1 – Os trabalhadores com vínculo de natureza pública aos estabelecimentos hospitalares a que foi atribuído o estatuto de EPE, nos termos dos Decretos Lei n.º 326/2007, de 28 de setembro e n.º 233/2005, de 29 de dezembro, caso não tenham optado pelo contrato de trabalho de direito privado, mantêm o vínculo de natureza pública, com a conservação integral do respetivo estatuto, nos termos do artigo 15.º do último daqueles diplomas.
2 – O estatuto dos trabalhadores com vínculo de natureza pública previsto no número anterior engloba o regime de proteção dos acidentes em serviço decorrente do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, na redação emergente da Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro.
3 – Incumbe aos tribunais da jurisdição administrativa, nos termos do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 17 de fevereiro, o conhecimento de litígio derivado de acidente em serviço sofrido por trabalhador ao serviço de Hospital EPE, com vínculo de natureza pública e que não optou pelo contrato de trabalho de direito privado.
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
I
1 - AA participou ao Ministério Público junto da comarca de ... - Secção de Instância Central do Trabalho – ..., um acidente de trabalho, ocorrido em 29 de novembro de 2010, quando se deslocava para a sua residência, do seu local de trabalho - o Centro Hospitalar do ..., E.P.E., onde desempenhava as funções de enfermeira graduada.
A ação instaurada prosseguiu seus termos e veio a realizar-se a tentativa de conciliação que se frustrou, porque a empregadora, embora aceitando o acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre este e as lesões sofridas, a retribuição da sinistrada, bem como o grau de desvalorização que lhe foi atribuído pelo perito médico do tribunal, não aceitou reparar o acidente, por entender que a responsabilidade seria da Caixa Geral de Aposentações.
Seguidamente a sinistrada, representada por mandatário judicial, apresentou a petição inicial contra o referido Centro Hospitalar, pedindo a condenação deste a pagar-lhe € 409.208,00, a título de indemnização pelo acidente de trabalho, € 11.649,00, a título de prestação por pessoa a cargo, € 160.447,03, a título de subsídio por situação de alta incapacidade permanente, € 187.222,84, a título de subsídio por assistência a terceira pessoa, € 57.600,00 por força do pagamento do acompanhamento médico psiquiátrico, e € 120.960,00, por força do pagamento do programa de reabilitação neuropsicológico diário.
Alegou a Autora, em síntese, que sofreu um acidente de viação em 29.11.2010, quando se deslocava do local de trabalho para casa, e que, à data, exercia as funções de enfermeira especialista no serviço de bloco de partos, em regime de contrato de trabalho em funções públicas, mediante a retribuição anual de € 2.236,98 x 14 + € 7.662,32 x 1 (total anual de € 38.980,04) e que em consequência do acidente ficou afetada de incapacidade de 100% com IPA e foi fixada a data da alta em 29.11.2013.
Citado o Réu, contestou, excecionando a incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, invocando que é uma pessoa coletiva pública integrada na administração indireta do Estado, estando os trabalhadores que nela exercem funções públicas sujeitos à disciplina do DL 503/99, de 20 de novembro, pelo que o tribunal competente para julgar uma ação administrativa interposta por um trabalhador com contrato de trabalho em funções públicas contra o Centro Hospitalar, por virtude de incapacidade resultante de acidente sofrido no exercício de funções, seria o tribunal administrativo.
A ação prosseguiu seus termos e no despacho saneador o tribunal conheceu da questão da competência do tribunal, tendo julgado procedente essa exceção e, em consequência, absolveu o Réu da instância.
Inconformada com essa decisão, dela apelou a A. para o Tribunal da Relação do ..., que veio a conhecer do recurso interposto por acórdão de 2 de maio de 2016, que integrou o seguinte dispositivo:
«Nos termos supra expostos, acordam conceder provimento ao recurso e em consequência revogam a decisão recorrida, ordenando o normal prosseguimento dos autos no tribunal recorrido.
Custas pelo recorrido».
Não satisfeito com o assim decidido, veio o Réu recorrer de revista para este Supremo Tribunal, integrando nas alegações apresentadas as seguintes conclusões:
«1. O Centro Hospitalar ..., E.P.E., ora recorrente, é uma Entidade Pública Empresarial, isto é, uma "pessoa coletiva de direito público de natureza empresarial dotada de autonomia administrativa e patrimonial”, nos termos do regime jurídico do setor empresarial do Estado e das empresas públicas;
2. Assim, sendo uma pessoa coletiva pública integrada na administração indireta do Estado os trabalhadores que nele exercem funções públicas estão sujeitos à disciplina emergente do DL 503/99, de 20/11;
3. A Autora, ora recorrida, exercia funções de enfermeira ao serviço do recorrente ao abrigo de contrato de trabalho em funções públicas, encontrando-se inscrita na Caixa Geral de Aposentações;
4. O regime aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas é o constante da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, e demais legislação referente ao vínculo de emprego público, entre as mesmas o DL n.º 503/99, 20/11;
5. Acresce que a A. estriba a causa de pedir da ação na ocorrência de um acidente de serviço, no período em que a A. desempenhava as suas funções profissionais ao serviço do Recorrente, litígio que emerge do contrato de trabalho em funções públicas;
6. Aos tribunais administrativos "compete o conhecimento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas" (seu art.º 212.º/3), normativo que foi vertido para a legislação ordinária pelo ETAF onde se dispôs que "os Tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais." (seu art.º 1.º);
7. É da competência destes resolver, entre outras, a "A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público;" [seu art.º 4.º/N.º3/b)], conjugado com os arts. 1.º, 2.º e 4.º do DL 503/99, de 20 de novembro;
8. Pese embora, a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, excluir do seu âmbito de aplicação objetivo as entidades públicas empresariais, determina que é aplicável subjetiva-mente aos detentores da qualidade de funcionário ou agente que exerçam as suas funções públicas em entidades excluídas do âmbito de aplicação objetivo;
9. Isto porque, com a transformação dos Hospitais, anteriormente abrangidos pelo Setor Público - Administrativo, cujos trabalhadores estavam sujeitos ao regime jurídico-laboral público, em Sociedades Anónimas, e posteriormente em Entidades Públicas Empresariais, operou-se uma mudança no paradigma da contratação de recursos humanos que passou a estar vinculada ao regime jurídico-laboral privado;
10. Mas, os trabalhadores que à data mantinham uma relação laboral pública viram salvaguardados os seus legítimos interesses e, portanto, continuaram e continuam a usufruir do seu estatuto de trabalhadores em funções públicas, com todos os direitos e obrigações inerentes, ou seja, regime remuneratório, carreira, poder disciplinar, não haverá que ser diferente em matéria de acidentes de serviço;
11. A não ser assim, coexistiriam trabalhadores que exercem funções públicas abrangidos pelo D.L. n.º 503/99 e outros não, em violação do princípio constitucional da igualdade;
12. Sabendo que, a Autora à data do acidente, exercia funções de enfermeira ao serviço do Recorrente, Centro Hospitalar do ..., EPE, ao abrigo de contrato de trabalho em funções públicas;
13. O Centro Hospitalar, ora Recorrente, é uma pessoa coletiva pública integrada na administração indireta do Estado, e, nessa data, o regime jurídico dos acidentes de trabalho ocorridos ao serviço das entidades empregadoras públicas era o estabelecido no DL 503/99, de 20/11;
14. A competência para julgar esta ação cabe aos Tribunais Administrativos, impondo-se concluir pelo acerto da decisão tomada em 1.ª instância, sendo os Tribunais Administrativos competentes, em razão da matéria, para conhecer e julgar a presente ação, cuja causa de pedir se funda em acidente de serviço.»
Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido.
A autora respondeu ao recurso interposto, integrando nas alegações apresentadas as seguintes conclusões:
«I - A competência material dos tribunais deve ser aferida em função do pedido deduzido pelo Autor na sua petição inicial, devidamente enquadrado pela causa de pedir;
II - Nos presentes autos, a Autora não interpôs a ação contra a Caixa Geral de Aposentações - que aliás declinou a sua responsabilidade em comunicação à Autora, reiterando a aplicação da lei laboral e a inerente responsabilidade do Réu - mas apenas contra o Réu, reclamando deste a proteção infortunística que a lei laboral concede para o acidente que qualificou de trabalho, qualificação que o Réu aceitou na fase conciliatória dos autos;
III - Na petição inicial, a Autora alegou estar no regime de contrato de trabalho em funções públicas e invocou, precisamente, que era indiferente este regime para a definição da competência, pois o regime aplicável é o de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho;
IV - O Réu é uma entidade pública empresarial, como decorre do DL 326/2007 que o criou e aprovou os respetivos estatutos;
V - Aos trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho;
VI - Quanto às entidades públicas empresarias, é indiferente que os seus trabalhadores exerçam ou não funções públicas, pois em quaisquer dos casos, é-lhes de aplicar o regime de acidentes de trabalho previstos no Código do Trabalho;
VII - Tal decorre do legislador no n.° 4 do artigo 2.° do DL 503/99, de 20/11, na redação do artigo 9.° da Lei 59/2008, de 11/09 não ter caracterizado as funções exercidas por aqueles trabalhadores como "públicas", significando que todas as funções desempenhadas por aqueles, seja ao abrigo de contrato de trabalho em funções públicas, seja ao abrigo de contrato individual de trabalho, têm um regime comum no tocante a acidentes de trabalho;
VIII - Face ao regime jurídico das entidades públicas empresariais aprovado pelo DL 133/2013, de 3 de outubro e como decorre do regime especial estatuído para as unidades de saúde sob o regime jurídico das entidades públicas empresarias - DL 233/2005, de 29 de dezembro - e no que ao caso concreto do Réu respeita, com a sua passagem para o regime de entidade pública empresarial, por força do DL 326/2007, quis o legislador que ao Réu se aplicassem regras idênticas às que regem as empresas privadas;
IX - O que torna justificada a conclusão de que no caso sub judice não está em causa um litígio emergente das relações administrativas e/ou uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo, mas, tão só, um litígio no âmbito do regime de acidentes de trabalho, previsto no Código do Trabalho;
X - Pelo que é de considerar que cabe ao Tribunal do Trabalho a competência material para os ulteriores termos deste processo.»
Termina pedindo a confirmação da decisão recorrida.
Neste Tribunal, o Exm.º Magistrado do Ministério Público proferiu parecer, nos termos do artigo 87.º, n.º 3, do Código de Processo do Trabalho, tendo concluído nos seguintes termos:
«Considerando a passagem do réu para o regime de entidade pública empresarial – dec. lei n.º 326/2007 -, atento o próprio regime jurídico das entidades públicas empresariais – dec. lei n.º 133/2013 e ainda o regime especial estabelecido para as unidades de saúde sob o regime jurídico das entidades públicas empresariais – dec.lei n.º 233/2005, afigura-se-nos que estando em causa um litígio que cai no âmbito dos acidentes laborais, a competência material para a tramitação da presente ação deverá ser atribuída ao Tribunal de Trabalho, pelo que a revista deveria ser negada, antes sendo de confirmar o Acórdão em análise».
Notificado às partes esse parecer não provocou qualquer tomada de posição.
Sabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, nos termos do disposto nos artigos 635.º, n.º 3, e 639.º do Código de Processo Civil, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, está em causa na presente revista saber:
a) se o acidente sofrido pela autora deve ser enquadrado pelo regime decorrente do Decreto-lei n.º 503/99, de 20 de novembro, ou pelo regime dos acidentes de trabalho emergente do Código de Trabalho de 2009 e pela Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro;
b) se a competência para o conhecimento da presente ação pertence aos Tribunais judiciais, ou se pertence aos Tribunais da jurisdição administrativa.
II
A decisão proferida pelo Tribunal da 1.ª instância louvou-se do acórdão do Tribunal de Conflitos proferido no processo n.º 024/12, de 6 de fevereiro de 2014[1], que integrou o seguinte sumário:
«I - O Centro Hospitalar de ..., EPE, é uma pessoa coletiva pública integrada na administração indireta do Estado, estando os trabalhadores que nele exercem funções públicas sujeitos à disciplina do D.L. nº 503/99, de 20 de novembro.
II - Por isso, os competentes para julgar uma ação administrativa interposta por um destes trabalhadores contra aquele por virtude da incapacidade resultante de um acidente sofrido no exercício de funções, são os tribunais administrativos.»
Esta decisão fundamentou-se no seguinte:
«4 . A Autora, à data do acidente, exercia funções de assistente operacional no Centro Hospitalar de ..., EPE, ao abrigo de contrato de trabalho em funções públicas e, nessa data, o regime jurídico dos acidentes de trabalho ocorridos ao serviço das entidades empregadoras públicas era o estabelecido no DL 503/99, de 20/11 (na redação que lhe foi dada pela Lei 59/2008, de 11/09), o qual no seu art.º 2.º estatuía o seguinte:
(…)
O que quer dizer que os trabalhadores dos serviços da Administração direta ou indireta do Estado a exercer funções públicas, tanto na modalidade de nomeação como na de contrato de trabalho, e os trabalhadores dos órgãos ou serviços das entidades indicadas nos transcritos n.ºs 2 e 3 a exercer o mesmo tipo de funções eram regidos pelas normas do mencionado diploma, que são de direito público, e, por isso, estavam sujeitos à jurisdição administrativa e que os restantes trabalhadores a exercer funções nas entidades públicas empresariais ou noutras entidades que não as anteriormente indicadas se regiam pelas normas do Código de Trabalho e, portanto, estavam sujeitos à jurisdição comum.
Ora, foi o convencimento de que o Centro Hospitalar demandado não fazia parte das entidades identificadas nos n.ºs 1, 2 e 3 do transcrito preceito que levou o TCAS a considerar que ao presente conflito se aplicava o Código de Trabalho e que, por essa razão, os Tribunais comuns eram os competentes para julgar esta ação.
Mas esse entendimento não pode ser sufragado.
5. O Centro Hospitalar de ..., criado pelo DL 233/2005, de 29/12, é uma Entidade Pública Empresarial, isto é, uma “pessoa coletiva de direito público de natureza empresarial dotada de autonomia administrativa e patrimonial, nos termos do regime jurídico do setor empresarial do Estado e das empresas públicas, e do art.º 18.º do anexo da Lei 27/2012, de 8/11.” (art.º 5.º/1), cujo capital é detido pelo Estado (art.º 3.º/1), sujeito à superintendência do Ministro da Saúde a quem compete aprovar os seus objetivos e estratégias, dar orientações, recomendações e diretivas e definir as suas normas de organização e de atuação hospitalar (art.º 6.º).
O que significa que aquele Réu é uma pessoa coletiva pública com a função de prosseguir a tarefa atribuída ao Estado de promoção e proteção da saúde pública (vd. seu art.º 64.º da CRP) e que no cumprimento dessa missão está sujeito à superintendência deste que detém o seu capital, nomeia as suas administrações, define os seus objetivos e estratégias e lhe dá orientações e diretivas. Ou seja, o Centro Hospitalar coadjuva e colabora com o Estado na tarefa de proteção e defesa da saúde pública, tarefa que aquele só não prossegue em exclusivo por ter entendido que a descentralização dessa missão, conduziria a uma gestão mais ágil, mais eficiente, mais racional e mais económica dos meios que lhe estão afetos e que, portanto, dessa maneira melhor se alcançava a satisfação daquele interesse público.
Por tal razão, ter-se-á de concluir que aquele Centro Hospitalar de ... é uma pessoa coletiva pública integrada na administração indireta do Estado e que, por isso, os trabalhadores que nele exercem funções públicas, como é o caso da Autora, estão sujeitos à disciplina do DL 503/99, de 20/11. Daí resultando que a competência para julgar esta ação caiba aos Tribunais Administrativos.
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em julgar os Tribunais da jurisdição administrativa os competentes para julgar esta ação.»
A decisão recorrida veio a concluir em sentido contrário, fundamentando-se, no essencial, no seguinte:
«Está em causa saber se é competente para conhecer do litígio o Tribunal do Trabalho ou, ao invés, se é competente o Tribunal Administrativo.
A Autora invoca a natureza jurídica do Réu, como entidade pública empresarial, sujeita a um regime, intencionado pelo legislador, como de natureza privada, com aplicação aos trabalhadores, independentemente de exercerem funções públicas ou não, da disciplina laboral e correspondente proteção infortunística, sustentando a inexistência de uma relação administrativa. Pelo contrário, o Réu defende que se integra na administração indireta do Estado e que a competência se determina em função da não atribuição, ao Tribunal de Trabalho, do conhecimento de acidentes de serviço.
A decisão recorrida fez eco do Acórdão do Tribunal de Conflitos, datado de 6 de fevereiro de 2014, proferido no processo nº 024/12, que entende que um Centro Hospitalar se integra na administração indireta do Estado, pois que prossegue, sob a tutela deste e com capital exclusivo deste, a tarefa de promoção da saúde pública.
Vejamos:
Antes de mais, sendo a questão sob recurso sobre competência material dos tribunais, a mesma deve ser aferida em função do pedido deduzido pelo autor na sua petição inicial, devidamente enquadrado pela respetiva causa de pedir – v.g., Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 91; acórdãos do Tribunal de Conflitos de 11/7/2000 (Conflito n.º 318), de 3/10/2000 (Conflito n.º 356), e de 5/2/2003 (Conflito n.º 6/02); acórdãos do STJ de 16/11/2010 e de 30/3/2011, proferidos, respetivamente, no âmbito dos processos 981/07.3TTBRG.S1 e 492/09.2TTPRT.P1.S1.
Ora, desde logo, a Autora não interpôs a ação contra a Caixa Geral de Aposentações – que aliás declinou a sua responsabilidade em comunicação à Autora, reiterando a aplicação da lei laboral e a inerente responsabilidade do Réu – mas apenas contra o Réu, reclamando deste a proteção infortunística que a lei laboral concede para o acidente, que qualificou como de trabalho. Na petição inicial, a Autora invocou estar no regime de contrato de trabalho em funções públicas e invocou precisamente que era indiferente este regime para a definição da competência, pois o regime aplicável era o de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho (artigos 9º a 15º da petição inicial).
Seria assim clara a competência do Tribunal do Trabalho, pois que, nos termos do artigo 126º, nº 1, al. c) da Lei nº 62/2013, de 26.8 (LOSJ) compete às secções do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Será assim?
O Réu foi criado pelo DL 326/2007 de 28 de setembro, em cujo preâmbulo se lê:
(…)
Simplesmente, se é verdade que o artigo 2º do DL 503/99 de 20 de novembro, estabelece a aplicação do regime de acidente de trabalho nele previsto aos trabalhadores com contrato de trabalho em funções públicas ao serviço da administração indireta do Estado, como conciliar com o próprio diploma que criou o Réu?
O DL 326/2007 de 28 de setembro estabelece, no seu artigo 5º: “1 - Às entidades públicas empresariais criadas pelo presente decreto-lei aplica-se, com as necessárias adaptações, o regime jurídico, financeiro e de recursos humanos, constante dos capítulos II, III e IV do Decreto-Lei 233/2005, de 29 de dezembro.
2 - A aplicação do capítulo IV do Decreto-Lei 233/2005, de 29 de dezembro, ao pessoal de todos os hospitais E. P. E. com relação jurídica de emprego público não prejudica a aplicação das regras gerais de mobilidade e racionalização de efetivos em vigor para os funcionários e agentes da Administração, designadamente as constantes da Lei 53/2006, de 7 de dezembro, e do Decreto-Lei 200/2006, de 25 de outubro, com as necessárias adaptações”.
E o DL 233/2005, por sua vez, no capítulo IV – sem prejuízo do regime transitório previsto no artigo 15º, que nos autos não temos elementos sobre a data em que a A. iniciou a laboração para o Réu – prevê, como norma geral, no seu artigo 14º, que “Os trabalhadores dos hospitais E. P. E. estão sujeitos ao regime do contrato de trabalho, nos termos do Código do Trabalho, bem como ao regime disposto em diplomas que definam o regime legal de carreira de profissões da saúde, demais legislação laboral, normas imperativas sobre títulos profissionais, instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e regulamentos internos”.
Acresce que se o modelo de gestão mais adequado é visado com a criação das entidades públicas empresariais, se a aproximação é tendencial para todos os hospitais do Serviço Nacional de Saúde, se a aproximação se faz a um modelo privado, um modelo de gestão privada, ainda que fortemente condicionado ou tutelado pelo interesse público, haverá então de conceder-se, dizíamos, que é insuficiente, para a questão da definição da competência material dos tribunais, afirmar que a integração na administração indireta do Estado desloca essa competência para fora do domínio privado, sobre o qual rege o Direito do Trabalho. E haverá ainda de reforçar-se que este mesmo modelo de gestão, visando uma gestão racional e eficiente, não tem de resolver-se apenas no âmbito das relações entre o Centro Hospitalar e os utentes, mas compreensivelmente, tal gestão abarca todos os domínios, designadamente também o das relações com os recursos humanos dos Centros Hospitalares. Assim se justifica a referida menção legislativa expressa (acima citado artigo 14º do DL 233/2005) da regra da sujeição ao regime do contrato de trabalho.
A conciliação, que não é mais do que dizer que não nos podemos afastar do texto da lei, designadamente invocando a natureza integrada na administração indireta do Estado, vamos buscá-la ao próprio DL 503/99 de 20 de novembro, na versão aplicável ao tempo do acidente, isto é, com as alterações resultantes da Lei 59/2008 e da Lei 64-A/2008:
“1 - O disposto no presente decreto-lei é aplicável a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, nas modalidades de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, nos serviços da administração direta e indireta do Estado.
2 (…)
3 (…)
4 - Aos trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais ou noutras entidades não abrangidas pelo disposto nos números anteriores é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto, devendo as respetivas entidades empregadoras transferir a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho nos termos previstos naquele Código.
(…)
Se o próprio DL 503/99 estabelece a distinção, expressamente, entre empregadores, digamos assim, integrados na administração indireta do Estado e entidades públicas empresariais – confronto do nº 1 com o nº 4 do artigo 2º ora transcrito – se o objetivo da criação de entidades públicas empresariais, convertendo anteriores hospitais públicos, é a gestão racionalizada e se esta inclui ou envolve a aplicação do regime regra do contrato de trabalho, se é o próprio diploma que cria o Réu que estabelece a aplicação deste regime, então não é possível, salvo melhor opinião e com o devido respeito, sob pena de frustração dos intuitos do legislador, entender que os Centros Hospitalares integram a administração indireta do Estado para o efeito de, no tocante à definição legal da proteção infortunística, se subsumirem ao nº 1 do citado artigo 2º do DL 503/99 e não ao nº 4 do mesmo preceito, que expressamente os prevê. Ou, melhor dizendo, ainda que teoricamente tais Centros integrem a administração indireta do Estado, ainda que a relação seja de emprego público, a verdade é que, havendo previsão expressa – referido nº 4 – há de obedecer-se a ela, e portanto entender que os acidentes sofridos por trabalhadores ao serviço de entidades públicas empresariais, estão sujeitos à proteção infortunística laboral.
Conclui-se pois, pela pertinência da invocação, pela Autora, da ocorrência de acidente de trabalho, e pela aplicação do artigo 126º nº 1 al. c) da Lei 62/2013 de 26 de agosto (LOSJ), segundo a qual compete às secções do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, razão pela qual se impõe revogar a decisão recorrida e ordenar o normal prosseguimento dos autos no Tribunal do Trabalho recorrido. »
III
1 - Está em causa no presente processo a interpretação dos n.ºs 1 e 4 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, na redação resultante da Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro.
A decisão da 1.ª instância, apoiando-se no n.º 1 daquele artigo e na integração do Réu na administração indireta do Estado, considerou que o acidente sofrido pela autora deveria ser considerado como um acidente em serviço, nos termos daquele diploma, e como tal deveriam ser os tribunais da jurisdição administrativa a conhecer do litígio.
A decisão recorrida, sem pôr em causa a integração do Réu na administração indireta do Estado, considerou que natureza de entidade pública empresarial, nos termos do n.º 4 daquele artigo, arrastava a integração do acidente dos autos no regime de direito privado emergente do Código do Trabalho e respetiva legislação complementar, pelo que, em coerência, deveriam ser os tribunais judiciais a conhecer do litígio.
2 – Resulta dos autos que a Autora desempenhava, na data do acidente, as suas funções para o Réu a coberto de um contrato de trabalho em funções públicas e que era subscritora da Caixa Geral de Aposentações desde janeiro de 1983, tendo transitado para aquele vínculo do anterior regime de vinculação dos trabalhadores que desempenhavam funções públicas.
A Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, aprovou o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, em sintonia com o regime dos vínculos dos trabalhadores que desempenham funções públicas, resultante da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, que disciplinou os regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas.
É sabido que este diploma rompeu com o modelo tradicional de vinculação daqueles trabalhadores, estabelecendo no seu artigo 9.º, basicamente, duas novas categorias de vínculo: - a nomeação e o contrato de trabalho em funções públicas. É prevista ainda, nos termos do n.º 3 deste artigo, a comissão de serviço como forma de vinculação, que, contudo, não releva no âmbito deste processo.
No artigo 10.º deste diploma define-se o âmbito do regime de nomeação e no artigo 20.º estabelece-se o do contrato de trabalho em funções públicas, este por exclusão de partes, ou seja, ficariam sujeitos a esse regime os trabalhadores que não fossem vinculados por nomeação, ou em comissão de serviço.
Nos termos do seu artigo 98.º aquela Lei impôs a transição para o regime de contrato de trabalho em funções públicas aos trabalhadores que não se integrassem no âmbito do regime de nomeação acima referido, enquanto os demais mantinham o regime de nomeação previsto da nova lei.
O modelo emergente deste diploma veio a consolidar-se com a Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, que estabeleceu o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas.
2.1 - A Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, definiu o seu âmbito de aplicação nos artigos 2.º e 3.º que são do seguinte teor:
«Artigo 2.º
Âmbito de aplicação subjetivo
1 - A presente lei é aplicável a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, independentemente da modalidade de vinculação e de constituição da relação jurídica de emprego público ao abrigo da qual exercem as respetivas funções.
2 - A presente lei é também aplicável, com as necessárias adaptações, aos atuais trabalhadores com a qualidade de funcionário ou agente de pessoas coletivas que se encontrem excluídas do seu âmbito de aplicação objetivo.
3 - Sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e e) do artigo 10.º, a presente lei não é aplicável aos militares das Forças Armadas e da Guarda Nacional Republicana, cujos regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações constam de leis especiais.
4 – (…).»
«Artigo 3.º
Âmbito de aplicação objetivo
1 - A presente lei é aplicável aos serviços da administração direta e indireta do Estado.
2 - A presente lei é também aplicável, com as necessárias adaptações, designadamente no que respeita às competências em matéria administrativa dos correspondentes órgãos de governo próprio, aos serviços das administrações regionais e autárquicas.
3 - A presente lei é ainda aplicável, com as adaptações impostas pela observância das correspondentes competências, aos órgãos e serviços de apoio do Presidente da República, da Assembleia da República, dos tribunais e do Ministério Público e respetivos órgãos de gestão e de outros órgãos independentes.
4 – (…).
5 - Sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo anterior, a presente lei não é aplicável às entidades públicas empresariais nem aos gabinetes de apoio quer dos membros do Governo quer dos titulares dos órgãos referidos nos n.ºs 2 e 3.»
De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 2.º, o regime de vínculos consagrado seria aplicável «a todos os trabalhadores que exercem funções, independentemente da modalidade de vinculação e de constituição da relação jurídica de emprego público ao abrigo da qual exercem as respetivas funções» e, nos termos do n.º 2 do mesmo dispositivo, aquele regime seria igualmente aplicável «aos atuais trabalhadores com a qualidade de funcionário ou agente de pessoas coletivas que se encontrem excluídas do seu âmbito de aplicação objetivo», que é definido no artigo 3.º.
Por outro lado, nos termos do n.º 1 deste artigo 3.º, o regime estabelecido é aplicável aos serviços da administração direta e indireta do Estado e nos termos do n.º 5 do mesmo artigo, «sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo anterior, a presente lei não é aplicável às entidades públicas empresariais …».
Resulta, em síntese, destes dispositivos que os trabalhadores que tinham o estatuto de funcionários públicos e que se encontravam ao serviço de entidades públicas empresariais transitaram para o regime do contrato de trabalho em funções públicas, apesar de o novo regime de vinculação não ser aplicável a essas entidades, onde o regime de trabalho regra era o do contrato de trabalho de direito privado, tal como resultava dos artigos 16.º e 23.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º DL n.º 558/99, de 17 de dezembro, que estabelecia o regime jurídico do setor empresarial do Estado e das empresas públicas e que veio a ser substituído pelo Decreto-lei n.º 133/2013, de 3 de outubro.
3 – O Réu Centro Hospitalar do ..., EPE foi criado pelo Decreto-Lei n.º 326/2007, de 28 de setembro, que, para além do mais, aprovou os respetivos estatutos.
O artigo 5.º daquele diploma consagra algumas das linhas do regime jurídico das entidades criadas, sendo do seguinte teor:
«Artigo 5.º
Regime aplicável
1 - Às entidades públicas empresariais criadas pelo presente decreto-lei aplica-se, com as necessárias adaptações, o regime jurídico, financeiro e de recursos humanos, constante dos capítulos II, III e IV do Decreto-Lei n.º 233/2005, de 29 de dezembro.
2 - A aplicação do capítulo IV do Decreto-Lei n.º 233/2005, de 29 de dezembro, ao pessoal de todos os hospitais E. P. E. com relação jurídica de emprego público não prejudica a aplicação das regras gerais de mobilidade e racionalização de efetivos em vigor para os funcionários e agentes da Administração, designadamente as constantes da Lei n.º 53/2006, de 7 de dezembro, e do Decreto-Lei n.º 200/2006, de 25 de outubro, com as necessárias adaptações.»
Em síntese, resulta deste artigo que o regime de recursos humanos imposto ao Réu é o que resulta do Decreto-Lei n.º 233/2005, de 29 de dezembro, e, por força do n.º 2 do mesmo artigo, a aplicação daquele regime «ao pessoal de todos os hospitais EPE com relação jurídica de emprego público» não prejudica a aplicação a estes trabalhadores do regime da mobilidade e racionalização de efetivos referido naquele dispositivo.
O artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 233/2005, de 29 de dezembro, define o regime de pessoal das EPE no âmbito da saúde, nos seguintes termos:
«Artigo 14.º
Regime de pessoal
1- Os trabalhadores dos hospitais E. P. E. estão sujeitos ao regime do contrato de trabalho, de acordo com o Código do Trabalho, demais legislação laboral, normas imperativas sobre títulos profissionais, instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e regulamentos internos.
2 - Os hospitais E. P. E. devem prever anualmente uma dotação global de pessoal, através dos respetivos orçamentos, considerando os planos de atividade.
3- Sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 15.º, os hospitais E. P. E. não podem celebrar contratos de trabalho para além da dotação referida no número anterior.
4 - Os processos de recrutamento devem assentar na adequação dos profissionais às funções a desenvolver e assegurar os princípios da igualdade de oportunidades, da imparcialidade, da boa fé e da não discriminação, bem como da publicidade, exceto em casos de manifesta urgência devidamente fundamentada.»
Coerentemente com o regime geral das EPE, este artigo consagra como regime geral do trabalho no âmbito destas EPE o do contrato de trabalho de direito privado, estabelecendo o artigo 15.º o regime de transição do pessoal como relação jurídica de emprego público para as novas EPE, sendo do seguinte teor:
«Artigo 15.º
Regime transitório do pessoal com relação jurídica de emprego público
1 - O pessoal com relação jurídica de emprego público que, à data da entrada em vigor do presente decreto-lei, esteja provido em lugares dos quadros das unidades de saúde abrangidas pelo artigo 1.º, bem como o respetivo pessoal com contrato administrativo de provimento, transita para os hospitais E. P. E. que lhes sucedem, sendo garantida a manutenção integral do seu estatuto jurídico, sem prejuízo do disposto no Decreto- Lei n.º 193/2002, de 25 de setembro.
2 - Mantêm-se com caráter residual os quadros de pessoal das unidades de saúde referidas no número anterior, exclusivamente para efeitos de acesso dos funcionários, sendo os respetivos lugares a extinguir quando vagarem, da base para o topo.
3 - Mantêm-se válidos os concursos de pessoal pendentes e os estágios e cursos de especialização em curso à data da entrada em vigor do presente decreto-lei.
4 - O pessoal a que se refere o presente artigo pode optar a todo o tempo pelo regime do contrato de trabalho nos termos dos artigos seguintes.»
Analisado o regime decorrente destes dois artigos, constata-se que se estabelece o regime do contrato de trabalho de direito privado para os trabalhadores que venham a ser contratados, coerentemente, com a disciplina que resulta do regime das EPE.
Já relativamente aos trabalhadores, que, de acordo com o regime acima referido, se mantiveram no âmbito do regime de contrato de trabalho em funções públicas, o artigo 15.º estabelece que «transita[m] para os hospitais EPE (…), sendo garantida a manutenção integral do seu estatuto jurídico, sem prejuízo do disposto no Decreto-lei n.º 193/2002, de 25 de setembro».
Em síntese, todos os trabalhadores que se encontravam vinculados aos estabelecimentos hospitalares por uma relação jurídica de emprego público mantinham integralmente o respetivo estatuto jurídico, apesar de vinculados às novas entidades EPE, consagrando-se, contudo, a possibilidade de os mesmos virem a optar pelo regime do contrato de trabalho de direito privado, opção que não releva no caso dos autos, por a Autora não ter optado por tal regime.
A garantia da manutenção integral do estatuto projeta-se no regime dos acidentes em serviço que está na base do litígio a resolver no presente processo.
Mas, coerentemente com esta disciplina, o artigo 19.º consagra as bases do regime de proteção social dos trabalhadores ao serviço das novas entidades hospitalares, nos seguintes termos:
«Artigo 19.º
Regime de proteção social
1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 15.º, no n.º 1 do artigo 17.º e no n.º 1 do artigo anterior, o regime de proteção social dos hospitais E. P. E. é o regime geral da segurança social.
2 - Relativamente aos funcionários e agentes que não optem pelo regime do contrato de trabalho ou que, nos termos do número anterior, mantenham o regime de proteção social da função pública, os hospitais E. P. E. contribuem para o financiamento da Caixa Geral de Aposentações com a importância que se encontrar legalmente estabelecida para a contribuição das entidades empregadoras com autonomia administrativa e financeira.
3 - Os hospitais E. P. E. observam, relativamente ao pessoal referido no número anterior, o regime previsto no Decreto-Lei n.º 118/83, de 25 de fevereiro, e no Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, para os organismos dotados de autonomia administrativa e financeira.»
Em síntese, os trabalhadores que mantenham o vínculo jurídico de natureza pública conservam o regime de proteção social anterior, tal como resulta do n.ºs 2 e 3 deste artigo, mesmo no que se refere a acidentes em serviço.
4 – As alterações ao Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, decorrente da Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, surgem no contexto da implementação do regime do contrato de trabalho em funções públicas.
Na verdade, a Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, adaptou o âmbito de aplicação do regime dos acidentes em serviço ao novo regime dos vínculos, dando ao artigo 2.º daquele artigo a seguinte redação:
«Artigo 2.º
Âmbito de aplicação
1 - O disposto no presente decreto-lei é aplicável a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, nas modalidades de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, nos serviços da administração direta e indireta do Estado.
2 - O disposto no presente decreto-lei é também aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas nos serviços das administrações regionais e autárquicas e nos órgãos e serviços de apoio do Presidente da República, da Assembleia da República, dos tribunais e do Ministério Público e respetivos órgãos de gestão e de outros órgãos independentes.
3 - O disposto no presente decreto-lei é ainda aplicável aos membros dos gabinetes de apoio quer dos membros do Governo quer dos titulares dos órgãos referidos no número anterior.
4 - Aos trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais ou noutras entidades não abrangidas pelo disposto nos números anteriores é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto, devendo as respetivas entidades empregadoras transferir a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho nos termos previstos naquele Código.
5 - O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação do regime de proteção social na eventualidade de doença profissional aos trabalhadores inscritos nas instituições de segurança social.
6 - As referências legais feitas a acidentes em serviço consideram-se feitas a acidentes de trabalho.»
Da análise da nova redação deste artigo resulta evidente que o regime estabelecido é aplicável relativamente aos trabalhadores que exercem funções com vínculo de natureza pública, nos serviços da administração direta ou indireta do Estado
No que se refere aos trabalhadores que exercem funções em EPEs, ou noutras entidades públicas não abrangid[o]s pelos números anteriores, de acordo com o disposto no n.º 4, «é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto, devendo as respetivas entidades empregadoras transferir a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho nos termos previstos naquele Código».
Esta norma está claramente direcionada para os trabalhadores das EPE em regime de contrato de trabalho de direito privado, em relação aos quais o regime de proteção relativo a acidentes em serviço é o que resulta do Código do Trabalho, hoje o Código de Trabalho de 2009, e da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.
A norma daquele n.º 4 não pode ser interpretada no sentido de retirar os trabalhadores das EPE da saúde com relação jurídica de emprego público, do regime da proteção dos acidentes em serviço, que é parte integrante do seu estatuto, conforme acima se referiu.
Na verdade tal interpretação colide diretamente com o teor do n.º1 deste artigo e com o facto de as entidades empresariais em causa integrarem a administração indireta do Estado, mas acima de tudo, com as normas específicas das EPE da saúde acima referidas e que garantiram àqueles trabalhadores a manutenção integral do respetivo estatuto.
A norma daquele n.º 4 do artigo 2.º do Decreto-lei n.º 503/99, de 20 de novembro, não poderá ser lida fora do contexto do regime jurídico concreto que enquadra os trabalhadores que desempenham funções públicas, nomeadamente, no âmbito das entidades públicas empresariais, uma vez que é parte integrante da unidade de sistema que caracteriza o regime jurídico de prestação de trabalho destes trabalhadores.
Tal interpretação colidiria com os princípios em termos de hermenêutica jurídica, violando, claramente, o disposto no n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil, que impõe que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico» conduzindo ao absurdo de impor a trabalhadores que têm um relação de trabalho de natureza pública um regime de proteção de acidentes em serviço de direito privado.
Acresce que a atribuição do estatuto de EPE aos hospitais, conforme bem se considerou no acórdão do Tribunal de Conflitos acima referido, não retirou os hospitais do âmbito da administração indireta do Estado e não pôs em causa a sua natureza de pessoas coletivas públicas, pelo que os trabalhadores ao serviço destes, com vínculo de natureza pública, sempre serão abrangidos pelo n.º 1 do referido artigo 2.º do Decreto-Lei n,º 503/99, de 20 de novembro.
IV
1 - Resulta do artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República (CRP), que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
No âmbito dos tribunais judiciais, incumbe às Secções do Trabalho das Instâncias Centrais dos Tribunais de Comarca, nos termos do artigo 126.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto - Lei da Organização do Sistema Judiciário - conhecer em matéria cível dos litígios emergentes de relação de trabalho subordinado, nomeadamente, «b) das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho».
Decorre, igualmente, da alínea n) deste artigo, que compete àquelas secções o julgamento «n) das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente».
Por outro lado, resulta do artigo 212.°, n.º 3, da Constituição da República, que compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os «litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
A competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais veio a ser concretizada no artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 17 de fevereiro[2], no quadro das normas constitucionais acimas citadas, reafirmando-se no n.º 1 do artigo 1.º daquele diploma que «os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
Na determinação do conteúdo do conceito de relação jurídico administrativa ou fiscal, tal como referem J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, deve ter-se presente que «esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal»[3].
Coerentemente com o conceito de relação jurídico administrativa, assumida como critério orientador na definição da competência da jurisdição administrativa, nos termos do n.º 3 alínea d) do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na sua versão original, esclareceu-se desde logo que estava excluída daquela jurisdição a «apreciação dos litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, que não conferem a qualidade de agente administrativo, ainda que uma das partes seja pessoa coletiva de direito público».
No quadro constitucional, a Lei n.º 12 –A/2008, de 27 de fevereiro, no seu artigo 83.º, n.º 1, que aprovou «os regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas, veio precisar que «os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os competentes para apreciar os litígios emergentes das relações jurídicas de emprego público».
A Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, que aprovou o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, em coerência com a competência delineada para os Tribunais Administrativos e Fiscais veio através do seu artigo 10.º alterar o Estatuto daqueles Tribunais passando a prever no seu artigo 4.º, n.º 3, que «ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas», dispositivo que corresponde à alínea b) do n.º 4 do mesmo artigo, na versão resultante do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro, em vigor.
À luz do acima referido, a relação jurídica que vincula a autora ao Réu enquadrava-se num contrato de trabalho em funções públicas disciplinado à época pelo regime dessa forma de vinculação em funções públicas aprovado pela Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro, diploma que veio a ser revogado pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, que aprovou a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.
Por outro lado, também à luz do acima referido, o acidente sofrido pela Autora deve ser considerado como um acidente em serviço, disciplinado pelo Decreto-lei n.º 503/99, de 20 de novembro.
O litígio a dirimir no presente processo deverá ser enquadrado pelo Direito Público, emergindo claramente de uma relação jurídico administrativa, pelo que a competência para conhecer do mesmo é dos Tribunais da Jurisdição Administrativa.
V
Em face do exposto acorda-se em conceder a revista e em revogar a decisão recorrida, repristinando-se, nos seus precisos termos, a decisão do tribunal de 1.ª instância.
Custas pela Autora.
Lisboa, 17 de novembro de 2016
António Leones Dantas - Relator
Ana Luísa Geraldes
Ribeiro Cardoso
_______________________________________________________
[1] Disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI.
[2] Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, com as alterações decorrentes do DL n.º 214-G/2015, de 02/10, da Lei n.º 20/2012, de 14/05; da Lei n.º 55-A/2010, de 31/12; do DL n.º 166/2009, de 31/07; da Lei n.º 59/2008, de 11/09; da Lei n.º 52/2008, de 28/08; da Lei n.º 26/2008, de 27/06; da Lei n.º 2/2008, de 14/01; da Lei n.º 1/2008, de 14/01; da Lei n.º 107-D/2003, de 31/12; da Lei n.º 4-A/2003, de 19/02 e objeto da Retificação n.º 18/2002, de 12/04 e da Retificação n.º 14/2002, de 20/03.
[3] Constituição da República Portuguesa, Volume II, Coimbra Editora, 2010, p. p. 566 e 567.