I - O incidente de recusa deve ser deduzido até ao início da conferência no recurso perante o Tribunal da Relação, ou seja, antes da intervenção decisória dos Desembargadores a quem fora distribuído, isto é, antes da prolação da deliberação.
II - Por já ter sido decidido do mérito do recurso que os requerentes interpuseram da decisão condenatória proferida pelo tribunal colectivo, a recusa que deduzem após a prolação da deliberação já não será adequada a evitar o risco de parcialidade.
III - Não tendo sido deduzida no prazo delimitado pelo art. 44.º do CPP, ou seja, até à conferência no recurso interposto perante o Tribunal da Relação, a recusa é intempestiva, devendo a mesma ser rejeitada.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I – RELATÓRIO
1. AA e BB,
«vêm requerer a recusa dos m.mos Juízes Desembargadores subscritores dos acórdãos proferidos em segunda instância, na ...ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra, PROCESSO 10/11.2JALRA.C1 (RECURSO PENAL) e do demais processado após o primeiro dos assinalados arestos, especialmente daquele datado de 2016-12-07, o que fazem nos termos do art. 45º-1-a do Código de Processo Penal, porquanto:
1. Através do presente requerimento não visam os arguidos, ora requerentes, por o mesmo materializar meio processualmente inidóneo para esse fim — o conhecimento recursório de qualquer decisão tomada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 2ª instância — mas antes e tão somente deduzir o incidente de recusa de Juíz (art.os 43º-1-2 e 45º, ambos do CPP) por meio do presente “requerimento de recusa” do ex.mo Juiz Desembargador ao qual o assinalado processo foi distribuído com vista ao conhecimento, em 2ª instância, do apelo do acórdão final do Tribunal Coletivo da Comarca de Leiria, Leiria, Instância Central, Secção Criminal, J3
2. E ainda do ex.mo Juiz Desembargador Vogal co-signatário das decisões nos mesmos proferidas em 2ª instância e, por conseguinte, co-autor delas, mas em todo o caso concretamente redigidas pela m.ma Desembargadora Relatora Dr.a OLGA MAURÍCIO. Por conseguinte
3. Concretizando: os requerentes não pretendem apresentar a respetiva discordância — ou, ainda que mero acaso, a sua concordância —relativamente a qualquer ou quaisquer peças judiciais, nos termos do art. 399º ss do CPP ou nos dos artigos 432º ss do mesmo diploma
4. Mas antes fazer com que se respeite a exigência constitucional do processo leal, equitativo ou subordinado às regras do fair trial, exigência vazada no art. 20º-4 CRP e, em sede de direito supra-legal, designadamente no art. 14º-1 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, 6º-1 da Declaração Europeia dos Direitos do Homem e 47º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e
5. Desse jeito respeitosamente convocar este alto Tribunal, com vista ao supino desiderato do disposto nos artigos 43º e 45º do cpp.
6. A problemática da qual os requerentes ora se ocupam têm-na eles de longa data considerado crucial, tal como os cultores dos direitos fundamentais, vale por dizer, daqueles de formação democrática e humanista: nesse sentido, garantistas. O que não impede que
7. Mais recentemente, até entre nós (…!!!) ela tenha sido tomada em consideração, por ordem temporal, por juristas como MOURAZ LOPES, A tutela da imparcialidade endoprocessual no direito penal português, Studia Iuridica 83, Coimbra editora, 2005, 114 ss, MARIA DE FÁTIMA MATA-MOUROS, Juiz das liberdades, Desconstrução de um mito do processo penal, Almedina, 2011, 55 ss ou, há poucos dias, JORGE MIRANDA, Direitos Fundamentais, Almedina, dezembro 2016, passim.
8. Com efeito, como refere MATA-MOUROS, obra citada, 70 ss, partindo do princípio de que imparcialidade não é o mesmo que neutralidade, concretizando a asserção, refere (pág. 70):
“É possível identificar três dimensões na imparcialidade do juiz no processo penal, características que formam o “núcleo duro da imparcialidade no processo penal”, como já tem sido classificado pela doutrina, em especial de origem italiana, na esteira de Di Chiara:
1º Equidistância ou qualidade de terceiro, no sentido de diferenciação das partes;
2º Equidistância ou paridade, no sentido de diferenciação paritária, relativamente a todos os intervenientes no processo;
3º Dimensão espiritual (ou subjetiva), no sentido da liberdade mental total que deve ser assegurada ao juiz, no seu julgamento ou decisão.
As duas primeiras dimensões constituem a imparcialidade objetiva, aquela que permite evidenciá-la aos olhos de terceiro.
Também o regime de impedimentos, escusas e recusas estabelecido nos arts. 39º e ss. do CPP estabelece garantias de imparcialidade”.
9. Por seu lado, o excelente Fair Trial Manual, Amnesty International, Second Edition, Amnesty International Publications, 2014, acentua no Capítulo 12, sob a epígrafe RIGHT TO TRIAL BY A COMPETENT, INDEPENDENT AND IMPARTIAL TRIBUNAL ESTABLISHED BY LAW, pág. 108 ss, estabelece na pág. 114, sob 12.5. com a epígrafe Right to be heard by na impartial tribunal:
“The tribunal must be impartial. The obligation of impartiality, which is essencial to the proper exercise of judicial functions, demands that each of the decision-makers in a criminal case, whether they be profesional or lay judjes or members of a jury, be unbiased and be seen to be unbiased. Actual impartiality and the appearence of impartiality are both fundamental for maintaining respect for the administration of the justice.
The right to a tribunal requires that judges and jurors have no interest or stake in particular case, do not have pre-formed opinions about it, and do not act in ways that promote the interest of one the parties.”.
E mais adiante, pág. 116:
“The impartiality of tribunal is test in two ways. One is an objectiv test wich examines whether the judje offered procedural guarantees suficiente to exclude any legitimate doubt of partiality. The other is subjectiv, examining personal beas”.
Posto tudo isto e descendo agora ao concreto. É manifesto, desde logo, que os ex.mos magistrados Judiciais — Juízes Desembargadores: tudo o inculca, em fim de carreira, por não se vislumbrar viável ao signatário o respetivo acesso ao S.T.J. — neste momento da história deste processo, se sintam acrescidamente “livres” para intentarem apor as suas “marcas” nas respetivas carreiras, com “soluções” — as quais, como quaisquer outras mesmo as provindas dos mais ignaros “juristas” nacionais se respeitam e devem respeitar (todavia a despeito de, neste âmbito, a referida liberdade dever mostrar-se minimamente informada, o que se afirma em nome do constitucionalíssimo valor da liberdade expressão do pensamento) ia dizendo-se, encontrem âncoras historicamente nas quais os seus nomes, quanto mais não seja para mera “memória futura” se mostrem, sem a mediação de biombos, dignos para figurarem na história. E assim procurarem, ainda que sem o necessário escrúpulo, a dimensão espiritual (ou subjetiva), no sentido da liberdade mental total que deve ser assegurada ao juiz, no seu julgamento ou decisão,
10. Claramente por já terem as respetivas mentes intoxicadas por diversos pré-juízos, que foram formando durante o devir dos autos.
11. Se não, vejamos:
11.1. Ao curto-circuitarem o desígnio dos requerentes, aquando do recurso da decisão final, desígnio esse materializado — como o próprio acórdão, paradoxalmente, começa por incompreensivelmente (se bem que por discurso meramente formulário) acentuar — na redução de um dado objetivo, legalmente prescrito, o valor e o significado das “conclusões, ao compactá-las abusivamente e fora de qualquer critério legal, nas três questões a que julgaram poder resumir toda a extensa problemática dos autos.
11.2. foi este a razão primeva que levou os colendos Julgadores a não querem que a referida maneira como apertaram o recurso, pudesse vir a ser do conhecimento de outros, designadamente do TC;
11.3. Foi essa mas não só por ela: é que, correndo que a sinistra teoria das decisões judiciais, nos “termos” do art. 97º do cpp, poderiam ser subdividida em atos decisórios e “não-decisórios” — categoria que só pode ser conhecida por quem não compreendeu que a epígrafe de tal normativo poderia ser, como é, esdrúxula, pois o mesmo, sendo como é, densificador do disposto no art. 205º-1 CRP — será da paternidade da ex.ma Desembargadora Relatora, o acórdão, ignorando o esforço despendido pelos recorrentes para contrariá-la, acabou por decidir — uma das três questões apenas em apreço … — no sentido da vulgata interpretativa, a fim de manter essa “interpretação” de tal normativo conectado com o nome da ex.ma Desembargadora Relatora.
Por conseguinte, o mundo começou a estar perigoso …
11.4. Mas não apenas pelo referido: ainda a fim de que o mundo jurídico continuasse satisfeito com o referido esdrúxulo “entendimento” quanto ao sentido “corrigido” das conclusões recursórias. O objeto do recurso não o é (seria) como o recorrente o colocou nas ditas conclusões, antes passaria a ser, porventura em homenagem à conhecida LEI DO MENOR ESFORÇO, aquele que atrabiliariamente, ou de forma inaferrada em qualquer lei, um tribunal entendesse conformá-lo …
11.5. Mas não só pelos referidos motivos de vontade de perpetuação dos dois erros. Também ainda para dar cobertura a uma atuação oficiosa da Secretaria a qual, “interpretando” oficiosamente, repita-se, o que a lei não diz — para quê o art. 4º do cpp se tudo está resolvido, no âmbito processual, pelo nunca assaz odiado CPCivil? — o disposto no art. 139º-6 deste amaldiçoado diploma, quando o cpp conhece norma expressa para resolver a questão (o art. 107º-5 cpp), entendeu ex post, a despeito de nem sequer ter permitido ao MP que expendesse a respetiva opinião — e o acórdão “final” já fora bem explícito, valha-o deus, quanto ao respetivo entendimento sobre a indispensabilidade da opinião dessa entidade pública (ainda que não no exercício de um qualquer contraditório …), decisão esta, da Secretaria, não precedida, sequer, como agora sim, seria mister, da audição do MP, julgou que o não pagamento atempado, da perspetiva referida, da multa, teria de conduzir à consequência a que conduziu e, de imediato, abriu conclusão à ex.ma Relatora.
11.6. E ainda: de novo, sem qualquer respaldo na opinião do MP, os senhores Desembargadores, agora numa decisão colegial, proferiram um incrível julgado, visando manifestamente sacudir, de uma vez por todas, a água do capote — “água” esta a qual, cheios de razão, os requerentes perseguiam em atirar para o Coletivo Judicial, afirmando com ignorância do disposto no art. 613º ss do canhestro CPCivil, que o requerimento de nulidade da sentença se esgotaria com uma, uma apenas — como se isso fosse razoavelmente possível o que LEBRE DE FREITAS, com clareza, reconhece — e, por conseguinte a primeira, posto o facto de os requerentes não terem resolvido a “anomalia” ocorrida e da qual, repete-se, não tiveram conhecimento, ao menos pela via adequada, julgado este que arrumaria com qualquer questão e, designadamente o TC, também ele nunca iria conhecer, postas as inconstitucionalidades normativas já anteriormente adrede invocadas.
12. Senhor Juiz Conselheiro: a parcialidade dos doutos Julgadores, tendo em vista, desde logo, o intuito salvífico das normas que não podem desconhecer, além disso, a incolumidade do ato (decisório!!!) anteriormente proferido, é mais do que evidente. È, se assim pode dizer-se, evidentíssima.
Ora, porque a última decisão judicial, a despeito do espírito de res judicata falada na última decisão judicial — então, e a questão das consequências do art. 107º-5: fica tudo como dantes? Como ao poder judicial agora pudesse assacar-se competência em matéria da “fazedura” de leis.
Não pode, mas os doutos Julgadores, usurpando poderes, não deixaram de pretender “matar” um acórdão que já estava a tornar-se-lhes muito problemático.
Estas são as razões aprioristicamente referidas no art. 43º-1 cpp.
A intervenção dos referidos ex.mos Desembargadores, no processo, neste momento e depois dele, não pode deixar de recusar-se, uma vez que, face ao esticadamente exposto, é manifesto que a mesma é e tem sido suspeita, existindo motivos, com a caraterística de seriedade e gravidade, neles próprios, para desde já se dever afirmar a respetiva parcialidade.
Por isso, deve v.a ex.a julgar que as respetivas atuações no processo são de molde a permitir esse vício nas respetivas mentes, como aliás objetivamente recorrentes. Em suma: atendendo v.a ex.a ao exposto, por um lado e, por outro, ao direito fundamental a um processo equitativo, declarando, pela atuação dos Julgadores violadas as regras acima largamente referidas e determinando judicialmente, como é de lei, verificarem-se arqui-motivos para a recusa do ex.mos Julgadores, deverá v.a ex.a declarando isso mesmo, julgar o presente incidente procedente, com as legais consequências.
Peças para acompanhamento do presente incidente: todo o processado posterior ao acórdão dito final.»
2. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Enquadramento jurídico
1.1.O artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da República proclama que «Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior». Assim se consagra, como uma das garantias do processo penal, o princípio do juiz natural ou legal, cujo alcance é o de proibir a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso submetido a juízo, em ordem a assegurar uma decisão imparcial e isenta.
Deverá intervir na causa o juiz determinado de acordo com as regras da competência legal e anteriormente estabelecidas. Numa outra formulação, lê-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 9 de Novembro de 2011 (Proc. n.º 100/11.1YFLSB.S1): «o juiz que irá intervir em determinado processo penal é aquele que resultar da aplicação de normas gerais e abstractas contidas nas leis processuais e de organização judiciária sobre a repartição da competência entre os vários tribunais e a respectiva composição».
Este princípio, ou este juiz, só pode ser afastado em situações-limite, se a sua intervenção for susceptível de colocar seriamente em causa aqueles valores da imparcialidade e da isenção, valores com consagração no artigo 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental.
1.2. Nos termos do artigo 43.º do CPP, a intervenção do juiz num processo pode ser recusada, ou pode ser autorizada a escusa por ele pedida, quando houver o risco de a sua intervenção ser considerada suspeita «por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade» (n.º 1).
Esta disposição prevê um regime que tem como primeira finalidade prevenir e excluir as situações em que possa ser colocada em dúvida a imparcialidade do juiz. Como os impedimentos, observa-se aqui uma função de garantia da imparcialidade. - Visa-se salvaguardar um bem essencial na administração da Justiça que é a imparcialidade, ou seja, a equidistância sobre o litígio de forma a permitir a decisão justa.
A recusa constitui um dos instrumentos reactivos, uma das vias para atacar a suspeição.
Há suspeição quando, face às circunstâncias do caso concreto, for de supor que existe um motivo sério e grave susceptível de gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz se este vier a intervir no processo.
A recusa é dirigida ao juiz e, nas palavras de HENRIQUES GASPAR, «pressupõe a formulação pelo MP, arguido, assistente ou partes civis, de um pedido para afastamento do juiz numa determinada causa, quando a sua intervenção possa ser considerada suspeita, com a invocação de motivos que sejam “sérios e graves”, adequados a “gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz”»[1].
A formulação da recusa será assim um dos modos processuais, uma das cautelas legais que rodeiam o desempenho do cargo de juiz, destinadas a garantir a imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição, cumprindo sublinhar que a imparcialidade e isenção constituem dois princípios com prestígio constitucional, incluídos nas garantias de defesa - artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República.
Como a doutrina e a jurisprudência têm assinalado, o fundamento da «suspeição» deverá ser avaliado segundo dois parâmetros: um de natureza subjectiva, outro de ordem objectiva.
O primeiro indagará se o juiz manifestou, ou tem motivo para ter, algum interesse pessoal no processo, ficando assim inevitavelmente afectada a sua imparcialidade enquanto julgador.
O segundo averiguará se, do ponto de vista de um cidadão comum, de um homem médio conhecedor das circunstâncias do caso, a confiança na imparcialidade e isenção do juiz estaria seriamente lesada.
Neste sentido, refere PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, que «[a] imparcialidade pode ser apreciada de acordo com um teste subjectivo ou um teste objectivo. O teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa. Ao aplicar o teste subjectivo a imparcialidade do juiz deve ser presumida e só factos objectivos evidentes devem afastar essa presunção. (…) O teste objectivo da imparcialidade visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade»[2].
«O princípio norteador do instituto da suspeição – lê-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 17 de Abril de 2008 (Proc. n.º 1208/08 - 3.ª Secção) – é o de que a intervenção do juiz só corre risco de ser considerada suspeita caso se verifique motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade – referenciada em concreto ao processo em que o incidente de recusa ou escusa é suscitado –, a qual pressupõe a ausência de qualquer preconceito, juízo ou convicção prévios em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão».
Segundo o mesmo acórdão:
«É notório que a seriedade e a gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz só são susceptíveis de conduzir à recusa ou escusa do juiz quando objectivamente consideradas; não basta, com efeito, o mero convencimento subjectivo por parte do MP, do arguido, do assistente ou da parte civil, ou do próprio juiz, para que tenhamos por verificada a ocorrência da suspeição, e também não basta a constatação de qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, sendo necessário que o motivo ou motivos ocorrentes sejam sérios e graves.
A lei não define nem caracteriza a seriedade e a gravidade dos motivos, pelo que será a partir do senso e da experiência comuns que tais circunstâncias deverão ser ajuizadas; em todo o caso, o art. 43.º, n.º 1, do CPP não se contenta com um “qualquer motivo”; ao invés, exige que o motivo seja duplamente qualificado, o que não pode deixar de significar que a suspeição só se deve ter por verificada perante circunstâncias concretas e precisas, consistentes, tidas por sérias e graves, irrefutavelmente reveladoras de que o juiz deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.»
Como também se sublinha no acórdão deste Supremo Tribunal, de 23 de Setembro de 2009 (Proc. n.º 532/09.5YFLSB), «os motivos da suspeita terão que ser, como a lei refere, sérios e graves para servirem de fundamento à recusa ou à escusa. Pois o afastamento do juiz (natural) do processo só pode ser determinado por razões mais fortes do que aquelas que o princípio do juiz natural visa salvaguardar, que se relacionam com a independência, mas também com a imparcialidade do tribunal».
Constituindo o deferimento do pedido de escusa ou do requerimento de recusa sempre um desvio ao princípio do juiz natural, o consequente deferimento só se mostra legítimo quando estiver verdadeiramente em causa a imparcialidade do juiz.
Acompanhando o acórdão deste Supremo Tribunal, de 15 de Novembro de 2012 (Proc. n.º 947/12.1TABRG-A.S1 – 5.ª Secção), «[o] princípio da imparcialidade, que tem sido objecto de uma larga reflexão pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, deve ser apreciado, segundo a óptica deste tribunal internacional, sob um duplo prisma: numa aproximação subjectiva, destinada à determinação da convicção pessoal de tal juiz em tal ocasião, e numa apreciação objectiva, quanto a saber se o magistrado em causa oferece as suficientes garantias para repelir e excluir, a este propósito, quaisquer dúvidas aceitáveis. (Cfr. ac. STJ de 8-05-2003 - Proc. 1497/03-5 e de 13-04-2005 - Proc. 1138/05-3)».
“A gravidade e a seriedade do motivo” – afirma-se no mesmo acórdão – «hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que num interessado - ou, mais rigorosamente, num homem médio colocado na posição do destinatário da decisão possam razoavelmente suscitar-se dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão».
1.3. O artigo 44.º do CPP dispõe sobre os prazos para a formulação da escusa ou da recusa, estabelecendo que:
«O requerimento de recusa e o pedido de escusa são admissíveis até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos ou até ao início do debate instrutório. Só o são posteriormente, até à sentença, ou até à decisão instrutória, quando os factos invocados como fundamento tiverem tido lugar, ou tiverem sido conhecidos pelo invocante, após o início da audiência ou do debate.»
Como se salienta no acórdão deste Supremo Tribunal, de 23-11-2011 (Proc. n.º 14217/02.0TDLSB.S1-C - 5.ª Secção)[3], este preceito «é absolutamente claro na definição dos momentos processuais até aos quais, segundo as diversas fases do procedimento, a recusa do juiz pode ser deduzida. Caso vise juiz de 1.ª instância, o requerimento de recusa é admissível até ao início do debate instrutório (tratando-se de recusa do juiz de instrução) ou até ao início da audiência (tratando-se de recusa do juiz de julgamento). Se os factos que a fundamentam tiverem tido lugar ou tiverem sido conhecidos pelo invocante após o início do debate instrutório ou após o início da audiência, o requerimento de recusa é, ainda, admissível até à prolação da decisão instrutória (tratando-se de recusa do juiz de instrução) ou até à prolação da sentença (tratando-se do juiz de julgamento).
No caso de a recusa visar juiz de tribunal de recurso (da Relação ou do STJ), o requerimento de recusa é admissível até ao início da conferência, seja a referida no art. 419.º, seja a que reúne para deliberar após a audiência, nos termos do art. 424.º do CPP. Mesmo que os motivos de recusa só sejam adquiridos pelo recusante posteriormente ao início da conferência, esse conhecimento já não lhe pode aproveitar para o efeito de suscitação da recusa».
A ideia subjacente – afirma-se no mesmo acórdão – é a de evitar que um juiz suspeito de parcialidade chegue a decidir um processo (proferindo a sentença ou decidindo o recurso) ou determine o curso ulterior do processo numa das suas fases fundamentais (proferindo a decisão instrutória)».
Como se considera no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 143/2004[4], «o Código de Processo Penal estabelece restrições à possibilidade de suscitar a recusa de juiz, estabelecendo momentos a partir dos quais a recusa não pode ser invocada – o início da audiência, o início da conferência e o início do debate instrutório – quanto a factos conhecidos anteriormente. Pretende-se, assim, não só evitar a utilização surpreendente e abusiva, conforme as conveniências do demandante, da recusa como, fundamentalmente, uma “utilização inútil”.
Por outro lado, admite ainda o referido artigo 44º a recusa do juiz quanto a factos conhecidos após o início da audiência e do debate instrutório, quando tais factos tiverem sido conhecidos supervenientemente (após o início da audiência ou do debate instrutório). Também aí a “lógica” subjacente é a de se impedir que um juiz suspeito de parcialidade chegue a decidir o processo ou determine o curso ulterior do processo numa da suas fases fundamentais. Mas já o conhecimento de factos que justificariam a recusa posterior à sentença, mesmo que anterior ao trânsito em julgado, não é pertinente. Por já ter sido tomada a decisão, a recusa não seria já adequada a evitar o risco de parcialidade. No que se refere à fase de recurso, vigora a mesma “lógica”, sendo possível a recusa de juiz até ao início da conferência. Se os factos forem conhecidos posteriormente, já não se evitaria adequadamente o risco de uma decisão parcial. Estando-se perante um tribunal colectivo, em que o juiz suspeito de parcialidade já poderia ter influenciado a decisão do recurso, entende‑se que o risco da parcialidade não será evitável com uma possível decisão favorável do pedido de recusa».
Como se lê ainda no mesmo acórdão, a propósito de situações de arguição da nulidade da decisão proferida, «[t]anto no que se refere às decisões de primeira instância como à decisão do recurso, a não admissão da arguição de nulidade poderá justificar-se numa perspectiva de razão de ser da recusa, a qual consiste em evitar o risco da desconfiança dos intervenientes processuais e de todos em geral. Com efeito, tal risco já não será verdadeiramente evitável quando as decisões, embora não transitadas, já tiverem sido tomadas e tornadas públicas.
Se é certo que uma nulidade pode ser consequência da não imparcialidade anterior de uma decisão e que a decisão da própria arguição pode vir a convalidar a situação anterior, também é verdade que a arguição de nulidade não é meio adequado para reparar uma eventual anterior parcialidade da decisão, destinando-se antes a corrigir vícios da decisão (por exemplo, quanto à sua fundamentação ou à sua articulação lógica ou ao conhecimento de questões). Assim, não só uma decisão de uma arguição de nulidade não é o meio típico de uma decisão parcial, como não pode, em si mesma, evitar ou sanar a eventual não imparcialidade anterior.
O sentido fundamental do impedimento do risco de não imparcialidade está ligado, indiscutivelmente, à decisão principal, ao “poder de decidir” do juiz suspeito e não tem de cobrir decisões sobre incidentes em que o poder jurisdicional do juiz fica esgotado quanto à matéria da causa (artigo 666º, nº 1, do Código de Processo Civil) – e em que, portanto, já não é possível impedir que uma decisão não imparcial do processo seja tomada.
Por outro lado, não deixa o Direito, também, de fornecer meios reparadores de uma situação efectiva de não imparcialidade que se venha a detectar tardiamente, em face dos prazos legais justificados pela natureza do instituto da recusa de juiz. Assim, tanto a revisão da sentença (artigo 449º do Código de Processo Penal), como, de algum modo, a responsabilidade penal e civil do juiz são formas de reparar os danos de uma decisão não imparcial de um juiz, impedindo que o valor constitucional em causa, agora na perspectiva da sua reparação e não já da sua prevenção, seja postergado».
O citado acórdão decidiu, assim, «não julgar inconstitucional o artigo 44º do Código de Processo Penal na interpretação segundo a qual o pedido de recusa de juiz se deve formular até ao início da conferência ou da audiência mesmo quando os factos geradores da suspeita só cheguem ao conhecimento do invocante após a prolação do acórdão do qual se arguiu a nulidade e antes da sua apreciação e decisão em conferência».
2. Apreciação
Examinemos então o caso sub judice.
2.1. Os requerentes pretendem «a recusa dos m.mos Juízes Desembargadores subscritores dos acórdãos proferidos em segunda instância, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra, PROCESSO 10/11.2JALRA.C1 (RECURSO PENAL) e do demais processado após o primeiro dos assinalados arestos, especialmente daquele datado de 2016-12-07», conforme expressamente referem.
Compulsados os elementos que instruem este incidente, verificamos que:
a) Os requerentes, arguidos no processo n.º 10/11.2JALRA, foram condenados pelo Tribunal Colectivo da Instância Central Criminal da Comarca de Leiria, por acórdão proferido em 27-05-2015:
- o arguido AA na pena única de 6 banos e 6 meses de prisão, tendo sido ainda condenado a pagar à sociedade CC, Lda a quantia de 5.400,00 €, acrescida de juros de mora;
- o arguido BB foi condenado na pena de multa de 200 dias à taxa diária de 6 € (acórdão de fls. 14-86).
b) Estes arguidos recorreram para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 17-02-2016, assinado pelos Ex.mos Desembargadores recusados, determinou a rectificação de um erro material e negou provimento aos recursos (recursos da decisão condenatória e do que fora interposto do despacho que comunicara a alteração não substancial dos factos), confirmando o acórdão recorrido.
c) Notificados do acórdão, vieram arguir a nulidade do mesmo com os fundamentos exarados no requerimento certificado a fls.177-181.
d) Por decisão da Ex.ma Desembargadora Relatora, tal requerimento não foi admitido por extemporâneo (fls.182-183).
e) Os arguidos requereram em seguida que o processo fosse presente à conferência (fls. 184-188).
f) Por acórdão de 06-07-2016, foi deliberada a não admissão do requerimento de arguição de nulidade do acórdão (fls. 189-191).
g) Deste último acórdão, vieram os arguidos, agora requerentes, arguir a nulidade «na vertente da inexistência jurídica» (fls. 192-208).
h) Por acórdão de 07-12-2016 foi deliberado:
- não conhecer do novo requerimento de arguição de nulidade, por já ter sido proferida decisão sobre a questão;
- declarar-se transitado o acórdão que conheceu os recursos;
- determinar a extracção de traslado do processo e posterior remessa dos autos à 1.ª instância.
2.2. Perante os elementos factuais que se apontaram, verifica-se que a recusa vem deduzida quando os Ex.mos Desembargadores visados já haviam proferido o acórdão no recurso interposto pelos recusantes da decisão condenatória da 1.ª instância. Tal acórdão foi proferido em 17 de Fevereiro de 2016.
O incidente de recusa deveria ter sido deduzido até ao início da conferência no recurso perante o Tribunal da Relação de Coimbra, ou seja, antes da intervenção decisória dos Ex.mos Desembargadores a quem o mesmo fora distribuído. Isto é, antes da prolação da deliberação.
Por já ter sido decidido do mérito do recurso que os requerentes interpuseram da decisão condenatória proferida pelo Tribunal Colectivo, a recusa que agora deduzem já não será adequada a evitar o risco de parcialidade.
Como se decidiu no citado acórdão deste Supremo Tribunal de 23-11-2011, «[a] falta de dedução de recusa no prazo delimitado por lei, faz o recusante perder esse direito, por isso, é de rejeitar, por intempestividade, o requerimento de recusa dos Juízes do STJ que já intervieram na decisão, tendo já proferido o acórdão que decidiu do mérito do recurso».
Em face do exposto, não tendo sido deduzida no prazo delimitado pelo artigo 44.º do CPP, ou seja, até à conferência no recurso interposto perante o Tribunal da Relação, a recusa é intempestiva, pelo que é rejeitada.
III – DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes da 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar, por intempestividade, o pedido de recusa formulado pelos requerentes AA e BB
Custas pelos requerentes, com 5 UC de taxa de justiça.
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 25 de Janeiro de 2017
(Processei e revi – artigo 94.º, n.º 2, do CPP)
Manuel Augusto de Matos (Relator)
Rosa Tching
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[1] Código de Processo Penal Comentado, 2016 – 2.ª Edição Revista, Almedina, p. 129.
[2] Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª Edição Actualizada, Universidade Católica Editora, pp. 128-130.
[3] Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça – Secções Criminais, 2011.
[4] Acessível em www.tribunalconstitucional.pt.