FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS
ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
ANALOGIA
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DO RECURSO
PROCESSO TUTELAR
INTERPRETAÇÃO DA LEI
RECURSO DE APELAÇÃO
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
INCUMPRIMENTO
RESPONSABILIDADES PARENTAIS
EXECUÇÃO POR ALIMENTOS
Sumário


I. O procedimento especial previsto no artigo 3.º da Lei n.º 75/98, de 19/11, quer pela sua finalidade, quer pela própria tramitação, é distinto do incidente de incumprimento da regulação das responsabilidades parentais, dantes previsto no artigo 181.º da OTM e hoje constante do artigo 41.º da Lei n.º 141/2015, de 08/09 (RGPTC), ainda que processado nos próprios autos deste incidente.

II. Nem tão pouco aquele procedimento se confunde com os meios pré-executivos para efetivar a prestação de alimentos a menores contra pessoa judicialmente obrigada a prestá-los, nos casos e termos dantes previstos no artigo 189.º da OTM e hoje mantidos no artigo 48.º da Lei n.º 141/2015.
III. Uma interpretação extensiva ou analógica do n.º 3 do artigo 32.º do RGPTC no sentido de compreender, para efeitos de aplicar o prazo de 15 dias de interposição de recurso nos processos tutelares cíveis, o recurso previsto no artigo 3.º, n.º 5, da Lei n.º 75/98, que remete para a lei processual civil, parece colidir com os limites jurisdicionais de interpretação e aplicação da lei. Ademais, face a tão destacada especialidade daquele normativo (da Lei n.º 75/98), uma tal interpretação levaria a uma solução suscetível de surpreender as partes.
IV. O n.º 2 do artigo 644.º prefigura hipóteses de recurso de apelação autónoma sobre decisões interlocutórias em derrogação da regra estabelecida no n.º 3 do mesmo artigo, segundo a qual dessas decisões não cabe apelação autónoma, mas mera impugnação no recurso que vier a ser interposto das decisões previstas no n.º 1.
V. Assim, da economia daquele normativo depreende-se que os “demais casos especialmente previstos na lei” a que se refere a respetiva alínea i) serão os casos de decisões interlocutórias que, segundo disposição especial, não ficam sujeitas à regra estatuída no n.º 3 do artigo 644.º.
VI. Nessa linha de entendimento, a decisão referida no n.º 5 do artigo 3.º da Lei n.º 75/98 não deve ser considerada como um dos casos especiais a que se refere a alínea i) do n.º 2 do artigo 644.º, mormente para efeitos da remissão editada na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 638.º ambos do CPC.
VII. Consequentemente, o prazo de interposição do recurso previsto no n.º 5 do artigo 3.º da Lei n.º 75/98 é de 30 dias nos termos da 1.ª parte do n.º 1 do artigo 638.º do CPC.

Texto Integral

Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. Nos autos de incumprimento de responsabilidades parentais acima identificados, após verificação, em 16/06/2015, da falta de pagamento de prestações de alimentos devidos à menor AA pelo seu progenitor BB, sob a subsequente promoção do Ministério Público, foi determinado que o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM) assegure o pagamento da quantia mensal de € 75,00 correspondente às prestações em causa, conforme decisão reproduzida a fls. 21-23, de 18/11/2015.   

2. Inconformado com essa decisão, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., na qualidade de gestor do FGADM, veio apelar dela para o Tribunal da Relação do Porto, mas tal recurso foi liminarmente rejeitado com fundamento em extemporaneidade, por considerar que o prazo para interposição do recurso era de 15 dias, limitando-se, no que aqui releva, a citar o artigo 638.º, n.º 1, do CPC, mas sem indicar a base legal a que, porventura, reporta a tácita remissão da 2.ª parte deste normativo, conforme se alcança da decisão reproduzida a fls. 20, datada de 15/01/ 2016.   

3. Perante isso, o apelante deduziu reclamação para o tribunal de recurso, nos termos do artigo 643.º do CPC, tendo o Exm.º Relator proferido a decisão de fls. 37-40, de 15/04/2016, a indeferir aquela reclamação, por considerar ser aplicável ao caso o prazo de 15 dias previsto no n.º 3 do artigo 32.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), constante da Lei n.º 141/2015, de 08/09.

4. Deduzida nova reclamação para a conferência, foi proferido o acórdão de fls. 54-59, datado de 10/06/2016, a considerar que, embora não se aplicasse ao caso o disposto no n.º 3 do artigo 32.º do RGPTC, ainda assim o prazo de recurso era de 15 dias, nos termos conjugados dos artigos 638.º, n.º 1, e 644.º, n.º 2, alínea i), do CPC, mantendo, nessa base, as decisões reclamadas de rejeição da apelação.

5. Veio então o apelante interpor a presente revista, a pugnar pela admissão daquele recurso, formulando as seguintes conclusões:  

1.ª - A decisão judicial em crise parte de uma premissa de raciocínio erróneo, na interpretação e na aplicação, em concreto, do direito, com violação das regras jurídicas aplicáveis ao caso em concreto, bem como na violação aplicação da lei de processo.

2.ª - O acórdão recorrido, ao decidir pela confirmação da rejeição do recurso interposto por intempestivo viola o disposto no n.º 1 do art.º 638.º do CPC;

3.ª – E decide pela aplicação do dispositivo legal, aplicando, porém, 15 dias em conjugação com o n.º 2 do art.º 644.º do mesmo diploma;

4.ª - Contudo, é de aplicar o n.º 1 do art.º 638.º do CPC, o qual prevê, por sua vez, o prazo de 30 dias;

5.ª - Em suma, a questão que importa, na interpretação e aplicação devida, é a de decidir se o prazo de que dispõe o FGADM para interpor recurso nos presentes autos é o de 30 dias, previsto no art.° 638.º do CPC, conforme sustenta o recorrente, ou o prazo de 15 dias, face ao disposto no mesmo preceito, em conjugação com o n.º 2 do art.º 644.º do mesmo diploma, no entendimento do Tribunal de 1.ª instância e da Relação;

6.ª - Certo é que, por decisão judicial, datada de 18/11/2015, e objeto de recurso interposto pelo recorrente, foi determinado que este passasse a pagar a pensão de alimentos devida à menor pelo progenitor incumbido de tal e faltoso ao abrigo dos respetivos dispositivos da Lei n.º 75/98, de 19/11, alterada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31/12 e do Dec.-Lei n.º 164/99, de 13/05, alterado pela Lei n.º 64/ 2012, de 20/12;

7.ª - Desde logo, do preâmbulo daquele decreto regulamentar resulta a intenção de proporcionar ao menor, com rapidez e eficácia, a satisfação das garantias de alimentos devidos, criando um procedimento adequado à satisfação daquele interesse já que assenta na manifesta preocupação com os incumprimentos da obrigação de alimentos, por parte de quem tem especiais responsabilidades no dever de prestar alimentos a filhos;

8.ª - Assim, ao contrário, da decisão recorrida, que se alicerça, na errónea interpretação de que estamos perante a obrigação que recai sobre o FGADM pelo pagamento das prestações devidas a menores tem natureza autónoma e subsidiária em relação à anteriormente fixada ao progenitor/incumpridor, sendo que o seu pressuposto é a não realização coativa da prestação, isto é, pressupõe a fixação prévia da obrigação de alimentos e a inviabilidade da sua cobrança coerciva, constituindo, pois uma prestação social de substituição;

9.ª - É a Lei n.º 75/98, de 19/11 que regula a Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, pelo que o fundamento da rejeição do recurso apresentado não é aplicável ao caso concreto.

10.ª - Destarte, é de se situar no âmbito do incumprimento da obrigação de alimentos, sendo a Lei n.º 75/98, de 19/11, que regula a Garantia dos Alimentos Devidos a Menores e, por não haver norma especial no dito Regime de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores e da responsabilidade social do respetivo recorrente, é de se entender aplicável o disposto no n.º 1 do art.º 638.º do CPC;

11.ª - Assim, o entendimento, na interpretação do quadro legal vigente, deverá ser de concluir que uma coisa é a prestação fixada ao obrigado a alimentos e outra é a prestação fixada nos termos daquele lei, no n.º 2 do art.º 2.º da Lei n.º 75/98, de 19/11, e do n.º 3 do art.º 3.º do Dec.-Lei n.º 164/99, de 13/05.

12.ª - Com efeito, a prestação a fixar pelo tribunal é uma prestação nova e autónoma em relação à anteriormente fixada ao devedor, devendo por conseguinte, o Tribunal considerar, no caso concreto, a aplicação do prazo normal de interposição do recurso, isto é 30 dias, nos termos da 1.a parte do n.º 1 do art.º 638.º do CPC, e consequentemente ser de admitir, sem mais delongas, o recurso.

13.ª - Ora, uma vez que a interposição de recurso, apresentação da alegação e conclusões pelo recorrente foi feita no dia 04/01/ 2016, nos autos de incumprimento das responsabilidades parentais, a correr os seus termos, por não se conformar com a sentença judicial em crise, no recurso em questão, face à notificação daquela, e decorrido o prazo legal de presunção de notificação de três dias, iniciando-se a contagem do prazo normal para a interposição de recurso, qual é de 30 dias, pelo que aquando da sua interposição estava em tempo.

14.ª - Assim, o Tribunal ao decidir de forma distinta, em violação dos art.º 248.º em conjugação com disposto no art.º 249.º e com o n.º 1 do art.º 251.º e 253.º, bem como o n.º 1 do art.º 638.º do CPC, ex vi n.º 5 do art.º 3.º da Lei n.º 75/98, de 19/11, alterada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, em interpretação atualista, face ao regime dos recursos, após a entrada em vigor do CPC, na versão atual, desatende o decretamento legal.

15.ª - Assim ocorre, a violação da lei de processo, nos termos e dispositivos legais referidos e citados, que fundamenta a revista do douto acórdão em crise, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 674.º do CPC;

16.ª - Certo é que, face a constatação de que um menor esteja carecido de alimentos, o Estado não lhe garante uma prestação de alimentos a não ser que tal prestação esteja já fixada judicialmente a cargo do devedor de alimentos e estejam verificados os requisitos previstos na Lei n.º 75/98, de 19/11, e respetiva regulamentação, sendo a obrigação do FGADM, consistente apenas em assegurar que os menores recebem os alimentos fixados judicialmente a seu favor.

17.ª - É a Lei n.º 75/98, de 19/11, que regula a garantia dos alimentos devidos a menores, pelo que o prazo de 15 dias não se aplica, neste caso concreto, no qual o despacho fundamenta a rejeição do recurso apresentado e mantido pelo acórdão em crise, pelo que o prazo aplicável é o de 30 dias constante no n.º 1 do art.º 638.º do CPC, em conjugação, com as devidas adaptações, de sentido atualista, do disposto no n.º 5 do art.º 3.º da Lei n.º 75/98, de 19/11, e alterada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31/12;

18.ª - Assim sendo, face à notificação, datada de 19/11/2015, da sentença judicial, decorrido o prazo legal de presunção de notificação de 3 dias, presume-se em 23/11/2015, iniciando-se a contagem do prazo normal para a interposição de recurso, que é de 30 dias, isto é, o prazo iniciou-se em 24/11/2015 e terminaria a 05/01/2016;

19.ª - Ocorre a violação da lei substantiva, nos termos e dispositivos legais referidos e citados, que fundamenta a revista do acórdão em crise, nos termos da al. a) do n.º 1 do art.º 674.º do CPC.

6. A requerente CC, mãe da menor AA contra-alegou a pugnar pela confirmação do julgado, rematando com a seguinte síntese conclusiva: 

1.ª - A Recorrente alega que a decisão judicial do Tribunal da Relação do Porto faz urna aplicação errada do direito;

2.ª - Considerando que o recurso que apresentou foi tempestivo, uma vez que se aplica o prazo geral do artigo 638.º, n.º 1, do CPC;

3.º - Contudo, é de aplicar aqui o vertido no artigo 638.º, n.º 1, parte final, do CPC, que remete para o artigo 644.º, n.º 2, da mesma lei processual;

4.ª - Uma vez que estamos perante urna decisão em que cuja recorribilidade se funda em norma especial artigo 644.º, n.º 2, alínea i) do CPC e artigo 3.º, n.º 5, da Lei n.º 75/98, de 19/11, sendo o prazo de interposição de recurso de 15 dias, nos termos dos supra citados artigos;

5.ª - Nem poderia ser outro o entendimento, urna vez que a ratio legis deste diploma legal é proporcionar ao menor, no mais curto lapso de tempo possível (devido à sua situação de necessidade), a satisfação das garantias de alimentos devidos;

6.ª - De igual forma, nem faria sentido que o legislador para o regime da Lei 75/98, de 19/11, preveja o prazo normal de recurso de 30 dias, mas para o incidente de incumprimento por parte do progenitor, que é regulado pelo RGPTC, só tivesse admitido como prazo de recurso 15 dias – art.º 32.º, n.º 3, da Lei n.º 141/2015, 8 de setembro;

7.ª Como tal, o Recurso de Apelação apresentado pelo Recorrente foi intempestivo, por ter sido ultrapassado o prazo previsto legalmente, tendo o Tribunal da Relação decidido conforme a lei;

8.ª - E não tendo a Recorrente razão com a interposição deste Recurso para o tribunal, deverá o recurso apresentado ser considerado improcedente, mantendo-se a decisão do Tribunal da Relação.

7. Por fim, a Digna Representante do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal, diferentemente do assumido pelo Agente do Ministério Público junto da 1.ª instância, vem, em contra-alegações, sustentar a tese da aplicação do prazo de interposição de recurso de 15 dias estabelecido no artigo 32.º, n.º 3, da Lei n.º 141/2015, de 08/09, embora com fundamentação diversa da constante do acórdão recorrido. 

   Colhidos os vistos, cumpre decidir.


    III – Fundamentação


       O que está em causa é saber qual o prazo de interposição do recurso da decisão final proferida no procedimento previsto e regulado pelo artigo 3.º da Lei n.º 75/98, de 19/11, destinado a assegurar as prestações de alimentos devidas a menor residente em território nacional pelo FGADM, nos termos do artigo 1.º da Lei n.º 75/98 e do Dec.Lei n.º 164/99, de 13/05.

        Estão aqui em confronto três linhas de orientação:

a) – a sustentada pelo Recorrente, no sentido de ser aplicado o prazo de 30 dias, por via da conjugação do disposto no artigo 3.º, n.º 5, da Lei n.º 75/98 com o disposto no artigo 638.º, n.º 1, primeira parte, do CPC, tendo ainda em conta o preceituado no artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24-08;     

b) – a ora defendida pelo Ministério Público, no sentido de se atender ao prazo de 15 dias, por aplicação do artigo 32.º, n.º 3, do Regi-me Geral do Processo Tutelar Cível constante da Lei n.º 141/ 2015, de 8-12;

c) - a sustentada pelo acórdão impugnado e secundada pela recorrida, no sentido de também se aplicar o prazo de 15 dias, segundo a interpretação combinada dos artigos 638.º, n.º 1, segunda parte, e 644.º, n.º 2, alínea i), do CPC, este último com referência ao disposto no n.º 5 do artigo 3.º da Lei n.º 75/98.


     Vejamos.

        

     Convém recordar que do regime da Organização Tutelar de Menores (OTM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27-10, em matéria de recursos no âmbito dos processos tutelares cíveis, constavam as seguintes disposições abaixo transcritas.


Em sede de disposições gerais:  

Artigo 159.º

(Recursos)

Salvo disposição expressa, os recursos terão o efeito que o tribunal fixar.

 

 Em sede de processo de regulação do exercício do poder paternal e resolução de questões a este respeitantes:

Artigo 185.º

(Recursos)

1 – Os recursos interpostos de quaisquer decisões proferidas nos processos previstos nesta secção têm efeito meramente devolutivo.

2 – Os recursos de agravo interpostos no decorrer do processo sobem com o recurso que se interpuser da decisão final.


Em sede de alimentos devidos a menores:

Artigo 188.º

(Contestação e termos posteriores)

   4 – Da sentença cabe recurso de apelação, com efeito meramente devolutivo; os recursos de agravo interpostos no decorrer do processo sobem com o que se interpuser da decisão final.


No mais, em matéria recursória, era aplicada, subsidiariamente, a disciplina constante do CPC, por força do art.º 161.º da OTM e do então artigo 463.º, n.º 1, daquele Código, já que os processos tutelares cíveis são processos declarativos especiais considerados de jurisdição voluntária (art.º 150.º da OTM).

Paralelamente, a Lei n.º 75/98, de 19/11, veio prover sobre a garantia de alimentos devidos a menores, depois regulada pelo Dec.-Lei n.º 164/99, de 13-05, entretanto alterado pelo Dec.-Lei n.º 70/2010, de 16-06, e pela Lei n.º 64/2012, de 20-12, para o que foi constituído o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores (FGADM), gerido em conta especial pelo IGFSS, IP, conforme o estabelecido no artigo 6.º da referida Lei n.º 75/98.

E do artigo 3.º desta última Lei constam disposições processuais com vista ao acionamento da mencionada garantia contra o IGFSS, IP / FGADM, nos seguintes moldes:

1 – Compete ao Ministério Público ou àqueles a quem a prestação de alimentos deveria ser entregue requerer nos respetivos autos de incumprimento que o tribunal fixe o montante que o Estado, em substituição do devedor, deve prestar.

2 – Se for considerada justificada e urgente a pretensão do requerente, o juiz, após diligências de prova, proferirá decisão provisória.

3 – Seguidamente, o juiz mandará proceder às restantes diligências que entenda indispensáveis e a inquérito sobre as necessidades do menor, posto o que decidirá.

4 – O montante fixado pelo tribunal perdura enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão e até que cesse a obrigação a que o devedor está obrigado.

5 – Da decisão cabe recurso de agravo com efeito devolutivo para o tribunal da relação.

6 – Compete a quem receber a prestação a renovação anual da prova de que se mantém os pressupostos subjacentes à sua atribuição, sem o que a mesma cessa.


    Estamos, pois, perante um procedimento especial a deduzir, nos autos de incumprimento, contra o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., na qualidade de gestor do FGADM, nas situações previstas no artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 75/98, de 19/11, na redação dada pelo artigo 183.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12.

     Como tem vindo a ser entendido pela jurisprudência, a prestação do FGADM, embora subsidiária, é independente e autónoma da obrigação do devedor originário, tratando-se de uma obrigação ex novo que emerge com a decisão judicial que a determina[1].

      E conforme se refere no AUJ do STJ n.º 5/2015, de 19/03/2015, publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 04/05/2015:

«(…) fixado o regime do exercício das responsabilidades parentais, o seu incumprimento, na vertente da prestação de alimentos pelo progenitor que não tem a guarda do filho menor, alcança-se coercivamente através do incidente previsto no artigo 189.º da Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo DL n.º 314/78, de 27 de Outubro, preceito de feição executiva, que estabelece unicamente os meios de tornar efectiva a prestação e não comporta qualquer mecanismo de alteração do valor da prestação mensal já fixada. Trata-se de um incidente vocacionado para tornar efectiva a prestação de alimentos, que tem por único objectivo imprimir celeridade e prontidão no pagamento da dívida de alimentos a filhos menores.

É no quadro de uma pretensão de cumprimento coercivo da prestação de alimentos em dívida, previamente fixada e a pagar pelo progenitor faltoso, que o FGADM é chamado a assegurar, a “garantir” como a própria designação do Fundo inculca, ao menor credor de alimentos uma prestação que substituirá a do progenitor faltoso, assegurando o Estado, dessa forma, que nenhuma criança fique privada da prestação de alimentos a quem tem direito.»

    Hoje, o incidente de incumprimento da regulação das responsabilidades parentais, dantes sediado no artigo 189.º da OTM, encontra-se estabelecido no artigo 41.º da Lei n.º 141/2015, de 08/09.

     Ora, a pretensão de fixação da prestação alimentar em dívida a cargo do FGADM é dedutível por via do procedimento previsto no artigo 3.º da Lei n.º 75/98, de 19/11, em que se prevê a realização de diligências instrutórias com vista à “reponderação e verificação dos pressupostos de concessão de benefícios que envolvem utilização de recursos públicos, que se quer rigorosa e não descontrolada”, como se afirma no citado AUJ n.º 5/2015.

Assim sendo, quer pela sua finalidade específica, quer pela sua própria tramitação, o procedimento estabelecido no artigo 3.º da Lei n.º 75/98 não se confunde com o incidente de incumprimento dantes previsto no artigo 181.º da OTM e hoje constante do artigo 41.º da Lei n.º 141/2015 (RGPTC), ainda que seja processado nos próprios autos deste incidente. Dai que o sobredito artigo 3.º, n.º 2, 3 e 5, destaque a realização de diligências de prova e de inquérito sobre as necessidades do menor, a prolação de decisão final e a impugnabilidade desta mediante recurso de agravo com efeito devolutivo para o tribunal da relação. Nem tão pouco com aquele procedimento se devem confundir os meios pré-executivos para efetivar a prestação de alimentos a menores contra pessoa judicialmente obrigada a prestá-los, nos casos e termos dantes previstos no artigo 189.º da OTM e hoje mantidos no artigo 48.º da Lei n.º 141/2015.

    Como se disse, em matéria de recursos da decisão final daquele procedimento, o n.º 5 do transcrito artigo 3.º manda seguir os termos do recurso de agravo, cujo prazo de interposição, na altura, era de 10 dias conforme o então disposto no artigo 685.º, n.º 1, do CPC.

     Posteriormente, com a introdução do novo regime recursório pelo Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24-08, em vigor desde 01/01/2008, foi abolido o sistema dual de apelação/agravo, passando a figurar apenas, no que respeita à 2.ª instância, a espécie de recurso ordinário de apelação, cujo prazo de interposição passou a ser, nos termos do então artigo 685.º, n.º 1, do CPC, de 30 dias, salvo nos processos urgentes e nos casos previstos no artigo 691.º, n.º 2, alíneas a) a g) e i) a n), aqui por força do n.º 5 deste normativo, em que o prazo era de 15 dias.

     Em virtude disso, o artigo 4.º, n.º 1, alínea a), daquele Dec.-Lei estabeleceu que:

As referências ao agravo interposto na 1.ª instância consideram-se feitas para o recurso de apelação.

    Daí que o prazo de interposição do recurso previsto no n.º 5 do artigo 3.º da Lei n.º 75/98, que dantes era de 10 dias, passasse a reger-se pelo disposto nos indicados artigos do CPC. Na versão atual do CPC introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, os referidos prazos de 30 e 15 dias constam do artigo 638.º, n.º 1, sendo que, a parte final deste normativo remete agora para os casos previstos no n.º 2 do artigo 644.º.

E eram também essas as disposições aplicáveis aos recursos das decisões proferidas nos processos tutelares cíveis regulados na OTM.

Sucede que a OTM foi revogada pela Lei n.º 141/2015, de 08/09, passando a constar do seu artigo 32.º, n.º 3, que:

Os recursos são processados e julgados como em matéria cível, sendo o prazo de alegações e de resposta de 15 dias.  

    No que aqui releva, tal disposição é aplicável às providências tutelares cíveis de regulação do exercício das responsabilidades parentais e de conhecimento das questões a este respeitantes, como decorre da alínea c) do artigo 3.º da Lei n.º 141/2015 (RGPTC), cujos procedimentos comuns se encontram estabelecidos nos artigos 12.º a 33.º e os especiais nos artigos 34.º a 44.º da mesma Lei. Significa isto que o prazo de interposição de recurso naqueles processos tutelares cíveis passou a ser de 15 dias.       

    Porém, esta nova lei nada dispõe sobre o procedimento especial previsto e regulado no artigo 3.º da Lei n.º 75/98, de 19/11.

      Assim, sendo esta lei especial não pode ser tida como tacitamente revogada pelo Regime Geral do Processo Tutelar Cível constante da Lei n.º 141/2015, de 08/09, nos termos do disposto no artigo 7.º, n.º 3, do CC.

    Poderá admitir-se, porventura, como mais adequada a uniformização dos prazos de interposição dos recursos previstos no RGPTC e no artigo 3.º, n.º 5, da Lei n.º 75/98. Mas o que é certo é que o legislador não procedeu a tal uniformização, não se podendo, sem mais, concluir que fosse essa a sua intenção ou mesmo que fosse essa a opção legislativa a ter por mais conveniente, atenta, nomeadamente, a especificidade do chamamento eventual do IGFSS, IP / FGADM.

     Nesse conspecto, uma interpretação extensiva ou analógica do n.º 3 do artigo 32.º do RGTPC no sentido de compreender o recurso previsto no artigo 3.º, n.º 5, da Lei n.º 75/98, salvo o devido respeito, parece correr o risco de colidir com os limites jurisdicionais de interpretação e aplicação da lei. Ademais, face a tão destacada especificidade daquele normativo da Lei n.º 75/98, uma tal interpretação levaria a um solução suscetível de surpreender as partes, não só o ora Recorrente, mas também os particulares, quer como recorrentes, quer como recorridos.      

     Por tais razões, tem-se por aplicável ao recurso previsto no n.º 5 do artigo 3.º da Lei n.º 75/98 a norma do artigo 638.º, n.º 1, do CPC, como, aliás, foi entendido no acórdão recorrido.


    Posto isto, resta saber se o caso presente deve ser considerado como um dos casos especialmente previstos na lei a que se refere a alínea i) do n.º 2 do artigo 644.º do CPC, tal como se entendeu taxativamente, embora sem arrimo argumentativo, no referido acórdão.  

    Ora, o citado artigo 644.º, por sua vez, oriundo do precedente artigo 691.º do CPC, na redação dada pelo Dec.Lei n.º 303/2007, de 24-08, veio dispor sobre as chamadas “apelações autónomas”, destacando:

a) – em primeira linha, no seu n.º 1, o recurso de apelação da decisão proferida em 1.ª instância que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente (alínea a), bem como do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos (alínea b);    

b) – em segundo lugar, no n.º 2, o recurso de apelação das decisões do tribunal de 1.ª instância enunciadas nas alíneas a) a i) do mesmo  número.

      Desse modo, o n.º 2 do artigo 644.º prefigura hipóteses de recurso de apelação autónoma sobre decisões interlocutórias em derrogação da regra estabelecida no n.º 3 do mesmo artigo, segundo a qual dessas decisões não cabe apelação autónoma, mas mera impugnação no recurso que vier a ser interposto das decisões previstas no n.º 1 (decisões finais e do despacho saneador que não ponha termo ao processo), ressalvada ainda a hipótese do n.º 4.

     É nesse quadro que o indicado n.º 2 do artigo 644.º, depois de enunciar os tipos particulares de decisões interlocutórias previstas nas respetivas alíneas a) a h), remata, na alínea i), com a ressalva geral dos demais casos especialmente previstos na lei.

   Assim, da economia daquele normativo depreende-se que os demais casos especialmente previstos na lei serão os casos de decisões interlocutórias que, segundo disposição especial, não ficam sujeitas à regra estatuída no n.º 3 do artigo 644.º.     

     Na linha deste entendimento, impõe-se concluir que a decisão referida no n.º 5 do artigo 3.º da Lei n.º 75/98 não deve ser considerada como um dos casos especiais preconizados na alínea i) do n.º 2 do artigo 644.º.

      Com efeito, aquele preceito contempla a impugnabilidade de uma decisão final proferida no procedimento especial regulado pelo sobredito artigo 3.º da Lei n.º 75/98, a qual, por isso mesmo, não se traduz em decisão de natureza interlocutória, a que seja aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 644.º do CPC, muito embora o dito procedimento seja processado nos autos de incumprimento da regulação das responsabilidades parentais e por emergência deste. A este processamento parece sobrepor-se a autonomia teleológica e de tramitação daquele procedimento, em consonância com o disposto no citado artigo 3.º da Lei n.º 71/98.        

     Nessa conformidade, não resta senão concluir pela aplicação do prazo de 30 dias estabelecido na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 638.º do CPC ao recurso previsto no n.º 5 do artigo 3.º da Lei n.º 71/98, sendo que dos dados do processo se afigura que o recurso fora interposto dentro desse prazo.          

     Termos em que procede a revista.   


III – Decisão

 

     Pelo exposto, acorda-se em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido e ordenando-se que seja admitido pela 1.ª instância o recurso de apelação interposto pelo ora Recorrente, caso não ocorra qualquer outro fundamento de rejeição, o que aqui se não divisa.

        Sem custas por delas estarem isentas as partes (artigo 4.º, n.º 1, alíneas a), i) e v), do RCP. 

Lisboa, 14 de dezembro de 2016

                                     

Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

                                                        

Carlos Alberto Andrade Bettencourt de Faria 

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[1] Vide, o AUJ do STJ n.º 12/2009, de 07/07/2009, proferido no agravo ampliado n.º 682/09, publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 05/08/2009; e, mais recentemente, o AUJ do STJ n.º 5/2015, de 19/03/2015, publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 04/05/2015.