I - Diversamente do que sucede no sistema jurídico alemão, o registo assume no nosso sistema, “apesar das fragilidades e críticas pertinentes dirigidas ao princípio da consensualidade”, uma natureza declarativa.
II - Tal como no caso da dação «pro solvendo», a dação em cumprimento é uma causa extintiva das obrigações além do cumprimento: enquanto, através da primeira – dação em função do cumprimento – o devedor pretende facilitar ao credor a realização do seu direito de crédito, realizando uma prestação diversa da devida, tendente a esse fim, na dação em cumprimento, o devedor tem a intenção de extinguir, mediante a entrega de coisa diversa da prestação da que se tinha obrigado, de forma imediata, a sua obrigação.
III - Mediante este mecanismo de extinção das obrigações, o devedor, tendo obtido o assentimento ou concordância do credor, extingue o crédito que tinha contraído perante este, embora utilizando, ou conferindo, uma prestação diversa da prestação inicialmente convencionada.
IV - Tratando-se de uma convenção, ou acordo, neste caso destinado ao cumprimento de uma obrigação, e necessitando, pour cause, de uma produção de declarações de vontade recíprocas e consonantes, a dação em cumprimento adquire a estrutura típica de um negócio jurídico bilateral, sujeito à livre autonomia das vontades que nele se expressam.
V - A aceitação expressa de que através da dação fica cumprida a prestação correspondente à dívida que os dadores tinham contraído perante o banco credor, produziu a extinção da obrigação, empossando, ipso facto o credor na titularidade do bem transmitido para a sua esfera jurídico-patrimonial.
VI - Numa integração sistémica (de direito) da normação de insolvência (art. 17.º-F, n.º 5, e 202.º, n.º 2, do CIRE) com a de registo predial (art. 101.º, n.º 5, do CRgP) e do direito civil (art. 824.º, n.º 2, do CC), o cancelamento de ónus e encargos que recaiam sobre bens que hajam sido dados em cumprimento num plano de revitalização, desde que homologado judicialmente, deve ser oficioso.
Recorrente: “BANCO AA (Portugal), S.A.”
Recorrida: Conservatória do Registo Predial de ....
I. Relatório
BANCO AA (Portugal), S.A., com sede na Avenida ..., n.º 000, em …, impugnou judicialmente o despacho de indeferimento dos recursos hierárquicos por si interpostos contra a Conservatória do Registo Predial de …, correspondentes às Apresentações n.ºs 0082, 0109, 0127 e 0129, de 2015-03-13, quanto aos despachos de recusa de cancelamento de hipotecas/penhora referente às Apresentações n.ºs 37, 38, 39 e 40, de 2015-02-08, pedindo que, na procedência da impugnação, sejam cancelados, oficiosamente, os seguintes ónus/encargos registados sobre os prédios com os n.ºs 0735, 0736 e 0738, todos da freguesia de ..., concretamente:
- Quanto ao prédio descrito sob o n.º 0735:
a) cancelamento de duas hipotecas a favor do BANCO AA (Portugal), S.A,. nos termos das inscrições Ap. 17, de 21/07/2005 e Ap. 0581, de 21/09/2009; b) cancelamento de uma hipoteca a favor da BB, S.A., nos termos da inscrição Ap. 0128, de 04/12/2009.
- Quanto ao prédio descrito sob o n.º 0736:
a) cancelamento de duas hipotecas a favor do BANCO AA (Portugal), S.A., nos termos das inscrições Ap. 17, de 21/07/2005 e Ap. 0581, de 21/09/2009; b) cancelamento de uma hipoteca a favor da BB, S.A. ,nos termos da inscrição Ap. 0128, de 04/12/2009.
- Quanto ao prédio descrito sob o n.º 0737:
a) cancelamento de duas hipotecas a favor do BANCO AA (Portugal), S.A., nos termos das inscrições Ap. 17, de 21/07/2005 e Ap. 0581, de 21/09/2009;
b) cancelamento de uma hipoteca a favor da BB, S.A., nos termos da inscrição Ap. 0128, de 04/12/2009; e,
c) cancelamento de uma penhora a favor da AT – Autoridade Tributária Aduaneira, nos termos da inscrição correspondente à Ap. 0357, de 19/06/2014.
- Quanto ao prédio descrito sob o n.º 0738:
a) cancelamento de duas hipotecas a favor do BANCO AA (Portugal), S.A., nos termos das inscrições Ap. 17, de 21/07/2005 e Ap. 0581, de 21/09/2009; b) cancelamento de uma hipoteca a favor da BB, S.A. nos termos da inscrição Ap. 0128, de 04/12/2009.
Para os pedidos que impetra, alega, em síntese apertada, que:
- celebrou com a sociedade “CC, Ld.ª”, um contrato de mútuo, com hipoteca e fiança, outorgado por escritura pública, em 29.09.2005, mediante o qual lhe concedeu um empréstimo no montante global de € 14.600.000,00, destinado a financiar a construção de um projecto imobiliário composto por um edifício destinado a habitação e comércio, pelo prazo de 48 meses, com início na data da outorga da escritura e termo em 29.09.2009, no qual os juros compensatórios deveriam ser liquidados e pagos em prestações postecipadas, sucessivas e trimestrais, vencidas no dia 29 de cada mês e o capital, por sua vez, seria reembolsado à impugnante, na sua totalidade, em 29.09.2009;
- Como garantia do bom e integral cumprimento de todas as obrigações assumidas na referida escritura pública, a CC constituiu a favor da impugnante hipoteca voluntária sobre os seguintes prédios: Lotes 5, 6, 7 e 8, compostos por terreno destinado a construção urbana, sitos no Lugar ... ou ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscritos na matriz, respectivamente, sob os artigos 0212, 0213, 0214 e 0215 e descritos na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob os números, respectivamente, 0735, 0736, 0737 e 0738, abrangendo todas as construções e benfeitorias, presentes e futuras;
- A firma mutuária apresentou um processo especial de revitalização que correu termos no 4.º juízo cível do Tribunal do Comércio de …, com o n.º 484/13.7TYLSB, no âmbito do qual a impugnante apresentou reclamação de créditos, tendo reclamado o valor global de € 2.521.363,30, crédito esse que integra a categoria de créditos garantidos e que foi reconhecido;
- No plano de recuperação aprovado e homologado por sentença consta, no que aos créditos garantidos diz respeito, que os mesmos “sejam pagos na íntegra através da dação em cumprimento a seu favor”, determinando ainda que “as sobreditas dações serão realizadas livres de ónus ou encargos”.
- No cumprimento do aprovado e homologado plano de recuperação, a CC deu à impugnante, livres de ónus ou encargos, os prédios acima descritos, mediante escritura de dação em cumprimento outorgada em 15.10.2014;
- O registo da aquisição a favor da impugnante foi concedido em conformidade;
- Não obstante, não se procedeu ao cancelamento dos demais ónus incidentes sobre os prédios objecto da dação em cumprimento.
- Em 08.02.2015 a impugnante requereu o cancelamento dos ónus com base na sentença homologatória do plano de recuperação e do respectivo plano;
O pedido foi distribuído à CRP de …, a qual, relativamente a tal pedido de registo, proferiu o seguinte despacho: “Recusado o registo do cancelamento de hipoteca, nos termos do artigo 69º nº 1 al. b) do Código do Registo Predial – manifesta falta de título. Os documentos juntos não permitem efectuar o cancelamento, pois não estamos no âmbito de uma aquisição decorrente de um processo de insolvência em que os cancelamentos são efectuados oficiosa e gratuitamente, nos termos do nº 5 do artigo 101º do referido Código, estamos, antes, perante uma aquisição por dação em cumprimento tomada no âmbito de um processo especial de revitalização, e como tal não há título e ainda que houvesse, o registo não poderia ser efectuado, pois não foi paga qualquer quantia.”;
- A impugnante, não se conformando com tal despacho, apresentou recurso hierárquico para o Conselho Directivo do Instituto dos Registos e Notariado, IP, com os fundamentos seguintes:
a) Primeiramente, em virtude de a Lei prever a aplicação subsidiária das normas referentes ao plano de insolvência ao plano de recuperação aprovado em sede de processo especial de revitalização, conforme resulta do disposto no artigo 17-F, n.º 5, do CIRE, o que sempre levaria à aplicação, no caso vertente, do disposto no artigo 101.º, n.º 5, do CRP.
b) Mesmo que assim não fosse, os títulos que servem de suporte ao registo de cancelamento sempre seriam suficientes para efectivação do registo. Na verdade, do plano de revitalização aprovado e homologado por sentença consta, no que aos créditos garantidos concerne, que os mesmos “sejam pagos na íntegra através da dação em cumprimento a seu favor”, determinando ainda que “as sobreditas dações serão realizadas livres de ónus ou encargos”. Por seu lado, da escritura de aquisição da propriedade a favor da impugnante resulta que a mesma é feita “livre de ónus ou encargos”;
c) No que à questão da falta de pagamento de emolumentos diz respeito, é do conhecimento do serviço que proferiu o despacho em crise que, procedendo-se ao registo através da plataforma informática, o sistema não gera qualquer documento para efectivação de qualquer pagamento, emitindo um documento do qual consta a seguinte indicação: “valor do preparo: 0 €”. Desse documento resulta ainda a seguinte indicação: “Isenções, Reduções e Agravamentos Emolumentares: Actos de registos exigidos para execução de providências integradoras ou decorrentes de plano de insolvência judicialmente homologado que visem o saneamento da empresa, através da recuperação do seu titular ou da sua transmissão, total ou parcial, a outra ou outras entidades.” Assim, ficou a impugnante, por um lado, impedida de efectuar qualquer pagamento e, por outro, com a percepção de que tal pagamento não seria devido. Não obstante, caso entendesse que havia lugar ao pagamento de qualquer emolumento, deveria a entidade recorrida proceder à notificação da impugnante para efectuar o pagamento em falta;
- Não obstante os fundamentos invocados, o Conselho Directivo do Instituto dos Registos e Notariado, IP não concedeu provimento e proferiu despacho com a seguinte conclusão: “A dação em cumprimento realizada em execução de processo especial de revitalização não produz os efeitos do artigo 824.º do Código Civil, pelo que o registo respectivo não suscita a aplicação do artigo 101.º, n.º 5, do Código de Registo Predial”.
- Acresce que os créditos da impugnante foram reconhecidos na categoria de créditos garantidos, em virtude das hipotecas sobre os bens supra identificados, registadas a favor da impugnante em momento anterior às demais hipotecas e penhoras registadas sobre os mesmos prédios;
- Tal facto determina que o crédito da impugnante goza de garantia real sobre o bem penhorado e de prioridade no que aos ónus ou encargos posteriormente registados sobre os mesmos prédios concerne;
- Conclui no sentido de dever o despacho proferido pelo Conselho Directivo do Instituto dos Registos e Notariado, IP ser revogado e substituído por um outro que, reconhecendo razão à impugnante, determine o cancelamento dos ónus e encargos registados sobre os prédios supra identificados.
O M.P. pronunciou-se a fls. 235, declarando subscrever a posição assumida pelo Conselho Directivo do Instituto dos Registos e Notariado, IP.
Na sentença constante de fls. 248 a 266 foi decidido julgar a impugnação judicial totalmente improcedente.
Na apelação interposta da sentença denegatória – cfr. fls. 327 a 372 –, veio a ser decidido julgar: “(…) julgando a apelação parcialmente procedente, altera-se a decisão recorrida no segmento relativo às hipotecas de que é titular a apelante e, em consequência, determina-se o cancelamento das duas hipotecas a favor da apelante, nos termos das inscrições Ap. 17, de 21/07/2005 e Ap. 0581, de 21/09/2009, sobre cada um dos seguintes prédios:
a) Lote 5, composto por terreno destinado a construção urbana sito no lugar ... ou ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 0212 e descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 0735, abrangendo todas as construções e benfeitorias, presentes e futuras;
b) Lote 6, composto por terreno destinado a construção urbana sito no lugar ... ou ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 0213 e descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 0736, abrangendo todas as construções e benfeitorias, presentes e futuras;
c) Lote 7, composto por terreno destinado a construção urbana sito no lugar ... ou ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 0214 e descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 0737, abrangendo todas as construções e benfeitorias, presentes e futuras;
d) Lote 8, composto por terreno destinado a construção urbana sito no lugar ... ou ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 0215 e descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 0738, abrangendo todas as construções e benfeitorias, presentes e futuras.”
Por decisão de fls. 445 a 456 foi admitida a revista (excepcional) interposta pelo recorrente, por se considerar ser a questão se inseria na previsão da alínea a) do nº 5 do artigo 147º do Código Registo Predial, concluindo o recorrente a sua fundamentação com o epítome conclusivo que a seguir queda extractado.
I.a) – Quadro Conclusivo. [[1]]
Da delimitação objectiva e fundamentos do Recurso
“(…) (h) Vem o presente Recurso interposto do Acórdão do Tribunal da Relação do …, concretamente, das seguintes decisões: (i) "a remissão efectuada pelo artigo 17.º-F, n.º 5, CIRE, para as regras do regime do plano de insolvência, não legitima a aplicação do artigo 101.º, n.º 5, CRP"; (ii) os registos dos ónus ou encargos que incidem sobre os imóveis em causa, com excepção das hipotecas constituídas a favor da Recorrente, BANCO AA, não podem ser cancelados, por manifesta falta de título.
(i) O presente Recurso é interposto com os seguintes fundamentos:
(i.1.) erro na determinação da norma aplicável, porquanto considera a Recorrente que deveria o Tribunal da Relação ter decidido pela aplicabilidade in casu do n.º 5 do artigo 101.º do CRP, com o consequente cancelamento dos registos dos ónus incidentes sobre os imóveis, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CC;
(i.2.) deveria o Tribunal da Relação ter decidido pela existência de título suficiente para o cancelamento de todos os ónus registados, incidentes sobre os imóveis adquiridos pela Recorrente, por caducidade operada ex lege, por aplicação do n.º 2 do artigo 824.º CC, ex vi n.º 5 do artigo 101.º CRP; e não pelo cancelamento apenas das hipotecas constituídas a favor da adquirente, ora Recorrente, por extinção das obrigações garantidas em consequência da dação em pagamento outorgada, quando também o cancelamento destas decorre da caducidade operada ex lege, por aplicação do n.º 2 do artigo 824. CC, ex vi n.º 5 do artigo 101.º CRP, e não da extinção da obrigação garantida.
Enquadramento da situação jurídica sub judice
U) Afigura-se indispensável, antes de prosseguir, contextualizar a situação jurídica em análise, para que este Tribunal fique habilitado a proferir a sua decisão.
(k) É a seguinte a cronologia dos factos que relevam para o conhecimento da causa:
(k.1.) No exercício da sua actividade comercial, a ora Recorrente concedeu empréstimo à sociedade “CC, Lda.”, destinado a financiar a sua actividade comercial, tendo esta, como garantia do bom e integral cumprimento de todas as obrigações por si assumidas, constituído, a favor da ora Recorrente, Hipotecas Voluntárias sobre os quatro imóveis devidamente identificados nos autos, a saber: Lotes cinco, seis, sete e oito, todos sitos no lugar ... ou ..., freguesia de ..., concelho de ..., descritos na 2.ª CRP de ..., respectivamente, sob n.ºs 0735, 0736, 0737 e 0738; e inscritos na respectiva matriz predial urbana sob artigos 0212, 0213, 0214 e 0215.
(k.2.) Tais hipotecas foram e encontram-se registadas a favor da ora Recorrente, BANCO AA, sobre os quatro imóveis, sob Ap. 17, de 2005/07/21 e Ap. 0581, de 2009/09/21.
(k.3.) Posteriormente, a sociedade CC, Lda. apresentou um P.E.R., que correu termos junto do 4.º Juízo Cível do Tribunal do Comércio de …, sob n.º 484/13.7TYLSB, tendo sido reconhecido à aqui Recorrente um crédito garantido no valor global de € 2.521.363,30 (dois milhões quinhentos e vinte e um mil trezentos e sessenta e três euros e trinta cêntimos).
(k.4.) No âmbito do P.E.R., foi aprovado Plano de Recuperação, que prevê expressamente que os credores garantidos com ónus inscritos a seu favor nos bens imóveis propriedade da Devedora - como é o caso da ora Recorrente, BANCO AA - seriam pagos integralmente através da dação em cumprimento dos bens imóveis e valores mobiliários a seu favor, livres de ónus ou encargos; Plano de Recuperação esse que foi homologado por sentença judicial, transitada em julgado.
(k.5.) No cumprimento do Plano de Recuperação, a sociedade CC, Lda. deu à aqui Recorrente, livre de ónus ou encargos, os quatro imóveis acima identificados, e já identificados nos autos a Fls., mediante Escritura Pública de Dação em Cumprimento.
(k.6.) Os registos de aquisição foram lavrados, sendo que a aquisição da propriedade dos quatro imóveis, por dação em cumprimento, foi registada a favor da ora Recorrente.
(k.7.) Contudo, o cancelamento do registo dos ónus que incidiam sobre os aludidos imóveis, constituídos a favor da ora Recorrente e de terceiros, foi recusado pela C.R.P. de ...: "Recusado o registo do cancelamento de hipoteca, nos termos do artigo 69°, nº 1 al. b) do Código do Registo Predial - manifesta falta de título. Os documentos juntos não permitem efectuar o cancelamento, pois não estamos no âmbito de uma aquisição decorrente de um processo de insolvência em que os cancelamentos são efectuados oficiosa e gratuitamente, nos termos do nº 5 do artigo 101º do referido Código, estamos, antes, perante uma aquisição por dação em cumprimento tomada no âmbito de um processo especial de revitalização, e como tal não há título e ainda que houvesse, o registo não poderia ser efectuado, pois não foi paga qualquer quantia".
(k.8.) Inconformada com os Despachos proferidos, a ora Recorrente interpôs Recursos Hierárquicos para o Conselho Directivo do I.R.N.,I.P., os quais, tendo sido apensados num único processo, foram objecto de decisão desfavorável: "A dação em cumprimento realizada em execução de processo especial de revitalização não produz os efeitos do artigo 824.º do Código Civil, pelo que o registo respectivo não suscita a aplicação do artigo 101.º, n.º 5, do Código de Registo Predial'.
(k.9.) Mantendo-se inconformada, a ora Recorrente impugnou judicialmente o despacho de indeferimento dos Recursos Hierárquicos por si interpostos, Impugnação Judicial que foi julgada totalmente improcedente pelo Tribunal de 1ª Instância, o que conduziu à interposição de Recurso para o Tribunal da Relação que, desta feita, concedeu provimento parcial ao recurso interposto pela ora Recorrente (na parte em que considera haver lugar ao cancelamento das hipotecas registadas a favor da Recorrente, mas por extinção da obrigação garantida), e negou provimento relativamente às demais questões suscitadas (aplicabilidade in casu do n.º 5 do artigo 101.º do CRP, com o consequente cancelamento, oficioso e gratuito, de todos os ónus incidentes sobre os quatro imóveis, registados a favor da ora Recorrente e de terceiros).
(I) Convicta da tese por si sustentada ab initio, a ora Recorrente não pode conformar-se com a decisão proferida pelo Tribunal da Relação, pelo que interpôs o presente Recurso, nos termos e com os fundamentos constantes das presentes alegações e que, ora, conclui.
Dos Fundamentos do Acórdão Recorrido e do presente Recurso
(m) O objecto do Recurso interposto para o Tribunal da Relação do … consubstanciou-se nas seguintes questões: "- se a remissão do artigo 17.º-F, n.º 5, CIRE, abarca o artigo 105.º, n.º 1 CRPredial; - se existia título suficiente para cancelamento dos registos; - falta de pagamento de emolumentos.", sendo que, onde se lê artigo 105.º, n.º 1 CRPredial, deve ler-se artigo 101.º, n.º 5 CRPredial, em correcção de manifesto lapso de escrita.
(n) Relembra-se que o presente Recurso é interposto com os seguintes fundamentos: (i) erro na determinação da norma aplicável, porquanto considera a Recorrente que deveria o Tribunal da Relação ter decidido pela aplicabilidade in casu do n.º 5 do artigo 101.º do CRP, com o consequente cancelamento dos registos dos ónus incidentes sobre os imóveis, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CC; (ii) deveria o Tribunal da Relação ter decidido pela existência de titulo suficiente para o cancelamento de todos os ónus registados, incidentes sobre os imóveis adquiridos pela Recorrente, por caducidade operada ex lege, por aplicação do n.º 2 do artigo 824.º CC, ex vi n.º 5 do artigo 101.° CRP; e não pelo cancelamento apenas das hipotecas constituídas a favor da adquirente, ora Recorrente, por extinção das obrigações garantidas em consequência da dação em pagamento outorgada, quando também o cancelamento destas decorre da caducidade operada ex lege, por aplicação do n.º 2 do artigo 824.º CC, ex vi n.º 5 do artigo 101.º CRP, e não da extinção da obrigação garantida.
Do alcance da remissão do n.º 5 do artigo 17.º-F do CIRE para o n,º 5 do artigo 101.º do CRP
(o) Entendeu o Tribunal da Relação do … que: (i) "( ... ) a remissão efectuada pelo artigo 17.º-F, n.º 5, CIRE, para as regras do regime do plano de insolvência, não legitima a aplicação do artigo 101.º, n.º 5, CRP'; (ii) "( ... ) a remissão é feita apenas para as regras relativas à aprovação e homologação do plano de insolvência, e o artigo 101.º, n.º 5, CRP prende-se com o cancelamento oficioso de registos que caducam nos termos do artigo 824.º CC ( ... )"; e que "nem este artigo [o artigo 824.º do Código Civil] nem o 101.º, n.º 5, CRP, fazem qualquer referência ao processo especial de revitalização, introduzido no CIRE pela Lei 16/2012, de 20 de Abrir, porquanto, sustenta o tribunal a quo, "Poder-se-ia pensar que se tratou de esquecimento do legislador, que não teria adequado o preceito ao novo instituto (PER). Não foi, porém, o que sucedeu. A falta de referência ao PER no artigo 101.º, n.º 5, CRP, radica, por um lado, na diferença de natureza da execução e da insolvência relativamente ao PER, e, por outro, na diferença dos efeitos produzidos pela venda executiva e a dação em cumprimento".
(p) Entendimento que não é acompanhado pela Recorrente, que considera que há lugar à aplicação do disposto no n.º 5 do artigo 101.º do CRP, que se impõe por duas vias: (i) por força da remissão constante do n.º 5 do artigo 17.º-F do CIRE; ou, caso assim não se entenda, no que não se concede, (ii) por via do cumprimento da obrigação de julgar e do dever de obediência à lei, bem como das regras de interpretação da lei e integração das lacunas da lei, constantes dos artigos 8.º,9.º e 10.º do CC.
(q) O n.º 5 do artigo 17.º-F do CIRE determina, de forma clara e inequívoca, que "o juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à recepção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º”;
(r) Esta remissão é interpretada pelo Tribunal da Relação do … de forma literal, manifestamente restritiva, quando, ao invés, se impõe interpretar tal remissão de modo mais amplo, no cotejo com o enquadramento global do regime jurídico da insolvência e da recuperação de empresas, constante do CIRE.
(s) A remissão constante do n.º 5 do artigo 17.º-F do CIRE não pode ser interpretada como restringindo-se apenas aos artigos que, dentro do Título IX do CIRE, regulam a aprovação e homologação do plano de recuperação (i.e., os artigos 209.º a 216.º - Capítulo II, do Título IX). Tal interpretação peca por demasiado restritiva, e implica que rejeitemos a aplicabilidade das demais disposições legais que, não estando incluídas no Capítulo II, epigrafado "Aprovação e homologação do plano de insolvência", estão, ainda assim, intrinsecamente ligadas a esta matéria. É o caso, nomeadamente, dos artigos 201.º,207.º e 208.º.
(t) Impõe-se, sim, interpretar o n.º 5 do artigo 17.º-F do CIRE no sentido de que a remissão dele constante se deve entender como referente a todas as disposições constantes do Título IX do CIRE, sem prejuízo do especial relevo atribuído ao preceituado nos artigos 215.º e 216.º.
(u) Como, aliás, foi decidido por este Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão proferido em 25-11-2014, no Processo n.0414/13.6TYLSB.L1.S1: "IV. A unidade do sistema jurídico, impõe que as leis se interpretem umas às outras, o que no caso em apreço conduz à asserção de que não contendo as regras especificas relativas ao PER - constantes dos artigos 17º-A a 17º-I, qualquer dispositivo especifico de onde deflua quais os itens a observar aquando da elaboração do «plano» e remetendo aquele normativo, para o Titulo IX, respeitante ao «Plano de Insolvência», embora se destacando o que preceituam os artigos 215º e 216º, igualmente insertos naquele Titulo, mas não descartando a aplicação de todos os outros que o enformam, parece não se poder concluir que as regras respeitantes àquele plano insolvencial não tenham aplicação no PER." - disponível em http://www.dgsi.pt.
(v) Impondo-se, assim, a conclusão de que todo o Título IX deve ser susceptível de aplicação analógica ao plano de recuperação em sede de processo especial de revitalização, não podemos deixar de realçar o disposto no n.º 2 do artigo 202.º, e no n.º 2 do artigo 194.º, ambos do CIRE, que dispõem o seguinte: “A dação de bens em pagamento dos créditos sobre a insolvência, ( ... ) depende da anuência dos titulares dos créditos em causa, prestada por escrito, aplicando-se o disposto na parte final do nº 2 do artigo 194º” - vide n.º 2 do artigo 202.º CIRE;
- "0 tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável' - vide n.º 2 do artigo 194.º CIRE .
(w) É inquestionável - para a Recorrente, para os Tribunais que proferiram as anteriores decisões objecto de recurso, e até para o IRN - que a aquisição de um bem imóvel, através de dação em cumprimento, compra e venda ou qualquer outra forma de transmissão da propriedade, em cumprimento de um plano de insolvência aprovado e homologado por sentença transitada em julgado, no âmbito de processo de insolvência, determina o consequente averbamento oficioso do cancelamento dos registos dos direitos reais que caducam nos termos do n.º 2 do artigo 824.º do CC, por força do disposto no n.º 5 do artigo 101.º do CRP.
(x) Assim, como se pode sustentar que idêntica aquisição, através de dação em cumprimento, mas em cumprimento de um plano de recuperação, aprovado em processo especial de revitalização, homologado por sentença transitada em julgado, não seja merecedor de idêntico enquadramento e tratamento jurídico?
(y) Se, como impõe o n.º3 do artigo 8.º do CC, "nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito"?
(z) Pretende-se, pois, através do presente Recurso, que seja reconhecida a aplicabilidade in casu do aludido n.º 5 do artigo 101.º do CRP, com o consequente cancelamento dos registos dos ónus incidentes sobre os imóveis, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CC.
(aa) Pretensão reforçada pelo facto de, conforme se explanou em todas as instâncias antecedentes, o credor titular do direito real cujo cancelamento se pretende obter (BB, SA) ter votado favoravelmente à aprovação do plano de recuperação, enquadrando-se, desse modo, na previsão dos aludidos n.º 2 do artigo 202.º e n.º 2 do artigo 194.º, aplicáveis ex vi n.º 5 do artigo 17.º-F, todos do CIRE.
(bb) Também o cancelamento do registo das duas hipotecas constituídas a favor da ora Recorrente, deveria ter sido efectuado, oficiosa e gratuitamente, exactamente com o mesmo fundamento, uma vez que a própria outorga da dação em cumprimento equivale a consentimento ao referido cancelamento, mas condicionado à concretização da dação em cumprimento dos quatro imóveis, livres de ónus ou encargos.
(cc) O negócio entre Devedora e ora Recorrente foi celebrado em cumprimento do plano de recuperação aprovado e homologado judicialmente, nos exactos termos constantes da Escritura de Dação em Cumprimento, sendo que todas as cláusulas acordadas entre as Partes são incindíveis, o que nos conduz à conclusão de que, perante a impossibilidade de transmissão dos bens livres de todos os ónus ou encargos, o negócio jamais teria sido celebrado.
(dd) Esta transmissão, livre de ónus ou encargos, consta expressamente do Plano de Recuperação, dispondo-se, no que aos créditos garantidos diz respeito, que os mesmos "sejam pagos na íntegra através da dação em cumprimento a seu favor", e, ainda, que "as sobreditas dações serão realizadas livres de ónus ou encargos" - realce e sublinhado da Recorrente.
(ee) No Acórdão recorrido sustenta-se que o facto de, nem o artigo 824.º do CC, nem o n.º 5 do artigo 101.º do CRP, fazerem referência ao P.E.R. não se trata de um "esquecimento do legislador”, uma vez que o pretendido era a sua não aplicação ao mencionado processo. No entendimento do TRP, o P.E.R. é um processo no qual se atribui um controlo efectivo do processo aos credores, em detrimento de um controlo jurisdicional, com acrescida responsabilização dos credores, dissuadindo-se o seu eventual alheamento sob pena de, caso não cooperem, se virem a deparar vinculados a um plano de recuperação em que não participaram.
(ff) Discorda a Recorrente de tal entendimento, importando, para fundamentar a nossa tese, ter presente a cronologia dos diplomas legais aplicáveis: (i) o P.E.R. foi aprovado pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril; (ii) por sua vez, o artigo 824.º do CC mantém a redacção resultante do Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966; e (iii) a actual redacção do n.º 5 do artigo 101.º do CRP resulta do Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho.
(gg) Não obstante, o Tribunal recorrido, para fundamentar a sua decisão, sustenta - em nosso entender, sem razão, que o legislador, ao não fazer constar no artigo 824.º do CC (com redacção de 1966), e no n.º 5 do artigo 101.º do CRP (com redacção de 2008), a referência ao P.E.R. (instituído em 2012), pretendeu que as normas em causa não fossem aplicadas ao P.E.R ..
(h h) De qualquer modo, sempre se imporá analisar esta questão, também no cumprimento das regras relativas à interpretação da lei e à integração das lacunas da lei.
(ii) Deveria o Tribunal da Relação do …, ao conhecer do objecto do Recurso anterior, ter efectuado tal exercício jurídico, de interpretação e integração, porquanto "No que concerne a aspectos estritamente jurídicos, o tribunal é livre de identificar as normas que melhor se ajustem ao caso concreto, para qualificar as relações jurídicas ou para delas extrair os efeitos adequados" - in Recursos no Novo Código de Processo Civil, António Santos Abrantes Geraldes, Almedina, 2013.
üD Com a entrada em vigor do Processo Especial de Revitalização, não se tendo procedido à alteração do artigo 824.° do CC e do n.º 5 do artigo 101.º do CRP, cabe ao aplicador da Lei, no respeito da obrigação e do dever consagrados no artigo 8.º do CC, ter "em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito", bem como recorrer à interpretação e integração, por forma a colocar o ordenamento jurídico na situação em que o legislador o colocaria caso tivesse procedido a tais alterações.
(kk) Para o efeito, deverá recorrer a normas que o orientem na aplicação do direito.
(ll) In casu, impõe-se recorrer ao n.º 5 do artigo 17.º-F do CIRE que determina, de forma clara e inequívoca, que "o juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando. com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215. o e 216.º”.
(mm) Ou, ainda que assim não se entenda, no que, por tudo quanto acima se expôs, não se concede, acresce que, em tal exercício jurídico, deverá o aplicador do direito ter em consideração todo o contexto em que foi implementado o regime jurídico do processo especial de revitalização, e interpretar a lei e o pensamento do legislador sem se cingir à letra da lei, mas "tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada". Até porque, "na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados" conforme preceitua o artigo 9.º do CC.
(nn) Recordemos, então, que, vivendo-se um período de grave crise socioeconómica em Portugal, tendo sido necessário recorrer a auxílio externo, surge o novo regime jurídico do Processo Especial de Revitalização, em cumprimento do que havia sido acordado com as entidades externas, como podemos ler na Resolução do Conselho de Ministros n.o 43/2011, de 25 de Outubro: "o memorando de entendimento celebrado entre a República Portuguesa e o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Intemacional no quadro do programa de auxílio financeiro a Portugal prevê um conjunto de medidas que têm como objectivo a promoção dos mecanismos de reestruturação extra judicial de devedores, ou seja, de procedimentos que permitem que, antes de recorrerem ao processo judicial de insolvência, a empresa que se encontra numa situação financeira difícil e os respectivos credores possam optar por um acordo extra judicial que visa a recuperação do devedor e que permita a este continuar a sua actividade económica".
(00) É, assim, aprovada e publicada a Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, que "Procede à sexta alteração ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n. ° 53/2004, de 18 de Março, simplificando formalidades e procedimentos e instituindo o processo especial de revitalização".
(pp) Deste diploma legal resulta evidente a intenção e urgência do legislador: implementação de um procedimento judicial que permitisse honrar os compromissos assumidos por Portugal perante o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional.
(qq) Para cumprir tal desiderato, o legislador optou pela solução mais assertiva, completa e eficaz: introdução de um novo capítulo no CIRE, com apenas por 9 (nove) artigos, dos quais constam as disposições específicas aplicáveis a esta nova realidade jurídica.
(rr) Bem sabia, naturalmente, o legislador que tal regime jurídico, deveras conciso e concentrado, inevitavelmente deixaria por regular eventuais questões conexas e/ou paralelas, como é exactamente o caso da que ora nos ocupa.
(ss) Mas bem sabia também que tais eventuais (quase naturais) lacunas da lei (leia-se, do novo regime jurídico do P.E.R.) seriam facilmente integradas, cumprindo as regras constantes do artigo 10.º do CC, através da aplicação analógica das demais disposições do CIRE e/ou de legislação complementar ou conexa, aplicável a situações análogas ocorridas no âmbito de processos de insolvência.
(tt) O que nos reconduz à já suscitada questão da aplicabilidade analógica do n.º 5 do artigo 101.º do CRP ao caso que ora nos ocupa, e que, recorde-se, tem os seguintes contornos: em cumprimento do plano de recuperação, tendo como título certidão judicial extraída do P.E.R., a Recorrente outorgou escritura de dação em cumprimento, através da qual adquiriu os imóveis já identificados, livres de ónus ou encargos.
(uu) Entende a Recorrente que, aquando do registo de tal aquisição, deveria a Conservatória do Registo Predial ter dado cumprimento ao disposto no n.o 5 do artigo 101.0 do CRP, averbando oficiosamente o cancelamento de todos os ónus ou encargos que se encontrassem inscritos, a favor da Recorrente ou de terceiros, uma vez que os mesmos teriam caducado, ao abrigo do disposto no n.o 2 do artigo 824.0 do CC.
(vv) Porquê? Parece-nos claro, salvo o devido respeito por opinião diversa. Porque, estando perante uma lacuna da lei, há que integrá-Ia, recorrendo à aplicação das normas legais aplicáveis a situações análogas. E esta é, sem dúvida, uma situação análoga.
(ww) Nenhuma razão, de facto ou de direito, existe, para tratar de modo diferente um credor que adquire um imóvel no âmbito de um processo de insolvência, em cumprimento de um plano de insolvência ou de liquidação de património do insolvente, em contraposição com um credor que adquire um imóvel no âmbito de um processo especial de revitalização.
(xx) Caso, em teoria, se considerasse haver lugar a tratamento diferente, sempre teríamos que tratar mais favoravelmente os credores que, cumprindo um plano de recuperação aprovado em sede de P.E.R., sustentam a viabilidade de uma empresa em situação económica difícil (ao invés do que sucede nos processos de insolvência em que os credores deliberam o encerramento da actividade do insolvente e consequente liquidação do seu património para satisfação dos créditos existentes).
(yy) Ou estaríamos perante flagrante incumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 8.º do CC.
(zz) Concluamos: é para nós claro que o legislador não deixou de prever e regular esta situação, de forma intencional, ponderada. Trata-se, apenas e tão só, de uma situação que, manifestamente, terá sido olvidada, atenta a urgência na instituição do regime jurídico do P.E.R.. Sendo exactamente em casos como o vertente que se impõe recorrer às regras de integração das lacunas da lei, constantes do artigo 10.0 do CC.
(aaa) Não podemos, ainda, deixar de manifestar total discordância com a posição assumida no Acórdão do Tribunal da Relação do …, concretamente, quando se afirma: "Poder-se-ia pensar que se tratou de esquecimento do legislador, que não teria adequado o preceito ao novo instituto (PER). Não foi, porém, o que sucedeu. A falta de referência ao PER no artigo 101.º, n.º 5, CRP, radica, por um lado, na diferença de natureza da execução e da insolvência relativamente ao PER, e, por outro lado, na diferença dos efeitos produzidos pela venda executiva e a dação em cumprimento."
(bbb) Não terá o Tribunal recorrido tido em consideração um elemento interpretativo deveras relevante: a cronologia dos diversos diplomas legais, a que já aludimos supra, de forma detalhada: quando foi aprovado o regime jurídico do P.E.R., já há muito que vigoravam, quer o n.º 2 do artigo 824.º do CC, quer o n.º 5 do artigo 101.º do CRP.
(ccc) O que torna ilegítima a conclusão retirada pelo Tribunal recorrido, no sentido de pretender que o legislador, intencionalmente, excluiu situações como a dos autos do campo de aplicação das normas em causa (n.º 2 do artigo 824.º do CC, e n.º 5 do artigo 101.º do CRP), porquanto, à data da sua publicação e da sua entrada em vigor, não existia no nosso ordenamento jurídico o P.E.R. ou procedimento judicial semelhante que entretanto tenha sido revogado.
(ddd) Na verdade, à data da publicação e entrada em vigor do n.º 5 do artigo 101.º do CRP, a situação mais próxima da dos autos era a de aquisição por dação em cumprimento no âmbito de processo de insolvência (designadamente, em implementação de plano de insolvência).
(eee) Trata-se de uma verdadeira situação análoga à que ora nos ocupa, e foi objecto de solução jurídica cuja aplicabilidade nos parece inquestionável - a prevista no n.º 5 do artigo 101.º do CRP -, e que por via do presente Recurso se pretende obter para o caso concreto da aquisição outorgada pela Recorrente, sendo inexorável concluir que sucumbe, in totum, a argumentação expendida no Acórdão recorrido, no que à alegada inaplicabilidade do n.º 5 do artigo 101.º do CRP diz respeito.
(fff) Consequentemente, devem ser cancelados todos os ónus inscritos sobre os bens adquiridos pela Recorrente, a favor desta e de terceiros, no cumprimento do Plano de Recuperação aprovado e homologado por Sentença proferida no âmbito de um P.E.R., transitada em julgado.
(ggg) Não colhem ainda as demais considerações do Tribunal recorrido a respeito da inaplicabilidade do n.º 5 do artigo 101,º do CRP, do artigo 824.º do CC; nem tão pouco a respeito da caducidade ex lege dos direitos reais de garantia cujo cancelamento é pretendido pela ora Recorrente.
(hhh) Na verdade, sustenta o Tribunal recorrido que "Por outro lado, o artigo 101,º, n.º 5, CIRE (devendo ler-se 101.º, n.º 5, CRP, em correcção de lapso manifesto), nunca lograria aplicação no caso vertente, por falta de preenchimento dos respectivos pressupostos. O artigo 101.º, n.º 5, GIRE (devendo ler-se 101.º, n.º 5, CRP, em correcção de lapso manifesto), reporta-se ao cancelamento oficioso de registos que caducam nos termos do artigo 824.º do CC”.
(iii) Mas, note-se que o n.º 5 do artigo 101.º do CRP não remete para o artigo 824.º do CC, mas específica e exclusivamente para o n.º 2 do referido artigo 824.º do CC. "Mero detalhe" que, no caso vertente, assume uma importância primordial, porquanto a errada leitura do n.º 5 do artigo 101.º do CRP, nos termos demasiado abrangentes em que o Tribunal recorrido o lê, tem como consequência as erradas conclusões a que o mesmo Tribunal chega, na análise da situação jurídica dos autos.
jjj) A remissão apenas para o n.º 2 do artigo 824.º do CC foi, manifestamente, ponderada e propositada, pois permite regular todas as formas de aquisição (em que se inclui a dação em cumprimento), e não apenas a aquisição por compra (como é o caso regulado pelo artigo 824.º do CC).
(kkk) De novo, o Tribunal recorrido interpretou erradamente a lei, sendo todas as considerações por si vertidas a propósito do n.º 3 do artigo 824.º do CC absolutamente desadequadas ao caso concreto, por absoluta inaplicabilidade de tal normativo legal.
(lll) É absolutamente indiferente, in casu e no caso de aquisição (por dação em cumprimento, ou outra forma) em processo de insolvência, se há ou não pagamento/recebimento de preço. Tal facto não releva para a caducidade dos direitos reais, operada ex vi n.º 2 do artigo 824.º do CC, e cujo cancelamento é averbado oficiosamente, ex vi n.º 5 do artigo 101.º do CRP.
(mmm) A caducidade de todos os direitos reais de garantia (os titulados pela Recorrente, e por terceiros), ao contrário do que sustenta o Tribunal recorrido, não opera ex lege, por força da extinção da obrigação garantida (cfr. alínea a) do artigo 730.º do CC), mas sim por força do disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CC, ex vi n.º 5 do artigo 101.º do CRP.
(nnn) Carece, pois, de total sentido a afirmação do Tribunal recorrido: "(...) não é a sentença que a impede de dispor livremente dos bens recebidos em dação, mas o incumprimento das disposições legais relativas ao cancelamento dos registos de direitos reais e penhora incidentes sobre o bem".
(000) Porquanto: (i) não houve incumprimento de quaisquer disposições legais; (ii) os direitos reais incidentes sobre os bens adquiridos pela Recorrente caducaram por via do disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CC, ex vi n.º 5 do artigo 101.º do CRP; (iii) os titulares de tais direitos reais (seja a Recorrente, sejam os terceiros) anuíram à dação em cumprimento, livre de ónus ou encargos, em cumprimento do Plano de Recuperação aprovado e homologado por sentença judicial transitada em julgado.
(ppp) De novo, questionamos como se poderá pretender e justificar tratar de forma diferente situações jurídicas manifestamente idênticas/análogas. E permitimo-nos responder que não é possível, porquanto a lei assim não o permite, uma vez que dúvidas não subsistem sobre a aplicabilidade in casu do n.º 5 do artigo 101.º do CRP, por força da remissão constante do n.º 5 do artigo 17.º-F do CIRE.
(qqq) Por outro lado, veja-se que, em teoria, uma decisão como a de que ora se recorre até poderia fazer algum sentido se a dação em cumprimento tivesse sido efectivada por um credor hipotecário que não fosse titular da primeira hipoteca registada, e tal dação não tivesse merecido a anuência, expressa ou tácita, do credor titular da primeira hipoteca registada; uma vez que, dessa forma, estaria o credor titular da primeira hipoteca - e, por tal razão, preferente - impossibilitado, contra a sua vontade, de se ver ressarcido através dos bens dados como garantia.
(rrr) Mas não é esse o caso dos autos: a Recorrente é titular da primeira hipoteca sobre os bens objecto da dação em cumprimento; e os demais credores titulares de direitos reais registados a seu favor prestaram a sua anuência à dação em cumprimento outorgada.
(sss) Sendo titular das hipotecas registadas em momento anterior às demais hipotecas e penhoras registadas sobre os mesmos prédios, o crédito da Recorrente goza de garantia real sobre o bem penhorado, nos termos do n.º 1 do artigo 686.º do CC, e de prioridade no que respeita aos ónus ou encargos posteriormente registados sobre os mesmos prédios.
(ttt) Pois, "o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pela ordem temporal das apresentações correspondentes" - n.º 1 do artigo 6.º do CRP.
(uuu) E, "salvo nos casos especialmente previstos na lei, o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior" - n.º 1 do artigo 822.º do CC.
(vvv) Conforme alegado e demonstrado em instâncias anteriores (vide Lista de Créditos Reconhecidos em sede de Processo Especial de Revitalização, junta a Fls.), à ora Recorrente foi reconhecido um crédito garantido, no valor global de € 2.521.363,30 (dois milhões quinhentos e vinte e um mil trezentos e sessenta e três euros e trinta cêntimos), em virtude das hipotecas devidamente registadas sobre os prédios objecto dos presentes Autos.
(www) A dação em cumprimento foi celebrada pelo valor de € 1.613.000,00 (um milhão seiscentos e treze mil euros), isto é, por um valor substancialmente inferior ao valor do crédito da Recorrente, e teve por objecto os bens hipotecados a favor da Recorrente, o que significa que, apesar da dação em cumprimento, a ora Recorrente não viu ressarcido o seu crédito na totalidade.
(xxx) O certo é que, conforme se demonstrou, em qualquer meio processual utilizado para ressarcimento do crédito, sempre seria a Recorrente paga, em primeiro lugar, pelo produto da venda dos bens em causa nos presentes Autos, com preferência sobre os demais ónus ou encargos, uma vez que são posteriores às hipotecas registadas a favor da ora Recorrente.
(yyy) Ou seja, se porventura os prédios em causa nos presentes Autos viessem a ser vendidos no âmbito de uma qualquer Acção Judicial - Acção Executiva ou Processo de Insolvência - o produto da venda dos prédios em causa seria, integralmente, entregue à Recorrente, já que o valor dos prédios em causa não é suficiente, sequer, para efectuar o pagamento do crédito da Recorrente na totalidade.
(zzz) Apenas os créditos a favor da Autoridade Tributária e Aduaneira referentes a IMI gozariam de preferência do pagamento, mas o pagamento dos mencionados créditos foi assegurado pela aqui Recorrente, conforme resulta da escritura pública de dação em cumprimento: a Recorrente "efectuou o pagamento dos créditos fiscais com privilégio imobiliário especial, no valor global de quarenta e dois mil e quinhentos e oitenta e seis euros e sete cêntimos, referentes a IM".
(aaaa) Pelo que, também por esta via, não deveriam permanecer os ónus ínsitos sobre os prédios objecto de dação a favor da Recorrente, devendo ter sido determinado pelo Instituto de Registos e Notariado, pelo Tribunal de Primeira Instância ou pelo Tribunal da Relação do …, o seu cancelamento.
Quanto à existência de Título suficiente para cancelamento dos Registos
(bbbb) Na leitura do Tribunal recorrido, os documentos que sustentam o pedido de registo apenas são suficientes para cancelar as hipotecas das quais a Recorrente é titular, improcedendo, por falta de título, o pedido de cancelamento dos demais ónus, registados a favor de terceiros.
(cccc) Não podemos concordar.
(dddd) Dispõe o artigo 13.º do CRP que "os registos são cancelados com base na extinção dos direitos, ónus ou encargos neles definidos, em execução de decisão administrativa, nos casos previstos na lei, ou de decisão judicial transitada em julgado" .
(eeee) No caso dos autos, o cancelamento do registo dos direitos reais de garantia, constituídos a favor da Recorrente e a favor de terceiros, decorre, sempre, da aplicação do disposto no n.º 5 do artigo 101.º do CRP.
(ffff) Ou seja, a caducidade dos aludidos registos operou ex lege, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 824º do CC, ex vi n.º 5 do artigo 101.º do CRP, e não por extinção das obrigações garantidas (mesmo no caso das hipotecas registadas a favor da Recorrente).
(gggg) De qualquer modo, para que a Conservatória do Registo Predial pudesse confirmar tal caducidade, era necessário que a Recorrente instruísse os pedidos de registo com título bastante. O que fez, pois apresentou o pedido de registo de cancelamento dos ónus e encargos, juntando como títulos a Certidão Judicial do Plano de Recuperação, aprovado e homologado por Sentença transitada em julgado e a Escritura Pública de Dação em Cumprimento.
(hhhh) Ou seja, a Recorrente apresentou o pedido de registo de cancelamento, por caducidade, tendo por base a lei, decisão judicial transitada em julgado e escritura pública de dação em cumprimento. Este é o título que obriga ao cancelamento do registo dos ónus ou encargos sobre os imóveis adquiridos pela Recorrente.
(iiii) Então, a Conservatória do Registo Predial tinha o dever de, em cumprimento da lei e de decisão judicial transitada em julgado, averbar o cancelamento dos ditos registos.
(jjjj) Não o tendo feito, deveriam as instâncias subsequentes (IRN, Tribunal de 1ª Instância e Tribunal da Relação do …) ter assegurado que a lei e a decisão judicial eram cumpridas. O que, erradamente, não fizeram.
(kkkk) É para nós inquestionável que os títulos que serviram de suporte aos pedidos de cancelamento do registo dos ónus ou encargos - Certidão Judicial do Plano de Recuperação, aprovado e homologado por Sentença transitada em julgado e a Escritura Pública de Dação em Cumprimento - são suficientes para efectivação do registo.
(llll) Compulsada a Certidão Judicial do Plano de Recuperação, aprovado e homologado por Sentença transitada em julgado, verificamos que: (i) da Sentença homologatória consta expressamente que "A presente decisão vincula todos os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações – art. 17º-F, nº 6 do CIRE"; e (ii) do Plano de Recuperação, aprovado e homologado por sentença, consta, no que aos créditos garantidos diz respeito, que os mesmos "sejam pagos na íntegra através da dação em cumprimento a seu favor', e, ainda, que "as sobreditas dações serão realizadas livres de ónus ou encargos".
(mmmm) Podemos ainda ler, na Escritura Pública outorgada entre Devedora e ora Recorrente, "Que em cumprimento do Plano de Recuperação homologado judicialmente por decisão proferida a vinte e quatro de Março de dois mil e catorze proferida no âmbito do referido processo, a sociedade representada do primeiro outorgante. DÁ. ao BANCO AA (PORTUGALJ. S.A.. para pagamento parcial da referida dívida, pelo valor de UM MILHÃO SEISCENTOS E TREZE MIL EUROS, livre de ónus ou encargos (...)"sublinhado da ora Recorrente.
(nnnn) Resulta, assim, por demais evidente que as Partes (Devedora e ora Recorrente) se limitaram ao cumprimento do Plano de Recuperação e da Sentença Judicial homologatória. Cumprimento que seria igualmente expectável - sendo, aliás, exigível - por parte da Conservatória do Registo Predial. Aliás, como tem sido prática habitual em diversas Conservatórias, que não a em causa nos presentes autos.
(0000) Não se trata de uma mera declaração vinculativa inter partes (a constante da Escritura), mas sim do cumprimento de uma Sentença Judicial que, como da mesma expressamente consta, vincula todos os credores, pelo que, ao não ter procedido ao averbamento do cancelamento do registo dos ónus existentes, a Conservatória do Registo Predial de ... não cumpriu a Lei, e não cumpriu Sentença Judicial transitada em julgado. Incumprimento corroborado pelo Conselho Directivo do Instituto dos Registos e Notariado, I.P., pelo Tribunal de 1ª Instância e pelo Tribunal da Relação do …, quando sustentaram igual entendimento.
(pppp) O que se espera, através do presente Recurso, é que este Tribunal corrija o manifesto erro em que laboraram as instâncias antecedentes, e imponha o cumprimento da Lei e da Sentença Judicial homologatória, proferida nos autos de Processo Especial de Revitalização já identificados supra, determinando o cancelamento de todos os ónus ou encargos registados sobre os imóveis adquiridos pela Recorrente, a favor desta e de terceiros.
Quanto à falta de pagamento dos Emolumentos
(qqqq) No que respeita à falta de pagamento de emolumentos, resta apenas remeter para o disposto na parte final do n.º 3.1 do artigo 21.º do Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado, a contrario, ao abrigo do qual o averbamento do cancelamento dos registos dos ónus ou encargos incidentes sobre os imóveis adquiridos pela Recorrente deveria ter sido efectuado oficiosamente, sem que haja lugar ao pagamento de quaisquer emolumentos, por decorrer do disposto no n.º 5 do artigo 101.º do CRP.
(rrrr) na sequência de tudo quanto acima se alegou e concluiu, por via do presente Recurso, pretende-se que este Tribunal determine que sejam cancelados, oficiosa e gratuitamente, por caducidade operada ex lege, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 824.º CC, ex vi n.º 5 do artigo 101.º CRP, os seguintes ónus/encargos registados sobre os prédios descritos sob os n.ºs 0735, 0736, 0737 e 0738, todos da freguesia de ..., concelho de ...:
(rrrr.1.) Prédio descrito sob o n.º 0735: 2 (duas) hipotecas a favor do BANCO AA (Portugal), SA, inscrições Ap. 17, de 2005/07/21 e Ap. 0581, de 2009/09/21; 1 (uma) hipoteca a favor da BB, SA, inscrição Ap. 0128, de 2009/12/04 e averbamento Ap. 0820, de 2012/05/08;
(rrrr.2.) Prédio descrito sob o n.º 0736: 2 (duas) hipotecas a favor do BANCO AA (Portugal), SA, inscrições Ap. 17, de 2005/07/21 e Ap. 0581, de 2009/09/21; 1 (uma) hipoteca a favor da BB, SA, inscrição Ap. 0128, de 2009/12/04 e averbamento Ap. 0820, de 2012/05/08;
(rrrr.3.) Prédio descrito sob o n.º 0737: 2 (duas) hipotecas a favor do BANCO AA (Portugal), S.A., inscrições Ap. 17, de 2005/07/21 e Ap. 0581, de 2009/09/21; 1 (uma) hipoteca a favor da BB, S.A., inscrição Ap. 0128, de 2009/12/04 e averbamento Ap. 0820, de 2012/05/08; 1 (uma) penhora a favor da AT - Autoridade Tributária e Aduaneira, inscrição Ap. 0357, de 2014/06/19;
(rrrr.4.) Prédio descrito sob o n.º 0738: 2 (duas) hipotecas a favor do BANCO AA (Portugal), SA, inscrições Ap. 17, de 2005/07/21 e Ap. 0581, de 2009/09/21; 1 (uma) hipoteca a favor da BB, SA, inscrição Ap. 0128, de 2009/12/04 e averbamento Ap. 0820, de 2012/05/08.”
I.b) – Questões a requestar resolução.
O recorrente enunciou as questões dissidentes e que constituiriam a dessintonia com o acórdão do tribunal recorrido.
a) erro na determinação da norma aplicável, por considerar que a decisão recorrida deveria ter optado/decidido pela aplicabilidade in casu do n.º 5 do artigo 101.º do CRP, com o consequente cancelamento dos registos dos ónus incidentes sobre os imóveis, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CC;
b) verificação de suficiência do título “para o cancelamento de todos os ónus registados, incidentes sobre os imóveis adquiridos pela Recorrente, por caducidade operada ex lege, por aplicação do n.º 2 do artigo 824.º CC, ex vi n.º 5 do artigo 101.º CRP; e não pelo cancelamento apenas das hipotecas constituídas a favor da adquirente, ora Recorrente, por extinção das obrigações garantidas em consequência da dação em pagamento outorgada, quando também o cancelamento destas decorre da caducidade operada ex lege, por aplicação do n.º 2 do artigo 824. CC, ex vi n.º 5 do artigo 101.º CRP, e não da extinção da obrigação garantida.”
II. – FUNDAMENTAÇÃO
II.a) – DE FACTO.
As instâncias consolidaram a sequente factualidade:
“1.Mediante escritura pública de “Mútuo com Hipoteca e Fiança”, outorgada a 29.09.2005, a impugnante concedeu à sociedade CC, Lda, um empréstimo no montante global de 14.600.000,00 €, destinado a financiar a construção de um projecto imobiliário composto por um edifício destinado a habitação e comércio, cujo projecto se encontrava licenciado pela Câmara Municipal de ..., conforme alvará n.º 7/002 de 23.04.2002, pelo prazo de 48 meses, com início na data da outorga da escritura e termo em 29.09.2009, no qual os juros compensatórios deveriam ser liquidados e pagos em prestações postecipadas, sucessivas e trimestrais, vencidas no dia 29 de cada mês e o capital, por sua vez, seria reembolsado à impugnante, na sua totalidade, em 29.09.2009.
2. Como garantia do bom e integral cumprimento de todas as obrigações assumidas pela CC, Lda, na escritura pública identificada em 1., esta constituiu a favor da impugnante hipoteca voluntária sobre os seguintes prédios:
a) Lote 5, composto por terreno destinado a construção urbana sito no lugar ... ou ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 0212 e descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 0735, abrangendo todas as construções e benfeitorias, presentes e futuras;
b) Lote 6, composto por terreno destinado a construção urbana sito no lugar ... ou ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 0213 e descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 0736, abrangendo todas as construções e benfeitorias, presentes e futuras;
c) Lote 7, composto por terreno destinado a construção urbana sito no lugar ... ou ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 0214 e descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 0737, abrangendo todas as construções e benfeitorias, presentes e futuras;
d) Lote 8, composto por terreno destinado a construção urbana sito no lugar ... ou ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 0215 e descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 0738, abrangendo todas as construções e benfeitorias, presentes e futuras.
3. A CC, Lda, apresentou um processo especial de revitalização que correu termos junto do 4º juízo cível do Tribunal do Comércio de …, com o n.º 484/13.7TYLSB, tendo sido nomeado como Administrador Judicial Provisório o Sr. Dr. DD.
4. No âmbito do processo especial de revitalização identificado em 3., a impugnante apresentou reclamação de créditos, tendo reclamado o valor global de 2.521.363,30 €, crédito esse que foi reconhecido como garantido.
5. Por sentença proferida em 24.03.2014 no processo especial de revitalização identificado em 3., transitada em julgado em 14.04.2014, foi homologado o plano de revitalização apresentado.
6. No que ao pagamento dos créditos garantidos diz respeito, entre os quais o da impugnante e o da “BB, S.A.”, consta do plano de revitalização identificado em 5.: “O plano de revitalização da Devedora propõe que os créditos garantidos, reclamados e reconhecidos (…) sejam pagos na íntegra através da dação em cumprimento a seu favor ou a favor do FCR em constituição, nas situações em que os créditos sejam cedidos ao mesmo, dos bens imóveis e valores mobiliários infra discriminados.
As sobreditas dações em cumprimento serão realizadas livres de ónus ou encargos nos termos de acordo a celebrar até 31 de Outubro de 2013 entre aqueles credores, a Devedora e a sociedade gestora do FCR em constituição, no âmbito do qual se definirão os demais termos e condições da sua formalização.
As dações em cumprimento extinguem todos os créditos sobre a Devedora que se encontrem garantidos pelas inscrições hipotecárias registadas a favor daqueles credores, incluindo os créditos solidários sem, contudo, com referência a estes últimos, extinguir a responsabilidade do(s) devedor(es) originário(s) e dos garante desses créditos.
Os citados bens imóveis a prestar em dação em cumprimento dos créditos da (…) BANCO AA (…) são os que a seguir se identificam:
(…)
g) prédios descritos na C.R.P. de ... sob os números 0735, 0736, 0737, 0738 da freguesia de ...; (…).”
7. Mediante escritura pública de “Dação em Cumprimento” outorgada em 15.10.2014, EE, em nome e representação da sociedade CC, Lda, declarou que “a sociedade sua representada reconhece ser devedora” ao aqui impugnante “da quantia de dois milhões quinhentos e vinte e um mil trezentos e sessenta e três euros e trinta cêntimos, montante devidamente reconhecido no âmbito do processo especial de revitalização que corre termos no Quarto Juízo do Tribunal do Comércio de … sob o Processo n.º 484/13.7TYLSB, provenientes de empréstimos efectuados pelo Banco a favor da mencionada sociedade com garantia hipotecária.
Que em cumprimento do Plano de Recuperação homologado judicialmente por decisão proferida no âmbito do referido processo, a sociedade representada do primeiro outorgante, DÁ, ao BANCO AA (PORTUGAL), S.A., para pagamento parcial da referida dívida pelo valor de UM MILHÃO SEISCENTOS E TREZE MIL EUROS, livre de ónus ou encargos, os seguintes prédios:
UM – PRÉDIO URBANO, composto por terreno destinado a construção (…), denominado LOTE CINCO, situado em lugar ... ou ..., na freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número três mil setecentos e trinta e cinco, da referida freguesia (…) inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 0577 (…).
Que sobre este imóvel incidem registados:
- Duas hipotecas a favor do BANCO AA (Portugal), S.A. nos termos das inscrições Ap. 17, de 21/07/2005 e Ap. 0581, de 21/09/2009, cujo cancelamento já se encontra assegurado.
- Uma hipoteca a favor da BB, S.A. nos termos da inscrição Ap. 0128, de 04/12/2009, cujo cancelamento já se encontra assegurado;
- Arresto a favor do FF, nos termos da inscrição correspondente à Ap. 0934, de 14/03/2013, cujo cancelamento já se encontra assegurado.
(…)
DOIS – PRÉDIO URBANO, composto por terreno destinado a construção (…), denominado LOTE SEIS, situado em lugar ... ou ..., na freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número três mil setecentos e trinta e seis, da referida freguesia (…) inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 0578 (…).
Que sobre este imóvel incidem registados:
- Duas hipotecas a favor do BANCO AA (Portugal), S.A. nos termos das inscrições Ap. 17, de 21/07/2005 e Ap. 0581, de 21/09/2009, cujo cancelamento já se encontra assegurado.
- Uma hipoteca a favor da BB, S.A. nos termos da inscrição Ap. 0128, de 04/12/2009, cujo cancelamento já se encontra assegurado;
- Arresto a favor do FF nos termos da inscrição correspondente à Ap. 0934, de 14/03/2013, cujo cancelamento já se encontra assegurado.
(…)
TRÊS – PRÉDIO URBANO, composto por terreno destinado a construção (…), denominado LOTE SETE, situado em lugar ... ou ..., na freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número três mil setecentos e trinta e sete, da referida freguesia (…) inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 0579 (…).
Que sobre este imóvel incidem registados:
- Duas hipotecas a favor do BANCO AA (Portugal), S.A. nos termos das inscrições Ap. 17, de 21/07/2005 e Ap. 0581, de 21/09/2009, cujo cancelamento já se encontra assegurado.
- Uma hipoteca a favor da BB, S.A. nos termos da inscrição Ap. 0128, de 04/12/2009, cujo cancelamento já se encontra assegurado;
- Arresto a favor do FF nos termos da inscrição correspondente à Ap. 0934, de 14/03/2013, cujo cancelamento já se encontra assegurado.
- Uma penhora a favor da AT – Autoridade Tributária Aduaneira, nos termos da inscrição correspondente à Ap. 0357, de 19/06/2014, cujo cancelamento já se encontra assegurado.
(…)
QUATRO – PRÉDIO URBANO, composto por terreno destinado a construção (…), denominado LOTE OITO, situado em lugar ... ou ..., na freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número três mil setecentos e trinta e oito, da referida freguesia (…) inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 0580 (…).
Que sobre este imóvel incidem registados:
- Duas hipotecas a favor do BANCO AA (Portugal), S.A. nos termos das inscrições Ap. 17, de 21/07/2005 e Ap. 0581, de 21/09/2009, cujo cancelamento já se encontra assegurado.
- Uma hipoteca a favor da BB, S.A. nos termos da inscrição Ap. 0128, de 04/12/2009, cujo cancelamento já se encontra assegurado;
- Arresto a favor do FF nos termos da inscrição correspondente à Ap. 0934, de 14/03/2013, cujo cancelamento já se encontra assegurado.
(…)
PELA SEGUNDA OUTORGANTE NA INDICADA QUALIDADE FOI DITO:
Que em nome do “Banco” que representa, aceita em pagamento parcial da referida dívida da sociedade devedora, os prédios acima mencionados nos termos exarados, e perdoa o valor do remanescente da referida dívida prescindindo de, em qualquer altura, vir a reclamá-lo, da sociedade representada do primeiro outorgante e porque se trata de uma aquisição de imóveis por instituição de crédito em processo especial de revitalização estes destinam-se à realização de créditos resultantes de empréstimos, nada mais sendo devido pela sociedade representada do primeiro outorgante e garantes.”
8. Sobre o prédio urbano denominado “LOTE 5”, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número 0735/00001206 da freguesia de ... incidem registadas:
- Duas hipotecas a favor do BANCO AA (Portugal), S.A., nos termos das inscrições correspondentes à Ap. 17 de 21/07/2005 e Ap. 0581 de 21/09/2009; e,
- Uma hipoteca a favor da BB, S.A., nos termos da inscrição correspondente à Ap. 0128 de 04/12/2009.
9. Sobre o prédio urbano denominado “LOTE 6”, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 0736/00001206 da freguesia de ... incidem registadas:
- Duas hipotecas a favor do BANCO AA (Portugal), S.A., nos
termos das inscrições correspondentes à Ap. 17 de 21/07/2005 e Ap. 0581 de 21/09/2009; e,
- Uma hipoteca a favor da BB, S.A., nos termos da inscrição correspondente à Ap. 0128, de 04/12/2009.
10. Sobre o prédio denominado “LOTE 7”, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número 0737/00001206 da freguesia de ... incidem registadas:
- Duas hipotecas a favor do BANCO AA (Portugal), S.A. nos termos das inscrições correspondentes à Ap. 17 de 21/07/2005 e Ap. 0581 de 21/09/2009; e,
- Uma hipoteca a favor da BB, S.A., nos termos da inscrição
correspondente à Ap. 0128, de 04/12/2009; e,
- Uma penhora a favor da AT – Autoridade Tributária Aduaneira, nos termos da inscrição correspondente à Ap. 0357 de 19/06/2014.
11. Sobre o prédio denominado “LOTE 8”, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 0738/00001206 da freguesia de ... incidem registadas:
- Duas hipotecas a favor do BANCO AA (Portugal), S.A., nos termos das inscrições correspondentes à Ap. 17 de 21/07/2005 e Ap. 0581 de 21/09/2009; e,
- Uma hipoteca a favor da BB, S.A., nos termos da inscrição correspondente à Ap. 0128 de 04/12/2009.
Nos termos do artigo 607.º, n.º 4, ex vi artigo 663.º, n.º 2, CPC, considera-se ainda provado que:
12. No plano aprovado pelos credores, referido em 5., consta, designadamente, no que se refere à regularização da situação contributiva e fiscal, que se propõe que os créditos do Estado e outros Entes Públicos sejam pagos na íntegra, e propõe o pagamento imediato [a realizar aquando das dações em cumprimento] da quantia de € 75.368,95 de créditos da Fazenda Pública e que desse montante, a quantia de € 74.211,48 será paga pelas respetivas entidades beneficiárias da dação dos imóveis aí identificados com a respetiva repartição dos montantes a pagar.
13. Lê-se ainda que "A proposta de pagamento imediato da quantia de € 74.211,48 de créditos da Fazenda Pública, acrescido de juros e encargos até ao efetivo pagamento, pressupõe o cancelamento dos ónus da Fazenda Pública registados nos bens imóveis propriedade da Devedora descritos nas alíneas a) a g) imediatamente anteriores [a alínea g) refere-se aos 0735/, 0736/, 0737/ e 0738/ da freguesia de ..., concelho de ...] e, bem assim, que o pagamento seja efetuado simultaneamente e contra a emissão do DUC de liquidação de IMT e Imposto do Selo que instruirá a(s) escritura(s) de dação desses bens imóveis.
O remanescente da quantia proposta pagar no imediato [a realizar aquando das dações em cumprimento], no montante de 1.157,47€, acrescida de juros e encargos até efetivo pagamento, será paga no prazo legal, nos termos do CIRE.
14. Propôs-se ainda o pagamento prestacional [a realizar nos termos do artigo 196° do CPPT] de créditos da Fazenda Pública no valor de € 92.751,76, com a constituição de garantias [hipoteca e penhor], e o pagamento prestacional dos créditos da Segurança Social no montante de 82.379,63€, também com prestação de garantia [hipoteca].
15. Os documentos apresentados a registo pela apelante, tendo em vista o cancelamento das referidas hipotecas e penhora, foram a escritura pública de dação em cumprimento outorgada em 15.10.2014; e a certidão do plano de revitalização aprovado e homologado por sentença transitada em julgado em 14.04.2014.”
II.b) – DE DIREITO.
II.b).1. – Erro na determinação da norma aplicável, por considerar que a decisão recorrida deveria ter optado/decidido pela aplicabilidade in casu do n.º 5 do artigo 101.º do CRP, com o consequente cancelamento dos registos dos ónus incidentes sobre os imóveis, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CC.
Se escandirmos a argumentação do recorrente verificamos que o enfoque das questões em que dissente da decisão recorrida se condensa em dois vectores propositivos axiais: i) a decisão que procede à homologação do plano de revitalização é título bastante para que os serviços de registo estejam habilitados, jurídico-legalmente, para operar o cancelamento, oficioso, dos ónus e encargos que recaem sobre os lotes de terreno que foram dados em pagamento pela empresa revitalizada; ii) a interpretação (restritiva) operada pelos serviços, e coonestados/corroboradas pelas instâncias judiciárias, dos artigos 101.º, nº 5 ex vi do artigo 824º do Código Civil deve ser revisitada e reformulada de acordo com uma interpretação actualista e à luz das inovadoras e induzidas propensões da feérica e oportunística veia legiferante da hodiernidade político-económica.
Em proscénio da argumentação em que se debulhará a avaliação do recurso, importará fixar alguns conceitos axiais à compreensão e inteligibilidade das questões em tela de juízo.
Em primeiro lugar, a função do registo.
“Para além das funções de resolução de conflitos de direitos, a função típica e central do registo, o registo desempenha outras funções, como conservar a situação jurídica do bem, durante o processo (registo das acções), representar a posição jurídica do bem, a sua proveniência, pertença, ónus, e mostrar a cadeia ininterrupta de sucessivos titulares, através da continuidade das inscrições. De um ponto de vista económico, a função do registo reside no favorecimento da circulação de bens e das trocas, num época caracterizada pela multiplicação e democratização da propriedade e pela velocidade das transacções, e apresenta a vantagem, em relação à usucapião, de constituir uma prova ex ante da contratação, enquanto que a usucapião consiste numa prova ex post da contratação, por meio da decisão judicial.” “O instituto de registo visa garantir que, através da regulamentação da dupla alienação ou oneração do mesmo bem, se um sujeito foi proprietário de um bem, não deixou de ser enquanto não for inscrita no registo uma transmissão do direito de propriedade ou uma constituição de outro direito real, parcialmente incompatível com o seu direito. A função do registo é concebida, nos sistemas de tipo francês, com uma função de conservação de direitos, visando assegurar não a titularidade efectiva do alienante, mas que o direito a ter existido, ainda se conserva.” [[2]]
Diversamente do acontece no sistema jurídico alemão, o registo assume no nosso sistema, “apesar das fragilidades e criticas pertinentes dirigidas ao principio da consensualidade”, uma natureza declarativa. (“O registo declarativo, como condição de oponibilidade, típica do sistema francês e dos países latinos, pretende ser apenas uma representação da realidade jurídica que se estabelece solo consensu. Já no sistema alemão, o registo é um elemento essencial no processo de criação da realidade jurídica.”) [[3]]
Um outro tema que vem tratado nas contra-alegações de recurso de apelação por parte do instituto de registos e notariado atina com o facto de a dação em cumprimento ser um modo de extinção das obrigações, fazendo subentender que por efeito deste modo de cumprimento da obrigação não se transfere o direito de propriedade.
Não vem ao caso discorrer sobre o princípio da consensualidade [[4]] e da forma como o sistema português precata as situações de não coincidência entre os momentos de transferência do risco e de entrega (apossamento) da coisa (bem objecto de aquisição).
De facto, tal como no caso da dação «pro solvendo», a dação em cumprimento é uma causa extintiva das obrigações além do cumprimento. Enquanto que, através da primeira – dação em função do cumprimento – o devedor pretende facilitar ao credor a realização do seu direito de crédito, realizando uma prestação diversa da devida, tendente a esse fim, na dação em cumprimento, o devedor tem a intenção de extinguir, mediante a entrega de coisa diversa da prestação da que se tinha obrigado, de forma imediata, a sua obrigação. [[5]]
Mediante este mecanismo de extinção das obrigações, o devedor, tendo obtido o assentimento ou concordância do credor, extingue o crédito que tinha contraído perante este, embora utilizando, ou conferindo, uma prestação diversa da prestação inicialmente convencionada. [[6]]
Tratando-se de uma convenção, ou acordo, neste caso destinado ao cumprimento de uma obrigação, e necessitando, pour cause, de uma produção de declarações de vontade recíprocas e consonantes, a dação em cumprimento adquire a estrutura típica de um negócio jurídico bilateral, sujeito à livre autonomia das vontades que nele se expressam. Cada um dos intervenientes no acordo, para extinção da obrigação, assume perante o outro, e perante terceiros, que o acto liberador da dívida é efectuado de livre vontade e na plenitude da sua autonomia, assumindo, pelo acto querido e realizado, todos os efeitos e consequências do acto concretizado, a saber, para o credor a inclusão na sua esfera jurídica e patrimonial da coisa transmitida e constituída como objecto da dação em pagamento, e para o devedor a libertação da dívida, pela alienação e desafectação da sua esfera jurídica e dominial da mencionada coisa.
A intenção manifestada através do acto escritural junto aos autos, pelos intervenientes da dação em cumprimento, foi a pretenderem extinguir a dívida que haviam contraído perante a entidade credora. A aceitação expressa de que através da dação ficava cumprida a prestação correspondente à dívida que os dadores tinham contraído perante o banco credor, produziu a extinção da obrigação, empossando, ipso facto o credor na titularidade do bem transmitido para a sua esfera jurídico-patrimonial.
Na verdade, como refere Maria Clara Sottomayor, “a favor da livre disponibilidade relativamente ao carácter imediato do efeito real, no nosso sistema, podemos invocar que o legislador, em várias normas dispersas pelo Código Civil, se refere á obrigação de transferir a propriedade a cargo de um sujeito, como forma de garantir a mobilidade de direitos.” Entre os vários institutos jurídicos – mandato sem representação, prevendo a obrigação do mandatário transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato (1181.º, n.º 1); legado de coisa pertencente ao onerado ou a terceiro (2251º); doação de encargos modais, por exemplo – a que o sistema português confere um carácter imediato de efeito real está a dação em cumprimento. [[7]]
Por fim, a função, natureza e escopo da declaração judicial de homologação do acordo de credores que, tendo negociado a revitalização de empresa, submetem a transacção ao crivo judicial para validação do contrato estabelecido entre todos os credores e para valer com acto fundante da posterior fase de revitalização.
Não cabe, aqui e agora, desenvolver as razões que ditaram a introdução do artigo 17º do CIRE – nas suas variantes alfabéticas – mas tão só compreender e dimensionar a função da decisão judicial que procede à homologação, ou não, do contrato (transacção) conchavado pelos credores de um devedor que requesta a revitalização de uma empresa. [[8]]
A decisão que homologa o acordo dos credores para a revitalização de uma empresa – com as variantes que a lei lhe confere – pode ser o acordo firmado antes e apresentado ao juiz, ou ser o acordo alcançado no decurso do processo de revitalização, já pendente em tribunal – não deixa de, para além das especificidades que encerra [[9]] de se constituir como um decisão emanada por um órgão jurisdicional com competência para resolver conflitos e fixar a decisão do caso concreto, com força de caso de julgado para os intervenientes no processo e que estejam ineridos no círculo de interesses que o caso congrace bem a todos os demais que estejam obrigados por lei a respeitar a decisão judicial quanto aos seus efeitos e consequências na ordem jurídica.
O caso julgado, não é demais vincá-lo, impõe-se, de forma irremível e inderrogável, a todos aqueles, no plano interno ou intraprocessual, ou no plano externo ou extraprocessual, devam, pelo sentido e alcance da sua dimensão vinculativa e conformadora, acolher, no âmbito da sua acção funcional, as consequências, efeitos e repercussões das injunções que dela emanam. O caso julgado na sua impositiva e categórica repercute efeitos reguladores e conformadores para o caso resolvido reflectindo obrigações de acatamento por parte daqueles que, funcionalmente, estejam sujeitos ou submetidos à autoridade que ele representa e incute.
Assim, o caso julgado não pode deixar de ser acolhido, acatado e respeitado pelos departamentos administrativos que, na interpretação do decreto judicial, devam executar actos administrativos que satisfaçam e realizem a resolução judicial contida no dispositivo ditado pelo órgão jurisdicional.
Recortados os conceitos que podem servir para a solução do caso, importa adentrarmo-nos na sua essencialidade.
O Plano de Recuperação apresentado pelo administrador judicial, e previamente aprovado pelos credores teve a sequente desinência negocial e concretização no plano constante de fls. 166 a 172 (maxime de fls. 166-167):
“7.1. Termos da negociação com os credores.
A atual conjuntura económica e financeira, o estádio de desenvolvimento dos ativos sob gestão e o peso do endividamento bancário na estrutura de balanço da sociedade, são factores determinantes para que a proposta de regularização dos créditos se encontre naturalmente condicionada ao princípio de acordo estabelecido com os credores com créditos garantidos.
A Devedora encetou negociações com os credores com créditos garantidos, nomeadamente com a BB e GG, os quais representam 97,28% dos créditos reclamados e reconhecidos e 84,81% dos créditos garantidos reclamados e reconhecidos.
Considerando os pressupostos da presente proposta de plano de recuperação, a revitalização da Devedora passa indubitavelmente pelo acordo que possa ser alcançado com estes credores quanto à satisfação daqueles pressupostos.
Das negociações havidas resultou a impossibilidade dos credores BB e GG na atual conjuntura, assegurarem a reestruturação dos créditos nos prazos de reembolso e de carência pretendidos.
A revitalização da Devedora passa então pelo desinvestimento na atual carteira de bens imóveis com o concomitante pagamento dos créditos garantidos do que resultará o pagamento substancial do passivo bancário e a constituição das condições de base para que a Devedora possa retomar o controlo efetivo dos seus negócios e, consequentemente, proceder ao pagamento dos créditos comuns, nos termos aqui propostos.
7.1.1. Termos da proposta de pagamento dos créditos garantidos.
Com referência aos credores garantidos, BB, BANCO GG, BANCO AA e BANCO HH, com ónus hipotecários inscritos a seu favor nos bens imóveis propriedade da Devedora e em valores mobiliários propriedade de entidade terceira, o plano de revitalização propõe o pagamento integral dos seus créditos através da dação em cumprimento daqueles bens imóveis e valores mobiliários a seu favor ou a favor do Fundo de Capital de Risco (FCR) em constituição, nas situações em que os créditos sejam cedidos ao mesmo.
Para o efeito, é necessário concretizar alguns actos prévios (acordo e formalização de constituição do FCR) durante o período que mediar entre a aprovação do Plano de Recuperação e a respetiva homologação judicial, os quais, infra melhor se expõem.
As sobreditas dações em cumprimento serão realizadas livres de ónus e encargos nos termos de acordo a celebrar até 31 de Outubro de 2013 entre aqueles credores, a Devedora e a sociedade gestora do FCR em constituição, no âmbito do qual se definirão os demais termos e condições da sua formalização. A data indicada revela-se adequada à necessária consulta prévia de entidades oficiais (Ex: Banco de Portugal, Comissão do Mercado dos Valores Imobiliários...). (o negrito é da nossa autoria)
As dações em cumprimento extinguirão todos os créditos sobre a Devedora que se encontrem garantidos pelas inscrições hipotecárias registadas a favor daqueles credores, incluindo os créditos solidários sem, contudo, com referência a estes últimos, extinguir a responsabilidade do (s) devedor (es) originário (s) e dos garantes desses créditos.”
Para negar a pretensão de cancelamento dos ónus que incidem sobre o imóvel, o acórdão recorrido desenvolveu a sequente argumentação (sic): “Segundo a apelante, deveria ter sido aplicado o disposto no artigo 101.º, n.º 5, CRP (cancelamento oficioso dos ónus e encargos), por força do preceituado no artigo 17.º-F, n.º 5, CIRE.
O artigo 101.º, n.º 5, CRP, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 116/2008, de 04 de Julho, dispõe o seguinte: “A inscrição de aquisição, em processo de execução ou de insolvência, de bens penhorados ou apreendidos determina o averbamento oficioso de cancelamento dos registos dos direitos reais que caducam nos termos do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil.
Por seu turno, o artigo 17.º-F, n.º 5, CIRE: “O juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à recepção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º .
A apelada opõe-se a este entendimento.
Assiste-lhe razão quando defende a remissão efectuada pelo artigo 17-F, n.º 5, CIRE, para as regras do regime do plano da insolvência, não legitima a aplicação do artigo 101.º, n.º 5, CRP.
Com efeito, a remissão é feita apenas para as regras relativas à aprovação e homologação do plano de insolvência, e o artigo 101.º, n.º 5, CRP prende-se com o cancelamento oficioso de registos que caducam nos termos do artigo 824.º CC. (Venda em execução), cujo teor é o seguinte: “1. A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.
2. Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.
3. Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens.
Nem este artigo nem o 101.º, n.º 5, CRP, fazem qualquer referência ao processo especial de revitalização, introduzido no CIRE pela Lei 16/2012, de 20 de Abril.
Poder-se-ia pensar que se tratou de esquecimento do legislador, que não teria adequado o preceito ao novo instituto (PER).
Não foi, porém, o que sucedeu. A falta de referência ao PER no artigo 101.º, n.º 5, CRP, radica, por um lado, na diferença de natureza da execução e da insolvência relativamente ao PER, e, por outro, na diferença dos efeitos produzidos pela venda executiva e a dação em cumprimento.
Vejamos:
O artigo 1.º, n.º 1, CIRE estabelece o processo de insolvência como um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.
Lê-se no ponto 3 do respectivo preâmbulo:
«O objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores.
Sendo a garantia comum dos créditos o património do devedor, é aos credores que cumpre decidir quanto à melhor efectivação dessa garantia, e é por essa via que, seguramente, melhor se satisfaz o interesse público da preservação do bom funcionamento do mercado.
Quando na massa insolvente esteja compreendida uma empresa que não gerou os rendimentos necessários ao cumprimento das suas obrigações, a melhor satisfação dos credores pode passar tanto pelo encerramento da empresa, como pela sua manutenção em actividade. Mas é sempre da estimativa dos credores que deve depender, em última análise, a decisão de recuperar a empresa, e em que termos, nomeadamente quanto à sua manutenção na titularidade do devedor insolvente ou na de outrem. E, repise-se, essa estimativa será sempre a melhor forma de realização do interesse público de regulação do mercado, mantendo em funcionamento as empresas viáveis e expurgando dele as que o não sejam (ainda que, nesta última hipótese, a inviabilidade possa resultar apenas do facto de os credores não verem interesse na continuação)».
Não obstante a proclamação da recuperação da empresa como um dos eventuais instrumentos da satisfação do interesse dos credores, o CIRE assumiu-se como uma código vocacionado para a liquidação da massa insolvente em benefício dos credores (cfr. Carvalho Fernandes, Sentido Geral do Novo Regime da Insolência no Direito Português, Colectânea de Estudos sobre a Insolvência, pg. 84-5).
O PER — processo especial de revitalização —, introduzido pela Lei n.º 16/2012, atenuou este modelo, passando a privilegiar a recuperação da empresa, relegando para um plano secundário a liquidação do património da empresa.
Assim, conforme dispõe o artigo 1.º, n.º 2, CIRE, aditado por esta Lei, Estando em situação económica difícil, ou em situação de insolvência meramente iminente, o devedor pode requerer ao tribunal a instauração de processo especial de revitalização, de acordo com o previsto nos artigos 17.º-A a 17.º-I.
Trata-se de um processo de iniciativa do devedor e pelo menos um credor, que decorre na sua grande parte à margem do tribunal, cuja intervenção mais significativa ocorre no momento da homologação ou não homologação.
Processo que prevalece sobre o processo de insolvência na medida em que, como dispõe o artigo 17.º-E, n.º 6, CIRE, Os processos de insolvência em que anteriormente haja sido requerida a insolvência do devedor suspendem-se na data de publicação no portal Citius do despacho a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C, desde que não tenha sido proferida sentença declaratória da insolvência, extinguindo-se logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação.
Privilegia-se, assim, a recuperação da empresa em detrimento da liquidação do seu património, sendo a negociação feita entre devedor e seus credores. Será igualmente o devedor que intervirá nos negócios que seja necessário celebrar, os quais se regem pelas regras gerais em tudo o que não contrariar os termos do plano de recuperação homologado.
Assim, não se justifica a aplicação ao processo de revitalização da regra constante do artigo 101.º, n.º 5, CIRE, prevista para o registo de aquisição de imóveis em execução ou em insolvência, aquisição que se opera no âmbito de um processo judicial, com a intervenção do solicitador da execução ou do administrador da insolvência.
No sentido de que a remissão do artigo 17.º -F, n.º 5, CIRE, se cinge às normas relativas à aprovação e homologação do pleno de recuperação se pronunciaram Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dias, PER – O Processo Especial de Revitalização, Coimbra Editora, pg. 141.
Por outro lado, o artigo 101.º, n.º 5, CIRE, nunca lograria aplicação no caso vertente, por falta de preenchimento dos respectivos pressupostos.
O artigo 101.º, n.º 5, CIRE, reporta-se ao cancelamento oficioso de registos que caducam nos termos do artigo 824.º CC.
Por força do n.º 2 deste artigo supra transcrito, os bens em execução são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.
O direitos reais se extinguem automaticamente, por força da lei.
Em contrapartida, dispõe o n.º 3 que os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens.
Prevê-se aqui uma situação de sub-rogação: os direitos reais que caducam por força da venda executiva passam a incidir sobre o produto da venda.
Não resulta, pois, qualquer prejuízo para os titulares dos direitos reais sobre a coisa vendida, pois eles passam a ter expressão idêntica relativamente ao produto da venda, podendo vir a obter pagamento no âmbito da reclamação de créditos (cfr. artigo 788.ºCPC), de acordo com a graduação que lhes competir.
No caso dos autos, não houve venda mas dação em cumprimento.
Não se questiona que a dação em cumprimento seja uma forma de aquisição da propriedade, tal como a compra e venda.
Existe, no entanto, uma diferença fundamental: na dação em cumprimento, prevista no artigo 837.º CC, a prestação de um objecto diverso do devido (aliud), mediante aceitação do credor, opera a extinção da obrigação.
Nas palavras de Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, II, pg. 184, trata-se de um acto solutório da obrigação, assente numa troca ou permuta convencional.
Revertendo ao caso dos autos, naturalmente que, não estando em causa uma transmissão em processo de execução ou em insolvência, os direitos reais de garantia e a penhora que incidiam sobre os imóveis não caducaram ex lege. Nem poderiam esses direitos transferir-se para o produto da venda porque não houve venda nem entrega do preço: a aquisição dos imóveis pela apelante fez-se por «troca» com o crédito que detinham sobre a empresa objecto do processo de revitalização.
Em síntese, os direitos reais que incidam sobre os bens vendidos em execução caducam por ex lege; na dação em cumprimento em análise, a extinção dos direitos reais que incidiam sobre os imóveis dados em cumprimento ocorreu por via da extinção da obrigação garantida (cfr. artigo 730.º, alínea a), CC).
A sentença recorrida não merece censura neste segmento.
E embora o Tribunal apenas tenha que apreciar «questões» e não argumentos, não se pode deixar passar em claro as afirmações constantes da conclusão «s»:
Por um lado, a Recorrente estava impossibilitada de paralisar o PER; por outro lado, tendo dado cumprimento ao mesmo, através da dação em cumprimento, vê-se impossibilitada, em face da Sentença recorrida, de dispor livremente dos bens em causa, em virtude do não cancelamento dos demais ónus ínsitos nos prédios em causa.
Em primeiro lugar, se é certo que o plano de recuperação homologado vincula todos os credores, mesmo que tenham votado contra ou não tenham participado nas negociações (artigo 17.º-F, n.º 6, CIRE), não é menos verdade que a apelante poderia ter oportunamente requerido a não homologação do plano de recuperação, designadamente demonstrando, em termos plausíveis, que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas (artigo 216.º, n.º 1, alínea a), ex vi artigo 17.º -F, n.º 5, CIRE).
Em segundo lugar, não é a sentença que a impede de dispor livremente dos bens recebidos em dação, mas o incumprimento das disposições legais relativas ao cancelamento dos registos de direitos reais e penhora incidentes sobre o bem.
Os argumentos enunciados nas conclusões «t» a «hh», em que a apelante esgrime a sua qualidade de credor titular da 1.ª hipoteca, cujo crédito apenas é preterido pelo crédito de IMI, e a insuficiência do valor dos imóveis para cobrir a totalidade do seu crédito, não são suficientes para afastar as normas, de direito registal, relativas ao cancelamento dos registos.
E não colhe igualmente o paralelo com a venda executiva, pelas razões já explicitadas supra.”
Dispõe o artigo 101º, n.º 5 do Código Registo Predial (na redacção da 6ª versão produzida pelo DL nº 116/2008, de 4 de Julho), que: “a inscrição de aquisição, em processo de execução ou de insolvência, de bens penhorados ou apreendidos determina o averbamento oficioso de cancelamento dos registos dos direitos reais que caducam nos termos do nº 2 do artigo 824º do Código Civil.”
Por seu turno, estatui o nº 2 do artigo 824º do Código Civil (sob a epigrafe “Venda em Execução), que: “os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentes de registo.”
Adrede reza o artigo 17º-F do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (na redacção que lhe foi acrescentada pelo Decreto-lei nº 16/2012, de 20 de Abril), que: “O juiz deve homologar o plano de recuperação, nos 10 dias seguintes à recepção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando cm as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215º e 216º.” [[10]]
Remetendo a tramitação da aprovação do plano de revitalização para os correspondentes artigos contidos no título IX “Plano de Insolvência”, temos que quanto ao conteúdo do plano regula o artigo 195.º, que: “1 - O plano de insolvência deve indicar claramente as alterações dele decorrentes para as posições jurídicas dos credores da insolvência.
2 - O plano de insolvência deve indicar a sua finalidade, descreve as medidas necessárias à sua execução, já realizadas ou ainda a executar, e contém todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz, nomeadamente:
a) A descrição da situação patrimonial, financeira e reditícia do devedor;
b) A indicação sobre se os meios de satisfação dos credores serão obtidos através de liquidação da massa insolvente, de recuperação do titular da empresa ou da transmissão da empresa a outra entidade;
c) No caso de se prever a manutenção em actividade da empresa, na titularidade do devedor ou de terceiro, e pagamentos aos credores à custa dos respectivos rendimentos, plano de investimentos, conta de exploração previsional e demonstração previsional de fluxos de caixa pelo período de ocorrência daqueles pagamentos, e balanço pró-forma, em que os elementos do activo e do passivo, tal como resultantes da homologação do plano de insolvência, são inscritos pelos respectivos valores;
d) (…);
e) (…).”
Por seu turno articula o artigo 202º, nº 2 do CIRE – incluído no título IX do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas –que: “A dação em pagamento dos créditos sobre a insolvência, a conversão destes em capital ou a transmissão das correspondentes dívidas com efeitos liberatórios para o antigo devedor depende da anuência dos titulares dos créditos em causa, prestada por escrito, aplicando-se o disposto na parte final do n.º 2 do artigo 194º.”
Da leitura estrita e estrénua dos segmentos de normas citados (artigos 101.º, n.º1do Código Registo Predial e 17.º-F, n.º 5 do CIRE) pareceria resultar irrefragável que a situação em análise – cancelamento (oficioso) de registo, em caso de os credores serem pagos mediante dação em pagamento – se não encontra, expressa e literalmente, contemplada. Na verdade, e numa leitura meramente burocrática e sem sentido interpretativo de uma norma jurídica, as regras legais em questão parecem reconduzir-se a situações jurídicas lineares e imperterritamente reconhecíveis – actos de aquisição, stricto sensu, v. g. compra e venda – em que a transferência do direito de propriedade se conclui no âmbito de processos de liquidação (universal) e/ou de execução em bens, de e em, patrimónios, respectivamente, e onde o bem vendido, ou adquirido, normalmente através de entidade investida de áurea pública – agente de execução ou administrador judicial –, e mediante adjudicação da autoridade jurisdicional (o juiz), passa para a esfera jurídica do adquirente liberto de qualquer encargo. Isto porque um adquirente, neste tipo de processos – execução ou insolvência –, ao formular o propósito de adquirir um bem que sabe estar onerado, deve ter o poder de pensar que o bem que lhe vai ser entregue, mediante um acto jurisdicional – adjudicação – , se encontra absolutamente liberto de quaisquer ónus. Isto porque a aquisição se realiza e concretiza através de acto judicial e não faria sentido que o órgão jurisdicional procedesse à transferência de um bem sobre o qual impendiam ónus ou encargo – penhora ou apreensões, realizadas no âmbito dos processos onde os bens acabariam por ser alienados – e os mantivesse para além do acto de alienação. Daí que a lei, nos casos apontados, e correctamente, ordene que do acto de adjudicação conste que a transmissão dos bens se faz livre de ónus e encargos, o que importa a ordem, para os serviços administrativos de registo, de que o acto da nova inscrição sejam cancelados os ónus e encargos que hajam estado inscritos, por averbamento, no documento de registo.
A lei, tanto do registo predial como do ordenamento civilista, não prevê nem regula as situações desencadeadas pelo encastoamento do processo especial de revitalização no procedimento da insolvência e recuperação de empresas. Nem o poderia fazer, a não ser por alteração, activa e intrusiva, operada pelo legislador neste dois diplomas, ajustando os citados preceitos ao novo regulamento.
Não o fez pelo que criou uma situação lacunar ostensiva se colimarmos e ativermos a situação criada à logicidade semântica dos termos utilizados e à correlação linear dos preceitos e não a conjugarmos com os demais preceitos do ordenamento da insolvência.
A criação de um modelo procedimentar (o de revitalização de empresas), marcadamente de feição económico-legal, em que, por razões que se prendem com exigências de saneamento e desassoreamento do tecido empresarial [[11]] e, principalmente, derivado de compromissos internacionais assumidos, coagiu e compeliu, irrefragavelmente, o legislador a introduzir num diploma que se encontrava estabilizado – o da insolvência e recuperação de empresas – um tertium genius que, podendo vir a descambar processo de insolvência não poderia ser qualificado de recuperação de uma empresa. Jogos semânticos destinados a comprazer espíritos pouco pragmáticos e mais interessados em que a realidade seja aquela que sai na comunicação.
Para este tipo de processos ficou criada uma situação que não poderia, numa leitura apressada e literal, estar integrada em qualquer dos supra indicados artigos (101, nº 5 do Código Registo Predial e 824.º, n.º 2 do Código Civil)
Podendo as lacunas ser de previsão – quando um determinado caso (ou mais precisamente, determinada categoria de casos) não é contemplado por disposição legal – ou de estatuição – quando a lei, contemplando uma categoria de casos, não formula para esta a consequência jurídica, [[12]] poder-se-ia dizer que teria existido uma falta de previsão do legislador ao não fazer acompanhar os sobreditos artigos (101.º, n.º 5 e 824.º, n.º 2) das correspondentes e pertinentes alterações – fazendo incluir aí a previsão para o processo de revitalização – a que se poderia assacar a uma de duas razões: ou não o quis fazer por, de forma consciente, querer afastar do cancelamento oficioso as aquisições operadas no processo de revitalização; ou não se alcandorou à integralidade do sistema e criou uma lacuna de direito. [[13]]
Em nosso juízo, a questão – que poderia parecer constituir-se em uma lacuna – é passível de ser integrada no ordenamento da insolvência se a perspectivarmos num contexto conjugado e conchavado das normas adrede e procedermos à integração no conspecto dos princípios.
Para efeito pondere-se que: a) a parte final do artigo 17.º-F, n.º 5 remete o procedimento de aprovação do plano de revitalização para o título IX, que se subordina a respectiva epigrafe ao “Plano de insolvência”; b) o nº 2 do artigo 202º do CIRE rege para a forma de estabelecer/consolidar as situações em que se opera o pagamento de credores através de dação em pagamento; c) o artigo que rege para o cancelamento (máxime o nº 5 do artigo 101.º do Código Registo Predial) refere-se a processo de insolvência; d) operando-se com a dação em cumprimento uma transferência do direito de propriedade, com a entrega, verifica-se um processo de aquisição passível de ser enquadrável na previsão de direito contida no artigo 101.º, nº 5 do Código Registo Predial.
O razoamento lógico-dedutivo contido no parágrafo antecedente permite extrair a conclusão de que, numa integração sistémica (de direito) da normação de insolvência com a de registo predial e do direito civil, o cancelamento de ónus e encargos que recaiam sobre bens que hajam sido dados em cumprimento num plano de revitalização, desde que homologado judicialmente, devem ser oficiosamente cancelados.
II.b).2. – Verificação de suficiência do título “para o cancelamento de todos os ónus registados, incidentes sobre os imóveis adquiridos pela Recorrente, por caducidade operada ex lege, por aplicação do n.º 2 do artigo 824.º CC, ex vi n.º 5 do artigo 101.º CRP; e não pelo cancelamento apenas das hipotecas constituídas a favor da adquirente, ora Recorrente, por extinção das obrigações garantidas em consequência da dação em pagamento outorgada, quando também o cancelamento destas decorre da caducidade operada ex lege, por aplicação do n.º 2 do artigo 824. CC, ex vi n.º 5 do artigo 101.º CRP, e não da extinção da obrigação garantida.”
Com a solução de direito adoptada no apartado antecedente entendemos que fica prejudicada a análise da questão enunciada como objecto do recurso.
III. – DECISÃO.
Na defluência do exposto, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 1ª secção, do Supremo Tribunal de Justiça, em:
- Conceder a revista e, consequentemente, ordenar à repartição administrativa de registo que proceda ao cancelamento de todos os ónus e encargos que estejam averbados nas inscrições dos imóveis referidos pelo recorrente;
- Sem custas.
Lisboa, 22 de Fevereiro de 2017
Gabriel Catarino – Relator
Roque Nogueira
Alexandre Reis
_______________________________________________________
[1] Foram supressas as alíneas atinentes à alegação do recorrente quanto à verificação dos pressupostos da admissibilidade da revista excepcional.
[2] Cfr. Maria Clara Sottomayor, Invalidade e Registo, A protecção de Terceiro Adquirente de Boa Fé, Almedina, Coimbra, 2010, págs. 208 e 922.
[3] Maria Clara Sottomayor, op. loc. cit. págs. 165 a 201 “O registo declarativo, como condição de oponibilidade, típica do sistema francês e dos países latinos, pretende ser apenas uma representação da realidade jurídica que se estabelece solo consensu. Já no sistema alemão, o registo é um elemento essencial no processo de criação da realidade jurídica.”
[4] “O principio da consensualidade, fazendo coincidir a transmissão do risco com a transferência da propriedade, e não com a entrega, expõe o adquirente ao perigo de ter de pagar o preço de um bem, que não vai ser entregue, porque foi destruído por uma causa não imputável ao alienante.” – Maria Clara Sottomayor, op. loc. cit. 174.
[5] Cfr. Ac. STJ de 1 de Julho de 2004, inwww.dgsi.pt
[6] cfr. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. II, 7ª ed., Almedina, pág. 171; Cunha de Sá, “Modos de extinção das obrigações”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Teles, Vol. I, págs. 185 e segs, e Brandão Proença, “Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações”, Coimbra, págs. 410 a 418. A impugnação pauliana “envolve, de forma simultânea e recíproca, um efeito transmissivo de um bem para o património do credor e o efeito extintivo de um crédito de que este era titular no confronto com o devedor.”
[7] Maria Clara Sottomayor, op. loc. cit. págs. 192-193.
[8] Para uma crítica ao articulado produzido, por indução extrânea, veja-se Catarina Serra, Processo Especial de revitalização – contributos para uma “rectificação”.
[9] “Dizem Carvalho Fernandes e João Labareda (ob. cit., p. 780), que o referido art. 215º confere ao tribunal o papel de guardião da legalidade, cabendo-lhe em consequência sindicar o cumprimento das normas aplicáveis como requisito da homologação do plano. Acrescentam (p. 782) que são não negligenciáveis “todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são desconsideráveis as infrações que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido”. Mais aduzem (p. 783) que “o plano deve ser aprovado em condições que, efetivamente, viabilizam a realização do fim a que se destina. Isso exclui que mesmo por vontade dos credores, apurada na forma da lei, se constitua como expediente de dilação ou suspensão do processo de insolvência ao serviço de objetivos que não se coadunem com o pensamento legislativo”. Ainda, dizem os mesmos autores (p. 781) que são normas procedimentais “aquelas que regem a atuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que nele foram presentes – incluindo, por isso, as relativas à própria convocatória e funcionamento ‑, e, bem assim, as relativas ao modo como ele deve ser elaborado e apresentado”. Por sua vez, normas de conteúdo, serão “todas as respeitantes à parte dispositiva do plano, mas, além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve contemplar”.
Embora discorrendo a propósito do despacho judicial liminar do procedimento, mas isto vale inteiramente, até por maioria de razão, para a fase da homologação, Luís Martins afirma (ob. cit., p. 32) que “Se existirem factos impeditivos ou que não sejam, supríveis por convite, deve ser rejeitado (ex. uso abusivo do procedimento, para regular a posição de um credor em especial ou a empresa encontrar-se numa situação de insolvência atual), pois, apesar do PER ter como finalidade a recuperação do devedor através do consenso, não deixa de pretender garantir os interesses dos credores – que são chamados a intervir no mesmo. Nestas e noutras situações abusivas, o juiz deve repudiar tal conduta e não admitir o procedimento, pois este não tutela o interesse coletivo nem os fins para que foi instituído”.
Maria do Rosário Epifânio (O Processo Especial de Revitalização, p. 24) parece seguir no mesmo sentido, aí onde refere que no momento liminar apenas pode ser indeferida pretensão do devedor quando for manifesta a viabilidade do pedido, mas que “o controlo dos pressupostos materiais será feito posteriormente (no despacho de homologação, ou em momento anterior, se o administrador judicial provisório suscitar a questão perante o juiz)”.
Carvalho Fernandes e João Labareda (ob. cit., p. 138), realçando precisamente o que se contém da lei como pressuposto material do procedimento, dizem que o processo de revitalização não é meio idóneo quando, considerados os critérios do art. 3º, o devedor viver já na impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas ou, tratando-se de uma entidade incluída na previsão do nº 2, disponha de um ativo patrimonial manifestamente inferior ao passivo. E sobre a relação que deva existir entre o controlo judicial do plano e os pressupostos materiais do procedimento, acrescentam:
“(…) temos por certo o seguinte regime:
a) Quando, pela documentação inicialmente junta pelo devedor, o juiz dê conta da inexistência de qualquer uma das situações fundamentantes do processo de revitalização, deve indeferir o requerimento inicial por falta de pressuposto processual insuprível;
b) Quando, proferido que seja o despacho inicial de seguimento, se venha a evidenciar tal irregularidade, o juiz deve recusar a homologação do acordo que tenha sido alcançado, por violação não negligenciável de regras procedimentais (…)”. –Cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-10-2016 e de 3-11-2015 (José Rainho), in www.dgsi.pt
[10] Os artigos 215º e 216.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas têm como epigrafes “Não homologação oficiosa” e “Não homologação a solicitação dos Interessados”.
[11] Cfr. o já citado acórdão de 27-10-2016 quanto às razões que determinaram a criação da figura do processo de revitalização. “Entretanto, como é sabido e consabido, por força de compromissos assumidos pela República Portuguesa no âmbito do chamado “Memorando de Entendimento” (estabelecido com a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional), o Estado Português foi levado a agir de forma a facilitar o resgate de empresas viáveis e apoiar a reabilitação de indivíduos financeiramente responsáveis. Em decorrência, o Conselho de Ministros aprovou a Resolução nº 43/2011, definidora de um conjunto de princípios orientadores da recuperação extrajudicial de devedores. Dentro da mesma linha, veio a ser produzido o Decreto-Lei 178/2012, que criou o chamado SIREVE (Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial) e, na sequência da Proposta de Lei nº 39/XII, surgiu a Lei nº Lei 16/2012, que introduziu no CIRE o processo especial de revitalização, fixando como pressupostos da sua atuação as duas situações acima aludidas. Tal Proposta de Lei anunciava o propósito de reorientar a legislação da insolvência para a promoção da recuperação, privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostrar viável a sua recuperação. Declaradamente, era finalidade a criação de um processo que representasse um mecanismo célere e eficaz que possibilitasse a revitalização dos devedores que ainda não tivessem entrado em situação de insolvência atual.
Sem dúvida que o processo especial de revitalização (PER) se resolve num procedimento de feição marcadamente extrajudicial, ainda que balizado pela orientação e fiscalização do administrador judicial provisório. Concordantemente com a filosofia que lhe está subjacente, manifestamente que a lei pretendeu deixar na disponibilidade dos credores a composição da relação creditória existente no confronto do seu devedor, escolhendo entre a aprovação de um plano que leve à pretendida revitalização ou a não aprovação de plano algum. A este propósito aduzem Carvalho Fernandes e João Labareda (ob. cit., p. 783) que “não pode deixar de se ponderar o facto da lei propender a pôr nas mãos dos credores a decisão sobre o destino do processo e, nessa medida, o tribunal deve mostrar generosidade na sindicação da bondade do por eles deliberado, na ponderação de que ninguém melhor do que os credores saberá o modo de mais adequadamente defender os seus próprios interesses”. Na realidade, o plano de revitalização do devedor, à semelhança do plano de insolvência, traduz-se num autêntico negócio jurídico, numa espécie de transação (v. Gisela Teixeira Jorge Fonseca, A natureza jurídica do plano de insolvência, in Direito da Insolvência, Estudos, Coordenação Rui Pinto, p.. 122) e, nesta medida, resolve-se num verdadeiro contrato. O que tem de característico é a circunstância de se impor, dentro dos limites admitidos na lei, a todos os credores, a despeito de poder eventualmente representar a vontade de apenas alguns deles.”
[12] Quanto à determinação de situações em que é possível detectar a existência de uma lacuna, veja-se Oliveira Ascensão, “Interpretação das Leis. Integração de Lacunas. Aplicação do Princípio de Analogia.”
[13] No ensinamento de Oliveira Ascensão, no estudo citado na nota antecedente, “(…) as leis não podem ser vistas isoladamente. Integram-se num sistema.
Esta tarefa de construção jurídica permite vitalizar o corpo das leis. Não é um corpo inerte: é um sistema. E um sistema, como tivemos oportunidade de dizer, é necessariamente resultante da integração por meio de princípios fundamentais, que o percorrem, exprimem e unificam.
A própria lei é um sistema: há o sistema interno de cada lei. Mas todas as leis se integram num sistema: há um sistema de leis.
Quando assim fazemos, deixamos a analogia legis, ou analogia de lei. Fazemos analogia iuris ou analogia de direito.
A diferença é de grau. Vamos de abstracção em abstracção, atingindo princípios sempre de maior generalidade.
Mas essa generalidade permite justamente chegar a soluções que não seriam possíveis mediante a analogia legis. Casos que não encontram previsão directa semelhante acabam por ser abrangidos por regras de grande extensão.
No cume, encontram-se os grandes princípios jurídicos, particularmente os princípios formais, que não trazem imediatamente a solução material do caso. Seja o caso de princípios como a boa-fé.
A valoração do caso concreto, à luz deles, permite muitas vezes encontrar a solução material adequada, não obstante a ausência de previsão específica ou até de lei directamente análoga.
Assim atingimos o máximo que se pode retirar do sistema. A racionalização a que este é sujeito permite, sem dedutivismo, alcançar muito mais do que o que ficou dito. Não se aceita o reducionismo da lei ao que nela é expresso: o sistema é utilizado em todas as suas potencialidades, porque o Direito é muito mais do que a lei.
Com isto se encontra solução para a quase totalidade das lacunas da lei. O sistema levou-nos para além do que as leis aparentam.”