RECURSO PENAL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
MOTIVO FÚTIL
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
ILICITUDE
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
Sumário

I - O crime de homicídio qualificado, previsto no citado art. 132.º, do CP, constitui uma forma agravada de homicídio simples (tipo de ilícito), em que a qualificação decorre, não através da previsão de circunstâncias típicas fundadas em maior ilicitude do facto, mas antes em função de um tipo de culpa agravado, de uma «especial censurabilidade ou perversidade» da conduta, conforme cláusula geral enunciada no n.º 1, revelada pelas circunstâncias constantes das diversas alíneas do n.º 2 do mesmo preceito.
II - Utilizou o legislador no art. 132.º a designada técnica dos «exemplos-padrão» ou «exemplos-regra», estando em causa no seu n.º 2, circunstâncias que se reportam à culpa do agente e não à ilicitude, circunstâncias que podem traduzir uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.
III - As circunstâncias apontadas no n.º 2 do art. 132.º do CP como exemplos-padrão determinarão a qualificação se e enquanto revelarem uma maior censurabilidade ou perversidade da conduta.
IV - Constituem indícios da culpa agravada referida no nº 1 do art. 132.º do CP e, enquanto tais, essas circunstâncias, têm sempre que ser submetidas à cláusula geral do n.º 1.
V - Da interacção entre os n.ºs 1 e 2 do art. 132.º, do CP, pode resultar a exclusão do efeito de indício do exemplo-padrão, e consequentemente a integração dos factos no crime de homicídio simples do art. 131.º. Mas pode também, precisamente pelo seu carácter meramente indiciário de uma culpa especialmente agravada, admitir-se a qualificação do homicídio quando se constatar a substancial analogia entre os factos e qualquer dos exemplos-padrão.
VI - Quanto à decisão sobre a integração do crime qualificado, deve proceder-se à definição da imagem global do facto, de modo a logo aí detectar a particular forma de culpa que justifica a qualificação do homicídio.
VII - Em face do modelo de construção do tipo qualificado - qualificado pelo especial tipo de culpa - pela enunciação do critério geral, moldado pela densificação através dos exemplos-padrão, não será permitido, por violador do princípio da legalidade, o procedimento traduzido em fazer um apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplos-padrão e de, por isso, comprovar a existência de um caso expressamente previsto no art. 132.º ou de uma situação valorativamente análoga.
VIII - Integra a prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al. e), ambos do CP, o comportamento do arguido-recorrente que, na sequência de uma discussão motivada pela recusa do ofendido em dar um cigarro aos arguidos, desferiu uma facada no peito do ofendido, em consequência do que, lhe provocou lesões traumáticas torácicas, na parede torácica, pulmão esquerdo e coração, as quais foram causa directa e necessária da sua morte, na medida em que a «imagem global do facto», revela que o arguido recorrente agiu por motivo fútil, sem a ocorrência de qualquer desavença ou situação anterior com significado relevante.
IX - Nos termos do artigo 71.º do Código Penal, a medida concreta da pena é fixada em função da culpa e das exigências da prevenção, devendo atender, nomeadamente, à ilicitude do facto, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados na prática do crime e à sua motivação, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior aos factos, à sua falta de preparação para manter conduta lícita.
X - Ponderando as prementes exigências de prevenção geral, a ilicitude muito forte, o dolo intenso com que o arguido actuou e a ausência de demonstração de consciência crítica relativamente ao desvalor da sua conduta por parte e não obstante a ausência de antecedentes criminais, as características de personalidade do arguido, nomeadamente a imaturidade, impulsividade, reactividade, dificuldades de auto-análise, dificuldades em aderir ao cumprimento das regras e normas, incapacidade em perspectivar um projecto de vida organizado, e permeabilidade a influências externas negativas, reclamando maiores exigências ao nível da prevenção especial, entende-se que nenhuma censura há a fazer à decisão recorrida que condenou o arguido na pena de 17 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al. e), ambos do CP.

Texto Integral



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – RELATÓRIO


1. AA foi julgado em processo comum, supra referenciado, pelo Tribunal Colectivo na Comarca de ... – Instância Central ... – ...Unidade – e condenado, por acórdão proferido em 3 de Novembro de 2015:

- Pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º, n.os 1 e 2, alínea e), ambos do Código Penal, na pena de 17 (dezassete) anos de prisão.
- No pagamento à demandante BB, representada pela sua mãe, CC, da quantia global de € 41.450,00 (quarenta e um mil quatrocentos e cinquenta euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros desde a data da decisão, à taxa legal de 4% ou à taxa legal que vier a vigorar até integral pagamento, e da quantia de € 38.550,00 (trinta e oito mil quinhentos e cinquenta euros) a título de ressarcimento pelos danos patrimoniais, acrescida de juros a contar da data da notificação do arguido para contestar o pedido de indemnização civil, à taxa de 4% ou à taxa legal que vier a vigorar até integral pagamento.

2. Deste acórdão recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de ..., encontrando-se as razões da sua discordância expressas nas conclusões da respectiva motivação do recurso que se transcrevem:

«D – CONCLUSÕES
1.- O Arguido foi condenado, pelo Tribunal a quo, pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. nos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2 al. e), ambos do Código Penal (CP), na pena de 17 (dezassete) anos de prisão.
2.- O presente recurso é limitado à questão jurídica e à medida da pena.
3.- Entende o Arguido, s.m.o., que a correta qualificação jurídica dos factos obrigaria à condenação daquele por homicídio “simples” (crime p. e p. no art. 131.º do CP), ou ainda que assim não seja (o que não se concede, a apenas por mero dever de patrocínio se admite), a manter-se a condenação pelo crime de homicídio qualificado [crime p. e p. nos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2 al. e), ambos do CP], o quantum da pena seria em qualquer caso substancialmente menor atendendo a todos os elementos constantes do processo.
4.- Como é jurisprudência constante e doutrina maioritária, o crime de homicídio qualificado “constitui uma forma agravada do crime de homicídio simples, previsto no art. 131.º do CP, que constitui o tipo de ilícito, agravamento esse que se produz não através da previsão de circunstâncias típicas fundadas em maior ilicitude do facto, cuja verificação determinaria a realização do tipo, como acontece por exemplo no furto qualificado, mas antes em função de uma culpa agravada, de uma “especial censurabilidade ou perversidade” da conduta (cláusula geral enunciada no n.º 1), revelada pelas circunstâncias indicadas no n.º 2.”
5.- Donde, o efeito indiciário do exemplo padrão fornecido pela al. e) do n.º 2 do art. 132.º do CP, não dispensa a verificação de uma culpa substancialmente agravada que permita em conjugação com o n.º 1 daquele preceito determinar o preenchimento do tipo penal.
6.- Da conjugação de todos os elementos relativos à culpa do Arguido, nomeadamente os elementos constantes nos pontos 28 a 39 inclusive dos factos provados (cfr., p. 12 a 14, inclusive, do Acórdão, de fls_), poderá verificar-se que existem atenuantes da culpa que levam à anulação do efeito indiciário, pelo que a imagem global da culpa não é substancialmente agravada.
7.- Em conformidade, o Arguido não deveria ter sido condenado, como autor material, pelo crime de homicídio qualificado, na forma consumada, mas pelo crime de homicídio “simples” (crime p. e p. no art. 131.º do CP), e consequentemente com uma pena substancialmente inferior à que foi aplicada.
8.- Porém, e subsidiariamente, e ainda que assim não se entenda (o que não se concede e apenas por dever de patrocínio se admite), ou seja, ainda que se mantenha a condenação pelo crime de homicídio qualificado, o quantum da pena seria em qualquer caso substancialmente menor atendendo a todos os elementos constantes do processo.
9.- Nomeadamente, os supra referidos elementos constantes nos pontos 28 a 39 inclusive dos factos provados (cfr., p. 12 a 14, inclusive, do Acórdão, de fls_), e atendendo aos fins das penas, julga-se que a pena de 17 (dezassete) anos de prisão é manifestamente exagerada porquanto excessiva e desproporcional.

Assim, por tudo quanto exposto, deve o presente recurso proceder por provado e substituir-se o douto acórdão em crise nos seguintes termos:
a) Condenar-se o arguido, como autor material, pelo crime de homicídio qualificado, na forma consumada, mas pelo crime de homicídio “simples” (crime p. e p. no art. 131.º do CP), e consequentemente com uma pena substancialmente inferior à que foi aplicada.

b) Caso assim não se entenda, sem conceder, substituir o quantum da pena em que o arguido foi condenado, atendendo a todos os elementos constantes do processo.

Fazendo assim, V. Exas. a acostumada Justiça».


3. O Ministério Público na 1.ª instância respondeu ao recurso nos seguintes termos:

«I.
Efectuado o julgamento foi proferido acórdão que condenou o arguido AA como autor material de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 131° e 132°, n.ºs 1 e 2, alínea e) todos do Código Penal, na pena de 17 anos de prisão.
II.
Não se conformando com a presente condenação veio o arguido interpor recurso da sentença, pugnando pela revogação desta, levantando as seguintes questões:
• Não preenchimento do tipo legal de crime de homicídio qualificado, mas sim de homicídio simples;
• Medida da Pena de prisão excessiva;
III.
Como é jurisprudência pacífica nos nossos 'Tribunais superiores e resulta do princípio da cindibilidade do recurso em processo penal consagrado no artigo 402.° e subjacente ao artigo 412.°, ambos do C.P.P., o âmbito do recurso é dado pelas conclusões formulada pela recorrente.
Assim sendo, passar-se-á a analisar as ditas Conclusões:
a)Do preenchimento do tipo legal de crime de homicídio qualificado:
Nesta parte, o recorrente questiona a qualificação jurídica dos factos dados como provados no acórdão, entendendo que a mesma não seria susceptível de integrar o crime de homicídio qualificado, tal como entendeu o tribunal a quo.
Alega, assim, que a factualidade dada como provada no acórdão deve subsumir-se ao crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131 ° do C.P.
Dispõe o artigo 131° do C.P. que “ Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos."
Nos termos do disposto no artigo 132°, nº1, do Código Penal, "1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos. "
Por sua vez, prescreve o n.º2, alínea e) do artigo 132º do C.P, que “2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: (...) e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;”
Importa precisar o que é a especial censurabilidade ou perversidade.
Permitimo-nos aqui citar Teresa Serra (in "Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena", págs. 63 a 65).
«Como se sabe, a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132.°, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores ... Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto pois! um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se «à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor! de que fala BINDER. Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor. Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente ... Importa salientar que a qualificação de especial se refez tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete».
Ora, voltando ao caso sub judicie, de acordo com o que ficou provado no que concerne à actuação do recorrente e ao motivo subjacente entendemos que tais factos revelam especial censurabilidade da sua parte, integrando o crime de homicídio qualificado.
Com efeito, o facto de o arguido ter decidido tirar a vida ao ofendido DD pelo simples facto deste se ter recusado a dar-lhe um cigarro (cf. facto I, a fls.428), afigura-se-nos que tal actuação se integra na alínea e) do artigo acima referido.
O motivo que levou o recorrente a actuar da forma descrita no acórdão a fls.428 e ss é manifestamente fútil, despropositado, tal como aliás vem descrito no Acórdão da Relação de Coimbra, datado de 03.08.2011, processo n.º 830/09.8PBCTB.Cl, in www.dgsi.pt, «Motivo fútil é o móbil do crime da actuação despropositada do agente, sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação do facto, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente»
Logo, discordando do entendimento exposto pelo recorrente, entendemos que os factos dados como provados integram um crime de ofensa homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132°, n.º2, alínea e) ambos do Código Penal.
Assim, afigura-se-nos que não assiste razão ao recorrente.
*
b) Da medida concreta da pena:
Quanto à pena aplicada, o recorrente requer a sua diminuição no seu quantum atendendo à sua situação socioeconómica devidamente documentada nos autos.
O recorrente foi condenado pela prática de factos que integram o tipo legal descrito nos artigos 131° e 132°, n.º 2 alínea e) ambos do C.P. que pune tal conduta com pena de prisão de 12 a 25 anos.
O Tribunal, na determinação da medida concreta da pena atender à culpa do agente e às exigências de prevenção e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o arguido, _ artigo 70.°, n.º 1 e 2 do CP.
In casu, o tribunal a quo condenou o recorrente a uma pena de 17 anos de prisão por considerar, e bem, que apenas esta era suficiente para realizar de forma adequada as finalidades da punição - protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade - artigos 70.° e 40.° do C.P.
A tal conclusão chegou o Tribunal a quo face à atitude displicente do recorrente face aos factos que cometeu, sem verdadeira conscientização da gravidade dos mesmos; a falta de admissão integral da autoria de tais factos; o grau elevado de ilicitude e a intensidade do dolo por outro e ao modo de execução dos factos criminosos.
Assim, atendendo a estes factores consideramos, identicamente, que a pena concretamente aplicada ao Recorrente foi-o correctamente quer na sua natureza, quer na sua medida, como melhor consta do acórdão, aliás de forma clara e cuidada.
Deste modo, concluímos que o recurso interposto pelo recorrente deve improceder na sua totalidade, mantendo-se a decisão recorrida.»

4. Por decisão sumária da Ex.ma Desembargadora Relatora, proferida em 15 de Fevereiro de 2016 (fls. 514 e v.º), foi determinada a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça por lhe pertencer a competência em razão da matéria para o conhecimento do presente recurso, em conformidade com o disposto no artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, uma vez que este vem «interposto de decisão proferida por tribunal colectivo, aplicou pena de prisão superior a 5 anos (no caso, 17 anos) e visa, exclusivamente, o reexame da matéria de direito (alteração da qualificação jurídica e dosimetria da pena imposta».

5. Neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu «Visto», acompanhando o «entendimento defendido pelo Ministério Público» na 1.ª instância.

6. Não havendo lugar à notificação prevista no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e não tendo sido requerida audiência, o processo prossegue com julgamento em conferência, nos termos dos artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), ambos do Código de Processo Penal.

7. Colhidos os vistos, foram, pois, os autos presentes à conferência, cumprindo apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do recurso

1.1. Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do mesmo diploma – o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação apresentadas pelo recorrente nas quais sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido.

1.2. No caso presente, o recorrente questiona a subsunção jurídico-penal dos factos, sustentando estar-se perante a prática de um crime de homicídio simples, p. p. pelo artigo 131.º do Código Penal, questionando também a medida concreta da pena que deverá ser «substancialmente inferior à que foi aplicada».
Na hipótese de se manter a condenação pelo crime de homicídio qualificado, pretende o recorrente «substituir o quantum da pena em que o arguido foi condenado, atendendo a todos os elementos constantes do processo».

2. Os factos

No que releva para a apreciação e decisão do recurso, foi dada como provada a seguinte matéria de facto, que é de ter-se por imodificável e definitivamente assente, já que da leitura do texto da decisão, por si só considerado, ou em conjugação com as regras de experiência comum, não emerge a ocorrência de qualquer vício decisório ou nulidade de conhecimento oficioso:

«1 – No dia 13 de Janeiro de 2015, pelas 09h35m, os arguidos AA e EE encontravam-se na Rua ..., quando avistaram DD a acender um cigarro e o abordaram, tendo o arguido EE pedido ao ofendido que lhes desse um cigarro, o que lhe foi recusado.
2 – Em virtude da recusa de DD, gerou-se uma discussão entre este e os arguidos, tendo o ofendido continuado o seu caminho, percorrendo cerca de quatro metros, no que foi seguido pelo arguido AA, o qual, quando alcançou o ofendido, estando ao lado deste, sem que nada o fizesse prever, retirou uma navalha com cerca de 19 cm de comprimento, sendo cerca de 10 cm de cabo, e 7,8 cm de lâmina, com largura máxima de 2 cm e espessura de cerca de 2,5 cm, do interior do bolso das calças, abriu-a e empunhou-a na direcção de DD, espetando-a no peito deste, atingindo o ofendido na face anterior esquerda do tórax, após o que, o arguido AA fechou a navalha, que guardou no interior da bolsa que transportava a tiracolo, tendo voltado para junto do arguido EE.
3 – Acto contínuo, o ofendido DD começou a correr em direcção à Pastelaria ... da referida rua, mas acabou por cair poucos metros depois, ficando prostrado no chão.
4 – Após terem visto o ofendido tombar para o chão, e de o arguido EE ter visto o arguido AA fechar a navalha que guardou na bolsa, os arguidos colocaram-se em fuga apeada em direcção ao viaduto existente sobre o IC 17, junto à rotunda do ....
5 – Os arguidos acabaram por ser interceptados por Agentes da P.S.P. na Rua ...., altura em que o arguido AA apresentava vestígios hemáticos nas calças que trajava e tinha na sua posse a navalha utilizada na prática dos factos descritos, tendo sido encontrado na posse do arguido EE uma navalha com 18,5 cm de comprimento total, sendo 8,5 cm de lâmina e 10 cm de cabo, e canabis (resina), em vários pedaços, com o peso líquido de 6,558 gramas, com um grau de pureza de 11,8%, suficientes para produzir 15 (quinze) doses individuais, produto estupefaciente que o arguido EE destinava ao seu consumo.
6 – Em consequência directa e necessária da descrita actuação do arguido AA, o ofendido DD sofreu as seguintes lesões descritas no relatório de autópsia médico-legal:
I – No hábito externo:
a) - Tórax: Ferida corto-perfurante, na face anterior do tórax, situada 21 cm abaixo do plano horizontal que passa no borso superior do ombro esquerdo, 2 cm à esquerda do plano vertical que passa na linha mediana anterior. Esta ferida é horizontal, medindo 2 cm de comprimento, com extremidade medial arredondada e extremidade lateral continua-se com uma ferida cortante superficial, oblíqua para cima e para a esquerda com 0,2 cm de comprimento.
b) - Membro inferior direito: Três escoriações no joelho, no bordo superior da face anterior, a lateral com eixo maior horizontal, com 1 cm x 0,5 cm de dimensão, e, as outras duas arredondadas com diâmetros variando entre 0,5 cm (a mediana) e 0,3 cm a medial.
Escoriação no joelho no quadrante infero-medial da face anterior, com eixo maior oblíquo para baixo e para a direita, com 1 cm x 0,5 cm, de dimensão.
II – No hábito interno:
a) Cabeça:
Partes Moles: Infiltração sanguínea no couro cabeludo, na região frontal anterior esquerda com eixo maior vertical, com 2 cm x 1 cm.
b) Tórax:
Paredes: Ferida corto-perfurante transfixiva na face anterior esquerda sobre o 4º espaço intercostal anterior, com 2,4 cm de comprimento, com infiltração sanguínea circundante, rasando o bordo inferior da cartilagem condro-esterna da 4ª costela.
Pericárdio e cavidade pericárdica: Hematoma sobre a face anterior e externa, com uma espessura de 2 cm. Ferida corto-perfurante, transfixiva do pericárdio, na face anterior subjacente ao hematoma descrito e sobre a parede ventricular direita, com 2,8 cm de comprimento. Hemopericárdico com 800 cc de sangue líquido e 125 cc de coágulos sanguíneos.
Coração: Ferida corto-perfurante, transfixiva da parede ventricular anterior direita e do septo, com 2,5 cm de comprimento, e, terminando abaixo da inserção dos folhetos mitrais. Septo com 12 mm de espessura.
Pleura parietal e cavidade pleural esquerda: Ferida corto perfurante no 4º espaço intercostal anterior, com 2,8 cm, com infiltração sanguínea circundante. Cavidade pleural com escasso sangue líquido.
Pulmão esquerdo e pleura visceral: Antracose.
Ferida corto-perfurante, transfixiva no bordo anterior e inferior do lobo superior, com 2 cm de comprimento.
7 – As lesões traumáticas corto-perfurantes descritas no tórax, interessando, além da parede torácica, o pulmão esquerdo e o coração, definindo um trajecto de frente para trás e da esquerda para a direita, produzidas por um instrumento corto-perfurante, através da actuação do arguido AA supra descrita, foram a causa directa e necessária da morte de DD.
8 – O arguido AA agiu com o propósito de tirar a vida a DD, actuando motivado pela recusa do ofendido em lhes dar um cigarro e pela discussão nesta sequência gerada, bem sabendo que a navalha utilizada, accionada a uma distância curta e sobre a zona onde se alojam órgãos vitais, era adequada a causar a sua morte, o que conseguiu.
9 – O arguido EE viu o arguido AA agredir o ofendido DD, viu o ofendido cair para o chão, onde ficou prostrado, e viu o arguido AA caminhar na sua direcção trazendo na mão uma navalha que fechou.
10 – O arguido EE, não obstante ter visto que o ofendido DD caiu para o chão, onde ficou prostrado, na sequência de ter sido agredido pelo arguido AA com uma navalha, sendo tal conduta susceptível de lhe causar lesões graves ou mesmo a morte, e que o ofendido necessitava de socorro imediato, encetou fuga do local, sem pedir ajuda ou auxiliar o ofendido.
11 – (…)
12 – O arguido AA agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

*
Do pedido de indemnização civil (para além dos factos supra referidos):
13 – DD nasceu em ....
14 – O ofendido era motorista de táxi, auferindo mensalmente uma quantia variável, cuja média ascendia a cerca de € 700,00 (setecentos euros).
15 – O ofendido era pai de BB, menor, nascida em ..., actualmente com 4 anos de idade.
16 – BB era filha única do falecido.
17 – O exercício das responsabilidades parentais relativamente à menor BB encontrava-se regulado nos termos do acordo homologado por sentença proferida no âmbito do Processo n.º 3803/13.2TBSXL, do então 1º Juízo do Tribunal de Família e Menores de Almada.
18 – Por decisão judicial, as responsabilidades parentais eram exercidas em conjunto, embora a menor BB residisse com a mãe.
19 – DD ficava com a menor à sua guarda e cuidados aos fins-de-semana, de quinze em quinze dias, de sexta-feira a domingo; nas férias quinze dias; na época festiva do Natal e do Ano Novo, de forma alternada com a mãe da menor; no dia de aniversário da menor, DD tomava uma das principais refeições desse dia com a mesma; e, no dia do aniversário de DD e no dia do pai, a menor passava o dia com o progenitor.
20 – Para além do período de tempo estipulado no acordo, DD visitava a menor sempre que queria, o que combinou com a mãe, vendo-a regularmente, praticamente todos os dias.
21 – Era um pai presente na vida da menor, atento e preocupado, que acompanhava a menor na sua vida escolar, brincava e passeava com a mesma; alimentava-a, vestia-a e dava-lhe banho; apoiava e orientava a menor, dedicando-lhe todos os tempos livres, tendo uma relação muito próxima com a demandante, sua filha única, existindo entre ambos um entendimento profundo e muito afectivo, sendo, a par com a mãe, o melhor amigo da menor.
22 – A título de pensão de alimentos, o falecido contribuía com a quantia de € 150,00 (cento e cinquenta euros) mensais para a menor, montante que, de acordo com o estipulado, seria actualizada anualmente em Janeiro, com efeitos a partir de Janeiro de 2015, de acordo com os índices de inflação publicados pelo INE.
23 – DD era solteiro, vivia sozinho, era alegre, trabalhador, saudável, que queria progredir na carreira e se esforçava para isso.
24 – Em consequência da morte de DD, a menor viu-se privada precocemente da companhia e dos cuidados paternos, sofrendo com a ausência do pai, perguntando pelo mesmo com muita frequência; sentindo angústia quando percebe que nunca mais verá o pai; tendo ficado amargurada, triste, infeliz, sofrendo grande desgosto, ficando privada da pensão de alimentos que o pai pagava e do seu apoio financeiro que lhe daria até ser autónoma.
25 – A menor é uma criança atenta e interessada, sendo a mãe da menor licenciada em comunicação empresarial.
*
Mais se provou:

26 – O local onde ocorreram os factos de que foi vítima DD, na data e hora em que tiveram lugar, junto à estação do metro do ..., é bastante frequentado, com diversas pessoas a entrar e a sair da estação de metro e a passaram no referido local, encontrando-se igualmente várias pessoas junto ao café onde a vítima caiu e ficou prostrada no chão.
27 – Após a comunicação da ocorrência dos factos, e o pedido de auxílio efectuado de imediato por terceiros, logo de seguida chegaram ao local os Bombeiros Voluntários de Odivelas, e a viatura do INEM, tendo sido efectuado no local três ciclos de SAV, sem efeito, motivo pelo qual foram suspensas as manobras de reanimação, tendo a verificação do óbito do ofendido ocorrido no local, pelas 10 horas.
*
28 – O arguido AA admitiu parcialmente a autoria dos factos, verbalizando arrependimento.
29 – O processo de desenvolvimento do arguido AA decorreu na Guiné-Bissau, num ambiente rural e num meio socioeconómico desfavorecido e pouco estruturado, marcado pela separação dos progenitores e pela guerra civil, que vivenciou até aos seis anos de idade.
30 – Cerca dos seis anos de idade, o arguido foi atingido num joelho por uma bala perdida, de que resultou uma surdez total do ouvido esquerdo e a necessidade de uma intervenção cirúrgica devido ao esmagamento dos ossos/tendões do joelho.
31 – Na sequência desse acidente, o arguido e a progenitora foram reencaminhados para Portugal, a fim de o arguido ser submetido a intervenção cirúrgica, acabando por permanecer no País, ficando o arguido com sequelas, coxeando e não conseguindo dobrar o joelho.
32 – O percurso escolar do arguido foi iniciado mais tardiamente, tendo entrado para a instrução primária aos 8 anos de idade, para a Escola ..., onde completou o 4º ano de escolaridade sem nunca ter reprovado.
33 – Posteriormente integrou a ..., onde completou o 11º ano de escolaridade, e frequentou o 12º, vindo a reprovar.
34 – À data dos factos o arguido vivia com a progenitora e a irmã mais nova, habitando numa casa arrendada, tendo o agregado graves problemas a nível financeiro, uma vez que a progenitora do arguido permaneceu dois anos desempregada.
35 – O arguido encontrava-se inactivo, totalmente desocupado, acompanhando grupos de pares com comportamentos desviantes, com quem frequentava ambientes nocturnos, onde consumia álcool e estupefacientes (haxixe), grupo de pares que mantinha uma rivalidade acentuada com outro grupo de pares de outro bairro, da mesma área residencial.
36 – No Estabelecimento Prisional de Lisboa, o arguido nem sempre mantém um comportamento adequado ou uma postura adaptada ao meio institucional em causa, tendo sido já sujeito a duas sanções disciplinares.
37 – O arguido tem recebido visitas da irmã e da progenitora no Estabelecimento Prisional.
38 – De acordo com o relatório social, o arguido demonstra «(…) imaturidade, impulsividade, reactividade, dificuldades de auto-análise, com dificuldades em aderir ao cumprimento das regras e normas, bem como da incapacidade em perspectivar um projecto de vida organizado.
(…) possui capacidades para avaliar os seus comportamentos, mas revela dificuldades em reconhecer e identificar os sentimentos dos outros (…).
Apresenta fragilidades de natureza pessoal, nomeadamente irresponsabilidade, imaturidade e permeabilidade a influências externas negativas. No plano escolar e profissional, verifica-se falta de habilitações literárias (uma vez que não acabou o 12º ano) ou profissionais e falta de hábitos de trabalho ou motivação para se ocupar profissionalmente, circunstâncias que poderão constituir factores de risco, caso não se motive para investir na sua valorização pessoal no sentido de vir a desenvolver competências que possam favorecer uma alteração ao seu actual modo de vida.
(…) revela défices de competências pessoais que implicam a necessidade de uma evolução significativa ao nível de uma maior interiorização das suas atitudes e das consequências dos seus comportamentos para os outros, e da consciência da necessidade de uma alteração ao nível dos seus relacionamentos interpessoais em contexto extra-familiar, indispensáveis à supressão das necessidades de reinserção social que ainda manifesta (…)».
39 – Do certificado de registo criminal do arguido AA nada consta.
*

(…).»

3. Apreciação

3.1. Enquadramento jurídico-penal dos factos

3.1.1. O recorrente questiona a subsunção jurídico-penal dos factos, sustentando estar-se perante a prática de um crime de homicídio simples, p. p. pelo artigo 131.º do Código Penal.

A decisão recorrida considerou integrado o crime qualificado de homicídio p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º, n.os 1 e 2, alínea e), do Código Penal.

Nos termos do artigo 131.º: «Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos».

O artigo 132.º, n.º 1, alínea e), dispõe que:
«Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos».

Sendo susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade, entre outras, a circunstância de o agente:

«e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer outro motivo torpe ou fútil».

3.1.2. O crime de homicídio qualificado, previsto no citado artigo 132.º do Código Penal, constitui uma forma agravada de homicídio simples (tipo de ilícito), em que a qualificação decorre, não através da previsão de circunstâncias típicas fundadas em maior ilicitude do facto, mas antes em função da de um tipo de culpa agravado, de uma «especial censurabilidade ou perversidade» da conduta, conforme cláusula geral enunciada no n.º 1, revelada pelas circunstâncias constantes das diversas alíneas do n.º 2 do mesmo preceito.

Na sua «estrutura singular», o artigo 132.º está concebido como um tipo de culpa. «O tipo de ilícito preenchido pelo homicida qualificado é a norma do art. 131.º. Quando se verifiquem no comportamento as circunstâncias das alíneas qualificadoras, tem de pôr-se em guarda o intérprete/aplicador: pode ter sido o agente especialmente censurável ou perverso. Caso contrário, a moldura penal que se lhe aplica é a do art. 131.º», sendo que «[a] prova da maior censurabilidade ou perversidade terá sempre de fazer-se, de acordo com o princípio da culpa».Citou-se MARIA MARGARIDA SILVA PEREIRA, Os Homicídios, Lisboa, 2012, p. 201..

Utilizou o legislador no artigo 132.º a designada técnica dos «exemplos-padrão» ou «exemplos-regra», estando em causa no seu n.º 2, segundo parte muito significativa da doutrina, circunstâncias que se reportam à culpa do agente e não à ilicitude, circunstâncias que podem traduzir uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como salienta AUGUSTO SILVA DIAS, «a verificação de um exemplo-padrão do n.º 2 do art. 132.º não implica, apenas indicia, a presença de um caso de especial censurabilidade ou perversidade». O indício – prossegue o autor – «tem de ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias do facto e da atitude do agente nelas expressa» Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, revista e actualizada, AAFDL, 2007, p. 24..

Neste exacto sentido, lê-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 31 de Janeiro de 2012 (Proc. n.º 894/09.4PBBRR.S1 – 3.ª Secção) Acessível, como os demais que se citarem sem outra indicação quanto à sua fonte, nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt.:

«Estas circunstâncias constituem “exemplos-padrão”, ou seja, indícios da culpa agravada referida no nº 1, que constitui o elemento típico do homicídio qualificado (tipo de culpa). Ainda que essas circunstâncias envolvam eventualmente uma maior ilicitude do facto, não é o simples acréscimo de ilicitude que determinará a qualificação do crime. Só se as ditas circunstâncias revelarem uma maior censurabilidade ou perversidade da conduta se verificará a qualificação.

Assim, como meros indícios, as circunstâncias do n.º 2 têm sempre que ser submetidas à cláusula geral do n.º 1. Da interacção entre os nºs 1 e 2 do art. 132º pode, pois, resultar a exclusão do efeito de indício do exemplo-padrão, e consequentemente a integração dos factos no crime de homicídio simples do art. 131º. Mas pode também, precisamente pelo seu carácter meramente indiciário, admitir-se a qualificação do homicídio quando se constatar a substancial analogia entre os factos e qualquer dos exemplos-padrão.

Esta interacção entre os dois números do art. 132.º, permitindo uma maior flexibilidade no tratamento dos casos concretos, e reflexamente na administração da justiça do caso, assegura a delimitação do tipo de homicídio qualificado em termos suficientemente rigorosos para que não seja lesado o princípio da legalidade.

Esta é, em traços muito sintéticos, a posição da doutrina maioritária, seguida correntemente pela jurisprudência, nomeadamente deste Supremo Tribunal [ «Assim, desde logo Eduardo Correia, “Actas da Comissão Revisora do Código Penal”, p. 22; Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pp. 25-28, e sobretudo Teresa Serra, Homicídio Qualificado, pp. 125-127 (em síntese). No sentido de se tratar de um tipo de ilícito, Fernanda Palma, “O homicídio qualificado no novo Código Penal Português”, Revista do Ministério Público, nº 15, pp. 59-74; Margarida Silva Pereira, Direito Penal II, Os Homicídios, pp. 39-67; Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, pp. 11-20, e, por último, João Curado Neves, “Indícios de culpa ou tipos de ilícito?”, Liber Discipulorum para Figueiredo Dias, pp. 721-757. Na jurisprudência, ver, a título exemplificativo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 8.2.1984 (BMJ 334, p. 258), um dos primeiros a perfilhar esta orientação, e, por último, o acórdão de 27.5.2010, proc. nº 11/04.7GCABT.C1.S1, 3ª Secção.»].»

A qualificação do homicídio do artigo 132.º do Código Penal supõe, pois, a imputação de um especial e qualificado tipo de culpa, conformado através da verificação da «especial censurabilidade ou perversidade» do agente.

Segundo FIGUEIREDO DIAS, o objectivo da lei é o de «imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 29..

O acórdão deste Supremo Tribunal, de 21 de Junho de 2006 (Proc. n.º 06P1913) condensa relevantes elementos sobre o modelo de qualificação do crime de homicídio que importa reter. Afirma-se aí que:

«O crime de homicídio qualificado, previsto no artigo 132º do Código Penal, é uma forma agravada de homicídio, em que a qualificação decorre da verificação de um tipo de culpa agravado, definido pela orientação de um critério generalizador enunciado no nº 1 da disposição, moldado pelos vários exemplos-padrão constantes das diversas alíneas do nº 2 do artigo 132º.
O critério generalizador está traduzido na cláusula geral com a utilização de conceitos indeterminados - a especial censurabilidade ou perversidade do agente; as circunstâncias relativas ao modo de execução do facto ou ao agente são susceptíveis de indiciar a especial censurabilidade ou perversidade e, assim, por esta mediação de referência, preencher e reduzir a indeterminação dos conceitos da cláusula geral.
Sendo elementos constitutivos do tipo de culpa, a verificação de alguma das circunstâncias que definem os exemplos-padrão não significa, por imediata consequência, a realização do tipo especial de culpa e a directa qualificação do crime, como, também por isso mesmo, a não verificação de qualquer dos modelos definidos do tipo de culpa não impede que existam outros elementos e situações que devam ser considerados no mesmo plano de valoração que está pressuposto no crime qualificado e na densificação dos conceitos bem marcados que a lei utiliza.
Mas, seja mediada pelas circunstâncias referidas nos exemplos-padrão, ou por outros elementos de idêntica dimensão quanto ao desvalor da conduta do agente, o que releva e está pressuposto na qualificação é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor de atitude», que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade, e que conforma o especial tipo de culpa no homicídio qualificado.
A qualificação do homicídio do artigo 132º do Código Penal supõe, pois, a imputação de um especial e qualificado tipo de culpa, reflectido, no plano da atitude do agente, por uma conduta em que se revelam «formas de realização do facto especialmente desvaliosas (especial censurabilidade), ou aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (cfr. FIGUEIREDO DIAS, "Comentário Conimbricense do Código Penal", vol. I, págs. 27-28).»

Como também se lê no sumário do acórdão deste Supremo Tribunal, de 27 de Maio de 2010 (Proc. n.º 58/08.4JAGRD.C1.S1 – 3.ª Secção):

«I - O crime de homicídio constitui uma violação do bem mais precioso de qualquer pessoa que é a própria vida e, como tal, será sempre inadmissível. Porém, o processo causal que leva à consumação de tal crime, isto é, a dinâmica de emoções e sentimentos que lhe está associada assume uma policromia por tal forma plurifacetada que, necessariamente, terá de lhe corresponder uma maior ou menor compreensão da sua génese.
II - O art. 132.º do CP define o tipo de crime de homicídio qualificado constituindo uma forma agravada de crime em relação ao tipo do art. 131.º do mesmo diploma. Com efeito, o tipo de crime assenta nos mesmos factos dos que estão previstos no art. 131.º, funcionando a qualificação assente na combinação de um critério de culpa com a técnica dos exemplos padrão.
III - A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação, sendo um tipo de culpa. Seguindo Roxin, por tipo de culpa entende-se aquele que, na descrição típica da conduta, contém elementos da culpa que integra factores relativos à actuação do agente que estão relacionados com a culpa.»

Em suma, a qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada revelada pelo agente com a sua actuação – um tipo de culpa que é conformado pela especial censurabilidade ou perversidade da conduta.

3.1.3. As circunstâncias apontadas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal como exemplos-padrão determinarão a qualificação se e enquanto revelarem uma maior censurabilidade ou perversidade da conduta.

Constituem indícios da culpa agravada referida no nº 1 do artigo 132.º do Código Penal, e, enquanto tais, essas circunstâncias, conforme se lê no acórdão deste Supremo Tribunal de 12 de Março de 2015, proferido no processo n.º 185/13.6GCALQ.L1.S1 – 3.ª Secção, «têm sempre que ser submetidas à cláusula geral do n.º 1. Da interacção entre os n.os 1 e 2 do art. 132º pode, pois, resultar a exclusão do efeito de indício do exemplo-padrão, e consequentemente a integração dos factos no crime de homicídio simples do art. 131º. Mas pode também, precisamente pelo seu carácter meramente indiciário de uma culpa especialmente agravada, admitir-se a qualificação do homicídio quando se constatar a substancial analogia entre os factos e qualquer dos exemplos-padrão.

Esta interacção reflexa entre os dois números do art. 132º permite por um lado uma maior flexibilidade no tratamento dos casos concretos, e consequentemente na administração da justiça do caso, e por outro assegura a delimitação do tipo de homicídio qualificado em termos suficientemente rigorosos para que não seja lesado o princípio da legalidade.»

Trata-se de entendimento maioritário na doutrina e seguido correntemente pela jurisprudência, nomeadamente deste Supremo Tribunal, sendo aliás, como se salienta no acórdão que se vem de citar, «essa a posição que decorre cristalinamente do texto e da teleologia da lei».

3.1.4. Quanto à decisão sobre a integração do crime qualificado, deve proceder-se à definição da imagem global do facto, «de modo a logo aí detectar a particular forma de culpa que justifica a qualificação do homicídio, sem esquecer, na dimensão da integração diferencial, a circunstância de que o tipo geral de homicídio constitui já, por si mesmo, um crime de acentuada gravidade que protege o bem vida como valor essencial inerente à pessoa humana», conforme acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Janeiro de 2009 (Proc. n.º 08P4030).

Neste entendimento, o acórdão deste Supremo Tribunal, de 17 de Outubro de 2013 (Proc. n.º 27/12.0GPSR.S1 – 5.ª Secção):
«Desencadeado o efeito-padrão, pela verificação de uma circunstância prevista no n.º 2 do art. 132.º, o tribunal não está dispensado de ponderar (ponderação global do facto e do autor), antes de concluir pela existência de uma especial censurabilidade ou perversidade, se não existem circunstâncias espaciais no facto ou na pessoa do agente capazes de substancialmente revogar o efeito de indício do exemplo-padrão. Por outro lado, não está excluído que a inexistência de circunstâncias exemplificadas do n.º 2 do art. 132.º determine inexoravelmente a punição do agente pelo homicídio simples. Mas se, para a revogação do efeito de indício do exemplo-padrão, é necessário que se verifique um circunstancialismo adequado a atribuir ao facto uma imagem global insusceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, também para a afirmação da especial censurabilidade ou perversidade, não se verificando qualquer das circunstâncias do n.º 2 do art. 132.º, se reclama a verificação de circunstâncias extraordinárias ou de um conjunto de circunstâncias especiais capazes de conferirem ao facto a imagem de especial censurabilidade ou perversidade. Mas, além disso, é necessário que tais circunstâncias se compreendam na estrutura valorativa de algum ou de alguns dos exemplos-padrão. Com o que se quer dizer que essas circunstâncias devem revelar uma idoneidade qualitativa concordante com os grupos valorativos dos exemplos-padrão. A jurisprudência que qualifica o homicídio com apelo directo à cláusula do n.º 1 do art. 132.º do CP contraria a técnica dos exemplos-padrão e viola o princípio da legalidade».

Em face do modelo de construção do tipo qualificado - qualificado pelo especial tipo de culpa – pela enunciação do critério geral, moldado pela densificação através dos exemplos-padrão, não será permitido, por violador do princípio da legalidade, o procedimento «traduzido em fazer um apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplos-padrão e de, por isso, comprovar a existência de um caso expressamente previsto no art. 132.º ou de uma situação valorativamente análoga» FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 28..

3.1.5. O Tribunal Colectivo considerou verificada a circunstância qualificativa referida na alínea e) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, segundo a qual, é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância do agente ser determinado por qualquer motivo torpe ou fútil.

«Motivo torpe ou fútil» é, para FIGUEIREDO DIAS, «o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito (…) de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana» Ob. cit., pp. 32-33..

Sendo no subjectivismo do agente que deverá ser encontrada a natureza da motivação do crime para efeitos de futilidade do motivo, circunstância concretamente considerada na decisão recorrida, motivo fútil é, segundo M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO, o motivo «notoriamente desproporcionado ou inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime praticado»; para além da desproporcionalidade, deve acrescer a insensibilidade moral, que tem a sua manifestação mais alta na brutal malvadez ou se traduz em motivos subjectivos ou antecedentes psicológicos que, pela sua insignificância ou frivolidade, sejam desproporcionados com a reacção homicida.
(…) Será o «motivo de importância mínima», mas também o «motivo frívolo, leviano, a ninharia» que leva o agente à prática de um grave crime, «na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida» Código Penal – Parte Geral e Especial, 2.ª Edição – 2015, Almedina..

Também a jurisprudência, como dá nota o acórdão deste Supremo Tribunal, de 31 de Janeiro de 2012 (Proc. n.º 894/09.4PBBRR.S1 - 3ª Secção), se tem pronunciado neste sentido, considerando que «motivo fútil» é o motivo sem valor, insignificante, ridículo, que não tem relevo, que não pode razoavelmente explicar a conduta do agente, que é notavelmente desproporcionado ou inadequado, na perspectiva do homem médio e em relação ao crime de que se trata, tendo em vista a situação concreta (vide neste sentido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Julho de 1989, in BMJ n.º 389). O motivo gratuito, frívolo, despropositado ou leviano, avaliado segundo os padrões éticos geralmente aceites na comunidade. Ele assenta, pois, numa ideia de desproporcionalidade flagrante entre a conduta da vítima e a atitude do agente, que choca frontalmente com o sentimento comunitário de justiça.»

Como se considera no acórdão deste Supremo Tribunal, de 17 de Janeiro de 2007 Proc. n.º 06P3845 – 3.ª Secção), e no acórdão de 26 de Setembro de 2007 (Proc. n.º 07P2591 – 3.ª Secção), ambos relatados pelo agora Ex.mo Conselheiro Adjunto:

«Na doutrina, tem sido atribuído ao motivo fútil o alcance de uma razão incompreensível para a generalidade das pessoas, que não pode razoavelmente explicar (e muito menos justificar) o crime, revelando o facto, inteiramente desproporcionado, repudiado pelo homem médio, profunda insensibilidade e inconsideração pela vida humana.
A nossa jurisprudência, a tal respeito, não se dissocia desse entendimento, identificando o motivo fútil não tanto pelo seu pouco relevo ou importância, mas sim pela «desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal em que ela se objectivou: no fundo o que prefigure a especial censurabilidade que decorre da futilidade» – Ac. do STJ de 04-10-2001, Proc. n.º 1675/01 – 5.ª; motivo fútil é «o notoriamente desproporcionado ou inadequado aos olhos do homem médio, denotando o agente, com isso, o egoísmo, intolerância, prepotência, mesquinhez» – Ac. do STJ de 25-06-97, Proc. n.º 96P1253; motivo fútil será o motivo frívolo, leviano, a ninharia que leva o agente à prática do crime, na inteira desproporção entre o motivo e a reacção homicida – Ac. do STJ, de 15-12-2005, Proc. n.º 05P2978.»

Motivo fútil é «um motivo sem relevo, sem importância mínima ou manifestamente desproporcionado segundo as concepções da comunidade, incapaz portanto de razoavelmente explicar e muito menos justificar a conduta» – cf. Maia Gonçalves, Código Penal Português anotado e comentado, 18.ª ed., pág. 515 – acórdão do STJ de 10-12-2008 (Proc. n.º 08P3703- 3.ª Secção).

No acórdão do STJ de 13-07-2009 (Proc. n.º 59/07.0GCVPA.S1 – 5.ª Secção), considerou-se:

«(…) VIII - Provando-se que o arguido, aborrecido com o facto de o ofendido lhe ter fechado a porta e não lhe ter dado dinheiro, abriu a porta a pontapé e, aberta a mesma, acto contínuo, disparou um tiro de arma de fogo, em direcção do ofendido, atingindo-o na cabeça e provocando-lhe a morte, fica afastada a alegação de que se não apurou o motivo da acção, o que impediria a sua qualificação como fútil.
IX - Mas, encontrado o motivo pelo qual agiu o recorrente – aborrecido com o facto de o ofendido lhe ter fechado a porta e não lhe ter dado dinheiro –, importa ver se o mesmo, como entenderam as instâncias, é fútil.
X - Não merece qualquer censura a qualificação do homicídio praticado pelo recorrente, designadamente por ter agido por motivo fútil, se ele matou a tiro de arma de fogo disparada a curta distância um velho de 89 anos, seu conhecido de muitos anos, de madrugada na casa deste, quando ele, frágil e indefeso, se encontrava apenas acompanhado da mulher, igualmente idosa, depois de a vitima o ter auxiliado emprestando-lhe uma ferramenta às 3h30, aborrecido com o facto de o ofendido lhe ter fechado a porta e não lhe ter dado dinheiro que lhe pedira agressivamente.
XI - É um motivo claramente desproporcionado, inadequado face à génese do crime e ao modo de execução, que torna este incompreensível para a generalidade das pessoas, que não pode razoavelmente explicar (e muito menos justificar) o crime, revelando o facto, inteiramente desproporcionado, repudiado pelo homem médio, profunda insensibilidade e inconsideração pela vida humana, insensibilidade moral traduzida na brutal malvadez do agente.»

No acórdão do STJ de 27-05-2010 (58/08.4JAGRD.C1.S1 – 3.ª Secção), já citado, caracteriza-se o «motivo fútil» como «o motivo de importância mínima. Será também o motivo frívolo, leviano, a ninharia que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida, o que se apresenta notoriamente inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime de que se trate, o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e o que impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática».

No acórdão do STJ de 19-02-2014 (Proc. n.º 168/11.0GCCUB.S1 – 3.ª Secção), exprime-se o entendimento de que motivo fútil «é o motivo de importância mínima. Será, também, o motivo "frívolo, leviano, a “ninharia” que leva o agente à prática desse grave crime, na inteira desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida", o que se apresenta notoriamente inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime praticado; o que traduz uma desconformidade manifesta entre a gravidade e as consequências da acção cometida e o que impeliu o agente a essa comissão, que acentua o desvalor da conduta por via do desvalor daquilo que impulsionou a sua prática».

Constando ainda neste acórdão que «o vector fulcral que identifica o "motivo fútil" não é pois tanto o que imprime a ideia de tão pouco ou imperceptível relevo, quase que pode nem chegar a ser motivo, mas sim, aquele que realce a inadequação e faça avultar a desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que ela se objectivou: - no fundo, em essência, o que prefigure a especial censurabilidade que decorre da futilidade, sendo que esta pressupõe um motivo por ela rotulável e que dela e por ela se envolva (Ac. do STJ de 4/10/2001, proc. nº 1675/01-5)».

Finalmente, no acórdão do STJ de 16-10-2013 (Proc. n.º 455/12.0PCLSB.L1.S1 – 3.ª Secção), apresenta-se o «motivo fútil» como a circunstância qualificativa «com relação à motivação do agente, é a que surge fundada num profundo desprezo do valor da vida humana, acção que não pode razoavelmente explicar e muito menos justificar a conduta; é um motivo que de tão pouco ou imperceptível relevo, não revelador de adequação e que faz avultar a desproporcionalidade entre o que impulsiona a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que aquela se objectivou Neste sentido e alcance, em data recente, se pronunciou o STJ nos seus ACs. de 27.6.2012, Rec.º n.º 127/10 .OJABRG.G2.S1e de 17.4.2013, P.º n.º 237/11.7JASTB.L1. S1. (…)
O motivo fútil é incapaz de fornecer uma explicação em termos razoáveis, insignificante, mesquinho, demonstrando insensibilidade moral do agente -Jurisprudência Criminal, 288, RJ, 3402, 346.
É aquele que se apresenta com antecedente psicológico desproporcionado com a reacção homicida, tendo em vista a sensibilidade normal média, assim FF.
Significa que o motivo de actuação avaliado segundo as regras éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente baixo, repugnante, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pela vida humana, sintetiza abrangentemente o Prof. Figueiredo Dias, in Comentário citado, pág. 32».

3.1.6. De acordo com a matéria de facto considerada provada no acórdão recorrido, o arguido AA e EE encontravam-se na Rua do ..., quando avistaram DD a acender um cigarro e o abordaram, tendo o arguido EE pedido ao ofendido que lhes desse um cigarro, o que lhe foi recusado.
Em virtude da recusa de DD, gerou-se uma discussão entre este e os arguidos, tendo o ofendido continuado o seu caminho, percorrendo cerca de quatro metros, no que foi seguido pelo arguido AA, o qual, quando alcançou o ofendido, estando ao lado deste, sem que nada o fizesse prever, retirou uma navalha com cerca de 19 cm de comprimento, sendo cerca de 10 cm de cabo, e 7,8 cm de lâmina, com largura máxima de 2 cm e espessura de cerca de 2,5 cm, do interior do bolso das calças, abriu-a e empunhou-a na direcção de DD, espetando-a no peito deste, atingindo o ofendido na face anterior esquerda do tórax, após o que, o arguido AA fechou a navalha, que guardou no interior da bolsa que transportava a tiracolo, tendo voltado para junto do arguido EE.
Acto contínuo, o ofendido DD começou a correr em direcção à Pastelaria ... da referida rua, mas acabou por cair poucos metros depois, ficando prostrado no chão.
Após terem visto o ofendido tombar para o chão, e de o arguido EE ter visto o arguido AA fechar a navalha que guardou na bolsa, os arguidos colocaram-se em fuga apeada em direcção ao viaduto existente sobre o IC 17, junto à rotunda do Largo ....
Em consequência directa e necessária da descrita actuação do arguido AA, o ofendido DD sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia médico-legal.
As lesões traumáticas corto-perfurantes descritas no tórax, interessando, além da parede torácica, o pulmão esquerdo e o coração, definindo um trajecto de frente para trás e da esquerda para a direita, produzidas por um instrumento corto-perfurante, através da actuação do arguido AA supra descrita, foram a causa directa e necessária da morte de DD.
O arguido AA agiu com o propósito de tirar a vida a DD, actuando motivado pela recusa do ofendido em lhes dar um cigarro e pela discussão nesta sequência gerada, bem sabendo que a navalha utilizada, accionada a uma distância curta e sobre a zona onde se alojam órgãos vitais, era adequada a causar a sua morte, o que conseguiu.
O arguido AA agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Justificando a qualificação jurídico-penal da conduta do arguido, agora recorrente, afirma-se no acórdão recorrido:

«Do confronto com os factos provados resulta que o arguido AA agiu de forma livre e voluntária, com o propósito de tirar a vida ao ofendido DD, na sequência de uma discussão motivada pela recusa do ofendido em dar um cigarro aos arguidos, propósito que concretizou, actuando da forma descrita em 2 da factualidade provada, desferindo uma facada no peito do ofendido, em consequência do que, provocou no mesmo as lesões traumáticas torácicas supra descritas, produzidas por instrumento corto-perfurante, na parede torácica, pulmão esquerdo e coração do ofendido, as quais foram causa directa e necessária da morte de DD.
A valoração global dos factos praticados pelo arguido AA, designadamente quanto ao modo de execução do crime e ao motivo que originou a formulação do propósito de tirar a vida ao ofendido, propósito que concretizou através do modo de actuação supra descrito, motivado pela recusa do ofendido em dar um cigarro, sem a ocorrência de qualquer desavença ou situação anterior com significado relevante, denotando uma firmeza reveladora de uma forte intensidade de vontade e energia criminosa, e de um acentuado desprezo pela vida humana, revelam uma conduta denotadora de especial censurabilidade por parte do arguido AA, reflectindo as circunstâncias em que ocorreu a morte da vítima, ao nível da culpa, a especial censurabilidade exigida para a qualificação da actuação do arguido.
Concluindo-se da valoração global da factualidade provada, por uma actuação especialmente desvaliosa em termos de especial censurabilidade, a actuação do arguido AA reconduz-se assim à prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, previsto e punido pelos arts. 131º e 132º, nºs. 1 e 2, al. e), ambos do Código Penal».

3.1.7. A caracterização da conduta deste arguido como integrando a prática de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.os 1 e 2, alínea e), ambos do Código Penal, merece a nossa inteira concordância. Observa-se uma correcta avaliação e valoração global dos factos praticados pelo arguido.

Na verdade, a «imagem global do facto», tal como resulta do complexo dos factos provados contextualmente interpretados, revela que o arguido-recorrente agiu por motivo fútil, motivado pela recusa do ofendido em dar um cigarro, sem a ocorrência de qualquer desavença ou situação anterior com significado relevante.
A futilidade do motivo da actuação do arguido-recorrente insere-se plenamente na descrição e caracterização que a doutrina e a jurisprudência vem fazendo sobre tal circunstância ou exemplo-padrão, acima recenseadas.
Na leitura compreensiva dos factos provados, o contexto de conflito revela uma actuação com intenção de matar, sangue frio na execução, insensibilidade e indiferença, um móbil da actuação despropositada, um motivo sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação ao facto, sem explicação racional plausível.
O arguido-recorrente praticou tão grave crime por «motivo de importância mínima», por uma «ninharia» numa total e incompreensível desproporção entre o motivo e a extrema reacção homicida, por um motivo, convocando a impressiva expressão de FIGUEIREDO DIAS, «pesadamente repugnante, baixo ou gratuito».

O modo de actuação do arguido e o «motivo fútil» por que se moveu, por ser claramente desproporcionado e inadequado à acção, que é ilegítima, injustificada e objectivamente censurável, são reveladores de uma especial censurabilidade ou perversidade.

Como bem se refere no acórdão recorrido:
«A valoração global dos factos praticados pelo arguido AA, designadamente quanto ao modo de execução do crime e ao motivo que originou a formulação do propósito de tirar a vida ao ofendido, propósito que concretizou através do modo de actuação supra descrito, motivado pela recusa do ofendido em dar um cigarro, sem a ocorrência de qualquer desavença ou situação anterior com significado relevante, denotando uma firmeza reveladora de uma forte intensidade de vontade e energia criminosa, e de um acentuado desprezo pela vida humana, revelam uma conduta denotadora de especial censurabilidade por parte do arguido AA, reflectindo as circunstâncias em que ocorreu a morte da vítima, ao nível da culpa, a especial censurabilidade exigida para a qualificação da actuação do arguido.»


3.1.8. Pelo exposto, não merece qualquer censura a qualificação do homicídio praticado pelo arguido agora recorrente operada na decisão recorrida.
Improcede, assim, a sua pretensão no sentido da condenação pelo crime de homicídio simples, negando-se provimento ao recurso nesta parte.

4. Medida da pena

4.1. Discute o recorrente a medida da pena que lhe foi fixada, considerando que, no caso de se manter a condenação pelo crime de homicídio qualificado, se deverá «substituir o quantum da pena em que (…) foi condenado, atendendo a todos os elementos constantes do processo».

Nos termos do artigo 71.º do Código Penal, a medida concreta da pena é fixada em função da culpa e das exigências da prevenção, devendo atender, nomeadamente, à ilicitude do facto, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados na prática do crime e à sua motivação, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior aos factos, à sua falta de preparação para manter conduta lícita.

Como se refere no já citado acórdão deste Supremo Tribunal, de 21 de Janeiro de 2009, «na realização dos fins das penas (protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal) as exigências de prevenção geral constituem, nos casos de homicídio, uma finalidade de primordial importância».

A vida humana é valor fundamental, inviolável na expressão constitucional (artigo 24.º, n.º 1, da Constituição da República) e a comunidade é abalada de forma muito intensa quando, por acto voluntário, se ofende a vida de um dos seus.

No caso, e acompanhando de novo o mesmo acórdão, «perante as circunstâncias reveladas na prática dos factos, a função de prevenção geral, que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial, tem de ser eminentemente assegurada, e sobreleva, decisivamente, as restantes finalidades da punição, considerado o valor afectado - a vida, como valor dos valores do género humano».

São, pois, evidentes e prementes as exigências de prevenção geral expressas na perturbação comunitária que provoca este tipo de crimes que põem em causa valores nucleares da sociedade. Na verdade, como se acentua em recente acórdão deste Supremo Tribunal, «não estão em causa bens jurídicos situados na periferia da personalidade, mas a própria Vida. É imperioso que a comunidade esteja certa de que as violações dos laços mais básicos de interacção social sejam penalizadas com adequada punição e, por tal forma, se tenha a noção de que a vida humana é um valor intocável» (acórdão de 30 de Março de 2016, inédito).

4.2. No caso presente é incontestável que a ilicitude é muito forte. Como se consigna no acórdão recorrido:

«o grau de ilicitude dos factos praticados pelo arguido AA que se considera muito elevado, dada a audácia e a energia criminosa revelada no modo de cometimento do crime, em pleno dia e na via pública, numa hora e local de grande movimento, o que não o demoveu da sua actuação; o instrumento utilizado, sendo o modo de execução do crime revelador de uma forte energia criminosa e de uma personalidade violenta e impulsiva, denotando um acentuado desprezo pela vida humana, e a indiferença demonstrada pelas consequências da sua actuação, de que é reflexo o facto de o arguido abandonar o local sem revelar qualquer preocupação pelas lesões sofridas pela vítima ou promover o auxílio da mesma.»

O dolo é também muito intenso. O arguido-recorrente executou o crime de forma determinada e com total frieza, revelando, como bem se sublinha na decisão recorrida, «audácia» e «energia criminosa», actuando «em pleno dia e na via pública, numa hora e local de grande movimento, o que não o demoveu da sua actuação». O instrumento utilizado na execução do crime é também «revelador de uma forte energia criminosa».

Ainda segundo o acórdão recorrido:

«- a ausência de demonstração de consciência crítica relativamente ao desvalor da sua conduta por parte do arguido AA, não assumindo particular relevância a verbalização de arrependimento por parte do arguido, face à ausência de demonstração consistente do desvalor da sua actuação, bem como das consequências da mesma.
- não obstante a ausência de antecedentes criminais, as características de personalidade do arguido AA, nomeadamente a imaturidade, impulsividade, reactividade, dificuldades de auto-análise, dificuldades em aderir ao cumprimento das regras e normas, incapacidade em perspectivar um projecto de vida organizado, e permeabilidade a influências externas negativas, reclamando maiores exigências ao nível da prevenção especial.»

Concorda-se inteiramente com tais considerações e, considerando que o crime de homicídio qualificado é punível com prisão de 12 a 25 anos de prisão, entende-se que nenhuma censura há a fazer à decisão recorrida.
A pena de 17 anos de prisão que foi fixada satisfaz as exigências preventivas e não excede a medida da culpa, mostrando-se adequada em função dos factos e da personalidade do recorrente.


III – DECISÃO

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente com 6 UC de taxa de justiça.

Supremo Tribunal de Justiça, 13 de Abril de 2016
(Texto elaborado e revisto pelo relator – artigo 94.º, n.º 2, do CPP)
Manuel Augusto de Matos (relator)
Armindo Monteiro