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RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
DEVER DE PRESTAR
DEVER DE INDEMNIZAR
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
Sumário
a) No domínio da responsabilidade contratual, os litígios podem derivar do dever de prestar (quando se pretende o cumprimento de uma obrigação assumida) ou do dever de indemnizar(situação em que, perante um incumprimento definitivo da obrigação, se almeja a indemnização correspondente ao inadimplemento). b) Num contrato bilateral em que não esteja convencionado prazos diferentes para a realização das prestações, corporiza a exceptio non adimpleticontractus a faculdade atribuída a cada um dos contraentes de recusar a prestação a que se acha vinculado, enquanto a contraparte não efetuar a que lhe compete ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo (art. 428º nº 1 CC). c) Ao usar de tal faculdade, a parte não está a recusar o cumprimento, mas tão só a suscitar a exigibilidade da prestaçãono momento em que a contraparte a pretende obter. d) Nos contratos de empreitada, a exceção de cumprimento defeituososó ganha eficácia se for exercida após a denúncia dos defeitos (1220º CC). e) No âmbito da obrigação de indemnizar, cabem não só os prejuízos diretamente causados, como todos os benefícios que se deixaram de obter e ainda os danos futuros (art. 564º CC); porém, o que se vai ressarcir são apenas os danos concretos, e não aqueles que em abstrato eram passíveis de acontecer.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
I - HISTÓRICO DO PROCESSO
1. AA instaurou ação contra BB, pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 7.257,26, correspondente ao valor da reparação de um veículo automóvel que a ré lhe tinha contratado, bem como ao custo do parqueamento desse veículo nas suas instalações no período após interpelação da Ré para proceder ao levantamento do veículo.
A Ré contestou parcialmente a factualidade alegada e invocou o cumprimento defeituoso do contrato. Ainda deduziu reconvenção, a qual não foi admitida.
Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, que condenou a Ré a pagar à Autora € 6.027,26 e absolvendo-a do demais peticionado.
2. Inconformada, vem a Ré apelar para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1 - Resulta da factualidade provada que as obrigações assumidas pela Autora foram:
a) Substituir o motor avariado por um motor novo, incluindo todas as peças acessórias e mão-de-obra necessária – cfr. números 5 e 21 da matéria provada;
b) Devolver as peças avariadas – maxime o motor – pois não havia sido convencionada qualquer retoma nem qualquer valoração do motor avariado – cfr. número 22 da matéria provada e os factos não provados indicados nas alíneas b), c) e d);
c) Elaborar um relatório técnico detalhado sobre as causas e consequências da avaria do motor – cfr. número 23 da matéria provada;
2 - Resulta ainda do teor da carta que a Ré “BB” enviou à Autora AA, por e-mail de 25 de Junho de 2014, que a AA sabia – em data anterior à aceitação formal das condições de reparação (cfr. ponto 23 dos Factos Provados e doc. 3 junto com a Contestação) – que a reparação em causa não era uma reparação normal, mas sim uma intervenção no quadro de um potencial litígio com o fabricante, pelo que a devolução do motor danificado e o relatório técnico eram condições essenciais do contrato celebrado;
3 - Resulta finalmente da factualidade provada que:
a) A Autora não substituiu o motor avariado por um motor novo, mas sim por um motor “recondicionado” (cfr. número 26 dos Factos Provados);
b) A Autora não pôs à disposição da Ré, ora Recorrente, nem o motor avariado nem o relatório técnico detalhado sobre as causas e consequências da avaria do motor (cfr. número 29 dos Factos Provados);
c) A Autora recusou-se a receber o pagamento de €8.045,38 e impediu a Ré, ora Recorrente, de levantar o veículo (cfr. número 34 dos Factos Provados);
4 - Afirma a Douta Sentença recorrida a propósito da motivação à matéria de facto, que “a única matéria que divide as partes é a que sustenta a excepção do cumprimento defeituoso arguida pela Ré. Ou seja, a questão da retoma do motor avariado e respectivo valor”. Para logo a seguir afirmar que “se na Petição Inicial tivesse referido que a reparação do veículo da ré foi com um motor “recondicionado”, nas condições dadas como provadas, teria permitido um julgamento mais célere”. Afirma ainda a Douta Sentença recorrida que “esta matéria da retoma do motor usado, não obstante a centralidade que a ré lhe atribui no julgamento, não nos parece que possa fundamentar o cumprimento defeituoso posto que a devolução das peças substituídas não constitui elemento paradigmático do programa contratual da empreitada”. E acrescenta, “não se provou que estava acordado entre as partes a devolução do motor velho/avariado (como de resto, na normalidade das coisas, não acontece – ou seja, na reparação por meio de utilização de peças recondicionadas, a devolução das peças substituídas não constitui elemento paradigmático do programa contratual), pelo que não se vê onde esteja o incumprimento por parte da autora”;
5 - É esta a base do raciocínio a partir do qual a Douta Sentença recorrida parte para, no final, condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de € 6.027,26. Esta quantia corresponde à factura pró-forma de 14 de Julho referida no número 25 dos Factos Provados cujo e-mail que a capeava dizia: “novo envio da fatura proforma retificada Motivo: alteração de procedimentos a nível de faturação de peças recondicionadas, por parte da Mercedes-Benz, o que significa na fatura proforma, uma redução de 1625€”;
6 - A primeira divergência com a Douta Sentença recorrida respeita ao ónus da prova;
7 - Estando provado – e alegado pela própria Autora na sua petição inicial – que havia sido convencionado que a reparação consistia na substituição do motor avariado por um motor novo, cabia à Autora alegar e provar que a substituição do motor novo por um motor “recondicionado” resultaria de uma modificação do contrato por mútuo consentimento dos contraentes. A Autora não alegou nem provou tal circunstância;
8 - Devia ainda a Autora ter alegado e provado factos dos quais se concluísse que a instalação de um motor “recondicionado” ao invés de um motor novo não constituía incumprimento do contrato imputável a si. A Autora não alegou nem provou tal circunstância;
9 - Aliás, a Autora não respondeu à matéria da excepção peremptória de não cumprimento, o que implica a admissão por acordo dos factos não impugnados (cfr. artigo 574.º do Código de Processo Civil);
10 - Como a própria Sentença recorrida reconhece, um motor “recondicionado” não é um motor novo. Um motor “recondicionado” é um motor reconstituído com peças em segunda mão, sendo que o Tribunal e a Ré, ora Recorrente, desconhecem qual o uso e número de quilómetros dessas peças – no fundo, qual a sua vida útil restante;
11 - Ao decidir como decidiu – desrespeitando as regras do ónus da prova e considerando que o objecto contratual consistia na substituição do motor avariado por um motor “recondicionado” – violou a Douta Sentença recorrida o disposto nos 342º, 344º, 406º e 799º do Código Civil e nos artigos 5º e 574º do Código de Processo Civil;
12 - A segunda divergência da Ré, ora Recorrente, com a Douta Sentença recorrida respeita também às regras do ónus da prova quanto à devolução do motor avariado – e não “velho” como repetidamente se afirma na sentença;
13 - A Douta Sentença proferida, ao considerar que não se provou que estava acordado entre as partes a devolução do motor velho/avariado (…), pelo que não se vê onde esteja o incumprimento por parte da autora”, violou as regras do ónus da prova;
14 - Com efeito, está provado que a Ré é proprietária do veículo com a matrícula 91- GJ-56 e como tal tem direito de propriedade sobre o motor avariado enquanto sua parte integrante não consumível – artigos 208º e 210º do Código Civil – e goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição do motor avariado e não pode ser privada, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade senão nos casos fixados na lei (cfr. artigos 1305º e 1308º do Código Civil);
15 - Para se desonerar da obrigação de devolver o motor avariado, cabia à Autora – não à Ré – alegar e provar que existiu um acordo translativo do direito de propriedade sobre o motor avariado. A Autora não provou tal acordo (cfr. alíneas b), c) e d) dos factos não provados);
16 - A não devolução do motor não resulta dos usos nem de nenhuma obrigação legal;
17 - Ao decidir como decidiu – e ao considerar que cabia à Autora o ónus de provar a convenção pela qual havia sido convencionada a devolução do motor – violou a Douta Sentença recorrida o disposto nos artigos 3º, 208º, 210º, 342º, 1305º e 1308º do Código Civil e a alínea ee) do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro;
18 - A terceira divergência da Ré, ora Recorrente, com a Douta Sentença recorrida respeita ao incumprimento contratual por parte da Autora. Afirma a Douta Sentença recorrida que “resulta, muito claramente, que a autora cumpriu com a obrigação a que estava adstrita por via do contrato celebrado com a ré”;
19 - No entanto:
a) A Autora comprometeu-se a substituir o motor avariado por um motor novo, incluindo todas as peças acessórias e mão-de-obra necessária – cfr. números 5 e 21 da matéria provada – mas ao invés substituiu-o por um motor “recondicionado” - cfr. número 26 dos Factos Provados;
b) A Autora devia devolver o motor avariado pois não havia sido convencionada qualquer retoma nem qualquer valoração do motor avariado – cfr. número 22 da matéria provada e os factos não provados indicados nas alíneas b), c) e d) – e, ao invés, enviou-o para o fabricante Daimler AG – cfr. números 29 e 32 dos Factos Provados;
c) A Autora comprometeu-se a elaborar um relatório técnico detalhado sobre as causas e consequências da avaria do motor – cfr. número 23 da matéria provada – e não o elaborou – cfr. número 29 dos Factos Provados;
d) A Autora sabia da importância e da essencialidade da devolução do motor e do relatório técnico, pois lhe foi desde o início comunicado que a Ré, ora Recorrente, pretendia responsabilizar civilmente o fabricante pelo que considerava ser um defeito de fabrico – cfr. e-mail de fls. 62 e carta em anexo;
20 - As lesões dos direitos da Recorrente são graves e sérias e não foram objecto de qualquer ponderação pelo Tribunal a quo que das mesmas teve conhecimento e deu conta em sede de Sentença Recorrida, não obstante não lhes atribuir qualquer efeito;
21 - Ao decidir como decidiu, violou a Douta Sentença recorrida o disposto nos artigos 406º, 762º, 802º n.º 2 e 1208º do Código Civil;
22 - A quarta divergência da Ré, ora Recorrente, com a Douta Sentença recorrida respeita à excepção de não cumprimento. Não tendo o Tribunal a quo considerado existir incumprimento ou cumprimento defeituoso das prestações a que a Autora se obrigou, naturalmente que considerou também improcedente a excepção de não cumprimento;
23 - Verificou-se recusa de cumprimento da entrega do motor avariado e do relatório técnico – o que equivale ao incumprimento – e cumprimento grosseiramente deficiente da obrigação de substituição do motor avariado;
24 - Ficou demonstrado também que o pagamento deveria ocorrer contra o levantamento da viatura reparada e cumprimento das demais obrigações acessórias, mas de grande importância no interesse da Ré (cfr. nº 34 dos Factos Provados);
25 - Ao decidir como decidiu, violou a Douta Sentença recorrida o disposto nos artigos 428º e 802º n.º 2 do Código Civil.
Nestes termos e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, consequentemente, ser julgada validamente invocada pela Recorrente a excepção de não cumprimento do contrato e, consequentemente, ser esta absolvida do pedido.»
3. A Autora apresentou contra-alegações ao recurso da Ré, pugnando pela sua improcedência e, a título subsidiário(“prevenindo a hipótese de procedência das questões suscitadas pela Recorrente, maximeno tocante ao incumprimento contratual imputado à Recorrida, consubstanciado na falta de devolução do motor velho”), requereu a ampliação do seu âmbito, nos termos das seguintes CONCLUSÕES:
«QUANTO À AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
33. Subsidiariamente e por mera cautela, à luz do disposto no art. 636.º, n.º 2, do CPC, a Recorrida propugna que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento impunha que determinados pontos da matéria de facto que foram dados como não provados, tivessem, ao invés, sido dados como provados.
34. Desde logo, no que concerne ao facto alegado pela Recorrida na sua petição inicial, de que o desconto do fabricante de 75% no preço de um novo motor ficava sujeito à condição de lhe ser devolvido o motor danificado do veículo, facilmente se alcança a existência de grave vício na apreciação da prova e no julgamento desse facto, que o Tribunal a quo deu como não provado [cfr. al. b) dos factos não provados].
35. Na verdade, face aos depoimentos das testemunhas CC, DD, EE, FF e GG, não contraditados ou revertidos pelos depoimentos das demais testemunhas, não poderia nunca deixar de ser dado como provado que o desconto do fabricante de 75%, referido no ponto 5) da matéria assente, ficava sujeito à condição de lhe ser devolvido o motor danificado do veículo.
36. De facto, cotejando os depoimentos das referenciadas testemunhas, constata-se que todas elas foram perentórias em afirmar que, estando em causa um motor novo “recondicionado”, a comparticipação do fabricante estava necessariamente sujeita à condição de lhe ser devolvido o motor velho do veículo xx-xx-xx, sob pena de, não se verificando essa devolução, a comparticipação ser anulada, caso em que a Recorrente ficaria obrigada a pagar a totalidade do custo do motor.
37. Por outro lado, face à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e aos documentos juntos aos autos, entende a Recorrida que o Tribunal a quo devia ter dado como provado que o valor definido pelo fabricante para o motor danificado ascendia ao montante de € 6.500,00 + IVA e que seria deduzida no custo da reparação a quantia de € 1.625,00 + IVA, correspondente à proporção da comparticipação da Ré no custo do motor novo [cfr. alínea c) dos factos não provados].
38. Com efeito, as testemunhas CC e FF afirmaram que o valor definido pelo fabricante para o motor danificado ascendeu a uma quantia que rondava os seis mil euros, e, bem assim, que esse motor era valorizado pela fábrica na mesma proporção da comparticipação do motor novo, sendo a respetiva diferença, isto é, € 1.625,00 + IVA, refletida na fatura final, como sucedeu, efetivamente no caso dos autos.
39. Ora, face aos depoimentos testemunhais supra transcritos, percebe-se claramente que o valor que viria a ser descontado na fatura final, no montante de € 1.625,00 + IVA [cfr. os pontos 7., 8. e 9. da matéria de factos provada] corresponde à proporção da comparticipação da Ré no custo do novo motor, isto é, 25%, e que o valor definido pelo fabricante para o motor danificado ascendeu ao montante de € 6.500,00 + IVA.
40. Na verdade, é isso que decorre muito claramente da fatura pro forma, datada de 14/07/2014, junta com a petição inicial sob o doc. n.º 1, bem como da fatura junta com o mesmo articulado sob o doc. n.º 2, dos quais resulta que o valor definido para o motor velho (com o n.º de peça MX00980228/70) ascendeu ao montante de € 6.500,00 + IVA, tendo sido deduzida no custo da reparação a quantia de € 1.625,00 + IVA, correspondente à mesma proporção da comparticipação da Recorrente no custo do motor novo, ou seja, 25%.
41. Por último, entende a Recorrida que, face à prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, o Tribunal a quo nunca podia ter dado como não provado que a Ré/Recorrente tivesse sido devidamente esclarecida acerca das condições de reparação que lhe foram propostas, designadamente de que a comparticipação assumida pelo fabricante no custo de aquisição do motor novo pressupunha a retoma do motor danificado.
42. Assim, a testemunha CC asseverou que: i) foi ele quem transmitiu à Recorrente os termos e condições da reparação do veículo xx-xx-xx, tendo-lhe esclarecido que o motor constante do orçamento era um motor novo “recondicionado”; ii) comunicou à Recorrente, logo no início das negociações, que o motor velho teria de ser devolvido ao fabricante por força da comparticipação no custo de novo motor, condição essa que a Recorrente aceitou; iii) a Recorrente acompanhou de perto a reparação, sendo do seu perfeito conhecimento que o motor velho seria devolvido ao fabricante, conhecimento esse que resultava igualmente da experiência que a Recorrente tinha no mercado de reparações automóveis.
43. Por todas estas razões se impõe a conclusão de que que a matéria de facto alegada pela Recorrida nos arts. 9.º, 10.º e 13.º da sua petição inicial, que o Tribunal a quo deu como não provada sob as alíneas b), c) e d) dos factos não provados, devia ter sido julgada como provada, com as necessárias consequências daí decorrentes no que concerne à aplicação do direito aos factos.
44. Nesta conformidade, ainda que viessem a proceder as questões suscitadas pela Recorrente nas suas alegações de recurso – o que não se concede nem se aceita – a verdade é que, uma vez alterada a decisão relativa aos concretos pontos da matéria de facto que a Recorrida considera terem sido mal julgados, sempre o recurso a que ora se responde teria de ser julgado totalmente improcedente, porquanto a Recorrida não incumpriu o contrato que celebrou com a Recorrente, sendo antes imputável a esta o incumprimento de tal contrato.
TERMOS EM QUE, negando provimento ao presente recurso ou, subsidiariamente, reconhecendo, em via de ampliação do âmbito do recurso, o incorreto julgamento da matéria de facto, com todas as consequências daí decorrentes, designadamente o reconhecimento da não verificação de qualquer incumprimento contratual imputável à Recorrida, farão Vs. Exas. a costumada JUSTIÇA!».
4. Para além disso, a Autora ainda interpôs recurso subordinado e CONCLUIU:
«1 - Sem embargo do muito mérito da recorrida sentença e ainda que com as constrições inerentes à vinculação subordinada deste recurso, a Recorrente “AA – Comércio de Automóveis, S.A.” não pode conformar-se com tal decisão, na parte em que fundamenta de direito a improcedência do pedido de condenação da Recorrida “BB” pelos custos de parqueamento do veículo xx-xx-xx nas instalações da Recorrente;
2 - Desde logo, entende a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em manifesto erro de julgamento, porquanto considerou que, não tendo sido celebrado qualquer contrato entre as partes, a responsabilidade da Recorrida pelos custos de parqueamento teria de ser analisada à luz do regime jurídico da responsabilidade civil extracontratual (arts. 483.º e ss do CC);
3 - Com efeito, tendo sido estabelecida entre as partes uma relação contratual de empreitada e tendo a Ré/Recorrida incumprido a obrigação que sobre ela impendia de proceder ao levantamento do veículo reparado logo que foi interpelada para o efeito, afigura-se evidente que a responsabilidade civil da Recorrida reveste natureza contratual e não extracontratual;
4 - Na verdade, ao não ter procedido ao levantamento do seu veículo logo que foi interpelada para o efeito, a Recorrida passou a incorrer na obrigação de indemnizar a Recorrente pelos custos ou prejuízos resultantes da permanência do veículo nas suas instalações, à luz do disposto nos arts. 799.º e ss do CC;
5 - Nem se diga, a este propósito, que a Recorrida nunca seria responsável pelo pagamento à Recorrente de qualquer quantia pela imobilização do veículo xx-xx-xx no interior das suas instalações, já que se teria disposto a proceder ao seu levantamento, tendo a Recorrente recusado essa entrega;
6 - É que, tal como decorre da matéria de facto provada, a Recorrida recusou-se a proceder ao levantamento do veículo enquanto não lhe fosse entregue o motor velho, que havia sido substituído, sendo que semelhante conduta, além de violar de forma flagrante e ostensiva o conteúdo das convenções negociais estabelecidas entre as partes, nunca seria fundamento bastante para justificar a invocação da exceção de não cumprimento do contrato;
7 - Por outro lado, não é razoável defender ou sustentar que a Recorrente tivesse o encargo de guardar o referido veículo e/ou de se responsabilizar pela sua conservação, manutenção e integridade, sem que daí decorresse a obrigação de pagamento dos respetivos custos e encargos;
8 - De resto, não tendo a Recorrida procedido ao levantamento do seu veículo automóvel, mesmo depois de ter sido interpelada para o efeito e de ter pleno conhecimento do valor diário devido pelo parqueamento de veículos automóveis nas instalações da Recorrente, sempre se teria de concluir que a Recorrida aceitou assumir o contrato subjacente a esse parqueamento e a correspondente remuneração ou, no mínimo, os custos e danos sofridos pela Recorrente com a imobilização do veículo xx-xx-xx no interior das suas instalações;
9 - Aliás, tendo resultado provado que a Recorrente exerce, de forma regular, fim lucrativo e por conta própria, a atividade comercial de compra e venda e de reparação de veículos automóveis, necessário se torna reconhecer que o estacionamento de veículos automóveis no interior das instalações da sua oficina reveste natureza onerosa;
10 - Mas ainda que assim não se entendesse – o que igualmente não se concede nem se aceita – nada poderia justificar o comportamento e a atuação culposa da Recorrida, que deixou deliberadamente o seu veículo automóvel aparcado no interior das instalações da Recorrente desde o dia 08 de julho de 2014 (data da conclusão da reparação), onerando-a e obrigando-a a assumir a responsabilidade pela guarda e conservação desse bem, parqueado nas suas instalações, em cumprimento de um dever acessório de conduta, nem por isso gratuito;
11 - Em face do exposto, forçoso se torna reconhecer que o Tribunal a quo incorreu num claro erro de interpretação e de aplicação do Direito aos factos, porquanto propendeu por aplicar ao caso subiudice o regime da responsabilidade civil extracontratual (arts. 483.º e 487.º do CC), quando, ao invés, devia ter aplicado o regime jurídico do contrato de depósito ou o regime jurídico da responsabilidade civil contratual, constantes, entre outros, dos arts. 799º, 1154º, 1185º e 1207º do CC;
12 - Por outro lado, entende a Recorrente que o tribunal a quo incorreu em errada apreciação dos factos assentes no que concerne à demonstração e quantificação dos prejuízos efetivamente sofridos com a imobilização do veículo xx-xx-xx no interior das suas instalações;
13 - Com efeito, resulta da matéria de facto assente que a Recorrente alegou e provou que sofreu danos patrimoniais em virtude da imobilização forçada do veículo xx-xx-xx nas suas instalações desde o dia 04 de agosto de 2014 (cfr. os pontos 11, 12, 13, 14 e 15 da matéria provada);
14 - Por outro lado, resultou igualmente provado que o custo diário de parqueamento de veículos automóveis nas instalações da Recorrente ascende à importância de €12,50 + IVA, ou seja, €15,38, e, bem assim, que o veículo automóvel com a matrícula xx-xx-xx deu entrada nas instalações da Recorrente no dia 03 de junho de 2014, tendo a sua reparação sido dada como concluída no dia 08 de julho de 2014 [cfr. os pontos 2. e 10. da matéria de facto provada];
15 - Refira-se por último, a respeito do custo de parqueamento, que a matéria assente permite demonstrar que a remuneração ou o custo diário da imobilização do veículo da Recorrida nas instalações da Recorrente ascendeu ao montante de €15,38;
16 - Seja como for, ainda que o Tribunal a quo tivesse concluído, como concluiu, pela responsabilidade da Recorrida, mas entendido que do processo não resultavam elementos suficientes para quantificar os prejuízos sofridos pela Recorrente, sempre teria de condenar a Recorrida no pagamento da quantia que viesse a ser liquidada em execução de sentença, por aplicação do regime jurídico constante dos arts. 609º, n.º 2, do CPC, e 569º do CC;
17 - Por conseguinte, o reconhecimento de tal factualidade, que foi dada como provada, implica concluir que que a Recorrida sempre teria de ser condenada a pagar à Recorrente os custos decorrentes da imobilização do veículo reparado no interior das suas instalações, seja a título de remuneração pelo depósito desse veículo, à luz dos arts. 1158º, 1186º, 1199º e 1200º do CC, seja a título de responsabilidade contratual por incumprimento imputável à Recorrida (arts. 798º e 799º do CC);
18 - Assim sendo, haverá que reconhecer que o julgador incorreu em erro na determinação da norma aplicável, porquanto, em vez de aplicar o disposto nos arts. 342º e 487º do CC, quanto à responsabilidade civil extracontratual, devia antes ter aplicado os arts. 1158º, 1186º, 1199º e 1200º do CC, quanto ao regime jurídico do contrato de depósito ou, no mínimo, os arts. 798º e 799º do CC quanto à responsabilidade civil contratual, razão pela qual a douta sentença em crise sempre deveria, nessa parte, ser objeto de alteração no sentido acima propugnado;
19 - Em todo o caso, dando por assente que a Recorrida incorreu em responsabilidade civil, mas concluindo o Tribunal a quo pela inexistência no processo de elementos factuais bastantes para se concretizar o valor dos danos sofridos, sempre teria o Julgador de aplicar o disposto nos arts. 609º, n.º 2, do CPC e 569º do CC, relegando-se para o competente incidente de liquidação o apuramento dos custos e prejuízos efetivamente sofridos pela Recorrente.
Termos em que, alterando a decisão de direito relativamente às questões supra enunciadas, por forma a que a Recorrida seja igualmente condenada a pagar à Recorrente os custos de parqueamento do veículo xx-xx-xx nas suas instalações, farão V. Ex.as a costumada Justiça.»
5. A Ré respondeu ao recurso subordinado e à matéria da ampliação suscitadas pela Autora, sustentando a sua improcedência.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
6. OS FACTOS
Foram os seguintes os factos considerados em 1ª instância:
«Factos provados:
1 - A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à compra e venda e reparação de veículos automóveis;
2 - Em 03.06.2014 a ré entregou nas instalações da autora em Lisboa um seu veículo pesado da marca Mercedes-Benz, modelo Actros, com a matrícula xx-xx-xx, a fim de ser reparado;
3 - A autora após inspeção do veículo concluiu pela necessidade de substituição do motor por a sua reparação ser inviável;
4 - O veículo tinha percorrido à data da reparação 539.042Kms;
5 - A autora propôs à ré, que aceitou, a reparação do veículo nas condições seguintes: comparticipação pelo fabricante em 75% do preço de um motor novo sendo os restantes 25% suportados pela ré e desconto de 25%, concedidos pela autora, sobre o valor da mão-de-obra respeitante aos trabalhos de reparação do veículo;
6 - A Autora procedeu à prestação dos serviços de reparação automóvel e à venda dos materiais e artigos discriminados nas faturas pró-forma, datadas de 14.07.2014 e 09.07.2014;
7 - Na fatura emitida de 14.07.2014 o valor da reparação ascende a €6.027,26 (IVA incluído);
8 - Na fatura emitida de 09.07.2014 o valor da reparação ascende a €8.359,60 (IVA incluído);
9 - A fatura referida em 8) foi retificada pela autora com fundamento de não refletir a dedução de €1.625,00 + IVA, correspondente a 25% do valor do motor devolvido;
10 - Em 08.07.2014 a ré foi notificada para proceder ao levantamento da viatura reparada;
11 - A ré mantém a viatura nas instalações da autora apesar de notificada (através de carta registada com aviso de receção datada de 28 de Julho de 2014) de que a mesma estava a ocupar espaço útil e a criar embaraço ao desenvolvimento regular da atividade comercial ali desenvolvida;
12 - Na carta referida em 11) a autora advertiu a ré que partir do dia 04.08.2014, caso não procedesse ao levantamento do veículo, passaria a cobra-lhe o custo de parqueamento no valor de €15,38, com IVA;
13 - A autora tem afixado em diversos locais das suas instalações avisos contendo os valores devidos pelo parqueamento das viaturas por tempo que exceda o necessário à sua reparação;
14 - O veículo da ré está estacionado no interior das instalações da autora que suporta os respetivos encargos;
15 - A autora está contratualmente obrigada com a Mercedes-Benz a preservar e a manter livre nas suas instalações uma quota de lugares de estacionamento;
16 - A ré comunicou à autora que só levantava a viatura se lhe fosse entregue o motor danificado, que havia sido substituído;
17 - (Oposição) A ré é uma empresa de Transporte Rodoviário de Mercadorias, possuindo licença comunitária para o exercício da atividade de Transportes Rodoviários de Mercadorias;
18 - A ré é proprietária e gere uma frota de 60 veículos pesados, entre eles 4 com a mesma marca, modelo e série de fabrico do veículo identificado com as matrículas yy-yy-yy, zz-zz-zz e ww-ww-ww;
19 - Os danos no motor foram provocados por um impacto após a rotura da biela do segundo cilindro;
20 - No mesmo dia 20 de Junho de 2014 a autora enviou, via e-mail, um orçamento com o nº 539, dando uma estimativa do custo da reparação;
21 - O valor global do orçamento referido em 20) com todas as peças e mão-de-obra necessária à reparação ascendia a €7.506,41 (IVA incluído), e compreendia: valor da reparação €6.102,77 (mais IVA no montante de €1.403,6); um motor novo pelo preço de €4.901,28, com um desconto de 75%; um desconto da autora de 25% na mão-de-obra;
22 - Nem no relatório técnico, nem no orçamento, nem no email que o acompanhava, constava qualquer condição de retoma ou obrigação de devolução do motor avariado ao fabricante;
23 - A Autora manteve os termos do orçamento apresentado, pelo que no dia 26 de Junho a ré enviou um email à autora com o seguinte teor: Conforme teor da nossa carta anterior, a BB não tem interesse em prolongar a paralisação do veículo já que isso constituiu um prejuízo para a nossa empresa. Assim, desde já solicitamos que se proceda à reparação do mesmo com base no orçamento apresentado, desde que a AA assuma o compromisso de elaborar um relatório técnico detalhado sobre as causas e consequências da avaria do motor;
24 - Em 10 de Julho de 2014 a autora voltou a enviar uma nova fatura pró-forma, retificada no valor de 8.045,38€ IVA incluído;
25 - Em 14 de Julho de 2014, às 9.39h e depois às 10.02h, a autora enviou à ré por email uma alegada retificação da fatura em que referia, “novo envio da fatura proforma retificada Motivo: alteração de procedimentos a nível de faturação de peças recondicionadas, por parte da Mercedes-Benz, o que significa na fatura proforma, uma redução de 1625€”;
26 - A reparação do veículo à ré foi efetuada com um motor “recondicionado”;
27 - A ré informou a autora que suspeitava de que a avaria se devia a defeito de fabrico, que pretendia responsabilizar a Mercedes Benz pelos prejuízos sofridos e que esperava da autora a elaboração de um relatório técnico detalhado sobre as causas e consequências da avaria do motor;
28 - Em 18/07/2014 um representante da ré deslocou-se às instalações da autora para proceder ao pagamento do valor da fatura pró-forma recebida em 10/06/2014 no valor de €8.045,38 e proceder ao levantamento do veículo, do motor avariado e do relatório técnico detalhado sobre as causas e consequências da avaria do motor;
29 - A Autora não tinha à disposição da ré nem o motor avariado nem o relatório técnico detalhado sobre as causas e consequências da avaria do motor;
30 - A Ré enviou à autora, no próprio dia 18 de Julho um email pelo qual a interpelava para entregar o veículo e o motor avariado contra o pagamento da quantia de €8.045,38, sob pena de a responsabilizar pelos prejuízos sofridos e a sofrer, nomeadamente com a paralisação do veículo;
31 - Em 25/07/2014 e na ausência de qualquer resposta, a ré voltou a interpelar a autora para a entrega do veículo contra o pagamento da quantia acordada;
32 - Por carta de 28 de Julho de 2014, a autora comunicou à ré que: “no seguimento da informação já transmitida, reiteramos que o motor substituído foi já enviado para o fabricante Daimler AG, no seguimento dos procedimentos instituídos pela nossa Representada e que vos foram amplamente explicados, pelo que nos é absolutamente impossível ir de encontro às vossas pretensões”;
33 - Em 6/08/2014 o gerente da Ré, Sr. HH deslocou-se às instalações da A. acompanhado dos Srs. II e JJ para levantamento da viatura;
34 - A Autora recusou-se a receber o pagamento de €8.045,38 e impediu a ré de levantar o veículo;
35 - Por email de 12 de Agosto a ré interpelou a autora da responsabilidade pelos prejuízos que estava e continuaria a sofrer.
Factos não provados
a) A ré na sequência do facto referido em 3) e em face do valor estimado para a reparação pela autora lhe tivesse solicitado um desconto comercial tendo em vista a minimização do custo dessa reparação;
b) O desconto do fabricante de 75% referido em 5) ficasse sujeito à condição de lhe ser devolvido o motor danificado do veículo;
c) O valor definido pelo fabricante para o motor danificado ascendesse ao montante de €6.500,00 + IVA, seria deduzida no custo de reparação a quantia de €1.625,00 + IVA, corresponde à proporção da comparticipação da Ré no custo do motor novo;
d) A ré tivesse sido devidamente esclarecida acerca dessas condições, maxime de que a comparticipação assumida pelo fabricante no custo de aquisição do motor novo pressupunha a retoma do motor danificado, bem como da respetiva estimativa de reparação;
e) Os danos referidos em 19) tenham sido causados por um defeito de fabrico;
f) A utilização média do modelo de veículo em causa seja de 2.500.000 km, sem qualquer manutenção especial que implique a abertura do motor e substituição de peças internas;
g) O veículo da Ré estivesse em 20% da sua vida útil normal à data da reparação;
h) A retoma e obrigação de devolução do motor avariado ao fabricante não tenham sido tema de conversa entre a autora e a ré.
7. O MÉRITO DOS RECURSOS
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 639º nº 1, 635º nº 3 e 4, art. 608º nº 2, ex vi do art. 663º nº 2, do Código de Processo Civil (CPC).
RECURSO DA RÉ
QUESTÕES A DECIDIR:
· Violação das regras de direito probatório material
· Erro de julgamento na subsunção dos factos ao direito
7.1. DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL
São duas as regras básicas em termos de direito probatório material: ao Autor compete a prova dos factos constitutivos do seu direito e ao Réu a dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do Autor: art. 342º nº 1 e 2 do Código Civil (CC).
Daqui se infere a umbilical relação entre as regras do ónus de alegação/prova e a relação jurídica em litígio, pois só através desta se saberá quais os seus factos constitutivos ou impeditivos/modificativos/extintivos que competem a uns e a outros.
Porém, se os ónus de prova competem à demonstração dos factos, só tem sentido invocar-se a violação das regras probatórias de direito material quando se pretende a alteração de qualquer ponto da matéria de facto.
Num sistema processual como o nosso, assente no princípio do dispositivo, mas temperado pelo princípio do inquisitório, «o ónus da prova, em vez de revestir um sentido marcadamente subjectivo, como ocorre nos sistemas assentes sobre o princípio dispositivo, passa a ter, nos regimes temperados pelo princípio inquisitório, uma feição acentuadamente objectiva, que só por via reflexa atinge a actividade (probatória) das partes.
O que releva, no julgamento da prova, já não é tanto a actuação subjectiva da parte quanto a situação objectiva, o non liquet do facto, resultante da instrução da causa.» [NOTAS DA SENTENÇA
[] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, 1985, Coimbra Editora, pág. 450/451.]
Como se verifica das conclusões de recurso, a ré não tem qualquer pretensão quanto à modificação da matéria de facto considerada pelo Tribunal.
A invocação da violação das regras de direito probatório material é feita pela Ré para demonstrar o seu entendimento de que o Tribunal lavrou em erro no tocante à fundamentação de direito, considerando que face aos factos provados se impunha a sua absolvição.
Situamo-nos então no erro de julgamento na subsunção dos factos ao direito, o que incumbe passar a analisar.
7.2. SUBSUNÇÃO DOS FACTOS AO DIREITO
O presente litígio insere-se no âmbito da responsabilidade contratual.
Neste domínio, e desde que não desrespeitem leis imperativas, é permitida às partes a livre fixação do conteúdo dos contratos (designadamente, pela junção de regras de um ou mais negócios previstos na lei), os quais, uma vez firmados, devem ser pontualmente cumpridos: art. 405º e 406º nº 1 do CC.
Os decorrentes litígios podem derivar do dever de prestar (quando se pretende o cumprimento de uma obrigação assumida) ou do dever de indemnizar (situação em que, perante um incumprimento definitivo da obrigação, se almeja a indemnização correspondente ao inadimplemento).
Nessa medida, conforme se esteja perante uma ação de cumprimentoou perante uma ação de indemnização, serão diversas a causa de pedir e o pedido: naquela, há apenas que demonstrar a estipulação da obrigação/prestação e o seu incumprimento, pedindo-se a condenação no seu cumprimento; nesta, há que demonstrar os diversos pressupostos da obrigação de indemnizar: (i) ação ou omissão ilícita; (ii) existência de um dano ou prejuízo; (iii) nexo de causalidade entre o comportamento ilícito e o dano e (iv) culpa do agente: art. 798º ss e 562º ss do CC. [[] Como refere Calvão da Silva, “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, 4ª edição, Almedina, pág. 137/138, a ação de cumprimento integra uma ação declarativa de condenação mediante a qual «(...) o credor pretende provar a existência e a falta de cumprimento da obrigação e obter sentença condenatória do devedor que lhe ordene o exacto cumprimento da prestação por si devida.».
No mesmo sentido, Nuno Manuel Pinto de Oliveira, “Princípios de Direito dos Contratos”, Coimbra Editora, 2011, pág. 594: «A acção de cumprimento e a acção de indemnização dos danos causados pelo não cumprimento do contrato devem representar-se como acções autónomas — a acção de cumprimento não depende da ilicitude do facto, ou da culpa do autor do facto, ou do dano ou do nexo de causalidade entre o facto e o dano ou prejuízo; a acção de indemnização, sim — depende da ilicitude, da culpa e do dano ou prejuízo.».]
No caso, estamos perante uma ação de cumprimento, já que a Autora, alegando ter cumprido as suas obrigações, apenas pretende compelir a Ré à contraprestação de pagamento do preço.
Não existe divergência entre as partes que o contrato entre ambas estabelecido merece a qualificação de empreitada e, portanto, subsumível ao regime dos arts. 1207º e seguintes do CC.
Como obrigação do empreiteiro, temos que ele “deve executar a obra em conformidade com o que foi convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato”: art. 1208º CC.
Para além das regras específicas desse tipo contratual, a empreitada está ainda sujeita às regras gerais dos contratos (art. 405º CC), designadamente no tocante à responsabilidade contratual (art. 762º ss CC).
A obrigação de qualquer das partes só se tem por cumprida se (e quando) a prestação a que se vinculou se mostrar integralmente realizada, no tempo e lugar próprios (art. 762º nº 1 e 763º nº 1 CC).
Entende a Ré que eram obrigações da Autora: (i) substituir o motor avariado por um motor novo; (ii) devolver o motor avariado, pois não havia sido convencionada qualquer retoma nem qualquer valoração do motor avariado; (iii) elaborar um relatório técnico detalhado sobre as causas e consequências da avaria do motor.
Vejamos o que dos factos resulta
As obrigações de substituir o motor avariado por um motor novo e de elaboração e entrega de um relatório técnico resultam claramente da conjugação dos factos provados nº 2, 3, 5, 21 e 23: a Autora após inspeção do veículo concluiu pela necessidade de substituição do motor por a sua reparação ser inviável; propôs à ré, que aceitou, a reparação do veículo nas condições seguintes: comparticipação pelo fabricante em 75% do preço de um motor novo (…); o valor global do orçamento (…) compreendia: (…); um motor novo (…); no dia 26 de Junho a Ré enviou um email à Autora com o seguinte teor: (…) Assim, desde já solicitamos que se proceda à reparação do mesmo com base no orçamento apresentado, desde que a AA assuma o compromisso de elaborar um relatório técnico detalhado sobre as causas e consequências da avaria do motor.
Como forma de prevenir a arbitrariedade na interpretação das declarações negociais, esta tem de se pautar por critérios essencialmente objetivos, estabelecendo-se regras para o efeito; procura-se, não a vontade “interior” do sujeito, mas o sentido juridicamente relevante da declaração, o significado normal e corrente do comportamento.
E, naturalmente, que deverão ser atendidas todas as circunstâncias que rodearam a negociação e conclusão do negócio e que «(…) podem ser da mais diversa ordem: os termos do negócio; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; as precedentes relações negociais entre as partes; os hábitos do declarante (de linguagem ou outras); os usos da prática, em matéria terminológica, ou de outra natureza que possa interessar, devendo prevalecer sobre os usos gerais os especiais (próprios de certos meios ou profissões), etc.». [[] Manuel de Andrade, “Teoria Geral da Relação Jurídica”, vol. II, Coimbra, 1983, pág. 313, nota (1).]
Em sede de interpretação das declarações negociais, vigora entre nós a teoria da impressão do destinatário [[] Na definição de Manuel de Andrade, obra citada, pág. 309: «Trata-se daquele sentido com que a declaração seria interpretada por um declaratário razoável, colocado na posição concreta do declaratário efectivo. Toma-se, portanto, este declaratário, nas condições reais em que ele se encontrava, e finge-se depois ser ele uma pessoa razoável, isto é, medianamente instruída, diligente e sagaz, quer no tocante à pesquisa das circunstâncias atendíveis, quer relativamente ao critério a utilizar na apreciação dessas circunstâncias.».], ínsita no art. 236º nº 1 do CC, “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.
E, na medida em que se trata de uma declaração corporizada num escrito, “não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”: art. 238º nº 1 do CC.
Para além da não entrega do relatório técnico, a Ré colocou um motor “recondicionado” em vez de um novo.
Um motor novo não é sinónimo de motor recondicionado, como bem ficou expresso nas declarações das diversas testemunhas, designadamente de Manuel Lopes (testemunha da arrolada pela Autora), FF (diretor geral da Autora) e JJ (chefe de oficina da Mercedes em Angola).
Não podemos aceitar a tese da sentença recorrida de que “este motor recondicionado serve o objeto imediato do contrato – a reparação do motor velho”.
Desde logo, porque o objeto da empreitada foi a substituição dum motor e não a reparação de um motor.
São realidades distintas; a “reparação de um motor velho” pressupõe que se trabalha sobre esse mesmo motor, consertando ou substituindo apenas as peças avariadas ou obsoletas; a substituição dum motor implica um outro motor (melhor ou pior, novo ou “em segunda mão”, mas um outro motor).
Atente-se que foi a própria Autora (técnica habilitada por força dos seus conhecimentos profissionais) que, após inspeção da avaria, “concluiu pela necessidade de substituição do motor por a sua reparação ser inviável” (facto provado nº 3).
Depois, pela correspetividade das prestações de ambas as partes.
Se é certo que as prestações não necessitam de ter igual valor objetivo, já subjetivamente elas terão de estar unidas por um vínculo de reciprocidade e interdependência: cada uma das partes sente-se compensado pela contraprestação/contrapartida da outra.
Ora, no seu orçamento a Autora aludiu a um motor novo, pelo que foi certamente em função dum motor novo que estabeleceu o seu preço; foi esse orçamento que foi aceite pela Ré, pelo que o preço que se dispôs a pagar foi em função dum motor novo.
Concluindo, a Autora não cumpriu com a sua obrigação de substituir o motor avariado por um motor novo.
Quanto à obrigação de entrega do relatório técnico, resulta do conjunto dos factos provados que tal não correspondia a um capricho da Ré, antes sendo um elemento de toda a relevância.
Na verdade, a Ré dedica-se ao transporte rodoviário de mercadorias, gere uma frota de 60 veículos pesados, entre eles 4 com a mesma marca, modelo e série de fabrico do veículo aqui em causa, o qual ficou avariado com 539.042Kms, com danos no motor foram provocados por um impacto após a rotura da biela do segundo cilindro; a Mercedes dispôs-se a comparticipar em 75% do preço de um motor novo, tudo circunstâncias que levaram a Ré a suspeitar que a avaria se devia a defeito de fabrico.
Mais que legítima e fundamentada a necessidade de um relatório técnico, não só para posterior responsabilização da Mercedes, mas também para se acautelar relativamente aos outros 3 veículos pesados que tinha, da mesma marca, modelo e série de fabrico do veículo.
Já a obrigação de devolver o motor avariado não resulta tão clara.
Com pertinência para este facto, a Autora alegou que, tendo-lhe a Autora solicitado um desconto comercial, ela efetuou uma consulta técnica à Mercedes-Benz Portugal, para aquilatar da possibilidade de esta assumir, a título de cortesia comercial, uma comparticipação na substituição do motor por um novo, o que o fabricante viria a aceitar, comparticipando em 75% do preço de um motor novo, sujeitando, no entanto, o pagamento da totalidade dessa comparticipação à condição de lhe ser devolvido o motor danificado.
Mais alegou que a Ré foi esclarecida desta condição, posto o que lhe deu ordem de reparação do veículo automóvel.
Já a Ré, na sua contestação, negou frontalmente que tenha solicitado desconto comercial e que tenha sido esclarecida de que a comparticipação da Mercedes-Benz Portugal tenha ficado dependente da condição de lhe ser devolvido o motor danificado. Que nem no relatório técnico, nem no orçamento, nem no e-mail que o acompanhava, constava qualquer condição de retoma ou obrigação de devolução do motor avariado ao fabricante. Nem nunca a retoma obrigação de devolução do motor avariado ao fabricante foi sequer tema de conversa entre a Autora e a Ré.
Assim, a retenção do motor avariado para entrega à Mercedes foi suscitada pela Autora como uma das condições do negócio, a influenciar o preço da empreitada, pelo que à autora competia a demonstração desse facto, bem como de ter informado a Ré dessa condição.
Não logrou efetuar essa prova [cf. al. a), b) e d) dos factos não provados] pelo que, nada se tendo provado, temos que atender às regras gerais.
Atenta a definição dada pela al. t) do art. 2º do Decreto-Lei nº 193/2003, de 23.08 (na redação dada pelo Decreto-Lei nº 64/2008, de 08.04), o veículo aqui em causa não integra a noção de “veículo em fim de vida”, pelo que não haveria obrigatoriedade da sua entrega.
Assim, o motor avariado, ou qualquer das suas peças, ainda que obsoletas, faziam parte integrante do veículo, pelo que pertenciam à sua proprietária, tendo a Ré direito à sua entrega.
Mas mesmo que assim não fosse, essa constatação resulta dos demais factos provados, demonstrativos ainda de que a entrega do motor avariado um elemento de toda a importância para a Ré.
Na verdade, resulta do facto provado nº 27 que a Ré informou a Autora que suspeitava de que a avaria se devia a defeito de fabrico, que pretendia responsabilizar a Mercedes Benz pelos prejuízos sofridos e que esperava da Autora a elaboração de um relatório técnico detalhado sobre as causas e consequências da avaria do motor.
Ora, como é sabido, o acionamento de um fabricante com base em garantia ou defeito de fabrico implica que se tenha de apresentar a peça avariada.
Temos, portanto, que a Autora tinha obrigação de devolver o motor avariado, se não por estipulação contratual, pelo menos em resultado das regras gerais do direito de propriedade.
«Uma primeira observação que deve ser feita à redacção do art. 428º leva a afirmar que a excepção de não cumprimento não pressupõe exclusivamente uma correspectividade ligada ao cumprimento dos chamados deveres principais de prestação de um contrato bilateral, mas pode ter a ver, atipicamente, com uma correspectividade funcional, ou seja, com o incumprimento de todos os deveres (mesmo dos acessórios e dos laterais), funcionalmente pré-ordenados à obtenção de benefícios recíprocos.» [[] Brandão Proença, “Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações”, reimpressão, 2015, Coimbra Editora, pág. 146.]
Para a hipótese de se pretender que a devolução do motor avariado e a entrega do relatório técnico integravam apenas “um pormenor” (como nos parece ter-se considerado na sentença recorrida), cremos ter demonstrado que eram dois deveres de toda a relevância na economia do contrato.
O não cumprimento das obrigações da Autora acarreta a inexigibilidade da obrigação da Ré de pagar o preço, por força do art. 428º do CC.
Como decorre do art. 428º nº 1 do CC, num contrato bilateral em que não esteja convencionado prazos diferentes para a realização das prestações, corporiza a exceptio non adimpleticontractusa faculdade atribuída a cada um dos contraentes de recusar a prestação a que se acha vinculado, enquanto a contraparte não efetuar a que lhe compete ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.
Não se trata, pois, de uma pura e simples recusa de cumprimento, mas tão só de uma questão de exigibilidade da prestação no momento em que a contraparte a pretende exigir.
Nas palavras de Calvão da Silva, «(…) o excipiens não nega nem limita o direito do autor ao cumprimento; apenas recusa a sua prestação enquanto não for realizada ou oferecida simultaneamente a contraprestação, prevalecendo-se do princípio da simultaneidade do cumprimento das obrigações recíprocas que servem de causa uma à outra.
É, portanto, uma excepção material dilatória: o excipiens não nega o direito do autor ao cumprimento nem enjeita o dever de cumprir a prestação; pretende tão-só um efeito dilatório, o de realizar a sua prestação no momento (ulterior) em que receba a contraprestação a que tem direito e (contra)direito ao cumprimento simultâneo.» [[] João Calvão da Silva, obra citada, pág. 334.]
Acabamos de concluir ter existido incumprimento por parte da Autora.
É de admitir, porém, que a questão possa ser equacionada não como um incumprimento, mas como cumprimento defeituoso.
É que, pode dizer-se que a Autora alguma coisa realizou, pois que aplicou no veículo um motor “recondicionado”.
Nesta perspetiva, temos de concluir pelo cumprimento defeituoso da obrigação posto que, pese embora o veículo tenha ficado em condições de circular, um motor recondicionado não é um motor novo.
Um motor recondicionado é um motor que foi reparado e reconstruído e, como bem sublinha a Ré nas suas conclusões, não se sabe quais as peças que foram usadas nessa reconstrução, o que não oferece o mesmo grau de garantia.
Manifestamente que um motor recondicionado não tem o mesmo valor, não tem a “qualidade normal” nem a aptidão de durabilidade que um motor movo.
Porém, se no regime geral as consequências jurídicas dum cumprimento defeituoso são as mesmas dum puro incumprimento, já o mesmo não acontece do domínio da empreitada, que comporta especificidades.
«A exceptio non riteadimpleticontractus poderá unicamente ser exercida após o credor ter, não só denunciado os defeitos, como também exigido que os mesmos fossem eliminados, a prestação substituída ou realizada de novo, o preço reduzido, ou ainda o pagamento de uma indemnização por danos circa rem.» [[] Pedro Romano Martinez, “Cumprimento Defeituoso, Em Especial na compra e Venda e na Empreitada”, 2001, Almedina, pág. 294.]
De acordo com o art. 1218º nº 1 do CC, competia à Ré o dever de verificar a obra antes de a aceitar, posto o que, existindo defeitos, teria de os denunciar nos 30 dias seguintes ao seu conhecimento (art. 1220º nº 1 CC).
No caso, temos que a Autora notificou a Ré para proceder ao levantamento da viatura em 08.07.2014, data a partir da qual poderia a Ré aceitar a obra e/ou denunciar o dito cumprimento defeituoso.
Que a Ré o fez, resulta dos factos provados nº 28 e 29: em 18/07/2014 um representante da ré deslocou-se às instalações da Autora para proceder ao levantamento do veículo, do motor avariado e do relatório técnico detalhado sobre as causas e consequências da avaria do motor, prestando-se a pagar o valor de € 8.045,38; a Autora, porém, não tinha à disposição da Ré nem o motor avariado nem o relatório técnico detalhado sobre as causas e consequências da avaria do motor.
Depois, em 18 de Julho, a Ré enviou à Autora um email interpelando-a para entregar o veículo e o motor avariado contra o pagamento da quantia de €8.045,38; na ausência de resposta, em 25/07/2014, voltou a interpelar a autora para a entrega do veículo contra o pagamento da quantia acordada.
É, pois, de concluir que a Ré denunciou os defeitos
Consequentemente, não tendo a Autora procedido à eliminação dos defeitos, chegaríamos à mesma conclusão: a Ré pode escusar-se ao pagamento do preço, pois este só lhe é exigível depois da respetiva eliminação.
A apelação da Ré merece provimento.
AMPLIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
QUESTÃO A DECIDIR:
· Reapreciação da matéria de facto e, a proceder, qual a sua repercussão na decisão de direito
7.3. REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Com fundamento nos “documentos juntos aos autos” e no depoimento das testemunhas CC, DD, EE, FF e GG, entende a Autora que devem ser considerados como provados os seguintes factos:
b) O desconto do fabricante de 75% referido em 5) ficasse sujeito à condição de lhe ser devolvido o motor danificado do veículo;
c) O valor definido pelo fabricante para o motor danificado ascendesse ao montante de € 6.500,00 + IVA, seria deduzida no custo de reparação a quantia de € 1.625,00 + IVA, corresponde à proporção da comparticipação da Ré no custo do motor novo;
d) A ré tivesse sido devidamente esclarecida acerca dessas condições, maxime de que a comparticipação assumida pelo fabricante no custo de aquisição do motor novo pressupunha a retoma do motor danificado, bem como da respetiva estimativa de reparação;
Quanto a estes factos, a M. mª Juíza fundamentou a sua convicção com a “falta de prova positiva da sua verificação”.
Efetivamente, ouvidos os depoimentos de todas as pessoas inquiridas em audiência, temos de concluir no mesmo sentido.
Se é certo que Manuel Lopes afirmou que foi dito à Ré que o desconto do fabricante ficava sujeito à condição de lhe ser devolvido o motor danificado e que ela aceitou essa condição, não é menos verdade que tal foi categoricamente negado por II (filho do legal representante da Ré); acresce que essa condição não consta de qualquer dos vários documentos (orçamentos, faturas pró-forma, e-mails) trocados entre as partes, como bem resulta das declarações de FF (diretor geral da Autora) que, quando confrontado com o orçamento que foi aceite pela Ré, admitiu que nele nada consta quanto à retenção ou devolução do motor, nem o valor atribuído ao avariado.
Para além disso, e contrariamente ao referido pela testemunha da Autora (no sentido que a retenção do motor é condição necessária e obrigatória por parte da Mercedes para aceitar comparticipar no preço), o já referido JJ disse que tal não é verdade, a comparticipação no preço não implica sempre a entrega do motor velho, que se o cliente quer ficar com o motor avariado, só há que retirar da fatura o valor do desconto do avariado, o valor que a Mercedes estava disposta a dar por ele.
Resultou ainda clara a importância da devolução ou não na economia do contrato.
II referiu que atento o número de camiões da sua frota, têm oficinas próprias para as arranjos necessários; tinha todo o interesse em ficar com o motor avariado, pois poderia usar peças noutros consertos, daria 15 a 20 mil euros de consumíveis que podia aplicar noutros veículos.
Isto mesmo foi corroborado pelo depoimento de FF, falando das peças do motor (“aqui o BB queria, com 2 mil euros, aproveitar peças que valem mais de 8 ou 10 mil euros”) e por JJ, dizendo que empresas como a Ré, que têm oficina própria, todos retiram componentes dos motores.
Concluindo, mantêm-se tais factos como não provados.
Resultando improcedente a impugnação da matéria de facto, nada há que alterar à solução jurídica encontrada aquando da apreciação do recurso da Ré.
RECURSO SUBORDINADO DA AUTORA
QUESTÃO A DECIDIR:
· Erro de julgamento quanto aos custos de parqueamento
7.4. CUSTOS DO PARQUEAMENTO
Alegou a Autora que, findos os trabalhos de reparação da viatura, notificou a Ré para proceder ao seu levantamento e pagar o preço devido, o que a Ré não fez.
Em 28 de Julho de 2014 voltou a interpela-la para o efeito e, simultaneamente, advertiu-a que lhe passaria a ser cobrado o valor do custo de parqueamento nas suas instalações, à taxa de € 12,50/dia + IVA, ou seja, € 15,38), a partir do dia 04 de Agosto de 2014 caso a Ré não procedesse ao levantamento do veículo.
Esta pretensão da Autora foi julgada improcedente na sentença recorrida.
Aí se entendeu que, não tendo sido alegado qualquer contrato para esse efeito, “não estamos no campo de uma responsabilidade contratual, já que nenhum contrato de depósito se firmou entre a autora e a ré, antes, sim, no campo de uma mera responsabilidade civil”, em concreto, a responsabilidade por factos ilícitos, em que incumbiria à Autora a prova dos respetivos pressupostos; como a Autora não logrou provar a existência de danos ou prejuízos, improcedeu o pedido.
Relembrando o que atrás se disse, no que toca a esta pretensão da Autora já não nos situamos no dever de prestar/ação de cumprimento, mas antes perante um dever de indemnizar/ação de indemnização.
Com o instituto da responsabilidade civil trata-se de reparar os danos causados a outrem.
Por contraposição à responsabilidade criminal, a responsabilidade civil pode derivar da violação de um direito de crédito/incumprimento de uma obrigação (responsabilidade contratual) ou da violação de um direito alheio/disposição legal destinada a proteger interesses alheios (responsabilidade extracontratual, nas suas subespécies de responsabilidade por factos ilícitos, pelo risco e por factos lícitos).
No que toca aos pressupostos da obrigação de indemnização pode dizer-se que ambas as modalidades, contratual e extracontratual comungam do mesmo regime, pois em ambas é necessária a demonstração de: (i) um facto ilícito do agente, por ação ou omissão; (ii) existência de um dano ou prejuízo; (iii) nexo de causalidade entre o comportamento e o dano e (iv) culpa do agente: art. 562º a 572º do CC. [[] O incumprimento duma obrigação (incluindo os deveres acessórios de conduta) não deixam de constituir um ilícito contratual.]
A diferença mais relevante respeita ao ónus da prova da culpa: na responsabilidade contratual, a lei estabelece uma presunção de culpa sobre o devedor (art. 799º nº 1 CC), enquanto que na responsabilidade extracontratual incumbe ao lesado provar a culpa do lesante (art. 487º nº 1 CC).
Analisando esses pressupostos da obrigação de indemnizar, a M. mª juíza concluiu que a Autora não logrou provar “um prejuízo equivalente ao preço que pede pelo aparcamento”.
Efetivamente, para além duma conduta ilícita e culposa (que, no caso, se presumiria: art. 799º nº 1 CC), importaria a verificação dos danos ou prejuízos.
Porque reportados ao património da Autora, os custos do parqueamento integram um dano patrimonial, na vertente de lucro cessante. [[] Como se sabe, os danos patrimoniais podem traduzir um dano emergente (a perda dum objeto ou valor já existente) ou um lucro cessante (os benefícios que se deixou de obter) causados pela conduta do agente.]
A Autora pretende ser paga pelos custos de parqueamento do veículo nas suas instalações, tendo alegado os preços que habitualmente pratica por tal serviço (€ 15,38/dia).
Resulta clara (e nem a Autora o alegou) a inexistência de qualquer contrato celebrado entre ambas de depósito ou parqueamento.
Assim, esses custos de parqueamento só podiam ser imputados à Ré a título de indemnização, ou seja, como prejuízo decorrente do contrato de empreitada celebrado. [[] Ainda responsabilidade contratual, portanto, e não responsabilidade por factos ilícitos, como se refere na sentença.]
Na verdade, no âmbito da obrigação de indemnizar, cabem não só os prejuízos diretamente causados, como todos os benefícios que se deixaram de obter e ainda os danos futuros (art. 564º CC) pelo que, se o incumprimento das obrigações da Ré no contrato de empreitada tivesse causado esses prejuízos à Autora, esta teria direito a deles ser ressarcida.
Só que, os danos a ser ressarcidos são apenas os danos concretos, e não um dano abstrato ou simplesmente passível de acontecer (mas que não chegou a verificar-se).
Significando isso que não basta alegar/demonstrar que se tem serviço de parqueamento e qual a tabela de preços praticada, pois o ter esse serviço disponível não é sinónimo de que ele seja utilizado por clientes.
Trata-se de um lucro cessante, pelo que seria mister que a Autora tivesse alegado/demonstrado que aquele lugar de parqueamento foi pretendido por alguém, ou, por exemplo, que não pode aceitar um qualquer outro serviço por falta de lugar de estacionamento, ou que por regra tem todos os lugares sempre ocupados.
Ora, nada disto ficou provado.
Com interesse para o efeito, demonstrou-se apenas que a viatura da Ré permanece nas instalações da Autora, a ocupar espaço útil (sem dúvida, mas havia algum cliente para esse espaço e que por essa razão a Autora não pôde satisfazer?); que é a Autora quem está a suportar os respetivos encargos (quais? Em que montante?); que a Autora está contratualmente obrigada com a Mercedes-Benz a preservar e a manter livre nas suas instalações uma quota de lugares de estacionamento (quantos? Este em específico? Essa obrigação para com a Mercedes não pôde ser cumprida por causa desta viatura? Em quanto importou essa violação contratual?).
Concorda-se, portanto, que a Autora não logrou provar o prejuízo atinente a custos de parqueamento.
De qualquer forma, pode adiantar-se que, ainda que verificado algum dano, não lhe assistia o direito ao respetivo ressarcimento.
É que, os pressupostos da obrigação de indemnização são de verificação cumulativa.
E, não se demonstrou que a Ré tivesse violado quaisquer das suas obrigações no contrato de empreitada, pelo que sempre faltaria o pressuposto relativo ao facto/conduta culposa.
Remetendo-nos para o que se deixou dito na apreciação do recurso da Ré, foi a Autora quem não cumpriu as suas obrigações, pelo que está legitimada a conduta da Ré em não pagar o preço nem levantar o veículo enquanto a Autora não cumprir.
III. DECISÃO
9. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Guimarães:
9.1. em julgar improcedente o recurso subordinado e, bem assim, a ampliação do objeto do recurso
9.2. em julgar procedente o recurso da Ré; consequentemente, reconhecendo-se não estarem ainda verificadas as condições de exigibilidade da sua obrigação de pagamento, determina-se que a Ré só terá de pagar o preço da empreitada quando a Autora efetuar as prestações a que se vinculou ou oferecer o seu cumprimento simultâneo.
Face ao decaimento, ficam a cargo da Autora as custas das apelações.
Guimarães, 19.01.2017
Por vencimento do signatário, o presente acórdão foi elaborado pela primeira adjunta vencedora, nos termos prescritos no artigo 663º, n.º 3, do NCPC.
Expõem-se os motivos da discordância.
É incontroverso que entre as partes foi celebrado um contrato de empreitada (artigo 1207º CC).
A obra a cargo da A. consistia na substituição do motor de um veículo automóvel pertencente à Ré por um motor novo.
Segundo a Ré, teria sido igualmente acordado que a A. lhe devolveria o motor avariado e um relatório técnico sobre as causas e consequências da avaria.
Muito embora não resulte de forma expressa da factualidade dada como provada, parece legítimo concluir que a A. se terá, efectivamente, obrigado a elaborar o dito relatório.
No tocante à devolução do motor avariado, provou-se apenas, sem prejuízo do que adiante se dirá, que no orçamento e no email que o acompanhava não constava qualquer condição de retoma ou obrigação de devolução do motor avariado ao fabricante.
No acórdão considerou-se que a A. incumpriu ou cumpriu defeituosamente a prestação principal a que se obrigou (execução da obra) e incumpriu as restantes (devolução do motor avariado e elaboração do relatório) e, consequentemente, julgou-se procedente a excepção de não cumprimento invocada pela Ré, ao abrigo do disposto no artigo 428º do Código Civil.
Atendo-nos unicamente ao acervo fáctico dado como provado, é inequívoco que a obra executada pela A. não corresponde à que foi contratada, porquanto, em vez de um motor novo, a A. instalou no veículo da Ré um motor recondicionado (sem prejuízo de se anotar que a Senhora Juiz a quo se terá convencido, como fez constar da motivação, de que esse foi o acordo realmente firmado).
Essa desconformidade constitui um defeito para efeitos do preceituado no artigo 1208º do CCivil, segundo o qual “o empreiteiro deve executar a obra em conformidade com o que foi convencionado e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato” Como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/4/2008, consultado em www.dgsi.pt, “Os vícios correspondem a imperfeições relativamente à qualidade normal, enquanto que as desconformidades são discordâncias com respeito ao fim acordado. E o conjunto dos vícios e das desconformidades constituem os defeitos da coisa. Os dois elementos fazem parte do conteúdo do defeito, determinam-se através do contrato e dependem da interpretação deste”..
Acresce que, verificando-se o cumprimento defeituoso (ou parcial) da prestação a cargo do empreiteiro, assiste ao dono da obra a faculdade de recusar a sua contraprestação (pagamento do preço) até que aquela seja rectificada (ou completada), nos termos do artigo 428º.
Sucede, porém, que, no caso vertente, a Ré recusou proceder ao levantamento do veículo reparado pela A. apenas porque e enquantoesta não lhe entregasse o motor avariado. Nada mais invocou então(ponto 16º do elenco dos factos provados).
Fê-lo claramente depois de saber que esse motor fora substituído por um recondicionado (ponto 25º do elenco dos factos provados).
Mais. Sabedora dessa pretensa desconformidade entre o que fora acordado e o que foi executado, não só não a denunciou (desiderato que, com o devido respeito, não se extrai dos excertos a esse propósito transcritos no acórdão), nem invocou como fundamento da sua recusa Condição indispensável para o exercício da exceptio é que o credor tenha denunciado os defeitos e exigido a sua reparação (acórdão do mesmo Tribunal de 29/6/2010)., como, ao invés, interpelou repetidamente a A., por escrito e até por intermédio do seu próprio gerente, para entregar o veículo no estado em que se encontrava contra o pagamento integral da factura no montante de €8.045,38 (pontos 28º, 30º, 31º, 33º, 34º e 35º do mesmo elenco).
Essa postura traduz, inequivocamente, a aceitação sem reservas da obra e, como tal, exclui a responsabilidade da A. pela apontada desconformidade, admitindo que a mesma existisse, de harmonia com o disposto no artigo 1219º.
Sendo assim, mostra-se prejudicada a questão de saber se, face à factualidade apurada e às regras de distribuição do ónus da prova, se podia concluir, como concluiu na 1ª instância, que a A. “cumpriu com a obrigação (leia-se principal) a que estava adstrita por via do contrato celebrado”.
Subsistem as duas restantes obrigações alegadamente incumpridas.
Discorre a Ré que cabia à A. alegar e provar, o que não fez, que existiu um acordo translativo do direito de propriedade sobre o motor avariado, pelo que, recusando devolvê-lo, incorreu em incumprimento do dito contrato.
No acórdão sufragou-se esse entendimento.
Vejamos.
É certo que, por norma, as peças substituídas no âmbito da reparação de um veículo automóvel devem ser entregues ao respectivo dono, mormente se tiverem algum valor económico e puderem ser reaproveitadas Note-se que, de acordo com a definição fornecida pelo artigo 3º do DL 239/97, de 9/9, resíduo é “qualquer substância ou objecto de que o detentor se desfaz ou tem obrigação de se desfazer”, o que, manifestamente, não era o caso..
Todavia, não pode olvidar-se que, no caso concreto, o custo do novo motor foi parcialmente suportado (na proporção de 75%) pelo fabricante (a Mercedes Benz, estranha ao processo) e que a A., conforme oportunamente comunicou à Ré, terá entregue àquele o motor avariado, pelo que está impossibilitada de o devolver.
Neste contexto, é evidente que a Ré não lhe pode opor a exceptio para a compelir a entregar algo de que já não dispõe!
Acresce que a apontada divisão de custos, aceite pela Ré, terá tido em conta, como a própria reconhece (ainda que em medida não inteiramente coincidente com a que ela pretendia, sendo certo que não logrou provar a factualidade que servia de base a tal pretensão, como se extrai das alíneas f) e g) do elenco dos factos não provados), os quilómetros até então percorridos pela viatura e aqueles que, em circunstâncias normais, a mesma ainda percorreria, ou seja, a sua vida útil, pelo que, bem vistas as coisas, o fabricante terá removido integralmente ou quase integramente o prejuízo sofrido por aquela, sendo certo que não se provou (alínea e) do elenco dos factos não provados), facto alegado pela Ré e cuja prova incumbia a esta, que os danos no motor tenham sido causados por um defeito de fabrico.
Ainda assim, a A., seguindo as instruções do fabricante (ponto 25º do elenco dos factos provados), deduziu o valor que corresponderia à Réno motor avariado (equivalente à medida da contribuição desta para a aquisição do novo) no montante da factura referente à reparação.
Não se vê que outro procedimento poderia exigir-se-lhe.
Resta acrescentar que, como bem se salientou na decisão recorrida, a falta de entrega do relatório técnico sobre as causas e consequências da avaria - a ter sido esgrimida como fundamento da recusa de cumprimento, desiderato que não resulta claramente do elenco dos factos provados (cfr. ponto 16º versus pontos 28º e 29º), e cuja relevância, de qualquer modo, se mostra esvaziada face à sucumbência da Ré na prova do invocado defeito de fabrico - constituiria um “pequeno incumprimento” no quadro das obrigações sinalagmáticas decorrentes do contrato e, como tal, não legitimava a invocação da “exceptio” Como refere José João Abrantes, em “A Excepção de Não Cumprimento do Contrato”, 1986, página 118, “O alcance da excepção deve ser proporcionado à gravidade da inexecução ou execução defeituosa”.
NOTAS DO VOTO DE VENCIDO
Como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/4/2008, consultado em www.dgsi.pt, “Os vícios correspondem a imperfeições relativamente à qualidade normal, enquanto que as desconformidades são discordâncias com respeito ao fim acordado. E o conjunto dos vícios e das desconformidades constituem os defeitos da coisa. Os dois elementos fazem parte do conteúdo do defeito, determinam-se através do contrato e dependem da interpretação deste”.
Condição indispensável para o exercício da exceptio é que o credor tenha denunciado os defeitos e exigido a sua reparação (acórdão do mesmo Tribunal de 29/6/2010).
Note-se que, de acordo com a definição fornecida pelo artigo 3º do DL 239/97, de 9/9, resíduo é “qualquer substância ou objecto de que o detentor se desfaz ou tem obrigação de se desfazer”, o que, manifestamente, não era o caso.
Como refere José João Abrantes, em “A Excepção de Não Cumprimento do Contrato”, 1986, página 118, “O alcance da excepção deve ser proporcionado à gravidade da inexecução ou execução defeituosa”..
Julgaria, pois improcedente, o recurso interposto pela Ré e, consequentemente, prejudicada a apreciação da impugnação da matéria de facto deduzida pela A. a título subsidiário.
No que concerne ao recurso subordinado interposto por esta última, julgá-lo-ia igualmente improcedente, mas com fundamentação diferente da acolhida no acórdão.
Pretendia a A. que a Ré fosse condenada a pagar-lhe o custo do parqueamento da viatura reparada após a data limite fixada para o seu levantamento.
Porém, importa lembrar que, ante o diferendo surgido entre ambas a respeito da devolução do motor avariado, a A. “recusou-se a receber o pagamento de €8.045,38 e impediu a Ré de levantar o veículo”.
Condicionando a entrega do veículo ao pagamento do preço que considerava ser-lhe devido pela reparação, ainda que inferior ao que a Ré se propunha pagar-lhe, a A. quis, indiscutivelmente, prevalecer-se do direito de retenção que lhe é conferido pelo artigo 754º.
Ora, o exercício desse direito real de garantia coenvolve a obrigação de guardar a coisa sobre a qual incide (artigo 671º, alínea a), aplicável por força do artigo 758º), pelo que não era de reconhecer à A. direito ao putativo custo do parqueamento, sendo certo que não releva da factualidade apurada que tenha suportado um prejuízo efectivo a esse título.