7. A Exma. Procuradora-Geral-Adjunta pronunciou-se no sentido de ser concedida a revista, em parecer a que as partes não responderam.
8. Inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC[1]), em face das conclusões da alegação de recurso, a única questão a decidir[2] é a de saber se a Relação deveria ter conhecido do recurso de apelação interposto pelo A./habilitado, no que respeita à reapreciação da matéria de facto assente na prova testemunhal produzida em sede de julgamento.
Decidindo.
«A alegação do recurso é a peça processual em que o recorrente demonstra as razões pelas quais pretende a reapreciação das questões decididas na decisão recorrida e que são o objeto do recurso interposto.
A alegação não se confunde com o requerimento de interposição do recurso e desdobra-se basicamente em três partes: a identificação da decisão recorrida, a fundamentação e as conclusões.
Na alegação, o recorrente, depois de identificar a decisão recorrida, desenvolve os fundamentos das críticas que lhe dirige, invocando para o efeito toda a argumentação que corporiza as suas discordâncias.
As conclusões assumem-se como a síntese das razões que estão subjacentes à interposição do recurso e que foram desenvolvidas na fundamentação, existindo autonomia formal e material entre estas duas partes de uma alegação de recurso.
(…)
As conclusões não são, deste modo, uma reprodução de toda a argumentação desenvolvida na fundamentação do recurso, mas uma síntese dessa argumentação que terá de permitir a identificação clara dos motivos de discordância do recorrente e integrar a formulação do pedido de alteração da decisão recorrida, em conformidade.»
Vale por dizer que as conclusões de recurso não têm de transcrever ou copiar o que se escreveu no corpo da alegação, mas apenas sintetizar as razões que estão subjacentes à interposição do recurso, tanto mais porque são elas que definem o seu objeto, conforme resulta do disposto no art. 635.º, n.º 4, do CPC.
Consistindo as conclusões de recurso em «proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação»[4], deve entender-‑se, pois, que as conclusões apenas deverão conter o enunciado das questões a decidir, sem que tenham de incluir a exaustiva repetição da fundamentação desenvolvida ao longo do corpo das alegações.
No mesmo sentido, refere Amâncio Ferreira[5] que «expostas pelo recorrente, no corpo da alegação, as razões de facto e de direito da sua discordância com a decisão impugnada, deve ele, face à sua vinculação ao ónus de formular conclusões, terminar a sua minuta pela indicação resumida, através de proposições sintéticas, dos fundamentos, de facto e/ou de direito, por que pede a alteração ou anulação da decisão».
É certo que o art. 640.º, do CPC, exige ao recorrente a concretização dos pontos de facto a alterar, dos meios de prova que permitem pôr em causa o sentido da decisão da primeira instância e justificam a alteração da mesma e ainda a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre os pontos de facto impugnados.
Não obstante, este conjunto de exigências reporta-se especificamente à fundamentação do recurso, não se impondo ao recorrente que, nas suas conclusões, reproduza o que alegou no âmbito dos requisitos enunciados no art. 640.º, n.ºs 1e 2, do CPC.
Daí que, conforme explica Abrantes Geraldes[6], a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto só se deva verificar em alguma das seguintes situações:
«a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos.»
11. Relativamente ao sentido e alcance dos requisitos formais de cumprimento dos ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecidos no art.º 640.º, n.º 1 e 2, do CPC, têm vindo a consolidar-se no STJ as linhas jurisprudenciais expressas, entre outros, nos seguintes arestos, assim sumariados na parte que ora releva:
- Ac. STJ de 01.10.2015, P. 824/11.3TTLRS.L1.S1, desta Secção Social (Relatora: Ana Luísa Geraldes):
I – No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorretamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe.
II - Servindo as conclusões para delimitar o objeto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso.
III - Não existe fundamento legal para rejeitar o recurso de apelação, na parte da impugnação da decisão da matéria de facto, numa situação em que, tendo sido identificados nas conclusões os pontos de facto impugnados, assim como as respostas alternativas propostas pelo recorrente, não foram, contudo, enunciados os fundamentos da impugnação nem indicados os meios probatórios que sustentam uma decisão diferente da que foi proferida pela 1.ª instância, requisitos estes que foram devidamente expostos na motivação.
IV – Com efeito, o ónus a cargo do recorrente consagrado no art. 640.º do Novo CPC, não exige que as especificações referidas no seu nº 1 constem todas das conclusões do recurso, mostrando-se cumprido desde que nas conclusões sejam identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação.
- Ac. STJ de 22.10.2015, P. 212/06.3TBSBG.C2.S1, 2ª Secção (Relator: Tomé Gomes):
1. O sentido e alcance dos requisitos formais de impugnação da decisão de facto previstos no n.º 1 do art.º 640.º do CPC devem ser equacionados à luz das razões que lhes estão subjacentes, mormente em função da economia do julgamento em sede de recurso de apelação e da natureza da própria decisão de facto.
2. O meio impugnatório mediante recurso para um tribunal superior não visa propriamente um novo julgamento global da causa, mas apenas uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão recorrida.
3. A decisão de facto tem por objeto os juízos probatórios parcelares, positivos ou negativos, sobre cada um dos factos relevantes, alcançando ainda a respetiva fundamentação ou motivação.
4. Neste quadro, a apreciação do erro de julgamento da decisão de facto é circunscrita aos pontos impugnados, embora, quanto à latitude da investigação probatória, o tribunal de recurso tenha um amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa, como decorre do preceituado no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, incluindo os mecanismos de renovação ou de produção dos novos meios de prova, nos exatos termos do n.º 2, alíneas a) e b), do mesmo artigo, sem estar adstrito aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes e nem sequer aos indicados pelo tribunal recorrido.
5. São as referidas condicionantes da economia do julgamento do recurso e da natureza da decisão de facto que postulam o ónus, por banda da parte impugnante, de delimitar com precisão o objeto do recurso, ou seja, de definir as questões a reapreciar pelo tribunal ad quem, especificando os concretos pontos de facto ou juízos probatórios, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 640 do CPC.
6. Impõe-se também ao impugnante, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC, o requisito formal de indicar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
7. O impugnante não satisfaz tais requisitos quando (…) omita completamente a especificação daqueles pontos, bem como a indicação da decisão a proferir sobre cada um deles, limitando-se a discorrer sobre o teor dos depoimentos convocados com afloramentos de um ou outro resultado probatório que entendem ter sido logrado na produção da prova.
- Ac. STJ de 22.09.2015, P. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção (Relator: Pinto de Almeida):
(…)
II - Na impugnação da decisão de facto, recai sobre o recorrente “um especial ónus de alegação”, quer quanto à delimitação do objeto do recurso, quer no que respeita à respetiva fundamentação.
III - Na delimitação do objeto do recurso, deve especificar os pontos de facto impugnados; na fundamentação, deve especificar os concretos meios probatórios que, na sua perspetiva, impunham decisão diversa da recorrida (art. 640.º, n.º 1, do NCPC) e, sendo caso disso (prova gravada), indicando com exatidão as passagens da gravação em que se funda (art. 640.º, n.º 2, al. a), do NCPC).
IV - A inobservância do referido em III é sancionada com a rejeição imediata do recurso na parte afetada.
V - Se essa cominação se afigura indiscutível relativamente aos requisitos previstos no n.º 1, dada a sua indispensabilidade, já quanto ao requisito previsto no n.º 2, al. a), justifica-se alguma maleabilidade, em função das especificidades do caso, da maior ou menor dificuldade que ofereça, com relevo, designadamente, para a extensão dos depoimentos e das matérias em discussão.
VI - Se a falta de indicação exata das passagens da gravação não dificulta, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, nem o exame pelo tribunal, a rejeição do recurso, com este fundamento, afigura-se uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável.
- Ac. STJ de 23.02.2010, P. 1718/07.2TVLSB.L1.S1, 6ª Secção (Relator: Fonseca Ramos):
I - Não se exige ao recorrente, no recurso de apelação, quando impugna o julgamento da matéria de facto, que reproduza nas conclusões tudo o que alegou no corpo alegatório e preenche os requisitos enunciados no art. 690.º-A, n.º1, als. a) e b), e n.º 2, do Código de Processo Civil, o que tornaria as conclusões, as mais das vezes, não numa síntese, mas numa complexa e prolixa enunciação repetida do que afirmara.
II – Esta consideração não dispensa, todavia, o recorrente de nas conclusões fazer alusão àquela pretensão sobre o objeto do recurso, mais não seja pela resumida indicação dos pontos concretos que pretende ver reapreciados, de modo a que delas resulte, inquestionavelmente, que pretende impugnar o julgamento da matéria de facto.
III – Tendo a recorrente, na conclusão primeira, afirmado de modo insofismável que pretendia recorrer do julgamento da matéria de facto, parece-nos eivada de formalismo a decisão que rejeitou o recurso nessa parte, por considerar que nas conclusões a recorrente omitiu os requisitos que estava obrigada a alegar para que a questão fosse apreciada pela Relação.
12. Reportando-nos ao caso sub judice, no âmbito da reapreciação da matéria de facto suscitada pelo A./habilitado, a Relação debruçou-se sobre a prova documental invocada na apelação, assim como sobre a alegada contradição da matéria de facto, pelo que tais segmentos da decisão recorrida estão fora do âmbito do presente recurso.
Está apenas em causa, no presente recurso, saber se o recorrente respeitou as exigências consagradas no art. 640.º, n.ºs 1, al. b), e 2, al. a), do CPC, em relação aos meios de prova gravados que foram invocados na apelação.
O Tribunal da Relação rejeitou a impugnação da matéria de facto, na parte referente à prova testemunhal, com fundamento na circunstância de aquele não ter indicado «(…) efetivamente as concretas passagens da gravação em que funda o seu recurso por referência ao CD apenso aos autos (…) », nem relacionado «(…) com cada um dos factos que diz estarem incorretamente julgados as passagens daqueles meios de prova que levariam, na sua perspetiva, a diferente decisão» dessa forma concluindo que não foram «(…) cumpridos na íntegra os (…)ónus legais constantes dos artigos 640, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do Código de Processo Civil na impugnação deduzida pelo recorrente».
Pode ler-se também no acórdão recorrido que «(…) a indicação da duração total dos referidos depoimentos no suporte digital não cumpre a exigência legal de indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recorrente. E, ainda que se admita que a transcrição das passagens que o recorrente reputa de relevantes (correspondentes a essas passagens) possa, em alguns casos mais simples, ser suficiente para sinalizar ao tribunal de recurso as razões por que pretende a alteração da decisão, de modo algum é apta a tal desiderato uma transcrição extensa (como aqui se verifica) da quase totalidade dos depoimentos dos referidos EE, FF e GG, antecedida da afirmação conclusiva de que os quesitos indicados deveriam ter sido considerados provados com base na prova testemunhal apresentada “que se transcreverá”, sem que o recorrente despenda qualquer argumentação no sentido de identificar as passagens que entende relevantes para a prova de cada um dos factos que pretende sejam dados como provados por esta segunda instância e de explicitar por que razão são tais meios de prova aptos a alcançar tal desiderato».
13. Não se sufraga este entendimento.
Com efeito, a simples leitura da alegação do A./habilitado na apelação (fls. 1243 e segs.) permite concluir que o recorrente ali identificou concretamente os pontos de facto tidos por mal julgados, indicou os meios de prova que, na sua opinião, impunham decisão diversa sobre os pontos de facto impugnados e mencionou também o sentido da decisão que deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, dessa forma cumprindo cabalmente os ónus referidos nos artigos 639.º, n.º 1, e 640.º, n.º 1, do CPC.
Concretizando:
O A./habilitado enunciou na apelação, como tendo sido mal julgados com base na prova testemunhal produzida, os pontos 8.º, 15.º, 22.º, 29.º, 36.º e 43.º, da base instrutória, pontos esses que elencou ainda nas conclusões das alegações.
Indicou também os depoimentos que, na sua perspetiva, justificavam a pretendida alteração dos pontos de facto impugnados. Para o efeito, identificou as testemunhas EE, FF e GG, assim como a matéria sobre a qual foram ouvidas; referenciou as datas em que tais depoimentos foram prestados e o CD onde se encontra a respetiva gravação, indicando o seu tempo de duração, e, para além disso, transcreveu e destacou a “negrito” as passagens da gravação tidas por relevantes e que, em seu entender, relevavam para a alteração do decidido (cfr. fls. 1251 e segs.).
Por fim, especificou a decisão que, em seu entender, deveria ser proferida sobre os mencionados pontos de facto impugnados, tendo para o efeito sustentado que os mesmos deveriam ter sido dados como provados.
É certo que o recorrente não identifica a localização das partes que considera relevantes dos depoimentos em causa, por referência ao suporte técnico (CD) que contém a respetiva gravação.
Não obstante, o recorrente transcreve tais depoimentos e, conforme já se referiu, destacou a negrito as partes que considera serem as pertinentes, pelo que se tem por suficientemente cumprido o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes.
Outrossim, também decorre de forma inequívoca das conclusões da apelação que o A./habilitado pretendia que a Relação alterasse a decisão proferida sobre a matéria de facto, ali tendo concretizado os pontos da matéria de facto a alterar, assim como o sentido que em seu entender deve extrair-se das provas que invoca e analisa, em termos que satisfatoriamente permitem apreender as questões por si suscitadas e o alcance das respostas visadas pelo mesmo no plano do recurso de facto.
Deste modo, articuladamente ponderadas as conclusões com a fundamentação do recurso de apelação, conclui-se que as alegações de recurso apresentadas pelo A./habilitado respeitavam as exigências contidas nos artigos 639.º e 640.º do CPC.
Impõe-se, assim, a concessão da revista e, consequente baixa dos autos ao Tribunal da Relação, para que conheça do recurso interposto pelo A./habilitado na parte relativa à reapreciação da matéria de facto com base na prova testemunhal invocada.
III.
Lisboa, 18 de fevereiro de 2016
Ana Luísa Geraldes
António Ribeiro Cardoso