I - Não obstante o acórdão da 1.ª instância ter absolvido o arguido do crime de abuso de confiança, por falta de preenchimento do elemento objectivo deste crime – não constavam da pronúncia os factos relativos à entrega pelo demandante à arguida da importância em dinheiro, nem os factos respeitantes à inversão do título da posse – foi dado como provado, em sede de elemento subjectivo, o facto de o arguido ter feito um uso não autorizado do cartão multibanco do demandante, em benefício próprio e causando um prejuízo a este.
II - Tais factos, que correspondem à descrição constante do requerimento para abertura de instrução, integram ilícito civil extracontratual, nos termos do art. 483.º, n.º 1, do CC, pelo que, contrariamente ao decidido no acórdão do tribunal da Relação, deve o arguido/demandado ser condenado no pedido de indemnização civil deduzido, embora reduzido ao montante do prejuízo que resultou provado, dando cumprimento ao preceituado no art. 377.º, n.º 1, do CPP, uma vez que apesar da absolvição do crime, resultou provado o ilícito civil.
III - O acórdão do tribunal da Relação, não se tendo pronunciado, como lhe competia, sobre os pontos de facto impugnados pelo arguido/demandado no recurso que interpôs da decisão da 1.ª instância, é nulo, nos termos do disposto no art. 379.º, n.º 1, al. c), aplicável às decisões tomadas em recurso, nos termos do art. 425.º, n.º 4, ambos do CPP.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. No processo nº 13/09.7TALSA da comarca da ... (actualmente Comarca de ... - Instância ..., Secção ..., J...), após instrução requerida pelo assistente AA, foi pronunciada BB, sendo-lhe imputada a prática de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo art. 205º nºs 1 e 4 do Código Penal, com referência à al. b) do art. 202º do mesmo Código. O ofendido AA deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida e contra a Caixa Geral de Depósitos S.A., pedindo a condenação solidária das demandadas na indemnização de € 54.189,49, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais.
Na sessão da audiência de julgamento realizada em 9 de Julho de 2014, o tribunal, nos termos do disposto nos arts. 358º e 359 do Código de Processo Penal, comunicou à arguida a alteração substancial dos factos e da qualificação jurídica para o crime de burla informática, p. e p. pelo art. 221º do Código Penal. A arguida, porém, veio a opor-se à continuação do julgamento pelos novos factos.
Por acórdão de 15 de julho de 2014, o tribunal colectivo, absolveu da instância a Caixa Geral de Depósitos por ilegitimidade, em virtude de o pedido de indemnização civil se fundar em alegada responsabilidade contratual e não na prática de um crime. Considerando que os factos constantes da pronúncia não preenchem os elementos objectivos do crime de abuso de confiança, por dela não constar que “o dinheiro que existia na conta bancária do assistente, no valor de €47.280,69 foi entregue à arguida a título não translativo de propriedade (…) e que a arguida ilegitimamente, invertendo a posse, se apropriou do mesmo”, absolveu a arguida da prática do mencionado crime. Julgou, porém, parcialmente procedente o pedido de indemnização civil, tendo condenado a arguida/demandada no pagamento ao demandante da quantia de € 47.380,69, vencendo juros de mora quanto à quantia de € 46.280,69 desde a notificação do pedido de indemnização civil e sobre o restante desde a data do acórdão até integral pagamento.
Inconformada a arguida interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, necessariamente limitado ao pedido cível, a que, por acórdão de 3 de Junho de 2015, foi dado provimento ao recurso, sendo revogada a decisão recorrida com absolvição da arguida/demandada também do pedido de indemnização civil.
Discordando desta decisão, o demandante civil interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as conclusões que se transcrevem:
1. O douto Tribunal da Relação não esteve bem na interpretação dada dos artigos 377°, 3500 e 3590 do Código do Processo Penal, não podendo ser dada outra decisão que a da condenação da Ré/demandada, nos termos do douto Acórdão do Tribunal de Primeira Instância e supra descrito.
A sentença não é nula, estribando-se na estrita legalidade.
2. Dispõe o artigo 129.° do Código Penal que “ A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulado pela lei civil".
3. E determina o n." 1 do art. 377.° do Código de Processo Penal que a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil, sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no art. 82.°, n.º 3.
4. Assim, dispõe o art. 483.° do Código Civil que "Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".
5. Constituem, assim, pressupostos da responsabilidade civil aqui prevista: a ocorrência de um facto voluntário, violador de um direito ou interesse alheio (ilicitude), o vínculo de imputação do facto ao agente (a título de dolo ou negligência), a ocorrência de um dano e a existência de um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
6. Por outro lado, o tribunal a quo explicou minuciosamente a sua convicção.
7. Clarifica quais os depoimentos e documentos em que se baseou para concluir
como concluiu.
8. No nosso modesto entendimento, não poderia ser mais claro!
9. Foram violados os artigos 377°, 358º e 359º do Código do Processo Penal
Nestes termos e nos mais e direito, deve manter-se em tudo o douto acórdão proferido em primeira Instância …
Em resposta, a arguida sustentou
a que o acórdão recorrido não merece reparo, não tendo sido violada nenhuma norma jurídica, designadamente as indicadas pelo recorrente.
Os autos a foram a vistos e vêm à conferência para decisão.
2. A questão que se coloca diz respeito à possibilidade de condenação no pedido cível do arguido/demandado, no caso de o mesmo ter sido absolvido do crime por que fora pronunciado.
2.1 No acórdão que proferiu, o tribunal colectivo decidiu que “não consta dos factos provados (e que são aqueles que constavam do despacho de pronúncia) que o dinheiro que existia na conta bancária do assistente, no valor de €47.280,69 foi entregue à arguida a título não translativo de propriedade (…) e que a arguida ilegitimamente, invertendo a posse, se apropriou do mesmo. É verdade que a arguida se apropriou do dinheiro, mas este nunca lhe foi entregue a título não translativo da propriedade e, como tal, não se mostra preenchido o tipo objectivo do crime de abuso de confiança”, e, em consequência, absolveu a arguida da prática desse crime.”
Considerou, todavia, o tribunal colectivo que “atendendo aos factos dados como provados, temos que a arguida com a sua conduta praticou um facto ilícito, típico e culposo. Resulta dos factos provados que a arguida, desde 3 de Junho de 2008 até 31 de Dezembro de 2008, fazendo uma utilização não autorizada e sem o conhecimento do assistente do cartão multibanco que tinha em seu poder, com o n.º ..., pertencente à conta n.º ... do assistente, efectuou movimentos a débito e pagamentos vários no valor global de €.47.280,69 (quarenta e sete mil, duzentos e oitenta euros e sessenta e nove cêntimos), sendo certo que a arguida sabia que aquele dinheiro não lhe pertencia e que não estava autorizada a movimentá-lo e usá-lo em proveito próprio, como efectivamente fez, causando ao assistente um prejuízo de igual valor. Ou seja, estamos perante um acto voluntário (porque dependente da vontade da arguida), ilícito (porque violador de um direito absoluto do assistente, que é o direito e propriedade sobre o referido dinheiro), e culposo (pois a arguida actuou dolosamente, bem sabendo que tal dinheiro não lhe pertencia e que não estava autorizada a usá-lo em proveito próprio como fez. É esta conduta da arguida que causa, de forma directa e imediata, o prejuízo/dano de € 47.280,69 ao assistente/demandante. Assim sendo, estão preenchidos os pressupostos integradores da responsabilidade civil extracontual da arguida/demandada.” Uma vez apurados os danos, relativamente aos quais o pedido procedeu apenas em parte por falta de prova, foi a arguida/demandada condenada no pagamento ao assistente/demandante da quantia de € 47.380,69, além dos repectivos juros de mora.
2.2 No recurso por si interposto, a arguida/demandada começou por arguir a nulidade da sentença, embora sem caracterizar tal nulidade por referência à norma violada, alegando que, tendo o pedido de indemnização sido formulado em face da imputação do crime de abuso de confiança, a absolvição do crime imporia a absolvição do pedido cível. Impugnou ainda a matéria de facto nos termos do art. 412º nª 3 als. a) e b) do Código de Processo Penal, considerando incorrectamente julgados os pontos a), b), h), m) e r), que deveriam ser tidos como não provados, havendo, portanto, erro na apreciação da prova e defendeu existir erro na interpretação e aplicação do direito.
Pelo acórdão de 3-06-2015 (fls. 1817-1841), a Relação de Coimbra definiu do seguinte modo as questões que lhe importava conhecer: “se a sentença recorrida padece de nulidade por ter condenado civilmente depois da ocorrência de alteração substancial dos factos que determinou absolvição criminal, devendo também ser absolvida do pedido cível; na improcedência da anterior questão, se ocorre erro de julgamento da matéria de facto, devendo esta ser alterada no sentido indicado pela recorrente com a sua consequente absolvição.”
A Relação ateve-se apenas à primeira questão, vindo a julgar o recurso procedente e a absolver a arguida/demandada. Fê-lo, em suma, porque, “confrontando a factualidade que consta da decisão recorrida e que tivemos o cuidado de destacar, verificamos que, da pronúncia, constam como provados factos não susceptíveis de integrar a prática de qualquer ilícito criminal porque não perfectibilizado o elemento subjectivo da imputada apropriação, o que, do mesmo modo, impediria a imputação do correspondente ilícito civil que igualmente dependente da existência de culpa, que se não pode extrair desses factos”. A este argumento fez acrescer o de que “como se verifica da factualidade provada do acórdão recorrido relativa ao pedido cível, não existe coincidência entre os factos que constavam da pronúncia (utilização não autorizada de cartão de conta de terceiro para levantamentos e pagamentos versus utilização de cartão de conta solidária de que a arguida também era titular, depois de acordo no sentido de a arguida ser desvinculada da conta) o que significa, desde logo, que tal pedido não tinha cabimento neste processo penal por não assentar nos factos que dele são objecto (falta de identidade de causa de pedir).”
3. Tendo o Código Penal de 1982 determinado que a indemnização por perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil (art. 128º), o Código de Processo Penal veio estabelecer, no art. 71º, que “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”, consagrando, deste modo, o princípio da adesão do pedido cível ao processo penal.
As acções civel e penal tornam-se, por conseguinte, interdependentes, embora mantendo cada uma delas os seus próprios pressupostos e finalidades, que não são coincidentes. Por isso estabelece o art. 377º do Código de Processo Penal, no seu nº 1, que “a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado.”
Conforme refere Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, III 2 ed, pág. 297), “A decisão do pedido civil não depende da decisão sobre a questão penal. Pode suceder que, a final, o arguido venha a ser absolvido da acusação pela prática do crime que é objecto do procedimento penal e seja condenado na indemnização civil, como também pode suceder que o arguido seja condenado pela prática do crime e absolvido do pedido de indemnização civil.”
E, no mesmo sentido se pronuncia Maia Gonçalves (Código Penal Português – Anotado e Comentado, 18 ed, pág. 479).
3.1 A Relação afirma, com acerto, que “existe uma clara vinculação temática do pedido cível aos factos da acusação ou pronúncia em todos os casos em que antes do julgamento ou depois dele o pedido cível pode ser conhecido, ainda que extinto o procedimento criminal ou proferida decisão criminal absolutória”.
Contudo, o âmbito com que a Relação entende que, no caso de absolvição penal, pode vir a ser proferida condenação relativa ao pedido cível é mais redutor do que o entendimento que o Supremo Tribunal de Justiça tem adoptado sobre o tema.
Este Supremo Tribunal decidiu, no acórdão de 10-07-2008 - Proc. 1410/08, que “se o arguido for absolvido de um crime, e se subsistir, apesar da absolvição, uma base factual com autonomia que suscite, ou permita suscitar, outros níveis de apreciação da normatividade como pressuposto ou fonte de indemnização civil (autonomia qualitativa dos pressupostos), haverá que considerar o pedido de reparação civil (dependência ou adesão especificamente processual) que se possa fundamentar nos mesmos factos – seja responsabilidade por facto ilícito, seja responsabilidade pelo risco (cfr., v. g., ac. do STJ de 25/1/96. CJ (STJ), IV, t. 1, p. 89; de 2/4/98, CJ (STJ), VI, t. 2, p. 179).
A Relação sustenta, porém, no acórdão recorrido: “Porque a obrigação de indemnizar pode ter conteúdo mais amplo que a responsabilidade criminal e existir em determinados casos sem a coexistência de culpa (responsabilidade pelo risco) esse será um dos casos em que, embora se profira decisão absolutória criminal, deverá ser proferida decisão cível condenatória, se o pedido se revelar fundado. Mas trata-se de um caso em que os factos que motivam a condenação cível são os mesmos que eram objecto do processo penal definido na acusação ou na pronúncia, apenas ocorrendo a sua redução ao nível subjectivo (cfr. o Assento do STJ nº 7/99 publicado no DR, I-A de 3.8.99). Noutros casos a jurisprudência tem apontado no sentido de que o pedido cível deve ser objecto de conhecimento, mesmo que o procedimento criminal termine antes da audiência de discussão e julgamento. Desse elenco fazem parte a extinção do procedimento criminal por prescrição (cfr. o acórdão de fixação de jurisprudência do STJ nº 3/2002 publicado no DR, Série I-A de 5.3.2002) a extinção do procedimento por descriminalização (cfr. o acórdão do TRL de 10.5.2001, CJ, XXVI, 3, 138) a extinção do procedimento decorrente da extinção do direito de queixa (cfr. o acórdão desta Relação de 12.10.2005, CJ, XXX, 4, 52) o mesmo se podendo dizer de outras excepções que determinem a extinção do procedimento criminal.”
Na perspectiva do acórdão recorrido, “Confrontando a factualidade que consta da decisão recorrida e que tivemos o cuidado de destacar, verificamos que, da pronúncia, constam como provados factos não susceptíveis de integrar a prática de qualquer ilícito criminal porque não perfectibilizado o elemento subjectivo da imputada apropriação, o que, do mesmo modo, impediria a imputação do correspondente ilícito civil que igualmente dependente da existência de culpa, que se não pode extrair desses factos (se os factos da pronúncia não constituíam crime a acusação devia ser rejeitada e não haveria lugar a apreciação do pedido que fosse deduzido, não haveria lugar ao cumprimento dos artigos 3580 e 3590 do Código de Processo Penal, cujo primeiro pressuposto é que os factos da acusação ou da pronúncia constituam crime)”.
Ao manifestar-se deste modo, a Relação parte de um equívoco que contamina totalmente a sua decisão.
Segundo o acórdão de 1ª instância, o que relevou para efeito da absolvição criminal foi a falta de preenchimento do elemento objectivo do crime de abuso de confiança, por não constarem da pronúncia os seguintes factos: entrega pelo demandante à arguida da importância em dinheiro; inversão do título, passando a arguida possuir o dinheiro como coisa sua,
Quanto ao elemento subjectivo, resulta inequivocamente da matéria de facto fixada pela 1ª instância – a qual, apesar de impugnada, não foi ainda sujeita ao crivo da Relação – que “desde 3 de Junho de 2008 até 31 de Dezembro de 2008, fazendo uma utilização não autorizada e sem o conhecimento do assistente do cartão multibanco que tinha em seu poder, com o nº ..., pertencente à conta nº ... do assistente, a arguida efectuou movimentos a débito e pagamentos vários no valor global de € 47.280,69” [facto provado a)] e “a arguida bem sabia que aquele dinheiro não lhe pertencia e que não estava autorizada a movimentá-lo e usá-lo em proveito próprio, como efectivamente fez, causando ao assistente um prejuízo de igual valor” [facto provado b)].
Estes factos, que correspondiam à descrição constante do requerimento para abertura de instrução, integram ilícito civil extracontratual, conforme a definição constante do art. 483º nº 1 do Código Civil. Com efeito, estão verificados os pressupostos que subjazem à referida norma: o facto voluntário do agente; a ilicitude; a culpa entendida como imputação do facto ao agente a título de dolo ou mera culpa; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Como se afirmou no acórdão do tribunal colectivo, “estamos perante um acto voluntário (porque dependente da vontade da arguida), ilícito (porque violador do de um direito absoluto do assistente, que é o direito e propriedade sobre o referido dinheiro) e culposo (pois a arguida actuou dolosamente, bem sabendo que tal dinheiro não lhe pertencia e que não estava autorizada a usá-lo em proveito próprio, como fez). É esta conduta da arguida que causa, de forma directa e imediata, o prejuízo/dano de € 47.280,69 ao assistente/ demandante.”
Em consequência, o tribunal colectivo julgou procedente o pedido de indemnização, embora reduzindo-o no respectivo montante em resultado da prova respeitante à factualidade relativa à extensão dos danos.
Estava, assim, essa decisão conforme o entendimento seguido por este Supremo Tribunal (cfr., entre outros, além do mencionado acórdão de 10-07-2008, os acs. de 18-06-2008 - Proc. 196/00; de 06-07-2011 - Proc. 1209/09.7
TDPRT.P1.S1; ed 15-12-2011 – Proc. M836/08.4TDLSB.L1.S1; de 12-09-2013 - Proc. Nº 513/10.6TDLSB.P1.S1; de 22-01-2004 - Proc n.º 2956/08.6
TALRS.L1.S1 - 3.ª Secção)-
3.2 A Relação acrescentou, porém, uma outra via justificativa da decisão absolutória, afirmando: “como se verifica da factualidade provada do acórdão recorrido relativa ao pedido cível, não existe coincidência entre os factos que constavam da pronúncia (utilização não autorizada de cartão de conta de terceiro para levantamentos e pagamentos versus utilização de cartão de conta solidária de que a arguida também era titular, depois de acordo no sentido de a arguida ser desvinculada da conta) o que significa, desde logo, que tal pedido não tinha cabimento neste processo penal por não assentar nos factos que dele são objecto (falta de identidade de causa de pedir).
A distinção que se pretende dever existir entre “utilização não autorizada de cartão de conta de terceiro para levantamentos e pagamentos” e “utilização de cartão de conta solidária de que a arguida também era titular, depois de acordo no sentido de a arguida ser desvinculada da conta” é, todavia, especiosa.
Como vimos já, a “utilização não autorizada de cartão de conta de terceiro para levantamentos e pagamentos” constitui um facto ilícito para efeitos civis, dele decorrendo o dever de indemnizar, a apurar-se, como se apurou, que aquela utilização constituiu um facto doloso, que desencadeou um dano no património do assistente/demandante.
E, deste modo, justificava-se a condenação da arguida/demandada na indemnização civil.
4. Disse-se ainda no acórdão recorrido que “ao demandante resta o recurso a pertinente acção cível para ressarcir o prejuízo que lhe foi causado”.
Tratar-se-ia, contudo, de um efeito não querido pelo legislador, como resulta do disposto no art. 377º nº 1 do Código de Processo Penal. Na verdade, como se dizia no preâmbulo do Decreto-Lei nº 605/75, justificando a introdução de norma com algum paralelismo: “Quando o juiz absolve da acusação crime, mas fique provado o ilícito, ou nos casos de mera responsabilidade objectiva, não se vê razão para inutilização de toda a actividade processual desenvolvida, obrigando as partes a um ulterior recurso ao juízo cível com as consequentes e inevitáveis demoras processuais”.
5. De tudo quanto ficou exposto resulta não se poder manter a decisão absolutória em matéria cível decidida no acórdão recorrido. O Tribunal da Relação, contudo, fê-lo sem se ter pronunciado, como lhe competia, sobre os pontos de facto impugnados pela arguida/demandada no recurso que interpôs da decisão de 1ª instância. É, por conseguinte, nulo o acórdão recorrido, nos termos do disposto no art. 379º nº 1 al. c), aplicável às decisões tomadas em recurso, nos termos do art, 425º nº 4, ambos do Código de Processo Penal.
DECISÃO
Termos em que acordam no Supremo Tribunal de Justiça em declarar nulo o acórdão recorrido, por via das disposições combinadas dos art. 379º nº 1 al. c) e 425º nº 4 do Código de Processo Penal, a fim de a Relação conhecer do recurso quanto à matéria de facto, devendo, a manter-se esta, ser o recurso decidido quanto à matéria de direito nos termos supra indicados.
Sem custas.
Lisboa, 17 de Março de 2016
Arménio Sottomayor (relator) **
Isabel Pais Martins