ACUSAÇÃO
REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
OBJECTO DO PROCESSO
ELEMENTO SUBJECTIVO
Sumário

I - A estrutura acusatória do processo penal obriga a que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados, seja na acusação, seja no requerimento de abertura da instrução equivalente a acusação.
II - Para se afirmar o elemento intelectual do dolo, não basta que o agente tenha conhecido ou representado todos os elementos do tipo legal de crime, mas é ainda necessário que tenha tido conhecimento do seu sentido ou significado, isto é, que tenha actuado com consciência da ilicitude.
III - A partir do momento em que a lei deixou de presumir o conhecimento da lei incriminadora, e sendo a consciência da ilicitude essencial para a punibilidade do facto, a existência dessa consciência tem de ser objecto de acusação e de prova e, portanto, faz parte também do objecto do processo.
IV - Se na acusação ou no RAI não constem os factos atinentes ao elemento subjectivo "consciência da ilicitude", devem ser rejeitados por manifestamente infundados.

Texto Integral

Processo 414/09.0pamai-B.P1
Relator: Melo Lima

Acordam em Conferência na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I. Relatório
1. B… E C… apresentaram queixa contra D…, por prática de crime de dano.
2. Findo o Inquérito, o Mº Pº, na consideração de que não se mostrava suficientemente indiciada a prática do crime, determinou o arquivamento dos autos.
3. Notificado desta decisão, o B… deduziu requerimento de abertura de instrução [relativamente aos danos provocados no seu estabelecimento], impetrando, a final, a prolação de DESPACHO DE PRONÚNCIA DO DENUNCIADO D…, PELA PRÁTICA DO CRIME DE DANO P.P. PELO ARTº 214º Nº1 AL. b) DO CÓDIGO PENAL, sob a seguinte fundamentação fáctica, que se transcreve na parte pertinente (acusação):
«49. O Requerente B… é proprietário de um estabelecimento comercial móvel de Snack-bar, denominado E….
50. No passado dia 27-04-2009, o referido estabelecimento encontrava-se instalado na área concedida para a celebração da Festa …, em …, na Maia
51. Por volta das 16h00, quatro indivíduos conhecidos do Requerente por serem proprietários de outros estabelecimentos móveis presentes naquela e noutras festas, designadamente o denunciado D…, o F…, o G… e um tal H…, dirigiram-se ao referido estabelecimento solicitando diversas cervejas e aí permanecendo até perto das 20h30.
52. Durante esse período, o arguido D… fez questão de demonstrar que se encontrava “zangado” com o Requerente B… e que tinha cortado relações com o mesmo, porquanto afirmou não pretender falar com qualquer dos elementos do estabelecimento E…. ASSIM,
53. Solicitava aos amigos os produtos que ele pretendia consumir, despoletando diversos (10 comentários provocatórios da parte destes sobre as razões da zanga, já que o ofendido B… afirmava não estar “zangado” com o mesmo.
54. Ainda naquele dia_ por volta das 24h00, o mesmo grupo de amigos regressou ao estabelecimento E…, solicitando mais quatro finos, POREM
55. Claramente mais desinibido e aparentemente alcoolizado o referido D…, dirigiu-se directamente ao Requerente B… dizendo-lhe que o mesmo «se andava a portar mal com ele», já que, em seu entender tinha conseguido injustamente, obter licença para ocupação de um lugar na Festa …, mas que essas contas seriam ajustadas. ORA,
56.O Requerente B…, percebendo que o D… se encontrava alterado e perante a animosidade que o mesmo havia revelado ao longo do dia, afastou-se do balcão, ficando apenas o seu filho C…. PORÉM,
57. Nessa altura, o arguido D… começou a insistir que o ofendido B… oferecesse àqueles quatro finos.
58.O ofendido procurando evitar conflitos e mais acusações, enquanto se afastava autorizou que aqueles finos não fossem pagos.
59 Logo de imediato o filho adolescente do G…, pediu que então lhe fosse oferecido um prego. PELO QUE,
60. O C…, depois de questionar o pai — que negou mais ofertas — informou o menor que só efectuaria o prego se o mesmo fosse pago. ORA,
61. Assistindo a tal afirmação o arguido D…, claramente exaltado, começou a gritar e a exigir que o ofendido B… fizesse o prego.
62.O C… questionou o Arguido D… se se dispunha a pagá-lo, já que o pai do menor tinha negado.
63.Nessa altura, ainda exaltado e tentando constranger o C... a realizar o prego em questão, o arguido D… pegou num suporte metálico para copos — que se encontrava no balcão — e começou a bater violentamente com mesmo no LCD … da caixa registadora do estabelecimento. PELO QUE,
64.O C… correu a agarrar a referida peça metálica, tentando retirá-la da mão do arguido D… e procurando proteger o ecrã táctil dada a fragilidade do mesmo. SUCEDE PORÉM QUE,
65.A referida peça em metal tem apenas 2 milímetros de espessura, pelo que, enquanto o C… tentava retirar a peça da mão do Arguido D…, este puxava-a para si com força, acabando por abrir dois golpes nas mãos C… que, magoado, acabou por largá-la. 66.Ao largar repentinamente a peça metálica, a mesma acabou por atingir o arguido D… na face que, por efeito da entrou em desequilíbrio, acabando por cair ao chão. PELO QUE,
67.Ainda mais agressivo e exaltado, o arguido D…, como forma de retaliação e claramente com intenção de provocar ainda mais estragos no estabelecimento, pegou num balde para lixo em aço inoxidável pesando cerca de 10 quilos e levantou-o para arremessar para dentro do estabelecimento. PORÉM,
68.Apercebendo-se do que o arguido D… ia fazer, o Requerente B… correu na sua direcção para o impedir, acabando por se transformar no alvo de arremesso.
69.Defendendo-se do balde o Requerente B…, empurrou-o para a frente acabando por acertar no arguido D… que, com isso, caiu novamente ao chão. SUCEDE QUE,
70. Mesmo depois dos restantes elementos do grupo tentarem acalmar a situação, impedindo o confronto directo entre o Arguido D… e o Requerente B…, o referido D… com o intuito de provocar ainda mais danos no estabelecimento do ofendido, começou a pegar em diversas cadeiras de plástico e uma mesa de esplanada e atirá-las contra o estabelecimento, partindo de imediato dois painéis de acrílico da frente, com publicidade e diversos outros materiais. ORA,
71.Sentindo-se em perigo, o Requerente, a sua esposa e o seu filho C… e o funcionário do estabelecimento, refugiaram-se dentro do mesmo. PORÉM,
72.Na sequência de uma discussão entretanto iniciada entre esposa do Ofendido B… e a esposa do G… o arguido e outros elementos ali presentes, provocar destruição no estabelecimento do Requerente B…, começaram, também eles, a atirar com todo tipo de objectos contra o estabelecimento, designadamente baldes para lixo em aço inoxidável, suportes para guardanapos em metal, cadeiras de esplanada, acabando por partir um terceiro painel em acrílico na canto da sala. PELO QUE,
73.Só a chegada de dois agentes da PSP, fez cessar a violência de que o estabelecimento estava a — ser alvo, conseguindo o Requerente B… encerrar as instalações e garantir alguma segurança à família e funcionário que lá se encontravam refugiados. ASSIM,
74. Mais tarde, após identificação e descrição dos factos na esquadra da PSP da Maia, o Requerente e a sua família, por uma questão de segurança, já que corriam o risco de retaliações por parte de familiares do denunciado, foram conduzidos sob protecção policial descaracterizada até ao estabelecimento e aconselhados a desinstala-lo e a abandonarem aquelas festas — Conselho que de imediato acataram. ORA,
75.Da actuação violenta e descontrolada do Arguido D…, resultaram ferimentos em ambos os ofendido, bem como diversos danos materiais no estabelecimento E….
76. Nomeadamente ficaram danificados, na caixa registadora, o MB e o ecrã táctil bem como também a “carcaça” do POS …, pelo que a substituição daquele equipamento se traduz num dano no valor de € 978,00 (novecentos e setenta e oito euros). — Cfr. Documento junto com a queixa. ACRESCE PORÉM QUE,
77.Nas instalações e equipamentos do estabelecimento foram diversos os materiais partidos ou amolgados que, de igual modo, carecem de substituição, a saber: uma tampa do quadro elétrico, uma gaveta do balcão, uma porta de balcão em aço inoxidável, um acrílico de canto, duas ripas do estore lateral, uma guia do estore da frente direita do estabelecimento, dois acrílicos da frente com publicidade, o revestimento de inox da frente do balcão, quatro espelhos do balcão da frente e ainda, três cadeiras e uma mesa de plástico, dois suportes para copos em metal, um suporte para guardanapos, um caixote para lixo, duas canecas e um copo. ORA,
78.Considerando a natureza dos materiais danificados, a sua substituição encontra-se orçamentada em € 4.620,00 (quatro mil seiscentos e vinte euros), montante que, naturalmente, traduz um dano de igual valor. — Cfr. Documento n.º 2. ASSIM,
79.Por força da sua conduta violenta, o denunciado D… e outros, infligiram danos no estabelecimento E…, cujo montante global ascende a € 5.58,O0 (cinco mil quinhentos e noventa e oito euros).
4. Sobre este requerimento incidiu decisão proferida pelo Exmo Juiz de Instrução de não pronúncia de que se transcrevem os seguintes excertos:
«Da inadmissibilidade do requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente B… a fls. 327 e ss
O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução – artigo 287º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
O requerimento é tempestivo – artigo 113º, n.ºs 3 e 9 do Código de Processo Penal e fls.
O requerente tem legitimidade – artigo 287º, n.º 1, al. b).
Importa, agora, apreciar a admissibilidade legal da instrução.
No âmbito dos presentes autos, o assistente B…, apresentou queixa contra D…, por factos que na sua perspectiva consubstanciam a prática de crime de dano com violência pp pelo artº 214º, nº 1, al b), do Código Penal (cfr. queixa-crime de fls. 2 e ss dos autos apensos- apenso A).
Realizado inquérito, o MP, a fls. 234 e ss, proferiu despacho de final, com despacho de arquivamento quanto ao crime de dano, por concluir não existirem indícios suficientes da prática pelo arguido D… do crime de dano ou de qualquer outro (cfr. fls. 235 e 236).
……...
Inconformado, o denunciante, constituído assistente, veio requerer, a fls. 327 e ss, a abertura de instrução (quer quanto ao despacho de arquivamento, quer quanto ao despacho de acusação).
Apreciemos.
……….
Após a apreciação critica do despacho de arquivamento e enunciação das razões da sua discordância, o assistente apresenta os factos que pretende provar, com descrição temporal e espacial de factos, desenrolar dos factos, concluindo a final que seja proferido despacho de pronúncia de D… pela prática de crime de dano, pp pelo artº 214º, nº 1, al. b), do Código Penal (cfr. fls. 346).
Todavia, analisado o RAI sobressai, desde logo, que o mesmo é totalmente omisso quanto ao elemento subjectivo do crime de dano.
Com efeito, analisado o RAI do assistente, não se antevê que o assistente tenha referido a consciência da ilicitude do arguido quanto ao crime de dano e que os elementos volitivo e intelectual do dolo.
A instrução, como fase intermédia entre o inquérito e o julgamento «visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» (art. 286.°, n.º 1 do Código de Processo Penal – são deste Diploma legal os demais preceitos citados em menção expressa de proveniência).
Nos termos do disposto no artigo 287.°, n.º 1, podem requerer a abertura de instrução o arguido e o assistente, esclarecendo a lei quem pode constituir-se como assistente em processo penal (artigo 68º, n.º 1).
Estatui o art. 287.°, n.º 2 - na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 59/98, de 25/08, referindo-se ao requerimento de abertura de instrução do assistente, que o mesmo deve conter «em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for o caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar», sendo certo que a tal requerimento, quando formulado pelo assistente, é aplicável «o disposto no artigo 283.°, n.º 3, alíneas b) e c) (...)».
Quer isto dizer que o requerimento de abertura de instrução do assistente está sujeito ao formalismo da acusação, isto é, equipara-se-lhe (vid. Ac. da Rel. Lisboa de 12.05.1998, BMJ n.o 477.°, pág. 555; da Rel. Porto de 15.04.1998, BMJ n.o 476.°, pág. 487; da Rel. Lisboa de 02.12.1998, BM] n.º 482.°, pág. 294; da Rel. Lisboa de 21.10.1999, CJ, XXII pág. 158; Rel. Lisboa de 09.02.2000, CJ, XXIII, 1.°, 153).
Sendo assim, poderemos concluir que, por força da conjugação dos arts. 287.°, n.º 2 o art. 309.°, n.º 1, a instrução requerida pelo assistente, em caso de despacho de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público – aquele que importa ter em conta – não pode destinar-se à simples impugnação de tal despacho, sendo certo que tal exigência, formalismo e equiparação não se pode afirmar ou exigir ao requerimento formulado pelo arguido (cfr. artigo 287º, n.º 2, in fine, a contrario sensu).
Pelas razões acima aludidas, no requerimento para abertura de instrução, o assistente tem de indicar os factos concretos que, ao contrário do Ministério Público, considera indiciados ou que pretende vir a fazer indiciar no decurso da investigação requerida.
O juiz, por seu turno, irá apurar se esses factos se indiciam ou não, proferindo ou não, em consonância, despacho de pronúncia (cfr., neste sentido, os Acs. da RP de 05/05/1993, C], XVIII, 3.°, pág. 243 e da RC de 24/11/1993, CJ, XVIII, 5.°, pág. 61).
Isto significa, portanto, que o requerimento de abertura de instrução equivale, em tudo, à acusação, definindo e delimitando o objecto do processo a partir da sua apresentação; ele constitui, pois, substancialmente, uma acusação alternativa ao despacho de abstenção proferido pelo M.P.
Só assim se respeitará a estrutura acusatória que preside ao direito processual penal português, na medida em que «o juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos (...) que tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objecto da acusação do M.P. - «Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, pág 264».
Expostos estes princípios jurídicos, abalancemo-nos na análise da situação vertente.
Desde logo, dir-se-á que, percorrendo o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, facilmente se verifica que o mesmo apesar de elencar uma sucessão de factos que, a verificarem-se, comprometeriam o arguido pela prática de um crime de dano, não se verifica a necessária indicação do elemento subjectivo: falta a consciência de ilicitude por parte do arguido.
Compulsados os autos constata-se que no RAI efectuado pelo assistente não são indicados os elementos subjectivos do crime de dano, requisito indispensável, sem o qual, não é possível a apreciação do crime de dano, por o mesmo requerer a enunciação dos elementos intelectual e volitivo do dolo, requisito também aplicável também aos assistentes (cfr. artº 285º, nº 2, do Código de Processo Penal).
Nos termos do art. 285º, nº 2, do Código de Processo Penal “é correspondentemente aplicável à acusação particular o disposto no art. 283º, nº 3”, do mesmo diploma legal.
Por sua vez, o nº 3 do mesmo preceito dispõe que “a acusação contém, sob pena de nulidade: (...) b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (...), cabendo aqui a enumeração dos factos constitutivos do tipo legal de crime; al. d) o rol de testemunhas (...); f) a indicação de outras provas a produzir ou a requerer.
É necessário que na acusação constem todos os elementos factuais que constituem pressuposto da punição, quer de natureza objectiva, quer de natureza subjectiva, pois todos são objecto de prova no processo penal e todos constituem pressupostos da responsabilidade criminal.
A falta de qualquer um deles implica que não estão reunidos todos os pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança (cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Verbo, vol. I, pags. 339 a 343).
……..
Da análise da acusação (alternativa) deduzida pela assistente não avulta qualquer circunstância quanto à consciência da ilicitude do arguido, pelo que tal peça processual é manifestamente infundada.
Acusação manifestamente infundada é aquele que face aos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade.
Desta forma, a acusação deduzida pela assistente é manifestamente infundada, por falta de indicação do elemento subjectivo.
……….
E nem se diga que o juiz deveria proferir, em situação como à destes autos, despacho de aperfeiçoamento do requerimento de abertura da instrução, não obstante tal entendimento ter sido já defendido (cfr. Ac. da Rel. Évora de 16.12.1997, BMJ n.º 472.°, pág. 585, 20.06.2000, CJ III, pág. 153 e de 21.03.2001, CJ, II, pág. 131).
Com efeito, se se admitisse que o Juiz de lnstrução pudesse convidar ou permitir que o assistente viesse, posteriormente, formular novo requerimento de abertura de instrução, estar-se-ia a admitir uma violação do mencionado princípio do acusatório ( cfr., assim, Ac. da Rel. Lisboa de 14.01.2003, C], I, pág. 124, aliás neste sentido decidiu-se no citado AUJ n.º 7/2005).
Para além disso, há que ter em conta que o prazo de 20 dias a que alude o artigo 287.°, n.° 1, é um prazo peremptório, imperativo, atenta a celeridade do processo penal ( cfr. Ac. da RL de 23.05.2001, CJ, III, pág.238).
Por essa razão, permitir-se a apresentação de novo requerimento pelo assistente além daquele prazo colidiria, inevitavelmente, com as garantias de defesa do arguido que quer (e tem direito) a ver rapidamente esclarecida e definida a sua situação processual - (cfr. o Ac. do Trib. Constitucional n.º 27/2001, de 30.01.2001, DR, II-S, de 23.03.2001).
Desta forma, a acusação deduzida pelo assistente é manifestamente infundada, pelo que se torna inadmissível a instrução criminal quanto ao crime de ano, por ser desnecessária, sendo que o Tribunal deve abster-se da prática de actos inúteis.
Pelo exposto, e ao abrigo das disposições conjugadas dos artº 285º, nº 2, 283º, nº 3 als. d) e f)), todos do Código de Processo Penal julgo a acusação deduzida pela assistente manifestamente infundada, e, em consequência, não se admite o RAI formulado pelo assistente B… relativamente ao despacho de arquivamento proferido pelo MP e em relação ao crime de dano pelo qual o assistente requer a pronúncia do arguido D….»

5. Inconformado com esta decisão, dela recorre o assistente B… rematando com as seguintes conclusões:
5.1 Entende o ora Recorrente que errou o Tribunal a quo ao considerar que o Requerimento Abertura de Instrução é «totalmente omisso quanto ao elemento subjectivo do crime de dano».
5.2 Isto porque, o artigo 283.° n° 3 alínea b) do CPP exige a indicação de factos e não de conclusões que se consubstanciem em fórmulas pré formatadas do género “o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei” quanto à consciência da ilicitude ou “o arguido agiu com dolo” quanto ao dolo, sobre as quais, aliás, «...nunca há produção de prova (...) sendo através de operações dedutivas que se encontram as respostas», v.g. in Ac. N.° 1245/04- 1 do Tribunal da Relação de Guimarães.
5.3 Conforme o Douto Acórdão «.. Não se trata de se aceitarem “presunções de ilícito “, mas sim da relevância criminal de certos factos, aos quais sempre se podem opor outros que impeçam a perfeição do tipo ou que integrem causas justificativas ou de exclusão da ilicitude».
5.4 Com o estatuído na referida norma da alínea b) do n.° 3 do artigo 283.° do C.P.P., o que o legislador pretende é que ao submeter-se uma pessoa a julgamento se definam os seus actos e a postura subjectiva com que agiu e não que se utilizem expressões sacramentais.
5.5 In casu, encontram-se alegados factos suficientes e susceptíveis de permitirem ao Tribunal que, através de operações dedutivas, estabeleça a existência de dolo e a consciência da ilicitude do arguido, nomeadamente, ente outros, os factos constantes nos artigos 63.°, 67.° e 72.° do RAI.
5.6 Sendo certo que é do conhecimento geral que danificar bens alheios é tido por proibido e punível.
5.7 Violou, pois, o Despacho recorrido o disposto na alínea b) do n.° 3 do artigo 283.° do C.P.P
6. Respondeu no Tribunal recorrido, a Exma. Procuradora Adjunta, concluindo no sentido que a decisão recorrida deve ser confirmada.
7. Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer no sentido da improcedência do recurso, justificando, todavia:
7.1 Não é de acolher a argumentação vertida da fundamentação do despacho sob recurso: posto que no RAI não se faça qualquer alusão à consciência pelo Arguido da ilicitude dos factos, tal alusão, ainda que omitida, é de conclusão forçosa, enquanto resultante das presunções judiciais e da experiência comum, na medida em que, qualquer cidadão normal, ao atuar como descrito, forçosamente sabe que está a agir contra o ordenamento jurídico que protege os bens alheios.
7.2 O RAI é, porém, omisso na indicação das normas legais incriminadoras em clara violação das disposições conjugadas dos artigos 287º/2 e 283º/3 al.c) CPP.
8. Observada a notificação a que alude o Artigo 417º/2 do CPP, o Recorrente respondeu dizendo que o RAI indica as normas legais incriminadoras.
9. Colhidos os vistos, realizada a Conferência, cumpre conhecer e decidir.
II FUNDAMENTAÇÂO
A única questão a conhecer no presente recurso tem a ver com a rejeição in limine do requerimento de abertura de instrução com o fundamento de que o Assistente omite a narração dos factos constitutivos do tipo do ilícito denunciado, cuidando-se saber se se tratou de uma decisão legalmente correta. [1]

*
Nos termos do artigo 286º/1 do CPP, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Dizer, visa a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito. Dizer também, a instrução não é em face da lei um novo inquérito – sem prejuízo do suplemento de investigação autónoma que o juiz de instrução pode levar a cabo [2] – mas um mecanismo de comprovação.
Desta arte, se a finalidade da instrução é a prolação de uma comprovação judicial seja da decisão de dedução de acusação, seja da decisão de arquivamento do processo, naturalmente ela deverá conduzir à prolação de um “despacho de pronúncia ou de não pronúncia” [307º/1 CPP]
Em conformidade do que – assim se acompanhando Pinto de Albuquerque - “Não há lugar a instrução se se verificar uma nulidade insanável ou irregularidade não sanada, da acusação ou do arquivamento.” [3]
E à luz deste entendimento torna-se perfeitamente compreensível o ideferimento in limine, confinado à nulidade em causa, dizer falta de acusação.
Posto que a lei consigne a nulidade [«A acusação contém, sob pena de nulidade…»(283º/3CPP)] e esta não deva ser entendida como absoluta ou insanável [119º, a contrario, CPP], entende-se que, com referência ao momento seja da apreciação in limine litis do Requerimento da Abertura da Instrução – e este é o caso -, seja na prolação da Decisão Instrutória, seja no despacho de saneamento do processo [311ºCPP] o regime aplicável não é o decorrente do artº 122º do CPP – ao menos na ideia de que ao juiz, por força do apontado princípio da acusação e/ou da vinculação temática, não lhe é «possível» proceder/ordenar/convidar à «repetição» - é, antes, o decorrente da norma ínsita no referido artigo 311º (rejeição da acusação), a traduzir, no âmbito da instrução, ora pelo não recebimento liminar (posto que parcial) do requerimento da abertura da instrução, ora por uma decisão final de não pronúncia, tudo como vem de ser referido.
Mutatis mutandis, tem aqui, se bem se ajuíza, inteira pertinência, toda a argumentação subjacente ao Acórdão nº7/2005 (Processo 430/2004 – 3ª Sec.) [4] que fixou jurisprudência nos seguintes termos:
«Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.»
A partir da questão “sobre se deve o juiz convidar o assistente a colmatar o seu requerimento de instrução sempre que enferme de deficiente narração factual e de direito” o STJ foi reconhecendo ora “a ausência de qualquer segmento normativo proibindo ou negando o convite ao aperfeiçoamento”, ora que o figurino do processo civil – apelativo, por via do princípio da cooperação inter-subjetiva, à transformação do processo numa autêntica comunidade de trabalho – “não se harmoniza com o processo penal”, “já que o processo penal se não identifica com um processo de partes, de disponibilidade de interesses privados, antes vocacionado à realização da paz pública, segurança social e paz jurídica entre os cidadãos”: “aquela natureza dificilmente combateria disfuncionalidades, desvios e abusos, que o legislador reputou e detetou como responsáveis pela frustração de uma justiça tempestiva e eficaz”.
Tomando como certa a identificação do RAI (requerimento de abertura de instrução) como “uma verdadeira acusação”, conclui aquele alto tribunal no sentido de que “a falta de narração de factos na acusação conduz à sua nulidade e respetiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283º nº3 alínea b) e 311º nºs 2 al. a) e 3 al. b) do CPP”.
Justifica, então, aquele mesmo Tribunal que sendo inadmissível o convite à correcção de uma acusação estruturada deficientemente, sai igualmente inadmissível o convite à correcção do RAI:
«A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequências endoprocessuais, já que se não prevê o convite à correcção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a perentoriedade da consequência legal desencadeada: o ser manifestamente fundada igual proibição de convite à correcção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado.»
É que, como ainda ali se justifica:
«Uma ilimitada investigação levada a cabo pelo juiz de instrução buliria com o princípio da acusação, pois seria ele a delimitar o objeto do processo contra os peremtórios termos do artº 311º nº3 alínea b) do CPP, não sendo curial, …, o tribunal substituir-se aos profissionais do foro…»
«O convite à correção dilataria o termo final do desfecho da instrução,…, brigando com a celeridade de uma fase intercalar do processo, cogitada para ser breve…»
«A renovação, pelo convite à apresentação de um novo requerimento, obstaria ao trânsito do despacho de não pronúncia e exporia o arguido à possibilidade de ver renovada a acusação, quando pela acusação o arguido adquire a garantia de ser julgado pelos factos dela constantes, por forma irrepetível e definitiva.
Significante, ainda, estar vedado ao juiz do julgamento direcionar convite ao Ministério Público para completar o elenco factual acusatório, ante e com apoio nos termos peremtórios do citado artigo 311º nº3 al. b).»

Acresce.
De acordo com a Constituição da República, o princípio estruturante do processo penal é o princípio acusatório – o processo penal tem estrutura acusatória [Artigo 32º/1 CRP].
Este princípio reitor da vinculação temática ou da acusação reconduz-se, no essencial, à ideia de que a acusação ou a pronúncia definem e fixam, perante o tribunal, o objecto do processo.
Gomes Canotilho e Vital Moreira - que delimitam o respectivo conteúdo normativo à ideia de que «só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento», - não hesitam em considerá-lo «um dos princípios estruturantes da constituição processual penal» e «uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial» [5]
Assumindo-o, o legislador ordinário a ele se referiu, expressis verbis, no Preâmbulo do C.P.Penal aprovado pelo DL 78/87:
“Por apego deliberado a uma das conquistas mais marcantes do progresso civilizacional democrático, e por obediência ao mandato constitucional, o Código perspectivou um processo de estrutura basicamente acusatória. Contudo – e sem a mínima transigência no que às autênticas exigências do acusatório respeita -, procurou temperar o empenho na maximização da acusatoriedade com um princípio de investigação oficial, válido tanto para efeito de acusação como de julgamento..»
Figueiredo Dias, que tem o princípio da acusação como “a pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido - … - que assim se vê protegido contra arbitrários alargamentos da actividade cognitória e decisória do tribunal e assegura os seus direitos de contraditoriedade e audiência”, ensina, em termos práticos:
«deve… firmar-se que objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (actividade cognitória…) e a extensão do caso julgado (actividade decisória…). É a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consumpção do objecto do processo penal; os princípios, isto é, segundo os quais o objecto do processo deve manter-se o mesmo da acusação ao trânsito em julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente) e – mesmo quando o não tenha sido – deve considerar-se irrepetivelmente decidido.» [6]
Com uma tal estrutura acusatória quer-se significar, segundo ensinamento do mesmo mestre de Coimbra, que “a imparcialidade e objectividade que, conjuntamente com a independência, são condições indispensáveis de uma autêntica decisão judicial só estarão asseguradas quando a entidade julgadora não tenha também funções de investigação preliminar e acusação das infracções, mas antes possa apenas investigar e julgar dentro dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferenciado (em regra o MP ou um juiz de instrução).”[7]

Axiologicamente conexionado com este princípio do acusatório ou da vinculação temática (ne procedat iudex ex officio), aquele outro do processo equitativo, do processo justo, do processo devido (due process), qual exigência do Estado de Direito [8] [9] [10], a impor, nomeadamente, que a verdade só possa ser procurada de modo processualmente válido e admissível e, portanto, com o integral respeito dos direitos fundamentais das pessoas que no processo se vêem envolvidas. [11]

É exactamente na atenção à filosofia subjacente à lei penal adjectiva nos pontos em que, quais princípios reitores, assume, de uma parte, a estrutura basicamente acusatória do processo penal e, de outra, na decorrência desta mesma estrutura acusatória, confere uma específica relevância ao inquérito, que este, “convertido na fase geral e normal de preparar a decisão de acusação ou de não acusação”, é realizado “sob a titularidade e a direcção do Ministério Público a quem, exactamente por lhe ser deferida tal titularidade bem como a competência exclusiva para a promoção processual, é atribuído não o estatuto de parte, mas o de uma autêntica magistratura sujeita ao estrito dever de objectividade”. [12]
Não se olvide, porém, que aquele papel de titular da ação penal e de direção do inquérito não apaga a posição ancilar do assistente: é colaborador do Ministério Público a cuja actividade subordina a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei [Artigo 69º/1 C.P.P] [13]
Pela mesma razão de ser, atinente à dita estrutura acusatória, constituindo-se a lide em uma disputa entre duas partes – a acusação (deduzida esta pelo MºPº ou pelo Assistente sob a forma de RAI) e a defesa – será ao juiz/tribunal – independente e acima daquelas – que competirá discipliná-la.
Mas porque ao juiz competirá o exercício, independente e imparcial, do ius dicere, então não lhe poderão competir funções de promover o processo (ne procedat judex ex officio), como, de igual passo, lhe ficará defesa a condenação para além da acusação.

DESTARTE.
A estrutura acusatória do processo penal – a consubstanciar, de par com a garantia do direito de defesa, a concretização da axiologia inerente a um Estado de direito democrático – obriga a que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados, seja na acusação, seja no requerimento de abertura de instrução equivalente a acusação.
Esta, como é de todos sabido, sob a unidade lógica da conclusão – identificável com a sanção penal requerida - deve ser construída de maneira que possa converter-se num silogismo, em que a premissa maior sejam os elementos-do-tipo do ilícito (fattispecie penal) e a premissa menor os factos histórico-concretos que preenchem aqueles.
Exige-se, então, sob pena de comprometimento irremediável do êxito da lide, que a narração destes contenha os factos pertinentes à causa, ou dizer os factos necessários e suficientes, verdadeiramente relevantes, que sejam indispensáveis para a definição do direito para o caso concreto (iuris dictio).
Tenham-se presentes, a este propósito, os termos que a lei adjectiva penal aponta relativamente à descrição do conteúdo da acusação.
Diz o artigo 283º/3 do C.P.Penal que “A acusação contém sob pena de nulidade: b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção”
Exigências quanto ao conteúdo da acusação igualmente aplicáveis ao despacho de pronúncia, por força do preceituado no artigo 308º, nº 2, do mesmo código.
Se bem se interpreta, a norma não estabelece qualquer vinculação narrativa, posto que, sem prejuízo de que a narração deva ser sintética, determina que seja de factos, de factos com relevância juspenal, assim com referência aos elementos objectivos do tipo-do-ilícito, assim com referência ao elemento subjectivo - como sejam a consciência da prática do acto, o conhecimento da ilicitude, a voluntariedade da conduta - assim, ainda, com referência aos elementos pertinentes ao apuro do grau de censurabilidade ético-jurídica merecida (culpa).
Factos que, devendo pertencer à realidade histórico-existencial, tanto podem revestir a natureza material como assumir natureza espiritual (v.g. a consciência da ilicitude, a voluntariedade na prática do acto, a decisão livre e consciente, a motivação/ intenção ou propósito de)
De todo o modo, na decorrência do princípio da vinculação temática, exigir-se-á que a narração dos factos que constituem os elementos do crime seja, de uma parte, suficientemente clara, perceptível e inequívoca, – até para que o arguido possa saber, com precisão, do que vem acusado – como, de outra parte, exigir-se-á que contenha, ainda que de forma sintética, uma descrição dos factos efectuada «descriminada e precisa com relação a cada um dos actos constitutivos do crime», mencionando «todos os elementos da infracção» e quais «os factos que o arguido realizou», [14] num e outro caso para que o objecto do processo fique claramente definido e fixado visto que será perante o quadro fáctico nele assim descrito que o mesmo arguido deverá elaborar a sua estratégia de defesa e que a acusação definirá e fixará o objecto do processo, limitando a actividade cognitiva e decisória do tribunal.
É tempo de descer à questão em concreto suscitada no thema decidendum: exigibilidade ou não de uma específica referência à consciência da ilicitude, no libelo acusatório? [15]
Uma vez aqui, importa tomar em linha de conta, posto que em termos breves, as referências decorrentes (i) já da fundamentação recursiva [«encontram-se alegados factos suficientes e susceptíveis de permitirem ao Tribunal que, através de operações dedutivas, estabeleça a existência de dolo e a consciência da ilicitude do arguido»] (ii) já mesmo do douto Parecer do Exmo. Procurador –Geral Adjunto [«posto que no RAI não se faça qualquer alusão à consciência pelo Arguido da ilicitude dos factos, tal alusão, ainda que omitida, é de conclusão forçosa, enquanto resultante das presunções judiciais e da experiência comum, na medida em que, qualquer cidadão normal, ao atuar como descrito, forçosamente sabe que está a agir contra o ordenamento jurídico que protege os bens alheios»].
Atalhando, não se subscreve a argumentação expendida.
Bastaria tomar em linha de conta a conclusão 5ª do recurso interposto: «o legislador pretende é que ao submeter-se uma pessoa a julgamento se definam os seus actos e a postura subjetiva com que agiu»
O Recorrente toma como exigência legal – seguramente, em obediência ao imperativo do sobredito princípio da vinculação temática – que a acusação defina a postura subjetiva com que o arguido acusado agiu.
Nos termos do artigo 1º al.a) do CPP, considera-se «crime» o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais.
Consabidamente, a conceção pessoal do ilícito supõe uma construção bipartida do tipo objetivo e subjetivo do ilícito.
No que a esta última concerne – a que ora importa -, é igualmente de todos sabido que o tipo subjetivo do ilícito, na forma dolosa, inclui o dolo do tipo (ou dolo do facto) e os elementos especiais subjetivos (ou elementos subjetivos do tipo).
O dolo do tipo consiste no conhecimento [elemento cognitivo ou intelectual do dolo] e vontade [elemento volitivo do dolo] de realização da ação típica.
Certo, todavia, para que exista o crime não basta que uma conduta seja tipicamente antijurídica, é preciso também que ela possa ser reprovada ao seu agente, isto é que seja culposa.
Assim, ao lado do juízo de valor que refere o comportamento humano a bens ou valores jurídicos, outro juízo de valor se requer como elemento do crime – a culpa, a qual se analisa na censura dum certo facto típico à pessoa do seu agente» [16]
Integra o tipo de culpa a “consciência da antijuridicidade (da ilicitude ou do lilícito), a avaliar em função duma disposição interna (concorde ou não concorde com a norma) no plano em que o agente se dá ou não dá conta (e em que medida tal acontece) de que viola a lei ou da punibilidade do facto, ou seja, de que o seu comportamento é proibido” [17] [18]
Ainda no dizer de Eduardo Correia, que vem de se citar, «…para se afirmar o elemento intelectual do dolo não basta que o agente tenha conhecido ou representado todos os elementos constitutivos do tipo legal de crime, mas é ainda necessário que tenha tido conhecimento do seu sentido ou significado, isto é, que tenha atuado com consciência da ilicitude», «Se o agente atua sem consciência da ilicitude ele não se propõe, na verdade, um fim ilícito» [19] [20]
Se o ensinamento de Eduardo Correia – para quem o erro era a outra face do dolo – valia, no que vem de ser exposto, relativamente a um Código Penal onde a ignorância da lei penal não eximia da responsabilidade criminal (Artº 29º/1 do CP 1886), vale hoje muito mais em face da lei penal vigente, visto nomeadamente o teor dos artigos 16º e 17º da lei penal substantiva.
Subscreve-se por inteiro neste particular, GERMANO MARQUES DA SILVA:
«A partir do momento em que a lei deixou de presumir o conhecimento da lei incriminadora ou pelo menos deixou de considerar irrelevante para efeitos de punição o seu desconhecimento e considera que a consciência da ilicitude é elemento essencial da censurabilidade, entende-se também a necessidade da indicação da lei aplicável na própria acusação e no despacho de pronúncia, sob pena de nulidade. É que agora, contrariamente ao regime do Código Penal anterior, a consciência da ilicitude é essencial para a punibilidade do facto e, por isso, a existência dessa consciência tem de ser objeto de acusação e de prova, é pressuposto da punição e, portanto, faz parte também do objeto do processo [21]
Ora uma coisa é acusar o facto, outra, bem distinta, é dizer como poderá o Tribunal chegar à comprovação do facto. Aquele, terá de constar da acusação, integrar o respetivo objeto. A atividade em sede de produção de prova decorrerá do julgamento.
Coisa diferente, ainda, o recurso, no exercício judiciário da livre apreciação da prova, às presunções naturais. [22]
Consabidamente, a prova nem sempre é directa, de percepção imediata. Infere-se, muitas vezes. Factos há – sejam por exemplo os factos internos ou “de alma - a que só por revelação do próprio ou por dedução com recurso às presunções naturais e de acordo com as regras da experiência comum – vale dizer, com recurso às certezas emergentes do id quod plerumque accidit, que nenhuma liberdade pode contrariar - se pode chegar.
Não teve o Recorrente, neste conspecto, dificuldade em alegar na acusação um juízo de facto, quando imputou ao arguido a intenção de provocar mais estragos” !
Nesta ordem de ideias, não se compreende a justificação apelativa às “expressões sacramentais” quando podia e devia - se tinha tal juízo de facto por suficientemente indiciado na prova produzida em sede de inquérito - alegar factos atinentes à consciência da ilicitude – ou correspectivo juízo de facto - com que o arguido tivesse agido.
Não o fez, sibi imputet!

Não valem, salvaguardado o devido respeito p.m.o., as considerações tecidas ora no sentido de que “encontram-se alegados factos suficientes e susceptíveis de permitirem ao Tribunal que, através de operações dedutivas, estabeleça a existência de dolo e a consciência da ilicitude do arguido» ora de que esta “é de conclusão forçosa, enquanto resultante das presunções judiciais e da experiência comum, na medida em que, qualquer cidadão normal, ao atuar como descrito, forçosamente sabe que está a agir contra o ordenamento jurídico que protege os bens alheios”.
Presunção, neste momento, apenas a decorrente do processo penal constitucional, dizer, a presunção da inocência [23] [24].
Outrossim, seja por prova direta, seja com apelo às presunções naturais, certeza metafísica é, ainda neste momento, que só pode ser objecto de prova, o facto anteriormente alegado. Neste campo, como se deixa entender a propósito do princípio da vinculação temática: quod non este in actis non est in mundo!
Nesta conformidade, sem necessidade de outras considerações, visto a factualidade descrita no RAI não consubstanciar o ilícito acusado, por carência de factos atinentes ao elemento subjetivo “consciência da ilicitude”, mantém-se a decisão recorrida.
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III DECISÃO
São termos em que, na improcedência do recurso, mantém-se a decisão recorrida
Da responsabilidade do Recorrente o pagamento da taxa de justiça de 4UC, levando-se em conta o já pago.

PORTO, 6 de Junho de 2012
Joaquim Maria Melo de Sousa Lima
Francisco Marcolino de Jesus
__________________
[1] É manifesto o lapso no douto Parecer na referência à falta da qualificação juspenal dos factos.
[2] Anabela Miranda Rodrigues, O Inquérito no Novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, pág.78
[3] COMENTÁRIO DO CÓDIGO DO PROCESSO PENAL, à luz da C.R. e da CEDH, 2ª Ed. Actualizada, Universidade Católica Editora, Lx. 2008, Págs. 750, 751
[4] DR 1 Série-A, Nº 212 de 4 de Novembro de 2005
[5] Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra Editora, 1993, nota IX ao artigo 32º, pág. 205
[6] Direito Processual Penal, I Vol., Coimbra Editora, Lda. 1974, pg.145
[7] Direito Processual Penal, Vol.1º, Coimbra Editora, 1974, págs. 136-137
[8] Com consagração na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Mais recentemente, com igual consagração na CARTA dos Direitos Fundamentais da União Europeia – Artigo 47º “Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. (2007/C 303/01)
[9] Due process, enquanto ‘processo justo’, ‘processo devido’, tanto na dimensão da garantia do direito de defesa quanto da garantia do direito de protecção do particular perante a violação dos seus direitos.
[10] “O princípio do Estado de direito é, fundamentalmente, um princípio constitutivo, de natureza material, procedimental e formal (…) que visa dar resposta ao problema do conteúdo, extensão e modo de proceder da actividade do estado”.“ Do princípio do Estado de direito deduz-se,…, a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direitoGOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 3ªEd.,pags.239 e 268
[11] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal - I, Editorial Verbo, 2ªEd., 1994, pág. 24
[12] Preâmbulo do DL 78/87 de 17/2. Vide, ainda: Artigos 1º e 3º do EMP (Lei 60/98 de 27.8) e artigo 5 da LOTJ (Lei 3/99 de 13.1)
De acordo com a Lei Fundamental da República, o Ministério Público é um órgão autónomo de administração da justiça de estrutura hierarquizada. Artigo 219º/4 C.R.P..
[13] Dizer, nomeadamente, não se olvidem os poderes de deduzir acusação (Artº 284º/1 CPP), e requerer a abertura da instrução (Artº 287º/1 al. b) CPP)
[14] Luís Osório, Comentário ao Código de Processo Penal, 4º vol., Coimbra Editora, 1933, nota VII ao artigo 359º, pág. 494, e nota VIII ao artigo 366º, pág. 531)
[15] Aparentemente, ressuma alguma indefinição na decisão sob apreciação quando ora se refere «analisado o RAI do assistente, não se antevê que o assistente tenha referido a consciência da ilicitude do arguido quanto ao crime de dano e (que?) os elementos volitivo e intelectual do dolo», ora se conclui no sentido de que «Da análise da acusação (…) deduzida pela assistente não avulta qualquer circunstância quanto à consciência da ilicitude do arguido, pelo que tal peça processual é manifestamente infundada».
É sob esta última perspetiva que se conhece da decisão recorrida.
[16] EDUARDO CORREIA, DIREITO CRIMINAL, I, Almedina Coimbra, 1968 –pág. 315
[17] No ensinamento de Eduardo Correia: «A censura por culpa dolosa funda-se sobre a falsa decisão do agente relativamente ao direito: o agente, na escolha entre o justo e o injusto, decide-se pela ilicitude. Não basta pois conhecer e querer a fatualidade descrita no tipo legal, mas é ainda necessário ter consciência da ilicitude que o tipo exprime». «O crime não é só a negação de quaisquer valores, mas a negação dos específicos valores jurídico-criminais”. Ob. cit. Págs. 315 e 412
[18] Sobre a delimitação da consciência da antijuridicidade, (i) Eduardo Correia referia que «… a consciência da ilicitude não deve entender-se como consciência perfeita da antijuridicidade penal da conduta (só possível a juristas…) mas como consciência que se refere, muito simplesmente, à proibição» (Ob.cit.Pág. 420); (ii) Para Figueiredo Dias, de sua vez: «a consciência da ilicitude relevante para a culpa ..não (se) resolve em um “saber das essências”, em um conhecimento ou ciência de leis ou normas abstratas, mas numa presença impressiva, na vivência emocional imediata do concreto sentido de ilicitude imanente à situação.» [O PROBLEMA DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE, 2ªEd., Coimbra 1978, pág. 262], ou ainda: «não se exige para afirmação do dolo da culpa uma clara e distinta forma de consciência imanente à ação ou – aqui com particular cabimento – de uma advertência do sentimento no sentido da ilicitude da conduta [DIREITO PENAL, PARTE GERAL TOMO I, Coimbra editora, 2004, pag.511]
[19] Ob. cit.. Págs. 408 e 416
[20] Agora no ensinamento de FIGUEIREDO DIAS, “o mero dolo-do-facto não caracteriza suficientemente um tipo de culpa; mas já o caracteriza – e na verdade como tipo de culpa dolosa – quando acompanhado da consciência da ilicitude. «Esta, mesmo na sua forma mais simples de uma advertência do sentimento do agente no sentido da concreta ilicitude do facto, devia provocar, da parte da consciência-ética, um veto perentório e incondicionado à realização daquele. Considerando o ato da consciência-ética no seu sentido mais compreensivo – como tomada de posição da pessoa perante o desvalor do seu agir e, através deste, perante o desvalor do seu ser próprio – podemos afirmar que aquele conteúdo de culpa reside em que a realização do facto revela uma «desobediência» ou «desatenção» à posição desaprovadora dos sentimentos e, de todo o modo, uma hipotonia, uma falta de tensão da consciência-ética ao não proibir de forma terminante aquela realização. Assim se exprime a má qualidade (jurídica) do ethos do agente, a sua personalidade contrária ou indiferente ao dever-ser jurídico-penal, ficando seguramente fundamentada a sua culpa dolosa e a sua punição a este título». O PROBLEMA DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE, 2ªEd., Coimbra 1978, págs. 263, 264
Ainda, em ensinamento mais recente: «…objeto da censura da culpa não pode ser uma qualquer culpa geral da personalidade, mas apenas a atitude pessoal que se exprime no singular tipo de ilícito e o fundamenta. Por isso há que afirmar sem reserva – e que tomar particularmente a sério no momento da alicação – a referência ao tipo objetivo da consciência do ilícito requerida e a sua consequente cindibilidade» DIREITO PENAL, PARTE GERAL TOMO I, Coimbra editora, 2004, pag.511
[21] Ob cit. Vol. I, Pág.337
[22] “Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um faco conhecido para firmar um facto desconhecido” Artº 349º C.Civil
[23] Artigo 32º/2 da CRP: «Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa»
[24] Assim também, o Artigo 11º DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM: “Toda a pessoa acusada de crime tem direito a que se presuma a sua inocência enquanto não se prove a sua culpabilidade, em conformidade com a lei”