CAMINHO PÚBLICO
REQUISITOS
DESAFECTAÇÃO
Sumário

I - Um determinado caminho só pode ser considerado «público» quando: a sua utilização pelo público em geral se verifique desde tempos imemoriais e essa utilização se destine à satisfação de interesses colectivos relevantes.
II - A desafectação tácita da utilidade pública ou colectiva de um caminho depende da verificação de dois requisitos: o seu abandono pela generalidade do público que antes o utilizava e a abertura de um outro caminho que passe a satisfazer o mesmo interesse colectivo que aquele satisfazia e em melhores condições para as populações.

Texto Integral

Pc. 1292/08.2TBLSD.P1 – 2ª Secção
(apelação)
_____________________
Relator: Pinto dos Santos
Adjuntos: Des. Ondina Carmo Alves
Des. Ramos Lopes

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Acordam nesta secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
B…… e mulher C……, residentes em …., …, Lousada, instauraram a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra D….. e marido E……, residentes em …., …., Lousada, pedindo que:
a) Seja declarado o seu direito de propriedade sobre o prédio que identificam;
b) Se declare que o caminho que também identificam é um caminho público;
c) Sejam os réus condenados a destruir e a remover o muro que construíram e a regularizar o leito do caminho em toda a extensão da ocupação que dele fizeram e na largura de 7 metros, deixando-o livre e transitável e repondo-o no estado anterior à sua intervenção.
Para tal, alegaram que são proprietários do prédio rústico que identificam no art. 1º da p. i., cuja aquisição se encontra inscrita em seu nome na competente CRP, que os réus são proprietários de dois prédios situados no mesmo lugar, que a sul do prédio dos demandantes, entre este e os dos réus, existe uma faixa de terreno que sempre constituiu um caminho público (caracterizam-no e descrevem factualidade tendente a demonstrá-lo) e que os demandados construíram sobre esse caminho um muro e incorporaram-no, em toda a sua largura (cerca de 7 metros) e numa extensão de aproximadamente 30 metros, nos seus prédios, o que fez com que os autores tenham ficado impedidos de aceder ao seu imóvel.

Os réus, citados, contestaram a acção, por excepção e por impugnação e deduziram reconvenção.
No primeiro caso, arguiram a ilegitimidade dos autores por entenderem que só poderiam peticionar a dominialidade pública do caminho se tivessem intentado uma acção popular.
No segundo, contrariam a natureza pública que os autores atribuem ao caminho, pretendendo a sua qualificação como mero atravessadouro ou, quando muito, como servidão de passagem, excepcionando, neste caso, a sua extinção por desnecessidade.
No terceiro, alegam que a parcela de terreno em questão (o leito do caminho) faz parte integrante dos seus prédios e que a vêm possuindo, como verdadeiros donos, há mais de 30 anos e que a actuação dos autores lhes tem causado prejuízos diversos decorrentes do atraso na construção de uma habitação projectada para o local.
Concluíram pugnando pela procedência da invocada excepção dilatória ou, assim não acontecendo, pela improcedência da acção (quer por estar em causa um mero atravessadouro ou, quando muito, uma servidão de passagem, devendo, neste caso, considerar-se extinta por desnecessidade) e pela procedência da reconvenção, com a consequente condenação dos autores-reconvindos a:
. reconhecerem o seu direito de propriedade sobre o leito da faixa/parcela de terreno que identificam na contestação-reconvenção;
. absterem-se de o ocupar, deixando-o livre e desobstruído
. e pagarem-lhes a quantia que se liquidar em momento posterior, pelos prejuízos descritos nos arts. 96º a 112º da mesma peça processual.

Os autores replicaram, respondendo às excepções e à reconvenção deduzidas pelos réus, sustentando a sua improcedência.

Os réus treplicaram.

Foi proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a excepção dilatória invocada pelos réus e se admitiu a reconvenção, foram seleccionados os factos assentes e foi organizada a base instrutória, sem reclamação das partes, embora tenha sido objecto de correcção, em julgamento, uma das alíneas dos factos assentes.

Realizou-se a audiência de discussão e de julgamento, no decurso da qual, após produção da prova, foi proferido despacho de resposta aos quesitos da base instrutória, mais uma vez sem reclamação das partes.

Seguiu-se a prolação da sentença que (além da condenação dos réus nas custas) julgou a acção procedente e a reconvenção improcedente e, em consequência:
1. Declarou:
. o direito de propriedade dos autores sobre o prédio identificado em 1) dos factos provados;
. o carácter público do caminho identificado em 5) sob as letras A-B;
2. Condenou os réus a destruírem e removerem o muro referido em 10) dos factos provados, regularizarem o leito do caminho em toda a respectiva extensão e na largura de 7 metros, deixando-o livre e transitável, e a reporem o mesmo no estado anterior à construção do muro;
3. E declarou, ainda:
. o direito de propriedade dos réus sobre os prédios identificados em 4) dos factos provados;
. tendo absolvido os autores dos demais pedidos formulados pelos réus.

Inconformados com o sentenciado, interpuseram os réus o recurso de apelação em apreço, cuja motivação culminaram com as seguintes conclusões:
“A - Recorre-se, deste modo, da Douta Decisão “a quo” pois a mesma viola o disposto nos art. 660, nº 2 e 668, nº 1 d) do C.P.C. e 1383 do C.C.
B - Manifestamente verificou-se erro na apreciação da prova produzida,
C - Discordando os Recorrentes das respostas aos quesitos 18º e 19º da base instrutória.
D - Uma correcta ponderação e análise crítica de todos os depoimentos das testemunhas arroladas por ambas as partes, da própria inspecção ao local e a aplicação das regras da experiência comum impunham resposta diversa aos referidos quesitos.
E - Ou seja, deveria o tribunal dar como integralmente provados os quesitos 18º e 19º da base instrutória.
F - Não poderia o Tribunal deixar de pronunciar-se, também, sobre as questões levantadas em sede de contestação.
G - O caminho actualmente somente serviria de acesso exclusivo ao prédio dos AA.,
H - Sendo certo que, como referido supra, os AA. detêm actualmente melhores condições de acesso ao seu prédio, com inferior grau de inclinação e menor percurso a percorrer.
I - Não existe qualquer utilidade pública no que ao caminho concerne,
J - Tendo a utilização do caminho sido totalmente abandonada pela população desde a data da construção da nova via.
L - Torna-se, assim, evidente que somente aos AA. interessará, por meros critérios subjectivos e egoísticos, tal pretensão de dominialidade pública.
M - Não se vendo especial ou considerável relevância de certo caminho para a realização de interesses colectivos, não deveria ser qualificada a utilidade proporcionada pelo dito caminho como de verdadeira utilidade pública, devendo, deste modo, o caminho em apreço ser qualificado como mero atravessadouro de acesso ao prédio dos AA., o que se requer.
N - Decorrente da utilização supra descrita, deve assim o caminho em apreço ser qualificado como mero atravessadouro de acesso ao prédio dos AA..
O - Sempre se dirá que tal servidão deve ser declarada extinta por desnecessidade, o que assim deveria ter determinado a decisão de que se recorre.
P - Mesmo que refutada tal tese, constitui tal pretensão (na hipotética possibilidade assim de ser considerado) manifesto abuso de direito dos AA..
Termos em que, na procedência do presente recurso, deve a douta sentença recorrida ser revogada e, consequentemente, serem os R.R.. absolvidos do pedido”.

Os autores contra-alegaram em defesa da confirmação da sentença recorrida.
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II. Questões a apreciar e decidir:

Face às conclusões das alegações dos apelantes (são estas que delimitam o «thema decidendum» a cargo desta 2ª instância, de acordo com o estabelecido nos arts. 684º nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3 do CPC, na redacção aqui aplicável, resultante das alterações introduzidas pelo DL 303/2007, de 24/08, atenta a data da instauração da acção), o objecto do conhecimento deste Tribunal da Relação traduz-se em saber:
. Se houve erro na apreciação da prova por parte do Tribunal «a quo» e se os pontos da matéria de facto indicados pelos apelantes devem obter respostas no sentido por eles pretendido;
. Se ocorrem os requisitos de que depende o reconhecimento/declaração da natureza pública do caminho ou se, pelo contrário, estamos perante um mero atravessadouro;
. Se o caminho perdeu a sua natureza pública e se tem aqui aplicação a figura da extinção das servidões por desnecessidade;
. Se a pretensão dos autores configura um abuso de direito.
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III. Factos provados:

Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1) Os AA. são donos e legítimos possuidores do prédio rústico denominado “F…..”, sito no lugar do ….., freguesia de Aveleda, deste concelho, a pinhal e eucaliptal, descrito como sendo a confrontar de norte com G…… e caminho público, de sul e nascente com estrada e do poente com H….. e I….., descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho no n.º 00764 – Aveleda, inscrito na matriz predial respectiva no art. 656.
2) E adquiriram o prédio de 1) por sucessão legal de seu pai e sogro J….., na partilha de cuja herança, operada por escritura de 12.01.2007 do Cartório da Drª K….., em Felgueiras, lhes foi adjudicada a sua raiz ou nua propriedade, cujo usufruto foi adjudicado a sua mãe e sogra L…...
3) O prédio de 1) está inscrito na Conservatória do Registo Predial a favor dos AA. pela inscrição G-Ap. 13 de 2007/09/06.
4) Os RR. são donos e legítimos possuidores dos seguintes prédios sitos no mesmo lugar e freguesia:
a) Prédio urbano composto por parcela de terreno destinada a construção, sito no Lugar ….., na freguesia …., do concelho de Lousada, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o nº 560/20010917 - Aveleda, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 829, com o valor patrimonial de 20.290€, que veio ao domínio e posse destes por o terem adquirido a M….. e esposa N….., por escritura pública de compra e venda lavrada no Cartório Notarial de Lousada, no dia 6 de Setembro de 2001, exarada a fls. 13 a 14 do Livro 60-D, desse Cartório, e que se encontra registado a seu favor na CRP;
b) Prédio rústico, denominado “O…..”, a mato e pinhal, sito no Lugar ……, na freguesia de …., do concelho de Lousada, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o nº 559/20010917 - Aveleda, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 874, com o valor patrimonial de 49,88€, que veio ao domínio e posse destes por lhes ter sido doado por P…., por escritura pública de doação lavrada no Cartório Notarial de Lousada, no dia 22 de Março de 2005, exarada a fls. 34 a 34v do Livro 184-D+, desse Cartório e que se encontra registado a seu favor na CRP.
5) A fls. 7 dos autos [há aqui um lapso, porque o doc. está junto a fls. 41; constitui é o doc. nº 7 junto com a p. i.], encontra-se junto o seguinte documento, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido:






6) A confrontar com o prédio de 1), pelo respectivo lado sul, ao longo de toda esta estrema, entre aquele e os que lhe ficam a sul, existe uma faixa de terreno com a largura média de sete metros e que tem o seu início a sudoeste daquele prédio, na estrada que liga Macieira a Aveleda e ponto “A” referido no documento transposto em 5).
7) E prossegue pelos lados poente e norte dos prédios de 4), em toda a extensão das ditas estremas.
8) Alguns metros à frente atinge a estrema sul do prédio de 1) que acompanha em toda a respectiva extensão, prossegue para nascente, até atingir no ponto “B” do documento transposto em 5), a nascente, o caminho assinalado naquele documento pela designação de “caminho público”.
9) Toda a referida faixa de terreno tem entre os pontos “A” e “B” o comprimento de cerca de 100 m e, tendo sido anteriormente, toda ela, de terra batida, está hoje, de há cerca de cinco anos a esta parte, parcialmente pavimentada a alcatrão.
10) Na mesma altura, há cerca de cinco/seis anos, a Junta de Freguesia de Aveleda rasgou e pavimentou a alcatrão o troço de caminho designado no documento de 5) por “caminho público” e aí confinado às letras B-C - que tem um grau de inclinação diminuído relativamente ao caminho de 6), distando deste cerca de 50 metros -, podendo ser utilizado a pé e por veículos automóveis ligeiros e por pesados de mercadorias, utilização automóvel que não era permitida pelo caminho de 6).
11) A Junta alargou o caminho, designadamente na sua confrontação com o prédio de 1) que, a pedido da mesma, cederam uma faixa de terreno do seu prédio com cerca de dois metros e meio de largura por cerca de setenta metros de comprimento para o referido alargamento.
12) O caminho de 6) foi sendo utilizado pela população da freguesia de Aveleda durante largos anos para acederem para as localidades a montante dos prédios de 1) e 4), designadamente para seguir no sentido da freguesia de Macieira localizada a norte.
13) O prédio dos Autores tem, actualmente, acesso directo à via pública, com uma largura de cerca de 7 metros e detém piso alcatroado, liso e regular e com sistema de escoamento de águas.
14) Visando a construção de uma habitação unifamiliar, os Réus deram entrada nos serviços da Câmara Municipal de Lousada de pedido de licenciamento de obras de construção, tendo tal pedido sido aprovado e, em consequência, ordenaram a construção da referida habitação, que já se encontra em fase adiantada de construção.
15) Fruto destes autos, os Autores apresentaram sucessivas queixas e reclamações junto dos serviços competentes da Câmara Municipal de Lousada que, na dúvida quanto à propriedade, impediu a construção total do muro de vedação a edificar na referida extrema poente do prédio urbano dos Reconvintes, mantendo o licenciamento quanto à restante construção.
16) Até à abertura do troço mencionado em 10), a faixa de terreno de 6), localizada entre as letras A-B era uma das ligações, no local, entre a estrada que liga a freguesia de Macieira à de Aveleda e os lugares de Gens da freguesia de Aveleda e de Coutada da freguesia de Macieira e a estrada que liga Soutelo a Lousada e ainda os lugares de Aveleda da freguesia de Aveleda e os demais lugares supra ditos, estes e a estrada de Soutelo a Lousada localizados a Norte dos prédios de 1) e 4).
17) E fazia parte e integrava o caminho com início no Ponto A e prosseguia a partir do Ponto B para norte até aos Lugares de Gens e Coutada e a estrada de Soutelo a Lousada.
18) O que ainda hoje sucede, não obstante a abertura do troço C-B daquele caminho.
19) As entradas e saídas do prédio de 1) fizeram-se sempre desde e para a identificada faixa de terreno, desde sempre utilizada como caminho.
20) Este caminho existe no local desde tempos imemoriais, não existe pessoa viva conhecida que se lembre da respectiva abertura e, por isso, há mais de 100 (anos), por ele passando pessoas a pé e veículos, inicialmente apenas carros de bois e depois também tractores, a caminho ou entre os referidos lugares, freguesias e estradas, sem qualquer restrição, e como o único acesso possível entre uns e outros.
21) O aludido caminho encontra-se no uso directo e imediato do público desde tempos imemoriais.
22) A autarquia, concretamente a Junta de Freguesia de Aveleda, juntamente com a Câmara Municipal de Lousada, tratou do alargamento desse caminho e da respectiva pavimentação parcial.
23) O caminho de 6) e troço em causa está e esteve sempre delimitado pelos terrenos adjacentes, bem poído e cotiado, e sempre foi utilizado por todos quantos pretendem aceder do mesmo aos prédios que lhe são contíguos, designadamente ao prédio de 1), e vice-versa, permanentemente, à vista de todos, sem oposição de ninguém, com a convicção de estarem a servir-se de coisa pública e não afecta a quaisquer fins privados ou particulares.
24) O caminho está sob a jurisdição e administração da autarquia desde a sua construção, há mais de 100 e mais anos.
25) Os RR. construíram sobre o citado caminho, e limite poente do mesmo, um muro que vai desde o ponto A ao ponto Y da planta numa extensão de cerca de 30 m, incorporando-o, em toda a sua largura – cerca de 7 m – e numa extensão de aproximadamente 30 m nos prédios de 4).
26) Cortando o caminho no referido ponto Y e impedindo todos e, concretamente, os AA. de aceder pelo mesmo aos lugares, freguesias e estradas e destes aos seus prédios e vice-versa.
27) Há já mais de 20 anos que existe pelo menos uma nova via de comunicação que permite o acesso aos locais referidos em 12), tendo sido construída uma estrada em alcatrão, com grau de inclinação diminuído.
28) Desde pelo menos 2003, a população da freguesia de Aveleda e restantes utilizadores servem-se também do caminho referido em 10).
29) A cedência de terreno referida em 11) destinou-se a tornar mais cómodo o respectivo percurso para se obter uma largura de via de 7 m.
30) O acesso de terceiros ao prédio de 1) pode ser efectuado pela nova via, quer a pé quer em veículo automóvel.
31) O acesso ao prédio de 1) através do caminho de 6) antes do alargamento e pavimentação referidos em 11) e 9), respectivamente, era efectuado em piso irregular de terra, sem qualquer sistema de escoamento, nele se encontrando sempre presente pedras, ervas e sulcos.
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IV. Apreciação das questões indicadas em II:

1. Se houve erro na apreciação da prova e se há que alterar as respostas aos quesitos que vêm impugnadas.
Os recorrentes começam por invocar a existência de erro na apreciação da prova relativamente às respostas dadas aos quesitos 18º e 19º da BI. Consideram que foram mal ponderados/valorados os depoimentos que as testemunhas Q……, R…., S….. e T….. prestaram acerca da factualidade que constava de tais quesitos e, ainda, que a inspecção ao local e a aplicação das regras da experiência comum impunham que os mesmos obtivessem respostas diferentes das que lhes foram dadas na 1ª instância – foram considerados «não provados» e entendem que deviam ter obtido respostas de «provados» (cfr. nºs 1 a 10 do corpo da motivação e as conclusões A a E).
Os recorridos, por sua vez, com base na fundamentação do despacho de resposta aos quesitos da BI, defendem que as respostas em questão devem ser mantidas inalteradas.
Mostram-se cumpridos – considerando o corpo das alegações e as respectivas conclusões – os ónus impostos pelo art. 685º-B nºs 1 als. a) e b) e 2 do CPC (na referida redacção), por terem sido especificados os concretos pontos/quesitos da BI cujas respostas consideram incorrectamente «decididas», por indicarem os concretos meios de prova em que assentam a sua discordância, transcrevendo os segmentos/passagens dos mesmos que, em seu entender, conferem sustentação à sua impugnação e por localizarem esses excertos testemunhais no registo/gravação da prova efectuado.
Antes de procedermos à reapreciação da prova, importa recordar duas coisas:
. Por um lado, que o nº 1 do art. 712º do CPC estabelece que “a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685º-B, a decisão com base neles proferida; b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou”. Acrescentando o nº 2 que “no caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”.
. Por outro, quanto aos poderes de reapreciação da prova por parte dos Tribunais da Relação, quando esta assenta, total ou parcialmente, em depoimentos gravados, importa frisar que, contrariamente ao que acontecia até há pouco tempo, em que dominou uma orientação restritiva que sustentava que a 2ª instância não podia procurar uma nova convicção e que devia limitar-se a aferir se a do julgador «a quo», vertida nos factos provados e não provados e na fundamentação desse seu juízo valorativo, tinha suporte razoável no que a gravação, em conjugação com os demais elementos probatórios dos autos, permitiam percepcionar, impera actualmente uma concepção bem mais ampla que, embora reconheça que “a gravação dos depoimentos áudio ou vídeo não consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal «a quo»”, designadamente, o modo como as declarações foram prestadas, “as hesitações que as acompanha(ra)m, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória” e que existem “aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia”, entende, ainda assim, que as Relações têm “a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância, devendo proceder à audição dos depoimentos ou fazer incidir as regras da experiência, como efectiva garantia de um segundo grau de jurisdição”; e quando um Tribunal de 2ª instância, ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, “conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, fazendo «jus» ao reforço dos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição” [assim, Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, 2008, pgs. 279 a 286 e in “Reforma dos Recursos em Processo Civil”, Revista Julgar, nº 4, Janeiro-Abril/2008, pgs. 69 a 76; idem, Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 2008, pg. 228, e, i. a., Acórdãos do STJ de 01/07/2008, proc. 08A191, de 25/11/2008, proc. 08A3334, de 12/03/2009, proc. 08B3684, de 28/05/2009, proc. 4303/05.0TBTVD.S1 e de 01/06/2010, proc. 3003/04.2TVLSB.L1.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj].

Vejamos então a factualidade impugnada.
Os quesitos 18º e 19º da Base Instrutória tinham a seguinte redacção:
. Quesito 18º: “Toda a população da freguesia de Aveleda e restantes utilizadores se servem, há cerca de seis anos, exclusivamente da estrada, jamais tendo utilizado ou percorrido o percurso do caminho F), desde essa data?”
. Quesito 19º: “Sequer os autores, desde a abertura da nova estrada, utilizam o referido caminho para acederem ao seu prédio, utilizando para o efeito, apenas, a nova estrada?”.
Tais quesitos obtiveram do Tribunal «a quo» (despacho de resposta aos quesitos de fls. 256-260) as seguintes respostas:
“Quesito 18º: provado que desde pelo menos 2003, a população da freguesia de Aveleda e restantes utilizadores se servem também do caminho referido em J)”.
“Quesito 19º: não provado”.
Decorre da fundamentação exarada no despacho que lhes deu resposta (e aos demais quesitos da BI) que aquele Tribunal as radicou, em primeira linha, nos depoimentos das testemunhas Q…., G….., U…. e M….., por serem da localidade e conhecerem o local em discussão e, em segunda linha, num grau menor, nos testemunhos de R……, S….. e T….
Comecemos pelos depoimentos testemunhais (procedemos à audição de todos os que acabámos de referir e não apenas dos mencionadas pelos recorrentes, em atenção ao permitido pela parte final do nº 2 do art. 712º do CPC), seguindo a ordem por que foram ouvidos em julgamento.
Acerca da factualidade ora em reapreciação, disseram:
. Q…… (vizinho das partes) começou por dizer que “acho” que depois da abertura da nova estrada as pessoas deixaram de passar pelo caminho em questão nos autos (foi confrontado com a planta que está indicada nos factos provados); depois, tendo-lhe sido perguntado se todas as pessoas que anteriormente o utilizavam para acederem às diversas localidades e lugares a que dava acesso tinham deixado de utilizar tal caminho, disse não saber porque deixou de morar lá perto há alguns anos; perguntado há quantos anos deixou de morar perto do local, disse que já lá não vive há vinte e tal anos e que passa por lá raramente; quanto aos autores disse não saber se eles deixaram de utilizar o referido caminho ou se continuaram a utilizá-lo não obstante a abertura da nova estrada.
. G…… (reside na freguesia onde se situam os prédios e o caminho a que se reportam os autos e foi presidente e tesoureiro da respectiva Junta de Freguesia entre 2000 e 2009) disse que mesmo depois da abertura da nova estrada, as pessoas e veículos (motorizadas e tractores, nomeadamente) continuaram a passar pelo caminho em discussão nos autos, delimitado pelas letras A-Y-B na planta junta como doc. nº 7 com a p. i. (com que foi confrontado), como o faziam antes da abertura daquela estrada; esta utilização pelo público manteve-se até à construção, pelos réus, de um muro que obstruiu o caminho, impedindo que as população continuasse a utilizá-lo.
. U……. (reside próximo dos autores e dos réus) declarou que mesmo depois da abertura da nova estrada, as populações continuaram a passar pelo caminho em discussão até ao momento em que foram impedidas de fazê-lo por os réus terem construído um muro que o obstruiu (foi confrontado com a planta já várias vezes mencionada).
. M….. (conhece os prédios das partes e o caminho em discussão; foi esta testemunha que vendeu aos réus a “O…..” indicada em 4)) referiu que o caminho em discussão nos autos, identificado entre as letras A e B na planta junta aos autos (com que também foi confrontado), continuou a ser utilizado pela população em geral, para aceder aos locais e lugares a que dava e dá acesso, mesmo depois da abertura da nova estrada ali referenciada pelas letras C-B; o caminho continua a ter utilidade para a generalidade das populações dos lugares a que dá acesso, sendo o depoente um dos que continua a utilizá-lo; só com a construção do muro com que os réus o obstruíram é que as pessoas ficaram impossibilitadas de continuar a utilizá-lo.
. R…… (primo dos autores e foi sócio do pai da ré D…… numa sociedade de construção civil; foi presidente da Junta de Freguesia de Aveleda durante vários anos, até há cerca de seis anos) declarou que desde que foi aberta a nova estrada, assinalada com as letras C-B na planta junta aos autos, o caminho em discussão, referenciado na mesma planta com as letras A-Y-B, deixou de ter qualquer utilidade para a população em geral e as pessoas não passam por lá; só os proprietários de terrenos junto a este caminho, nomeadamente os autores, continuaram a utilizá-lo, após a abertura daquela nova estrada, mas apenas para acederem às matas das redondezas; mesmo antes da abertura da nova estrada o dito caminho era muito pouco utilizado pelas pessoas quer pela sua inclinação, quer por ter muitas pedras no seu leito.
. S…… (foi secretário da JF de Aveleda entre 2001 e 2005; antes não conhecia o caminho em questão, desconhecendo o estado em que estava, as suas características e se e em que condições era utilizado pelas populações) disse que desde que foi construída a nova estrada, o caminho em discussão (localizou-os a ambos na planta dos autos) passou a ser utilizado por cerca de 10 a 20 por cento das pessoas que o utilizavam antes da abertura daquela (até esse momento, a população de Gens, quando se dirigia para Macieira, passava praticamente toda pelo caminho dos autos); quem tem mais interesse na manutenção do caminho são os autores; para a generalidade da população a nova estrada é mais cómoda e permite melhores acessos.
. T….. (conhece o local há cerca de 30 anos) referiu que não sabe com certeza (a sua ocupação diária não o permite) se o caminho em discussão continuou ou não a ser utilizado pela população das redondezas depois da abertura da nova estrada (identificou-os a ambos na planta junta aos autos), embora tenha acrescentado que, em sua opinião, as pessoas preferirão a nova estrada por ser mais cómoda e ter melhor piso; acha que só os autores terão interesse na manutenção do caminho em discussão.
Cotejando todos estes depoimentos facilmente se constata que as respostas dadas na 1ª instância aos quesitos em apreço não merecem censura, quer por se respaldarem nos depoimentos inequívocos prestados, nesse sentido, pelas testemunhas G……, U….. e M….., quer por a «tese» dos recorrentes não ter encontrado acolhimento sequer nos testemunhos de Q…… (que muito pouco demonstrou saber sobre o assunto), S….. (que afirmou que 10 a 20% das pessoas continuaram a utilizar o caminho em questão depois da abertura da nova estrada) e T….. (cujo depoimento, neste segmento, é irrelevante); só a testemunha R….. depôs de modo idêntico ao que os recorrentes sustentam. Não tendo os depoimentos sido prestados perante este Tribunal de 2ª instância (que se limita e limitou a ouvir as respectivas gravações), mas sim ante o Tribunal «a quo», e não tendo nós argumentos para afirmarmos que uns merecem mais ou menos credibilidade que os outros, entendemos que deve prevalecer o decidido na 1ª instância, não tanto por radicar nos depoimentos da maioria das testemunhas ouvidas sobre a matéria (a formação da convicção do julgador não se faz «ao peso» ou pelo número de testemunhas que depuseram sobre determinado facto), mas principalmente porque foi perante a Mma. Julgadora «a quo» que decorreu toda a produção da prova (em observância dos princípios da imediação e da oralidade da prova testemunhal) e que foi em função de toda ela e do convencimento que formou que deu as referidas respostas (que se mostram compatíveis com a restante factologia dada como provada).
Além da prova testemunhal que fica enunciada e analisada, os recorrentes, no nº 4 do corpo das alegações e na al. D das conclusões, chamam ainda à colação a inspecção ao local levada a cabo durante o julgamento.
Trata-se de diligência a que o despacho de resposta aos quesitos da BI não faz alusão.
Logo no início da audiência de discussão e julgamento realizou-se, efectivamente, uma inspecção judicial ao local do dissídio, do que dá conta a acta de fls. 164-165. Esta diligência consistiu em a Mma. Juiz ter dado “possibilidade a ambas as partes para descreverem as características do mesmo”, ou seja, do local, tendo elas explicado “fisicamente o invocado nos articulados” (fls. 165).
Acontece, porém, que, relativamente a ela, não foi observado o estabelecido no art. 615º do CPC, não tendo sido lavrado qualquer auto do que foi constatado na inspecção judicial ou exaradas em acta essas mesmas conclusões (vejam-se as actas de fls. 164-165, 176-178, 188-190, 200-201, 202-203, 247-249, 250-253, 254-255, relativas às várias sessões de produção de prova).
Devido a esta omissão (que seria susceptível de se reconduzir à nulidade prevista no nº 1 do art. 201º, mas que, para ser apreciada e decidida, teria que ser arguida pelos ora recorrentes no próprio acto, em atenção ao disposto na 1ª parte do nº 1 do art. 205º, o que manifestamente não aconteceu, não podendo, por isso, ser declarada, por não ser de conhecimento oficioso, conforme decorre da parte final do art. 202º, todos do CPC), não é possível a esta Relação ter em conta a referida diligência, por se desconhecer o que a Mma. Julgadora «a quo» constatou (se algo constatou) relativamente à materialidade dos dois quesitos da BI cujas respostas os recorrentes impugnam.
Daí que, por aqui, também nada há a alterar ao decidido, não se vislumbrando que “regras da experiência comum impunham resposta diversa aos referidos quesitos”, como pretendem os apelantes na conclusão D das suas doutas alegações.
Em conclusão, improcede a apelação na parte em que os recorrentes impugnam as respostas aos apontados quesitos da BI.
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2. Se ocorrem os requisitos de que depende o reconhecimento/declaração da natureza pública do caminho ou se, pelo contrário, estamos perante um mero atravessadouro.
A segunda questão a apreciar consiste em saber se a qualificação como público do caminho em causa nos autos (melhor identificado/caracterizado nos nºs 6 a 9 dos factos provados), feita na douta sentença recorrida, é merecedora de censura.
O Tribunal «a quo», face à materialidade fáctica ora descrita nos nºs 11), 12) e 16) a 24) do ponto III deste acórdão (cfr. fls. 268 e 269), declarou a natureza pública de tal caminho, sustentando-a na lei e em doutrina e jurisprudência pertinentes.
Vejamos se existem escolhos a esta qualificação/classificação.
Contrariamente ao que acontecia no Código de Seabra (de 1867) cujo art. 380º dava uma noção (acanhada, segundo a maioria dos Autores) de “coisa pública” [cfr. Carvalho Martins, in “Caminhos Públicos e Atravessadouros”, pg. 68], o actual Código Civil não define tal conceito, limitando-se o nº 2 do art. 202º a referir que se consideram “fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por natureza, insusceptíveis de apreensão individual”.
Por causa desta omissão legal, têm sido a doutrina e a jurisprudência a construir a noção de “coisa pública”.
No que diz respeito aos caminhos – que é o que nos interessa, não cabendo aqui a apreciação das várias teses definidoras daquele conceito mais geral de “coisa pública” -, houve, até 1989, divergência quanto aos requisitos necessários para a sua qualificação como de natureza pública. Uns entendiam que bastava, para que os caminhos fossem considerados públicos, que estivessem a ser usados directa e imediatamente pelo público. Outros sustentavam que para serem públicos, os caminhos tinham não só que ser de utilização directa e imediata pelo público, como deveriam, ainda, ter sido produzidos ou legitimamente apropriados por pessoa colectiva de direito público [acerca desta divergência, veja-se a “resenha jurisprudencial” que constitui a parte III – pgs. 79 e segs. – do estudo de Carvalho Martins, atrás citado].
Em 1989, o Assento (ora Acórdão Uniformizador de Jurisprudência) do STJ de 19/04 [publicado no DR 1ª Série, de 02/06/89 e no BMJ 386/121], veio pôr cobro a esta divergência fixando jurisprudência no sentido de que “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”, tomando, assim, posição pela primeira das apontadas orientações e deixando definitivamente de parte, como requisito da aquisição da “dominialidade pública”, a necessidade dos caminhos terem de ser apropriados ou produzidos por entidades públicas e mantidos sob sua administração [afastando, consequentemente, a tese que os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela defendem na anotação 3 ao art. 1383º no seu “Código Civil Anotado”, vol. III, 2ª ed. rev. e act., pgs. 281 e 282].
Este critério orientador tem, no entanto, vindo a ser interpretado restritivamente (para evitar que qualquer atravessadouro mantido por tempo imemorial seja considerado como caminho público), na sequência, aliás, do que parece ter sido o entendimento perfilhado pelos Exmos. Conselheiros que subscreveram aquele Assento, considerando-se que “a publicidade dos caminhos exige ainda a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objectivo a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância” [cfr. Acs. do STJ de 10/11/93, BMJ 431/300, de 11/01/96, BMJ 453/211, de 15/06/2000, CJ-STJ ano VIII, 2, 117, de 13/01/2004, proc. 03A3433 e de 14/10/2004, proc. 04B2576, de 13/03/2008, proc. 08A542, de 10/02/2009, proc. 897/04.5TBPTM.E1.S1 e de 13/07/2010, proc. 135/2002.P2.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt/jstj; no Assento atrás referenciado, refere-se a dado passo da fundamentação que “quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente”].
Não é, pois, por um grande número de pessoas utilizar um determinado caminho (mesmo que há longo tempo) que este deve ser considerado como público, o que apenas acontecerá se o mesmo for utilizado para satisfação de uma utilidade pública comum à generalidade das pessoas.
Para se decidir quando é que a utilização de um caminho prossegue relevantes interesses públicos ou colectivos e, por conseguinte, quando deve ser qualificado como público, há que atender, primordialmente, ao número de pessoas que normalmente o utilizam e à importância que o fim visado tem para os utilizadores, à luz dos seus costumes colectivos e das suas tradições [Acs. do STJ de 13/01/2004 e de 14/10/2004, atrás citados], sendo certo que aquela utilidade pública não pode resultar da mera soma de utilidades individuais dos vários utilizadores do caminho [assim, Acs. do STJ de 14/10/2004 e de 13/03/2008, também já citados].
Já o conceito de “tempo imemorial” que é, como se disse, um dos elementos integradores da figura jurídica de “caminho público”, deve ser entendido como “um período de tempo cujo início é tão antigo que as pessoas já não o recordam, por ter desaparecido da memória dos homens” ou, de outro modo, “é o facto de, em consequência da sua antiguidade, ter sido perdida pelos homens a recordação da sua origem, a ponto de os vivos não conseguirem já, pelo recurso à sua própria memória ou aos factos que lhes foram sendo narrados por antecessores, ter conhecimento do momento ou período em que determinados costumes, tradições, ou práticas repetidas continuadas, tiveram início” [citações retiradas do douto Ac. do STJ de 13/01/2004, supra mencionado].
Do que fica exposto podemos então concluir que um determinado caminho só pode ser declarado/considerado «público» quando se mostrem verificados dois requisitos:
. quando a sua utilização pelo público em geral se verifique desde tempos imemoriais
. e quando essa utilização se destine à satisfação de interesses colectivos relevantes.

Retornando ao caso dos autos, parece não haver dúvidas quanto à verificação destes requisitos:
. a «imemorialidade» na utilização do caminho em apreço ficou inequivocamente demonstrada nos nºs 20), 21) e 24) dos factos provados;
. e a sua afectação à satisfação de interesses colectivos relevantes, mesmo depois da abertura da nova estrada assinalada na planta dos autos com as letras B e C, surge, igualmente, evidente perante o que se mostra provado sob os nºs 12), 16), 17) e 18) do mesmo ponto deste acórdão.
Porque decorre, ainda, dos factos provados, mais concretamente dos nºs 6) a 8) e 23), que o leito do caminho em questão não faz, nem nunca fez, parte de nenhum dos prédios com que confronta (esta conclusão não é afastada pelo que consta do nº 11 dos factos provados), incluindo o dos autores e/ou os dos réus, ora recorrentes (pelo contrário, “esteve sempre delimitado pelos terrenos adjacentes”), não pode haver dúvida alguma de que estamos efectivamente perante um caminho público, como bem o qualificou a douta decisão recorrida, e não face a um mero atravessadouro, mesmo depois de aberta/rasgada a nova estrada, como pretendem os recorrentes, na medida em que a principal característica dos atravessadouros (estes foram abolidos pelo art. 1383º do actual CCiv., subsistindo apenas os que se enquadram na previsão do art. 1384º) – que são definidos como “serventias públicas que se fazem através de prédios particulares e têm por fim essencial encurtar o percurso entre locais determinados”, ou como “atalhos que se fazem por terrenos particulares” - é a de que o seu leito faz parte dos prédios particulares pelos quais passa [cfr. Carvalho Martins, obr. cit., pg. 64 e Acs. do STJ de 13/01/2004 e de 14/10/2004, já atrás citados].
Como tal, improcede, igualmente, nesta parte, a douta apelação, nada havendo a censurar à qualificação do caminho em questão – e supra identificado – como público.
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3. Se o caminho perdeu a sua natureza pública e se tem aqui aplicação a figura da extinção das servidões por desnecessidade.
Defendem, ainda, os recorrentes que, devido à abertura da nova estrada, o caminho dos autos deixou de ter qualquer utilidade para a população (que deixou de o utilizar desde então) e perdeu a sua qualidade de caminho público, servindo apenas de acesso exclusivo ao prédio dos recorridos. Parecem fazer aqui apelo à figura da «desafectação tácita».
Escreveu-se num dos doutos arestos do STJ já indicados [Ac. do STJ de 13/01/2004; idem, Ac. do STJ de 14/10/2004] que “há quem entenda que a falta de utilização pelo público, só por si, implica a perda da dominialidade pública; isto é, um caminho que deixasse de ser utilizado pelo público deixaria de ser considerado público, por se ter verificado desafectação tácita da utilidade colectiva que o seu uso pelo público visava”. Nestes casos, porém, o leito do caminho não passa a ser livremente apropriável pelos particulares, contrariamente ao que peticionaram os réus-reconvintes nas als. a) e b) das conclusões da contestação-reconvenção - onde pediram que se declarasse que o seu direito de propriedade sobre os prédios identificados em 4-a) e b) dos factos provados abrange/integra também o leito do caminho em apreço -, pois passa antes a integrar o domínio privado da pessoa colectiva pública a que pertencia.
E acrescentou-se, ainda, que “se bem que se concorde com o entendimento de que a desafectação tácita determina a integração do bem anteriormente público no domínio privado da entidade pública respectiva, já se entende, porém, que não basta a falta de utilização pelo público para determinar essa desafectação tácita da finalidade colectiva do bem público”; e isto “pela simples razão de que tal falta de utilização pode resultar de factos diferentes do desaparecimento da utilidade pública a cuja satisfação o bem público se encontrava afecto, como, por exemplo, de obstáculos intransponíveis a essa utilização”.
E conclui depois que “deixando o público de utilizar um caminho que antes era público, não resulta daí automaticamente a aludida desafectação tácita com a consequência da perda da dominialidade pública e integração no património privado do ente público; para essa desafectação se verificar impõe-se a ocorrência de uma modificação das circunstâncias de facto que originaram a afectação de tal caminho à satisfação da utilidade pública que constituía o objectivo da sua utilização colectiva”.
Destes excertos resulta que a desafectação tácita da utilidade pública ou colectiva do caminho em referência dependia da verificação de dois requisitos, cuja prova, por se reportar a factualidade extintiva daquela natureza, cabia aos réus, ora recorrentes (nº 2 do art. 342º do CCiv.):
. o abandono do mesmo pela generalidade do público que antes o utilizava
. e a abertura de um outro caminho que passasse a satisfazer o mesmo interesse colectivo que aquele satisfazia e em melhores condições para as populações.
«In casu», apesar de se ter provado a abertura de um novo caminho, não ficou demonstrado que o que está em questão tenha sido abandonado pelas populações que antes o utilizavam - estas, pelo contrário, passaram a utilizá-los a ambos, como resulta do nº 28) dos factos provados. Falta, assim, o primeiro dos apontados requisitos. Como tal, não houve desafectação tácita da utilidade pública do caminho.

Os apelantes chamam também à colação a figura da extinção das servidões por desnecessidade.
Com o devido respeito, esta invocação só faria sentido se o caminho em questão fosse de servidão, já que a extinção por desnecessidade só está prevista, nos nºs 2 e 3 do art. 1569º do CCiv., para as servidões constituídas por usucapião e para as servidões legais, qualquer que tenha sido o título da sua constituição.
No caso não estamos perante um caminho de servidão (nem um atravessadouro que também é uma espécie de serventia), mas sim face a um caminho público. E este não se extingue por desnecessidade; perde é a sua qualidade de público em caso de desafectação tácita da respectiva utilidade, mas que, como já vimos, tal não aconteceu.
A apelação improcede, assim, também neste segmento.
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4. Se a pretensão dos autores configura um abuso de direito.
Consideram, finalmente, os recorrentes que a pretensão dos autores constitui manifesto abuso de direito. Fazem, no entanto, esta afirmação (no nº 29 do corpo das alegações e na conclusão P) em termos meramente conclusivos, sem a concretizarem minimamente em parte alguma.
Não dizem em que é que o exercício do direito peticionado por aqueles (concretamente o de verem declarada a dominialidade pública do caminho) poderá ser tido como ilegítimo, nem onde é que eles excederam manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito em questão. Nem nós vislumbramos a verificação destes pressupostos caracterizadores da figura do abuso de direito fixada no art. 334º do CCiv..
Sem necessidade de outros considerandos, é manifesto que também não é por aqui que a sentença recorrida é merecedora de censura.
Improcede, consequentemente, «in totum» a apelação.
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Síntese conclusiva:
. Um determinado caminho só pode ser considerado «público» quando: a sua utilização pelo público em geral se verifique desde tempos imemoriais e essa utilização se destine à satisfação de interesses colectivos relevantes.
. A desafectação tácita da utilidade pública ou colectiva de um caminho depende da verificação de dois requisitos: o seu abandono pela generalidade do público que antes o utilizava e a abertura de um outro caminho que passe a satisfazer o mesmo interesse colectivo que aquele satisfazia e em melhores condições para as populações.
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V. Decisão:

Nestes termos, os Juízes desta secção cível da Relação do Porto acordam em:
1º) Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
2º) Condenar os recorrentes nas custas desta fase recursória.
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Porto, 2012/05/29
Manuel Pinto dos santos
Ondina de Oliveira Carmo Alves
João Manuel Araújo Ramos Lopes