I - O crime de roubo protege bens eminentemente pessoais, de forma que não é susceptível de integrar uma continuação criminosa, por força do disposto no n.º 3 do art. 30.º do CP, ainda que sucessivamente praticado contra o mesmo ofendido.
II - O tribunal recorrido não contrariou em aspecto nenhum as conclusões do relatório pericial, uma vez que a caracterização da personalidade como fria e calculista tem a ver com a forma como as circunstâncias de lugar e tempo foram escolhidas, como os factos foram executados, como o arguido agiu para dificultar a sua identificação, nada disto contendendo com a patologia identificada. Com efeito, uma coisa é o desejo impulsivo e pressionante de conseguir dinheiro para jogar, outra o planeamento e a execução do meio escolhido para o obter: se naquele existirá um elemento patológico, aqui poderá prevalecer a racionalidade que será a chave do sucesso. Pelo que, não se verificou a violação do art. 163.º, n.º 2, do CPP.
III - A lei impede a junção de documentos após o encerramento da audiência em 1.ª instância (art. 165.º, n.º 3, do CPP), sendo que não se impõe qualquer interpretação restritiva deste preceito legal por virtude do disposto no art. 32.º, n.º 1, da CRP. De facto, a estipulação ampla e abrangente daquele preceito constitucional não significa um ilimitado e incondicionado direito a usar todos os meios que, no entender do arguido, sejam os adequados. A defesa faz-se necessariamente dentro de regras e condições que a lei estipula, sob pena de subversão dos princípios do processo justo e equitativo. A regra que impede a entrega de pareceres após o encerramento da audiência não constitui nenhuma restrição ao direito de defesa. Ela impõe-se a todas as partes processuais. No caso de haver novos elementos de prova, existirá sempre o recurso de revisão para os conhecer e apreciar.
IV - Os casos de “diminuição sensível da capacidade de avaliação” podem ser tratados como de inimputabilidade ou antes de imputabilidade (diminuída), de acordo com o juízo que o tribunal faça sobre a verificação dos pressupostos referidos nos n.ºs 2 e 3 do art. 20.º do CP. No caso de o tribunal considerar o agente imputável, estaremos então perante um caso de imputabilidade diminuída, mas o legislador não determina como consequência necessária dessa situação a atenuação da pena, como se imporia caso a imputabilidade diminuída se fundasse numa presumida diminuição da culpa.
V - À imputabilidade diminuída não corresponde necessariamente uma culpa diminuída. Ela tanto pode conduzir a uma culpa agravada, como a uma culpa atenuada, tudo dependendo das características da personalidade do agente reflectidas no facto; quando estas se revelarem especialmente desvaliosas do ponto de vista do direito, estaremos perante uma culpa agravada, a que corresponderá uma pena necessariamente mais grave. A forma racional e calculada como os diversos roubos foram planeados e executados revelam de facto uma personalidade capaz de se autodominar em função do objectivo pré-definido, agindo com rigor e frieza no cumprimento desse plano.
VI - Se o arguido aceita como justas e adequadas as penas parcelares, já o mesmo não sucede com a pena única. O arguido praticou 8 crimes de roubo simples, em estabelecimentos comerciais (7 em farmácias e o outro num hotel), executados de forma essencialmente homogénea, ou seja, ameaçando os funcionários desses estabelecimentos com um objecto que aparentava ser uma pistola, mas era na realidade um objecto de plástico, o qual, no entanto, atemorizava os funcionários a quem o arguido se dirigia, que eram assim levados a entregar-lhe o dinheiro existente na caixa registadora e ainda outros objectos (medicamentos) que o arguido os intimava a entregar-lhe, perfazendo, conforme os casos, entre algumas centenas, um ou dois milhares de euros de cada vez.
VII - O arguido actuou sempre sozinho, agindo com assinalável ousadia, desenvoltura e sangue frio. Embora não registando antecedentes criminais, o arguido deixou-se facilmente “levar” pelo “sucesso” do primeiro roubo, reiterando a prática por mais 7 vezes no espaço de 3 meses, uma série criminosa que só foi interrompida pela sua detenção imediatamente após a consumação do último crime por quem vem condenado. As exigências de prevenção geral são particularmente fortes neste tipo de criminalidade.
VIII – Já a prevenção especial se mostra menos exigente. Embora a personalidade do arguido revele algumas características preocupantes, atrás realçadas, agravadas pela patologia do jogo, funcionam em sentido inverso outras circunstâncias relevantes como a inserção comunitária, familiar e laboral, que podem contraria com êxito as primeiras. Pelo que, tudo ponderado, se julga adequada a aplicação de uma pena única de 6 anos de prisão (numa moldura que vai de 2 anos e 6 meses a 17 anos de prisão), em lugar da pena única de 7 anos de prisão aplicada pela 1.ª instância.
I. Relatório
AA, com os sinais dos autos, foi condenado no Juízo Central Criminal da comarca de ..., por acórdão de 16.9.2016, como autor material dos seguintes crimes:
- um crime de roubo simples, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do Código Penal (CP), na pena de 2 anos de prisão (Proc. n.º 507/15.5PBCSC);
- um crime de roubo simples, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do CP, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão (Proc. n.º 619/15.5PSLSB);
- um crime de roubo simples, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do CP, na pena de 2 anos de prisão (Proc. n.º 847/15.3PBCSC);
- um crime de roubo simples, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do CP, na pena de 2 anos de prisão (Proc. n.º 56/15.1SULSB);
- um crime de roubo simples, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do CP, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão (Proc. n.º 878/15.3PBSNT);
- um crime de roubo simples, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do CP, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão (Proc. n.º 744/15.2PASNT);
- um crime de roubo simples, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do CP, na pena de 2 anos de prisão (Proc. n.º 768/15.0S6LSB);
- um crime de roubo simples, p. e p. pelo art. 210º, nº 1, do CP, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão (Proc. n.º 407/15.9PVLSB).
Em cúmulo jurídico destas penas, por se encontrarem em concurso, foi o arguido condenado na pena única de 7 anos de prisão.
Desta decisão recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de ..., concluindo:
(i) Por inexistir uma mesma situação exterior ao agente facilitadora das sucessivas condutas delituosas, por o tipo incriminador primário em causa – roubo – proteger não só bens patrimoniais mas também eminentemente pessoais e, ainda, por as perturbações psíquicas do arguido – distúrbio obsessivo compulsivo e a adição ao jogo – serem circunstâncias internas do agente e não externa o acórdão recorrido decidiu não ser aplicável a figura do crime continuado, condenando, em concurso real, pela prática de 8 crimes de roubo.
(ii) No que respeita aos pressupostos do crime continuado dos factos julgados provados no acórdão resulta que a conduta do arguido foi enquadrada no mesmo tipo legal – 8 crimes de roubo na forma simples – pelo que é pacífica a realização plúrima do mesmo tipo incriminador.
(iii) Quanto à homogeneidade da execução também existe no caso, o que o acórdão admite, porque não só o modus operandi seguido – o arguido actua sempre sozinho, usa o mesmo tipo de roupa socorre-se da ameaça de uma pistola de plástico para forçar a entrega dos valores – é idêntico em todas os roubos, como também a distância temporal em que as mesmas têm lugar é relativamente próxima.
(iv) Como também existe no caso vertente a unidade de dolo porque o agente não formou em cada momento uma resolução absolutamente autónoma das demais, mas antes na execução de um intuito contínuo, na medida em que o intento criminoso não se renova autonomamente sendo todos os roubos praticados na sombra de uma primeira resolução que determina todas as demais.
(v) No que interessa ao requisito fulcral da existência de uma solicitação externa que atenua consideravelmente a culpa do agente, ao contrário da doutrina dominante, que o entende como sendo um convite à prática do crime que se corporiza num evento físico que se depara inadvertidamente ao agente, o recorrente entende que aquela pode ser também e apenas o sucesso da primeira conduta e que impele o agente à repetição desta, o que sucedeu no caso vertente: o arguido repete a conduta porque surpreso com a facilidade com que executou a primeira resolução, a seguinte lhe aparece como muito mais fácil e assim sucessivamente.
(vi) Este sucesso em cada roubo, realizados no quadro de um distúrbio obsessivo compulsivo e de uma adição ao jogo, que impele o arguido à prática de novo roubo é não uma circunstância endógena mas exógena: é uma disposição das coisas que ele não domina, não sendo tanto uma circunstância facilitadora mas, mais propriamente, incentivadora da prática dos roubos subsequentes e que determina a diminuição da culpa do agente.
(vii) Finalmente quanto à exclusão do crime continuado decorrente do n.º 3 do artigo 30.º do CP, o recorrente discorda da posição dominante plasmada no acórdão por entender que a expressão “bens eminentemente pessoais” empregue no normativo citado quer referir especificamente os crimes tipificados sob a epígrafe “Dos crimes contra as pessoas” no título I do Livro II do CP, sob pena de se estar a restringir injustificadamente o âmbito de aplicação do instituto.
(viii) Embora também proteja a vida, a integridade física etc., o bem jurídico que a incriminação do roubo visa, em primeira mão, proteger é a propriedade donde a sua inserção no Titulo II Dos crimes contra o património, Capitulo II dos Crimes contra a Propriedade e não no título I Dos crimes contra a pessoa em que o objecto da protecção da norma é em primeira linha a pessoa.
(ix) Colhendo este entendimento (crime continuado) e tendo presente o referido nos pontos 13 a 19 deste, julga-se que, atenta a culpa diminuída do arguido, as necessidades de prevenção especial (baixas) e geral (medianas), a pena de 2 anos e 6 meses de prisão se mostra justa e adequada, suspensa na sua execução, mediante a imposição da obrigatoriedade de acompanhamento psiquiátrico e a proibição de existência de qualquer meio informático na habitação que possa permitir a regressão da perturbação de jogo compulsivo, sujeita à fiscalização dos Serviços de Reinserção Social.
(x) As condutas ilícitas cometidas pelo arguido, que aliás as confessou e sobre as quais mostrou profundo e verdadeiro arrependimento, são resultantes da perturbação psiquiátrica que limita a vontade do mesmo.
(xi) O que resulta das conclusões produzidas pelos peritos médicos psiquiatras do Hospital ... (Relatório Pericial Psiquiátrico de fls. 1242 a 1253 dos autos), Drs. BB e CC)
(xii) Pois, segundo os mesmos peritos, os crimes de roubo qualificado de que está indiciado foram cometidos em estreita relação com uma perturbação mental (jogo patológico). Esta perturbação está intimamente ligada a sintomas depressivos, ansiosos e consumo de álcool, estando igualmente associado a períodos de desespero e pânico (pág.12 e última do relatório de fls. 1242 a 1253 dos autos).
(xiii) O Tribunal a quo ultrapassando a limitação à sua liberdade de apreciação da prova imposta pelo artigo 163º nº 1 do CPP e sem qualquer motivação nos termos do nº 2 do mesmo aresto, considera que o arguido “No cometimento destes ilícitos o arguido revelou uma personalidade fria e calculista (…).” (acórdão recorrido, pág. 36).
(xiv) Sendo que no relatório pericial constante dos autos os peritos concluem que, “O protótipo do doente afecto de perturbação por jogo patológico, necessariamente simplificado para clareza expositiva, segue um padrão de três etapas… Uma terceira fase, apelidada de “desespero”, é caracterizada por níveis aumentados de sintomas de ansiedade, depressão e isolamento social. Nesta última fase ocorrem com frequência episódios depressivos, ideação ou tentativa de suicídio, sendo igualmente comum o uso de substâncias (v.g. álcool). É precisamente nesta fase que há maior probabilidade de cometer ilícitos criminais de natureza aquisitiva que, nalgumas instâncias, até pode ser percebido pelo próprio como um “empréstimo” que irá pagar futuramente.”
(xv) Motivações essas que imporiam (por força do citado nº 1 do artigo 163º do CPP) outras conclusões ao Tribunal, o que não aconteceu e deve ser agora considerado na graduação da culpa do arguido.
(xvi) O Tribunal a quo limitou-se a seleccionar partes das conclusões dos Senhores Peritos para aferir da inexistência de qualquer inimputabilidade. Não para aferir do grau de culpa, da intencionalidade do arguido no momento da prática dos factos criminosos.
(xvii) Perpassa por todo o acórdão, quer na análise crítica da prova, quer na determinação da pena concreta que o tribunal a quo diverge das conclusões dos peritos!
(xviii) Como se deixou bem patente supra, os peritos concluem que o arguido se encontrava numa fase de desespero, a qual inibe por completo a racionalidade e a frieza de ânimo que o mesmo tribunal atribui ao arguido! Porém, o acórdão não fundamenta essa divergência do ponto de vista científico (o único possível) mas, antes sim e só, socorrendo-se de uma interpretação que faz dos factos e do aparente comportamento do arguido, para retirar conclusões que não encontram arrimo nos factos provados (vg. o mesmo relatório).
(xix) Pois, o acórdão recorrido abusivamente concluiu que (…) “o arguido AA tinha perfeito conhecimento da ilicitude dos seus comportamentos delituosos, na medida em que, caso assim não fosse, nunca teria tido a preocupação de preparar com todo o cuidado e de executar friamente estes crimes, de procurar impedir a sua identificação por parte das pessoas, com as quais teve que privar e ainda teve a preocupação de dificultar ao máximo a investigação destes crimes, actuando sempre com o intuito de não deixar rasto e de não abrir pistas que o levassem ao seu reconhecimento como autor dos factos.” (págs. 21-22 do acórdão)
(xx) E que “No cometimento destes delitos o arguido revelou uma personalidade fria e calculista escolhendo indiscriminadamente as farmácias entre diversas localidades (Lisboa, Cascais, Mem-Martins e Queluz) não cometeu os factos em dias seguidos, soube esperar as oportunidades e acima de tudo procurou ocultar o seu rosto e não deixar no local elementos que podiam conduzir à sua identificação por parte das autoridades policiais.
(xxi) Esta personalidade fria e calculista transparece também de, por regra, ter actuado junto da hora de fecho das farmácias, de modo a obter maiores proveitos económicos.” (pág. 36)
(xxii) Repita-se nada disto se compadece com o resultado da perícia constante dos autos e do que consideram os peritos ser uma fase de desespero do arguido.
(xxiii) Por outro lado, entende o tribunal a quo que o arguido tentou ocultar a sua identidade e não deixou rastos que possibilitassem a sua identificação.
(xxiv) Porém, factualmente, o arguido surgiu com uma sweat shirt com um capuz e, dessa forma, com a cara completamente destapada e visível cometeu os roubos, sendo reconhecido por todas as testemunhas presentes nos locais dos roubos.
(xxv) Diz também o acórdão que o arguido procurou, de forma calculista, não deixar qualquer rasto que permitisse a sua identificação!
(xxvi) O que não corresponde à realidade, pois o arguido, em nenhum dos roubos procurou ocultar a filmagem do seu rosto.
(xxvii) Erroneamente e para sustentar a ideia que criou de calculismo e frieza de personalidade refere o tribunal que o arguido não cometeu os factos em dias seguidos (pág. 36 do acórdão)!
(xxviii) Ora, tal não se compagina com a realidade pois, embora o Tribunal reconheça o curto intervalo de tempo em que os crimes foram praticados, não cuidou de verificar que 6 dos 8 crimes são cometidos no mesmo dia, à razão de 2 por dia.
(xxix) Tendo o arguido, ao invés do que o Tribunal a quo sustenta, cometido todos os crimes num espaço temporal de um mês e a maior parte deles (6) à razão de 2 por dia, isto é, em apenas 3 dias, resulta claro o erro de apreciação da prova e que fundou a convicção, também errada, que o arguido, também por isso, cometeu os crimes de forma fria e calculista.
(xxx) Nada nos autos permite concluir que o arguido tenha cometido os crimes às horas de fecho das farmácias para assim recolher do roubo um maior provento. Outra ilação errada e que não tem qualquer suporte fáctico mas que motivou mais uma razão para o Tribunal a quo, erradamente, concluir pela frieza e calculismo de actuação do arguido.
(xxxi) O Tribunal a quo, da mesma forma e com o mesmo intuito, desvaloriza por completo quer o arrependimento profundo e até dolorosamente manifestado pelo arguido junto dos peritos nomeados (7º § do relatório de fls. 1242 a 1253 dos autos) quer a confissão, o que faz por mera suposição, contrária ao plasmado na perícia mencionada antes.
(xxxii) Ao mesmo tempo, o aresto recorrido não qualificou com a mesma intensidade o ressarcimento parcial e a tentativa de ressarcimento total dos montantes obtidos com os roubos. O que deveria ter feito por forma a melhor qualificar quer a confissão quer o arrependimento.
(xxxiii) Quer das avaliações psiquiátricas, quer da aplicação de testes psicológicos, resulta bem patente e ainda mais reforçada a noção que o arguido é um doente psiquiátrico com doença de longa duração. O que, como se viu antes, o Tribunal a quo desvalorizou por completo.
(xxxiv) O arguido não pretende, de forma séria e íntegra, ver-se inocentado de algo que assumiu ter feito mas, tão só e apenas que lhe seja reconhecido e seja devidamente valorado o estado de doença psiquiátrica inibidora da sua autodeterminação cabal.
(xxxv) O que deve ser ponderado para efeitos de verificação de reunião dos pressupostos do crime continuado ou, caso assim não se entenda, prevalecendo o concurso real, para efeitos de determinação da pena concreta.
(xxxvi) Entende o Tribunal no Acórdão recorrido ser de imputar ao arguido um grau de culpa acima do limite médio da moldura penal mas, para tal o mesmo não considerou a limitação a que deveria reconhecer estar limitado e, por isso, ter diminuído esse limite.
(xxxvii) Pois o arguido, no momento da prática dos factos, encontrava-se na ultima de três fases progressivas da patologia de que padece e que, por isso, se encontrava em fase de “desespero”, a qual não lhe permitia a racionalidade objectiva que um cidadão médio teria para se coibir da prática do ilícito ou, nela persistindo, para se autodeterminar volitivamente.
(xxxviii) Este estado da doença encontra-se demonstrado por factos que fariam qualquer cidadão médio colocado perante a mesma situação agir de forma diferente. Quer inibindo-se do cometimento dos ilícitos penais quer, optando pela prática delituosa, rodear-se de precauções, cautelas e programações completamente diferentes das que, inexistindo, rodearam a actuação do arguido.
(xxxix) O meio utilizado pelo arguido – uma pistola de plástico – a qual foi facilmente reconhecida no último dos assaltos perpetrados (ao hotel “...”), não era um meio apto a provocar o sentimento de impotência e insegurança que o Tribunal a quo considerou para justificar a elevada gravidade dos ilícitos.
(xl) Quer o meio utilizado, quer a inexistência de uma tentativa de dificultar a sua identificação, aliadas à especial condição mental do mesmo não são compagináveis com a intensidade da culpa que lhe foi assacada no Acórdão posto em crise.
(xli) A pistola de plástico utilizada pelo arguido não pode ser considerada do ponto de vista objectivo e não da sensação provocada, um meio apto a provocar a sensação e o sentimento que o tribunal a quo considera para efeitos de valoração do grau de culpa do mesmo.
(xlii) O Acórdão recorrido, paradoxalmente, ao mesmo tempo que apura uma personalidade fria e calculista, considera existir um risco de repetição de factos semelhantes caso o arguido não seja acompanhado…!!! (pág. 37 do acórdão recorrido).
(xliii) Ora, para existir acompanhamento tem de existir doença! Algo que o Tribunal, como se demonstrou cabalmente ao longo das motivações, não considerou. O que deveria ter feito.
(xliv) Deve o grau de culpa do arguido ser especialmente atenuado em função da sua condição pessoal (doente mental) e em função da inexistência de meio idóneo capaz de produzir os sentimentos e sensações de impotência e de insegurança, a tentativa de reparação integral dos danos causados, o arrependimento sincero, a confissão dos factos e a primodelinquência do mesmo.
(xlv) Quanto ao primeiro dos critérios a observar na determinação da medida da pena concreta – artigo 71.º do C.P. – dir-se-á que a culpa do arguido se encontra sensivelmente reduzida em função da perturbação psiquiátrica de que o arguido estava afecto à data da prática dos factos e que lhe limitaram severamente a sua capacidade de autodeterminar-se de acordo com o direito.
(xlvi) O arguido não estava totalmente privado da capacidade de se determinar de acordo com a avaliação da ilicitude do facto, mas sim tolhido na sua capacidade de resistir ao impulso delituoso estando seriamente diminuída a sua capacidade de se determinar de acordo com o entendimento do acto ilícito.
(xlvii) As exigências de prevenção especial, atendendo a que o arguido é primário e bem integrado socialmente, tentou reparar integralmente os danos causados, confessou os factos, mostrando arrependimento sincero, admite-se serem particularmente baixas.
(xlviii) O risco do arguido reincidir na conduta é baixíssimo e a probabilidade de se reintegrar validamente na vida social, com o apoio da família/comunidade e sendo medicamente acompanhado é altíssima.
(xlix) À prevenção geral basta a imposição de pena de prisão ao arguido para satisfazer a necessidade de fortalecimento da consciência jurídica comunitária na validade da norma violada, posto que haveria punição do facto e reposição da validade da ordem jurídica.
(l) Quer-se com isto dizer que um (roubo) assalto realizado por um agente “armado” com uma pistola de plástico, embora sempre seja reprovado, não merece uma intensa censura social, sabendo-se que ninguém foi ferido e que os valores furtados não são particularmente elevados.
(li) O grau de ilicitude não sendo menosprezível não é dos mais gravosos face ao elenco de condutas concretas possíveis abrangidas pela incriminação do tipo, porquanto na execução dos roubos não foi usada violência física mas apenas a ameaça de um objecto semelhante a uma pistola “réplica em plástico” com a qual foi suportada aquela.
(lii) Acresce que as consequências dos crimes também não foram particularmente gravosas, não só por não ter havido qualquer ofensa à integridade física de algum dos funcionários dos estabelecimentos roubados, como também pelos valores apropriados pelo arguido serem relativamente modestos.
(liii) O dolo sendo directo não se manifesta de forma particularmente intensa no caso em apreço atendendo a que a consciência de realização do ilícito, pelos motivos acima expostos à exaustão, existindo, é certo, contudo, toldada pela pulsão que impele o arguido à sua prática.
(liv) Antes dos roubos, o arguido era, como se viu, “(…) uma pessoa afável, humilde, educada e trabalhadora e como um empresário cumpridor.” com uma conduta socialmente irrepreensível.
(lv) Posteriormente, à sua detenção o arguido tem feito tudo o que está ao seu alcance para fazer tratar os distúrbios psíquicos de que padece além de tentar tentando reparar os danos causado pelos roubos.
(lvi) Daí igualmente decorre que interiorizou de forma evidente o desvalor da sua conduta e realizou o perigo que representa a adição ao jogo se não for permanentemente acompanhado por médico psiquiatra.
(lvii) Perante tudo o que ficou dito atrás, entende o recorrente que as concretas penas parcelares que lhe foram aplicadas se mostram estranhamente justas e adequadas aos crimes, tendo em atenção a moldura abstracta aplicável.
(lviii) Pelas mesmas razões, entende que a medida justa e adequada máxima da pena se encontra no meio da moldura abstracta, pelo que deve ser condenado numa pena única nunca superior a 4 (quatro) anos de prisão.
(lix) Atendendo à personalidade do arguido, às condições de sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, e a que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidade da punição, deve a pena aplicada ser suspensa na sua execução.
(lx) Suspensão essa que deverá ficar subordinada à obrigação de acompanhamento psiquiátrico permanente do arguido; à proibição de existência de qualquer meio informático na sua habitação; à proibição da frequência pelo arguido de estabelecimentos que possibilitem acesso a meios informáticos; e à sujeição à fiscalização dos Serviços de Reinserção Social.
Respondeu o Ministério Público, dizendo:
I. Razões do recurso
O recorrente entende, em síntese, que:
1. é aplicável, in casu, a figura do crime continuado;
2. a sua culpa é especialmente atenuada;
3. houve excesso na medida da pena aplicada;
4. estão verificados os pressupostos subjacentes à suspensão da sua execução.
II. A conduta criminosa do recorrente
(…)
III. A qualificação jurídica dos factos
Defende o recorrente que a sua condenação por múltiplos crimes corresponde a um deficiente enquadramento jurídico da atividade que desenvolveu, entendendo que esta configura apenas um só crime, de carácter continuado.
Em síntese, o recorrente alega que agiu no quadro de uma solicitação exterior que diminuiu sensivelmente a sua culpa.
E identifica essa situação/circunstância facilitadora.
Com efeito, no ponto 6 das suas alegações de recurso, mais precisamente no último parágrafo de fls. 9 e no primeiro de fls. 10, o recorrente diz que “…a circunstância facilitadora pode ser também e apenas o sucesso da primeira conduta e que impele o agente à repetição desta. É o que, embora se reconheça que a tese aqui defendida tem esparso acolhimento doutrinal jurisprudencial, sucedeu no caso vertente;…”
Depois concretiza (cfr. 2º parágrafo de fls. 10 das alegações de recurso): “Queremos dizer que é o sucesso do primeiro roubo que determina a prática dos subsequentes. Este sucesso em cada roubo que impele o arguido à prática do novo roubo é não uma circunstância endógena mas exógena: é uma disposição das coisas que ele não domina”.
E concluiu, sublinhando, que: “Não será tanto uma circunstância facilitadora, mas mais propriamente incentivadora da prática dos roubos subsequentes e que determina a diminuição da culpa do agente.”
O crime continuado consiste numa unificação jurídica de um concurso efectivo de crimes que protegem o mesmo bem jurídico, fundada numa culpa diminuída.
Sucede que a diminuição da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se oferece/proporciona ao agente e não quando ele ativamente a provoca.
Ora, no caso em apreço, não nos parece que aquilo que, no entender do recorrente, foi a ocasião/circunstância favorável à prática dos roubos subsequentes (o sucesso do primeiro roubo) tenha sido uma situação com que se deparasse ou se lhe oferecesse, mas antes um situação por si conseguida/alcançada.
E tanto bastará - crê-se - para que improceda o, por si, alegado, quanto à recondução de toda a sua conduta à figura do crime continuado.
Mas, ainda que assim não fosse, haveria igualmente que concluir pela improcedência do alegado pelo recorrente.
Com efeito, falta o requisito legal da diminuição sensível da culpa sempre que - como foi o seu caso - o agente, para cometer os factos, usa de ameaça grave ou violência.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª Edição actualizada, pág. 162, nota 28, “…A utilização de quaisquer meios de violência física ou psíquica, directa ou indireta, sobre pessoas ou coisas afasta desde logo uma culpa diminuída. Daí a necessidade de a jurisprudência ser particularmente rigorosa na aferição dos pressupostos subjectivos da continuação da actividade criminosa que revelem a diminuição sensível da culpa, como também sublinha muito justamente Figueiredo Dias (2007: 1041)”.
IV. O acerto da condenação na única de prisão efetiva aplicada
O recorrente foi condenado, em cúmulo jurídico, numa pena única de 7 anos de prisão, pela prática dos assinalados crimes de roubo.
O recorrente entende que tal pena é excessiva.
Justificando esse entendimento, alega que o Tribunal deveria ter graduado (para menos) a sua culpa, uma vez que sofre de perturbação psiquiátrica (jogo patológico) que o impeliu à prática dos crimes.
Salvo o devido respeito por diverso entendimento, não cremos que a pena aplicada ao recorrente seja excessiva.
Desde logo, porque a pena única aplicada (7 anos de prisão) ficou muito longe do limite máximo, em abstracto, atendível de 25 anos de prisão.
Depois, porque as penas parcelares aplicadas a cada um dos 8 crimes de roubo – todas elas – estão situadas no primeiro terço da respectiva moldura pena, próximas do limite mínimo.
Além disso, importa considerar, na concretização da medida da pena, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente (artº 71º, nº 2, do C. Penal), designadamente:
- o grau de ilicitude da sua conduta;
- a sua culpa;
- a intensidade do dolo
- a gravidade das consequências;
- as exigências de prevenção geral e especial;
- a conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
- a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
No caso em apreciação, foram esses diversos fatores - quanto a nós - devidamente ponderados pelo Tribunal, na determinação da medida das penas parcelares e da pena única aplicadas.
Entre esses fatores destacaríamos o acentuado grau de ilicitude da conduta do recorrente, revelado no modo como preparou e executou os crimes, escolhendo a hora do encerramento das farmácias (altura do fecho de caixas e, por isso, momento em que nelas se encontra mais dinheiro) para as assaltar e, além disso, usando disfarce (carapuço e óculos escuros) e calçando luvas, tudo para dificultar a sua identificação.
Por outro lado, é também de assinalar a seriedade que o recorrente pôs nos gestos com que ameaçou as vítimas (apontando à cabeça de algumas delas aquilo que estas viram como uma verdadeira arma de fogo) e o medo genuíno que, por via disso, nelas causou e, ainda, a elevada gravidade do dolo (dolo direto) associado aos crimes que praticou.
No que se prende com a sua culpa, haverá que ter em conta que o exame pericial psiquiátrico realizado conclui (cfr. fls. 1269, último parágrafo) pela inexistência de pressupostos médico-legais estritos para inimputabilidade.
A desorientação e ansiedade que o recorrente invoca, e que – face ao resultado da perícia médica - se crê poder julgar-se verificada, poderá atenuar e – com certeza – atenua a sua culpa (dado que, seguramente, se reflectiu, em favor do recorrente, na medida das penas parcelares aplicadas).
Não excluiu essa culpa.
Nem - cremos - a diminui por forma acentuada.
Com efeito, a referida perturbação mental não afetou a capacidade do recorrente para avaliar a ilicitude dos factos (assaltos) praticados.
Os crimes foram praticados, no decurso de 2015, em:
- 8 de abril, pelas 21.00h;
- 8 de abril, pelas 23.50h;
- 3 de junho, pelas 20.30h;
- 12 de junho, pelas 18.10h;
- 20 de junho, pelas 18.45h;
- 20 de junho, pelas 21.00h;
- 4 de julho, pelas 19.50h;
- 4 de julho, pelas 22.10.
Isto é, o recorrente foi praticando os crimes de roubo ao longo de um período que se prolongou por cerca de 3 meses.
A cronologia dos crimes (face aos intervalos de tempo que ocorrem entre eles) atesta que foi renovando sucessivamente a decisão de os executar.
Em qualquer desses momentos (momento da prática dos crimes), assim como ao longo do assinalado período, o recorrente estava bem ciente de que o seu procedimento era ilícito.
E decidiu executá-los sem que nada ou alguém o tivesse forçado a isso.
Embora se aceite que a patologia associada ao jogo possa ter limitado a capacidade de o recorrente se determinar em função da noção – que tinha – da ilicitude dos factos, não se vê que essa limitação tenha ido ao ponto de não permitir ao recorrente qualquer outro tipo de opção, solução ou escolha.
Na verdade, o recorrente não será o único a sofrer com a referida perturbação de jogo patológico.
Haverá mais quem seja vítima de tal perturbação.
Nem por isso, porém, é opção de todos os que padecem de tal mal seguirem o caminho que o recorrente escolheu.
Assinale-se também que, embora se compreenda a relação que essa perturbação poderá ter com as quantias subtraídas, durante os assaltos, pelo recorrente (essas quantias serviriam para alimentar o vício do jogo), já mal se compreende a relação que essa perturbação tem com outros valores, nessas ocasiões, subtraídos, tais como: chá verde, produtos de beleza, cremes de barbear ou medicamentos.
O recorrente alega também que (cfr. ponto xviii das alegações de recurso) “…os peritos concluem que o arguido se encontrava numa fase de desespero, a qual inibe por completo a racionalidade e a frieza de ânimo…” com que o tribunal diz ter o mesmo agido.
Salvo melhor entendimento, o que o relatório pericial diz é que a perturbação mental (jogo patológico) que afeta o recorrente está associada a períodos de desespero e pânico.
Não diz que uma fase desse tipo iniba por completo a racionalidade e frieza de ânimo.
Aliás, mal se compreenderia que alguém agindo de forma desesperada e irracional:
- escolhesse a hora do encerramento das farmácias (altura do fecho de caixas e, por isso, momento em que nelas se encontra mais dinheiro) para as assaltar;
- usasse disfarce (carapuço e óculos escuros) e calçasse luvas, tudo para dificultar a sua identificação;
- executasse os referidos assaltos, sem revelar nervosismo ou precipitação.
Não se vê, pois, qualquer incongruência entre o que se concluiu através da realização do exame pericial psiquiátrico e a frieza e calculismo com que - na convicção do tribunal - o recorrente executou os assinalados crimes.
De igual modo, o Tribunal conjugou - bem quanto a nós - a acentuada intensidade do dolo e da ilicitude dos factos com as condições pessoais do recorrente, em particular as relacionadas com a assinalada patologia, tendo, também por via disso, encontrado uma solução acertada, no que se prende com a determinação da medida da pena única aplicada.
Tratando-se de pena de prisão superior a 5 anos, fica excluída a possibilidade da suspensão da sua execução.
No entanto, ainda que assim não fosse, certo é que nada recomendaria tal solução.
Com efeito, o recorrente praticou os crimes pelos quais foi condenado com dolo direto, revelando o modo como os praticou - com recurso à ameaça séria e à exibição de arma – elevado grau de ilicitude.
Para além disso, e em desfavor da solução de suspender a execução da pena aplicada, invocar-se-ia, ainda, a necessidade de satisfação de prementes exigências de prevenção geral.
Ora, estas elevadas exigências de prevenção geral não se alcançariam com a aplicação da solução reclamada pelo recorrente (suspensão da execução da pena).
Na verdade, aquela solução iria comprometer a satisfação de tais exigências, por gerar na comunidade alguma descrença quanto à eficácia da punição do tipo (grave) de crimes pelos quais o recorrente foi condenado.
IV. Conclusão
Em conclusão, dir-se-á que:
- a condenação do recorrente por múltiplos crimes corresponde a um acertado enquadramento jurídico da atividade que desenvolveu, não sendo esta reconduzível à figura do crime continuado.
- a perturbação mental (jogo patológico) de que o recorrente sofre não limitou a sua capacidade em se determinar em função da noção da ilicitude dos factos, ao ponto de não lhe permitir qualquer outro tipo de opção ou escolha.
- as penas parcelares aplicadas ao recorrente correspondem a uma correta ponderação dos fatores que, no caso concreto, se impunha considerar para determinar a medida dessas penas;
- na determinação da pena única aplicada ao recorrente, foram devidamente ponderados os aspetos que se impunha considerar, servindo aquela ajustadamente as finalidades da penas;
- ainda que essa pena fosse inferior ou igual a 5 anos de prisão, não estariam verificados os pressupostos subjacentes a suspensão da sua execução.
pelo que o acórdão recorrido se deverá manter, na íntegra e nos seus precisos termos.
Subiram os autos à Relação, onde foi proferida decisão sumária considerando incompetente aquele Tribunal para o conhecimento do recurso, com fundamento em que o mesmo é restrito à matéria de direito.
Remetidos os autos a este Supremo Tribunal de Justiça (STJ), a sra. Procuradora-Geral Adjunta disse nada ter a acrescentar à posição subscrita pelo Ministério Público na 1ª instância.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentação
São as seguintes as questões suscitadas pelo recorrente:
- as diversas infrações pelas quais foi condenado integram um (único) crime continuado;
- o tribunal desconsiderou a perícia psiquiátrica, não fundamentando a divergência, contra o disposto no art. 163º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP);
- o recorrente agiu com culpa sensivelmente reduzida, em função da perturbação psiquiátrica de que sofre (“jogo patológico”);
- a pena única deve ser fixada em medida não superior a 4 anos de prisão;
- essa pena deve ser suspensa na sua execução.
Previamente à apreciação dessas questões, há porém que apurar se é o STJ o tribunal competente para conhecer o recurso.
Nos termos do art. 432º, nº 1, c), do CPP, recorre-se para o STJ dos acórdãos finais do tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos e que visem exclusivamente matéria de direito. Esse recurso é direto e obrigatório, no sentido de que não pode o recorrente “escolher” entre a Relação e o STJ.
Dúvidas podem suscitar-se nos casos em que a decisão, a par de penas superiores a 5 anos de prisão, contém penas inferiores a essa medida. Embora a jurisprudência do STJ não seja absolutamente uniforme a este propósito, é amplamente maioritária no sentido da competência do STJ para o conhecimento de todas as penas aplicadas, portanto também daquelas que não excedem 5 anos de prisão. Aliás, é o que impõe o art. 402º, nº 1, do CPP[1].
No caso dos autos, o recorrente dirigiu o recurso à Relação. Contudo, a pena única fixada é de 7 anos de prisão e o recurso visa somente matéria de direito, pelo que o conhecimento do recurso, na sua totalidade, é da competência (exclusiva) do STJ, nos termos do citado art. 432º, nº 1, c), do CPP, mau grado as penas parcelares serem inferiores a 5 anos de prisão.
Nada obsta, pois, ao conhecimento do recurso.
Antes de mais, importa conhecer a matéria de facto, que é a seguinte:
Proc. n.º 507/15.5 PBCSC
--No dia 08-04-2015, por volta das 21 horas e 00 minutos, o arguido, trajando calças de ganga e uma camisola de capuz de cor verde escura, dirigiu-se à farmácia “..., munido de um objecto com a aparência de uma pistola, com o propósito de se apoderar de bens e valores que aí viesse a encontrar.
--uma vez no local, o arguido AA empunhou esse objecto com a aparência de uma pistola em direcção da cabeça da funcionária DD, enquanto determinou a esta e às restantes funcionárias da farmácia EE, FF e GG, que todas elas colocassem no interior de um saco plástico rígido, semelhante aos sacos de compras dos supermercados, todo o dinheiro existente nas respectivas caixas registadoras.
--temendo pela vida e pela integridade física, as mencionadas funcionárias da farmácia “...” colocaram no interior desse saco a quantia global € 1 540.
--seguidamente, o arguido AA exigiu à testemunha de acusação GG que colocasse no interior do saco embalagens de “café verde”.
--como estas testemunhas responderam que a farmácia não dispunha daquele produto, o arguido AA exigiu que em seu lugar fossem colocadas no interior do saco embalagens de suplementos alimentares da marca “Now”.
--continuando a recear por aquilo que lhe pudesse suceder, assim como às restantes colegas, a testemunha GG colocou no interior do saco várias embalagens de vitaminas e de suplementos dessa marca com o valor global de € 655,87.
--de seguida, o arguido AA ordenou às funcionárias para se dirigirem para as traseiras da farmácia e para aí permanecerem até a sua saída do local.
--na posse do dinheiro e das embalagens de suplementos da marca “Now”, que fez seus e que integrou no seu património, o arguido abandonou o local para parte incerta.
Proc. n.º 619/15.5 PSLSB
--no dia 08-04-2015, por volta das 23 horas e 50 minutos, o arguido AA, trajando calças de ganga escuras e uma camisola de capuz de cor castanha com cordões e com letras brancas no peito, dirigiu-se à farmácia “..., munido com um objecto com a aparência de uma pistola, com o propósito de se apoderar de bens e valores que aí pudesse encontrar.
--uma vez no seu interior, o arguido AA empunhou esse objecto com a aparência de uma pistola na direcção dos funcionários da farmácia HH, II e JJ, a quem exigiu que colocassem no interior de um saco plástico rígido, semelhante aos sacos de compras dos supermercados, todo o dinheiro existente nas respectivas caixas registadoras.
--exigiu também que eles se colocassem de joelhos no chão.
--os funcionários da farmácia, temendo pela sua integridade física, colocaram no interior do saco a quantia monetária de € 355, após o que se colocaram de joelhos no chão.
--de seguida, o arguido AA, sempre com a arma apontada na direcção dos funcionários da farmácia, conduziu-os ao cofre e exigiu que procedessem à sua abertura.
--como estes não sabiam o código, o arguido exigiu a entrega de “café verde”.
--por forma a satisfazer aquela exigência, enquanto o funcionário HH permaneceu deitado no chão, as funcionárias II e JJ dirigiram-se à zona de homeopatia e, como não encontraram aquele produto, em sua substituição a segunda entregou ao arguido uma embalagem de “chá verde”, que este prontamente colocou no interior do saco.
--o arguido AA ordenou então a estas funcionárias da farmácia que se dirigissem para o gabinete de estética e para aí permanecessem 10 minutos.
--antes de sair, o arguido AA retirou dos expositores da farmácia duas embalagens de creme de rosto das marcas “Fit” e “Uriage” para bebé e duas embalagens de produtos para barbear da marca “Avene”, tudo no valor de € 47.
Na posse do dinheiro, do “chá verde” e dos cremes, que levou consigo e que integrou no seu património, o arguido abandonou a farmácia para parte incerta.
Proc. n.º 847/15.3PBCSC
--no dia 03-06-2015, por volta das 20 horas e 30 minutos, o arguido, trajando uma camisola com capuz e usando uns óculos escuros na cabeça, dirigiu-se à farmácia “..., munido de um objecto com a aparência de uma pistola, com o propósito de se apoderar de bens e valores que aí viesse a encontrar.
--logo que entrou, o arguido AA empunhou esse objecto com a aparência de uma arma na direcção das funcionárias da farmácia GG, FF e LL, entrou para zona do interior do balcão e disse-lhes “dá-me o dinheiro”, obrigando-as a abrir as caixas registadoras.
--receando pela sua vida e pela sua integridade física, bem como pela vida e pela integridade física das suas colegas, a funcionária da farmácia GG retirou das caixas registadoras a quantia monetária € 385, a qual por exigência do arguido AA colocou no interior de um saco de compras de grandes dimensões, semelhante aos utilizados pelas grandes superfícies comerciais.
--em poder de tal quantia em dinheiro, que fez sua e que integrou no seu património, o arguido AA abandonou a farmácia para parte incerta.
Proc. n.º 56/15.1SULSB
--no dia 12-06-2015, por volta das 18 horas e 10 minutos, o arguido, usando óculos escuros na cabeça, trajando uma camisola com capuz e calçando luvas de material não apurado, dirigiu-se à farmácia “... munido de um objecto com a aparência de uma pistola, com o propósito de se apoderar do dinheiro existente em caixa ou de produtos aí expostos para venda.
--já no local, empunhou o objecto com a aparência de uma pistola na direcção das funcionárias dessa farmácia MM e de NN.
--depois de colocar um saco em papel de cor preta em cima do balcão, o arguido AA obrigou-as a abrir as respectivas caixas registadoras e colocarem no seu interior todo o dinheiro existente, assim como embalagens de “Viagra” e de “Minox”.
--as funcionárias da farmácia “...”, receosas, retiraram das caixas registadoras a quantia total de € 355, que colocaram no interior do referido saco.
--seguidamente, enquanto a funcionária MM se deitou no chão por imposição do arguido, a funcionária NN acompanhou-o aos expositores, de onde retirou três caixas de “Viagra” e uma caixa de “Minox”, todas avaliadas em € 160, que colocou no interior do citado saco prontamente entregue ao arguido.
--enquanto as funcionárias MM e de NN recolhiam o dinheiro e as embalagens destes produtos, o arguido em tom provocatório pediu que lhe dessem “beijinhos”, pedido que aquelas recusaram.
--já com o dinheiro e os produtos em seu poder, o arguido ordenou-lhes que fossem para as traseiras da farmácia, qua ali se deitassem no chão e que contassem até 100, ordem que ambas acataram, por recearem pela sua vida e pela sua integridade física.
--em poder dos medicamentos e da quantia monetária de € 355, que fez suas e que integrou no seu património, o arguido abandonou a farmácia para parte incerta.
Proc. n.º 878/15.3PBSNT
--no dia 20-06-2015, pelas 18 horas e 45 minutos, o arguido AA, trajando uma camisola com capuz, usando óculos escuros e calçando luvas beges de algodão, dirigiu-se à farmácia “..., munido de um objecto com a aparência de uma pistola, com o propósito de se apoderar das importâncias monetárias existentes em caixa.
--no seu interior, o arguido empunhou esse objecto com a aparência de uma pistola na direcção da funcionária da farmácia OO, ordenou-lhe que abrisse as caixas registadoras e que chamasse as suas colegas para junto de si.
--a funcionária OO, receando pela sua vida e pela sua integridade física, chamou a colega PP.
--abertas as caixas registadoras, o arguido AA ordenou as funcionárias PP e OO que retirassem o dinheiro e que o colocassem no interior de um saco do supermercado que segurava numa das mãos.
--receando pela sua vida e pela sua integridade física, bem assim pela vida e pela integridade física da sua colega, a funcionária PP colocou no interior do saco do arguido AA a quantia global de € 2 930,31.
--já com o dinheiro no interior do saco, o arguido ordenou a ambas funcionárias que se deitassem no chão e que contassem até 100, altura em que aproveitou para abandonar o local para parte incerta, levando consigo toda aquela quantia em dinheiro.
Proc. n.º 744/15.2PASNT
--ainda no dia 20-06-2015, pouco antes das 21 horas e 00 minutos, o arguido AA, trajando a mesma roupa que usou na farmácia “...” e usando o mesmo saco, dirigiu-se à farmácia “..., Sintra, munido de um objecto com a aparência de uma pistola, com o propósito de se apoderar das quantias monetárias existentes em caixa.
-já no seu interior, onde entrou de rompante dizendo “isto é um assalto”, o arguido empunhou esse objecto com a aparência de uma pistola na direcção das funcionárias da farmácia QQ e RR.
--de seguida, o arguido AA ordenou-lhes que colocassem o dinheiro das caixas registadoras da farmácia dentro do saco que colocou em cima do balcão.
--em resposta, essas funcionárias transmitiram ao arguido que as caixas registadoras existentes no balcão não tinham dinheiro e que o montante apurado nesse dia estava guardado na caixa central (onde estavam em deposito € 1 500), à qual não tinham acesso.
--furioso, o arguido encaminhou-se na direcção das funcionárias, que recuaram até à zona do armazém de medicamentos, fugindo para o exterior, por uma porta das traseiras.
--entretanto, pontapeou o balcão, derrubando os objectos que aí se encontravam.
--o arguido acabou por se ir embora sem levar qualquer quantia em dinheiro, mas apenas as chaves da porta traseira da farmácia, de valor não concretamente apurado.
--a mudança da fechadura da porta das traseiras da farmácia importou em € 150.
Proc. n.º 768/15.0 S6LSB
--no dia 04-07-2015, cerca das 19 horas e 50 minutos, o arguido AA, trajando uma camisola com capuz de cor cinza e umas calças de ganga de cor azul, calçando umas sapatilhas pretas, usando uns óculos escuros na cabeça e umas luvas nas mãos, dirigiu-se à farmácia “..., munido de um objecto com a aparência de uma pistola, com o propósito de se apoderar do dinheiro existentes em caixa e dos produtos comercializados nesse estabelecimento.
--uma vez no interior da farmácia, empunhou esse objecto com a aparência de uma pistola na direcção de SS e de TT, funcionárias da farmácia, bem assim dos clientes, UU e VV, a quem obrigou a deitarem-se no chão.
--de seguida, obrigou a técnica de cosmética SS e a farmacêutica TT a abrirem as caixas e a colocarem todo o dinheiro aí existente no interior de um saco de compras de supermercado verde e branco.
--temendo pela integridade física, as referidas funcionárias da farmácia colocaram no interior desse saco de supermercado a quantia monetária de € 600.
--já com o dinheiro no saco, o arguido AA conduziu os clientes da farmácia UU e VV para uma arrecadação do estabelecimento, onde os obrigou a permanecer
--acto contínuo, o arguido AA ordenou as funcionárias da farmácia que se deitassem no chão e que contassem até 100, momento em que aproveitou para abandonar o local para parte incerta, levando consigo o dinheiro que integrou no seu património.
--em todas as ocasiões acima descritas, o arguido agiu com o propósito concretizado de se apoderar do dinheiro, dos produtos e da chave acima referidos, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que estava a actuar contra a vontade dos respectivos donos.
--para melhor concretizar os seus intentos apropriativos, o arguido quis usar o referido objecto com a aparência de arma de fogo, de modo a levar as funcionárias das farmácias “[...]” a entregar-lhe os mencionados bens e por forma a obstar à resistência por parte mesmas ou dos clientes das farmácias, que ficaram tolhidos pelo medo.
Proc. n.º 407/15.9 PVLSB
--no dia 04-07-2015, por volta das 22 horas e 10 minutos, o arguido, munido de uma réplica em plástico de uma pistola, dirigiu-se ao hotel ”...”, sito na Rua ..., com o propósito de se apoderar de bens e valores que aí pudesse encontrar.
--uma vez no local, empunhou a réplica dessa arma na direcção do bagageiro do hotel XX e disse-lhe “passa o dinheiro que isto é um assalto”.
--seguidamente, o arguido AA transpôs o balcão da recepção, onde se encontrava o recepcionista YY e disse-lhe para se deitar no chão.
--o recepcionista do hotel YY recusou deitar-se no chão e a dado momento, após se ter apercebido que o arguido AA estava a empunhar uma réplica em plástico de uma arma de fogo, ordenou que se fosse embora.
--entretanto, o bagageiro do hotel XX colocou no saco de compras branco e verde a quantia monetária de € 384, que retirou da caixa registadora da recepção do hotel, por temer pela sua integridade física, na medida em que considerou como verdadeira a réplica de arma de fogo que lhe tinha sido direccionada.
--de seguida, o arguido AA levou consigo o saco de supermercado que continha no seu interior a quantia de € 384 e abandonou em fuga o hotel “Skyna”.
--após o recepcionista ter anunciado que se tratava de uma réplica em plástico de um arma de fogo, os funcionário do hotel “...” seguiram no encalce do arguido AA e acabaram por detê-lo na Rua ....
--no decurso da fuga, o arguido atirou para o solo o saco de plástico, que continha no seu interior a réplica da arma de fogo, um boné, uns os óculos de sol, uma faca de cozinha com cerca de 19 cm de lâmina, uma granada de mão em plástico, despoletada, um porta canetas com diverso material de escritório, uma luva e a quantia monetária de € 384, objectos que foram apreendido pela patrulha da Polícia de Segurança Pública que se deslocou ao local, a quem o arguido AA foi entregue sob detenção.
--o arguido agiu com o propósito concretizado de se apoderar do dinheiro, bem sabendo que não lhe pertencia e que estava a actuar contra a vontade do seu dono.
--como meio para a plena concretização dos seus intentos apropriativos, o arguido usou da ameaça de uma réplica de arma de fogo, o que fez como forma de levar os funcionários do hotel a entregar-lhe o dinheiro existente na caixa e também de modo a obstar a qualquer resistência por parte deles, objectivos que em parte logrou alcançar, uma vez que aqueles só reagiram quando se aperceberam tratar-se de uma réplica de arma de fogo, após o bagageiro do hotel ter entregue todo o dinheiro existente em caixa.
--o arguido conhecia as características da faca que detinha e que lhe foi apreendida.
--foram localizados e apreendidos os seguintes objectos na sequência da busca efectuada à viatura de matrícula ...-VM, utilizada pelo arguido AA:
--€ 580 (quinhentos e oitenta euros) em notas;
--1 (uma) factura simplificada n.º Y004/6484 da farmácia ...;
--1 (um) relógio de marca “Curren”, de cor preta;
--1 (uma) lamela de “Viagra”, com 1 unidade e 3 compartimentos vazios;
--1 (uma) luva em lã de cor creme;
--4 (quatro) talões de multibanco;
--1 (um) papel manuscrito com anotações de farmácias, moradas e horários de 24 horas;
--1 (um) telemóvel de marca “Samsung”, modelo “Duos”, de cor preta e IMEI’s: ... e ...;
--1 (um) aparelho de marca “TomTom”, de cor preta, com respectivo carregador de isqueiro;
--1 (uma) camisa de cor azul de marca “CWS”;
-- € 2 (dois euros) em moedas;
--1 (um) par de óculos de sol de marca “Ray Ban” de cor preta, com o respectivo estojo;
--no dia 05-07-2015, na sequência da sua detenção em flagrante delito, agentes da PSP efectuaram uma busca à residência do arguido AA, localizada na Rua ...
--nessa residência, foi encontrado e apreendido o seguinte:
--1 (um) saco em papel de cor preta de marca “Decénio”;
--1 (um) saco de compras, de várias cores, de marca “Continente”;
--1(um) telemóvel, de marca “ZTE”, modelo “Vegas”, de cor preta com o IMEI: ..., com cartão “SIM” da “Optimus”;
--1 (um) telemóvel de marca “Motorola”, modelo “C118”, de cor preta, com o IMEI: ...;
--1(um) telemóvel de marca “Samsung”, modelo “SGH-C450”, de cor preta, com o IMEI: ...;
--1 (um) cartão-de-visita da “Farmácia..”, em nome de Drª. ZZ (companheira do arguido);
--18 (dezoito) canetas com inscrições alusivas a laboratórios farmacêuticos;
--1 camisola com capuz de cor cinzenta com forro e cordões de cor verde;
--1 par de ténis de cor preta, de marca “Levis”;
--o arguido AA actuou sempre de forma livre e voluntária, bem sabendo que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
--no dia 12-05-2016 AAA declarou que recebeu de “(…) AA quinhentos euros (500€) por conta do furto ocorrido na farmácia ... em 2015 (…)”.
--no dia 17-05-2016 BBB, em representação da farmácia “...”, declarou que “(…) confirmo recebi a quantia de 600 € de AA (…) relativo à ocorrência acontecida no dia 04 Julho de 2015 (…)”.
--no dia 25-05-2016 CCC declarou que “(…) informo que o Senhor AA esteve presente na farmácia ... (…) para pagar o valor material dos furtos ocorridos. Como o seguro foi accionado e o valor pago, não aceitei (…)”.
--o arguido é o segundo de uma fratria de três irmãos, os seus pais são oriundos de ..., teve uma educação orientada pelos dogmas da religião ..., está integrado na “...” de Portugal, como habilitações literárias possui o 11.º ano de escolaridade, à data da prática dos factos residia sozinho num apartamento arrendado, não tem filhos, trabalhava numa loja de móveis e de decoração localizada na zona dos ... em Lisboa e por tal desempenho auferia entre € 1 000 a € 1 200 mensais.
--o arguido AA assumiu a gestão dessa loja de móveis e de decoração na sequência do seu progenitor ter sofrido um AVC e ter ficado impossibilitado de trabalhar.
--desde 2009 que é seguido em consulta de psiquiatria do Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca por quadro de perturbação obsessivo-compulsiva.
--a partir do dia 17-06-2014 passou a ser acompanhado nessa unidade hospitalar em consulta de psicomotricidade e terapia ocupacional no que revelou dificuldades no estabelecimento e na manutenção de relações sociais, o que motivava o seu isolamento.
-o arguido AA tinha dificuldades em manter assiduidade devido à sintomatologia obsessiva, que o fazia demorar-se tempo de mais a sair de casa e a não conseguir comparecer às horas marcadas para as consultas.
--em Dezembro de 2014 demonstrou algumas melhorias em termos de funcionalidade e de socialização e em Janeiro de 2015 abandonou essas consultas.
--à data da prática dos factos, o arguido revelava sintomas depressivos e ansiedade, apresentava consumos de álcool e jogava na internet (apostas desportivas).
--não tem antecedentes averbados no seu certificado de registo criminal.
--o arguido AA é socialmente considerado como uma pessoa afável, humilde, educada e trabalhadora e como um empresário cumpridor.
Crime continuado
Entende o recorrente que os factos que lhe são imputados integram, todos eles, um crime continuado. Argumenta em favor desta tese com o enquadramento de todas as condutas no mesmo tipo incriminador (roubo simples), com a homogeneidade da execução (atuando sempre sozinho, com o mesmo tipo de roupa e usando uma pistola de plástico como meio de coação), e a proximidade temporal entre os diversos factos (todos compreendidos no espaço de três meses), sendo eles “praticados na sombra de uma primeira resolução que determina as demais”.
Acrescenta que o requisito da solicitação externa que atenua a culpa do agente é preenchido pelo sucesso da primeira conduta, o qual, combinado com a adição ao jogo, funcionou como uma circunstância externa, uma disposição das coisas que ele não dominou, e que o incentivou à prática dos crimes subsequentes ao primeiro.
Por fim, defende que não é aplicável ao caso o nº 3 do art. 30º do CP, que exclui do crime continuado os crimes praticados contra “bens eminentemente pessoais”, porque, em seu entender, esse conceito abrange somente os crimes incluídos na epígrafe “crimes contra as pessoas”, que constitui o Título I do Livro II (Parte especial) do CP, sendo certo que o crime de roubo, embora protegendo também bens pessoais, visa em primeira mão proteger a propriedade, e daí a sua inserção no Título II, Capítulo II, do mesmo Livro II (“crimes contra a propriedade”).
Daí conclui o recorrente que todos os factos devem ser considerados como integrando um crime continuado, ao qual deveria, na sua opinião, ser aplicada uma pena de 2 anos e 6 meses de prisão.
Analisando:
O crime continuado vem previsto nos nºs 2 e 3 do art. 30º do CP, nos seguintes termos:
2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
3. O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.
O crime continuado constitui uma derrogação ao princípio enunciado no nº 1 do art. 30º do CP, segundo o qual o número de crimes se determina pelo número de tipos legais cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo for preenchido pela conduta do agente.
O crime continuado procede à unificação normativa de uma pluralidade de infrações, unificação essa ditada, no caso da lei portuguesa, que acolheu o ensinamento doutrinário de Eduardo Correia, pela preocupação de encontrar um regime punitivo mais favorável para o agente, verificado que esteja que a reiteração criminosa assenta numa situação exógena determinante de uma sensível atenuação da culpa.[2]
É esse o propósito político-criminal que justifica e sustenta o regime de punição mais benéfico, relativamente ao do concurso de crimes, que o nº 1 do art. 79º do CP prevê para o crime continuado: punição com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação[3].
O elemento nuclear do crime continuado é pois essa solicitação exterior que, facilitando de alguma forma a repetição criminosa, atenua a culpa do agente. Só provando-se que essa situação exógena induziu efetivamente o agente à reiteração da prática criminal se estará no domínio do crime continuado. Já não quando se apurar que a reiteração se deve sobretudo a fatores endógenos, a uma tendência inerente à personalidade do agente, ainda que ocorra também, em menor grau, uma situação exterior favorável à repetição do crime[4].
Outros requisitos são enunciados no art. 30º, nº 2, do CP: a identidade de bem jurídico violado e a execução homogénea do facto, que pressupõe a similitude de modus operandi do agente. Não o referindo expressamente a lei, deverá exigir-se igualmente uma certa proximidade temporal entre as diversas condutas, sem a qual dificilmente se poderá falar de “continuação” criminosa. Em todo o caso, o elemento decisivo é a persistência da situação exógena determinante da reiteração criminosa[5].
Atentemos por fim no nº 3 do art. 30º do CP.
Estabelece esse preceito que o regime do crime continuado “não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais”. Esta disposição foi introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4-9, que continha, porém, uma ressalva: “salvo tratando-se da mesma vítima”. Esta ressalva foi eliminada pela Lei nº 40/2010, de 3-9, de forma que presentemente o crime continuado abrange apenas a violação repetida de bens não eminentemente pessoais.
Que se deve entender por “bens eminentemente pessoais”? Note-se que o legislador não se limitou a falar de “bens pessoais”, aditou o advérbio “eminentemente”, o que só pode significar que ele não quis referir-se a todos os bens jurídicos que protejam de alguma forma a pessoa, antes só àqueles em que essa proteção constitui o objetivo único ou proeminente da incriminação.
Bens jurídicos eminentemente pessoais são, sem dúvida, aqueles que se ligam imediatamente com a personalidade, e constituem direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição: vida, integridade física, liberdade pessoal, liberdade e autodeterminação sexual, honra, reserva da vida privada. Todas as incriminações tutelares destes bens estão contidas no Título I da Parte Especial do CP, com a epígrafe “dos crimes contra as pessoas”, e, em relação a elas, nenhuma dúvida se pode colocar sobre o seu caráter eminentemente pessoal.
Mas não serão as únicas. Existem outras infrações em que a tutela é simultaneamente pessoal e patrimonial, assumindo porém aquela uma relevância tal que impede que a infração possa ser considerada apenas “patrimonial”, embora seja essa a “classificação” sistemática. Com efeito, o crime de roubo é pacificamente entendido, na doutrina e na jurisprudência, como um crime complexo, protegendo simultaneamente bens patrimoniais e bens pessoais (liberdade, integridade física). Se a lesão dos bens patrimoniais é o crime-fim, e a ofensa de bens pessoais o crime-meio, esta reveste-se de uma relevância significativa no âmbito da tutela penal [6]. Há uma tutela paralela de bens patrimoniais e bens pessoais. O caráter pluridimensional da tutela penal ínsita no crime de roubo não impede a sua qualificação como bem eminentemente pessoal. A integração do roubo no título dos crimes patrimoniais constitui meramente uma “arrumação sistemática” da incriminação, que não toma posição sobre o bem jurídico protegido.
Conclui-se, pois, que o crime de roubo protege bens eminentemente pessoais, de forma que não é suscetível de integrar uma continuação criminosa, ainda que sucessivamente praticado contra o mesmo ofendido, por força do disposto no nº 3 do art. 30º do CP.
Analisemos agora os factos. Apurou-se essencialmente que o arguido praticou, entre 8.4.2015 e 4.7.2015, oito crimes de roubo (simples) em estabelecimentos comerciais de diversos locais da Grande Lisboa, atuando sempre de forma similar: agia sozinho, encapuzado e com óculos escuros, intimidando os presentes com uma pistola de plástico com aparência de verdadeira, assim conseguindo que lhe fossem entregues quantias em dinheiro e objetos.
É inquestionável que existe reiteração do mesmo tipo de crime e que a conduta é essencialmente homogénea.
Embora espaçada por três meses a atividade delituosa do arguido, não se pode negar uma certa proximidade temporal entre as diversas condutas, variando a intensidade da prática criminosa certamente conforme as necessidades do arguido.
Onde de todo falha a possibilidade de integração dos factos no crime continuado é na ausência de uma situação exógena determinante da reiteração dos crimes.
Na verdade, não tem qualquer sustentação jurídica que o “sucesso” da primeira conduta criminosa possa ser considerado um “estímulo” externo à repetição da prática criminosa e portanto integrar tal situação exógena. A admitir-se tal “tese”, premiar-se-ia, ao fim e ao cabo, a ousadia e a pertinácia na prática criminosa. Nenhuma culpa atenuada é detetável em tal situação. Pelo contrário, ela revela antes uma personalidade que facilmente se deixa seduzir pelo “sucesso” de práticas ilegais, radicando pois na personalidade do agente, e não em qualquer situação exterior, a reiteração da prática de crimes.
O mesmo se diga quanto à adição ao jogo, que o recorrente também invoca como circunstância exógena, afirmando-a como uma “disposição das coisas que ele não domina”. Tal posição é porém inaceitável. A “adição ao jogo” ou “perturbação de jogo patológico” de forma alguma poderá ser considerada uma circunstância exógena ao arguido. Pelo contrário, é uma característica da sua personalidade.
Como diz expressivamente Eduardo Correia, “sempre que se prove que a reiteração, menos que a tal disposição das coisas, é devida a uma certa tendência da personalidade do criminoso, não poderá falar-se em atenuação da culpa e fica, portanto, excluída a possibilidade de existir um crime continuado”[7].
De qualquer forma, falha completamente o requisito do nº 3 do art. 30º do CP, uma vez que os crimes praticados foram todos de roubo, um crime que deve ser considerado como protegendo (também) bens eminentemente pessoais.
Concluindo: faltam os pressupostos do crime continuado.
Perícia psiquiátrica
O recorrente foi submetido a perícia psiquiátrica, estando o respetivo relatório junto aos autos a fls. 1258-1269.
Esse relatório concluiu:
a) Existência de anomalia psíquica
Sim. O examinando está afeto de uma perturbação obsessiva-compulsiva, codificado pela ICD-10 como F42, medicada e sob razoável controlo sintomático. Está ainda afeto de perturbação de jogo patológico, codificado pela IDC-10 como F63, presentemente em remissão.
b) Existência de pressupostos médico-legais para (in)imputabilidade em razão de anomalia psíquica para os crimes de que é indiciado o examinando e descritos a fls. 506-518
Ainda que a perturbação de jogo patológico tenha tido um impacto devastador sobre o próprio, o seu património, a sua família e trabalho, e integre o leque das perturbações aditivas, em que o indivíduo – em resultado da perturbação – se vê limitado na sua capacidade de se determinar (na consumação da adição), em nosso entender não estão presentes pressupostos médico-legais para inimputabilidade em razão de anomalia psíquica. A capacidade do examinando avaliar a ilicitude dos atos e de se determinar em função dessa avaliação não estava, in totum, ausente, no momento da prática dos factos.
Estando a capacidade para avaliar a ilicitude absolutamente íntegra, em nosso entender, importa, contudo, aqui distinguir entre a capacidade do examinando para resistir à adição do jogo – qu admitimos desde já estar severamente limitada – e a capacidade do examinando para decidir agir ou não agir na execução de um roubo. Ainda que seja psicologicamente compreensível a ligação entre um e outro, sãp efetivamente distintas, e não se apurou existir nenhum sintoma ou síndrome mental que tivesse removido ou severamente condicionado o examinando na capacidade para escolher agir de uma determinada maneira na obtenção dos fundos que necessitava para prosseguir o jogo.
No que diz respeito ao crime de detenção de arma proibida, o raciocínio é análogo, não encontrando qualquer evidência que possa sugerir inimputabilidade em razão da anomalia psíquica.
c) Existindo critérios para inimputabilidade em razão de anomalia psíquica, ajuizar da sua perigosidade
Relativamente à probabilidade de repetição de factos semelhantes, leia-se perigosidade, esse será um construto jurídico a melhor avaliar pelo Tribunal, determinado que foi a existência de critérios para imputabilidade, sendo certo que será sempre vantajoso que possa o examinando (como aliás é seu desejo) procurar e obter ajuda para as perturbações de que está afeto.
Por fim, não podemos deixar de transmitir ao Tribunal, para a valoração que entenda útil atribuir, que, apesar da conclusão pela inexistência de pressupostos médico-legais estritos para inimputabilidade, certo é que os crimes de roubo qualificado de que está indiciado foram cometidos em estreita relação com uma perturbação mental (jogo patológico). Esta perturbação está intimamente ligada a sintomas depressivos, ansiosos e consumo de álcool, estando igualmente associado a períodos de desespero e pânico, aliás, sem ambiguidade descritos pelo examinando, motivando procura permanente de fundos. Neste percurso, a perturbação promoveu no examinando a delapidação do seu património, prejuízo severo na sua capacidade laboral, prejuízo na sua relação com familiares… efetivamente surgindo como uma rutura no seu percurso biográfico, em descontinuidade com o seu modo de ser, que julgamos estar agora o examinando mais capacitado para reparar.
Considera o recorrente que o acórdão recorrido desatendeu as conclusões deste relatório, violando assim o disposto no art. 163º, nº 2, do CPP, ao atribuir-lhe uma “personalidade fria e calculista”, quando do relatório resulta que ele agiu por força de uma patologia (jogo patológico), uma perturbação ligada a um estado depressivo, a períodos de desespero e mesmo pânico.
Contudo, analisado o acórdão recorrido, constata-se que essa caracterização da personalidade do arguido se liga com a análise da execução dos crimes de roubo, sobre a forma como os preparou, o lugar e o tempo dos mesmos, como os executou com cuidado para os consumar com sucesso e procurando não deixar elementos que conduzissem facilmente à sua identificação. É desta vertente dos factos que o Tribunal recorrido concluiu pela frieza e calculismo da personalidade do recorrente.
Ora, nada disto contraria as conclusões do relatório. Em primeiro lugar, o relatório deixa bem claro que o arguido tinha a capacidade para avaliar a ilicitude absolutamente íntegra. Em segundo lugar, é também claro que o arguido não estava condicionado pela patologia da adição do jogo na capacidade para escolher o meio de agir na obtenção de fundos, ou seja, o arguido não estava pré-determinado patologicamente a escolher o crime como forma de se autofinanciar.
Por último, o relatório admite que existe uma “ligação” entre os crimes de roubo praticados pelo recorrente e a perturbação mental de que é portador, frisando que essa patologia está associada a sintomas depressivos, desespero e pânico, motivando procura permanente de fundos. Relativamente a esta afirmação, porém, o relatório não assume a mesma assertividade, frisando que ela é feita “para a valoração que [o Tribunal] entenda por útil atribuir”.
Ora, o Tribunal recorrido não contrariou em aspeto nenhum as conclusões do relatório pericial. A caracterização da personalidade como “fria e calculista” tem a ver, como já se referiu, com a forma como as circunstâncias de lugar e tempo foram escolhidas, como os factos foram executados, como o arguido agiu para dificultar a sua identificação (ver o acórdão recorrido a fls. 1381).
Nada disto contende com a patologia identificada. Uma coisa é o desejo impulsivo e pressionante de conseguir dinheiro para jogar, outra o planeamento e a execução do meio escolhido para o obter. Se naquele existirá um elemento patológico, aqui poderá prevalecer a racionalidade que será a chave do sucesso, e foi precisamente isso que se verificou.
Consequentemente, não se verificou a violação do art. 163º, nº 2, do CPP.
Refira-se ainda que o recorrente juntou, com o recurso, um “relatório médico-legal” (fls. 1551-1553), elaborado numa clínica privada, a seu pedido.
Como o próprio recorrente reconhece, a lei impede a junção de documentos após o encerramento da audiência em 1ª instância (art. 165º, nº 3, do CPP). No entanto, ele invoca o nº 1 do art. 32º da Constituição, alegando que este imporá uma interpretação restritiva daquele.
Não entendemos que seja assim. De facto, a estipulação ampla e abrangente daquele preceito constitucional (“o processo criminal assegura todas as garantias de defesa”) não significa um ilimitado e incondicionado direito a usar todos os meios que, no entender do arguido, sejam os adequados. A defesa faz-se necessariamente dentro de regras e condições que a lei estipula, sob pena de subversão dos princípios do processo justo e equitativo.
A regra que impede a entrega de pareceres após o encerramento da audiência não constitui nenhuma restrição ao direito de defesa. Ela impõe-se a todas as partes processuais. No caso de haver novos elementos de prova, existirá sempre o recurso de revisão para os conhecer e apreciar.
No caso do relatório apresentado pelo arguido, não se vislumbra a razão da apresentação tardia do mesmo. E sempre se dirá que ele não apresenta dados ou conclusões de forma alguma contraditórias com o relatório pericial de fls. 1258-269.
Improcede, pois, também esta questão.
Culpa atenuada
Defende de seguida o recorrente que a gravidade ou intensidade da culpa deve ser “desconsiderada”, quer pela falta do elemento volitivo integral, a sua capacidade diminuída de determinação, em função da patologia de que padece, quer pela “impossibilidade do meio utilizado (pistola de plástico) para atingir o fim: causar sensação de impotência e de insegurança”.
A primeira questão tem a ver com a chamada “imputabilidade diminuída”. A assinalada patologia, e o inerente estado depressivo, constituirão um fator de atenuação da culpa?
Relembre-se mais uma vez que se apurou que o arguido não agiu condicionado na escolha das condutas criminosas como meio de financiamento do “vício”. Por outras palavras, o arguido podia perfeitamente ter escolhido outros meios, nomeadamente de cariz legal. Nenhum determinismo o empurrou para o crime.
De qualquer forma, mesmo a considerar-se a sua vontade até certo ponto condicionada, nunca tal facto poderia determinar a atenuação da culpa.
Tradicionalmente, entendia-se que a imputabilidade diminuída, considerada como cobrindo as situações em que o agente está fortemente limitado na sua capacidade de avaliação da ilicitude do ato e de determinação de acordo com essa avaliação, sem que tal capacidade esteja completamente eliminada, determinava a diminuição da culpa, o que por sua vez obrigava à atenuação da pena[8].
Esta conceção da imputabilidade diminuída, fundada na diminuição da culpa, não tem, porém, correspondência na lei penal vigente.
É nos nºs 2 e 3 do art. 20º do CP que a lei trata das situações em que a capacidade de avaliação e autodeterminação do agente se encontra “sensivelmente diminuída”. Na verdade, o nº 2 prevê a extensão da inimputabilidade aos casos em que o agente, “por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.” E o nº 3 acrescenta que a comprovada insensibilidade do agente às sanções penais pode constituir índice da situação prevista no nº 2.
Estes dois preceitos preveem afinal casos em que, apesar de o agente não se encontrar destituído de capacidade de avaliação, a gravidade da situação permite assimilá-la à de autêntica inimputabilidade (a do nº 1)[9]. Verdadeiramente, ao permitir a integração dessas situações na inimputabilidade, a lei admite uma inimputabilidade fictícia, uma vez que a situação não é de total carência de capacidade de avaliação e determinação. Entendeu, porém o legislador que, nos casos mais graves, o tribunal deve poder optar (“pode ser declarado inimputável…”) entre a decisão de imputabilidade ou de inimputabilidade, ou seja, entre a aplicação de uma pena ou antes de uma medida de segurança, conforme faça ou não sentido censurar eticamente a conduta do agente (nº 2), ou tentar (ainda) influenciar a sua conduta futura mediante a aplicação de uma pena (nº 3)[10].
Ou seja: os casos de “diminuição sensível da capacidade de avaliação” podem ser tratados como de inimputabilidade ou antes de imputabilidade (diminuída), de acordo com o juízo que o tribunal faça sobre a verificação dos pressupostos referidos nos nºs 2 e 3 do art. 20º do CP.
No caso de o tribunal considerar o agente imputável, estaremos então perante um caso de imputabilidade diminuída, mas o legislador não determina como consequência necessária dessa situação a atenuação da pena, como se imporia caso a imputabilidade diminuída se fundasse numa presumida diminuição da culpa. À imputabilidade diminuída não corresponde necessariamente uma culpa diminuída. Ela tanto pode conduzir a uma culpa agravada, como a uma culpa atenuada, tudo dependendo das características da personalidade do agente refletidas no facto; quando estas se revelarem especialmente desvaliosas do ponto de vista do direito, estaremos perante uma culpa agravada, a que corresponderá uma pena necessariamente mais grave[11].
No caso dos autos, não parece que se possa concluir por uma culpa atenuada. A “escolha” de uma atuação ilícita para responder ao impulso patológico, para mais integrada na criminalidade violenta, com acentuada repercussão negativa no sentimento de segurança da comunidade, não pode deixar de ser considerada como mitigação da culpa.
A forma racional e calculada como os diversos roubos foram planeados e executados revelam de facto uma personalidade capaz de se autodominar em função do objetivo pré-definido, agindo com rigor e frieza no cumprimento desse plano.
Deste modo, é de afastar completamente a tese da “diminuição da culpa” como consequência da “imputabilidade diminuída”.
Quanto ao meio utilizado pelo arguido na prática dos crimes como meio de coação, também não procedem as considerações do arguido.
É certo que a pistola de plástico não tem objetivamente poder ofensivo contra os bens pessoais, vida ou integridade física.
No entanto, ela é eficaz, como ficou abundantemente demonstrado, como meio de atemorização e coação das pessoas, tão eficaz como as pistolas “verdadeiras”. Contrariamente ao que afirma o recorrente, a pistola de plástico, tendo aparência de autêntica e usada com “convicção” pelo agente, tem idoneidade para induzir “impotência e insegurança” nos visados pela ameaça, ou seja, idoneidade para os coagir a ceder à vontade do agente, como aconteceu repetidamente no caso dos autos.
Resumindo, as penas parcelares foram fixadas dentro dos critérios impostos pelo art. 71º do CP (ver o acórdão recorrido, fls. 1379). Foram fixadas pouco acima do limite mínimo - uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão, quatro de 2 anos de prisão, e três de 2 anos e 6 meses de prisão - numa moldura penal de 1 a 8 anos de prisão (art. 210º, nº 1, do CP), pelo que de forma alguma poderão ser consideradas desproporcionadas.
O próprio arguido reconhece que as penas parcelares são justas e adequadas tendo em atenção a moldura abstrata aplicável.
Pena conjunta
Se o arguido aceita como justas e adequadas as penas parcelares, já o mesmo não sucede com a pena conjunta, que defende que deve ser fixada em medida não superior a 4 anos de prisão, suspensa na sua execução.
Para tanto, invoca a “culpa diminuída”, por estar “tolhido na sua capacidade de resistir ao impulso delituoso estando seriamente diminuída a sua capacidade de se determinar de acordo com o entendimento do ato lícito”.
Acrescenta que são “particularmente baixas” as exigências de prevenção especial, porque “o risco do arguido reincidir na conduta é baixíssimo e a probabilidade de se reintegrar na vida social, com o apoio da família/comunidade e sendo medicamente acompanhado, é altíssimo”.
Quanto à prevenção geral, as exigências serão, em seu entender, “medianas”, atendendo a que ninguém foi ferido e que os valores apropriados não foram particularmente elevados, exigências essas que se satisfarão, no seu entendimento, com a aplicação de uma pena de prisão, ainda que suspensa.
Estabelece o art. 77º, nº 1, do CP que o concurso é punido com uma pena única, em cuja medida são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. E o nº 2 acrescenta que a pena única aplicável tem como limite máximo a soma das penas parcelares (não podendo ultrapassar 25 anos de prisão) e como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares.
Cabe antes de mais recordar que o legislador penal optou, na punição do concurso de crimes, por um sistema de pena conjunta, e não de pena unitária, uma vez que no art. 77º, nºs 1 e 2, do CP se impõe a fixação das penas correspondentes a cada um dos crimes em concurso, e é das penas parcelares que se parte para a fixação da moldura penal do concurso (enquanto que, segundo o sistema de pena unitária, seria aplicável uma única pena ao agente, em função da sua personalidade).
Essa moldura, por sua vez, é construída através da combinação de dois princípios: o da acumulação material e o do cúmulo jurídico. Do primeiro resulta que o limite máximo da pena do concurso é constituído pela soma aritmética das penas parcelares. O segundo estabelece que a pena é fixada em função de uma consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente, procurando compensar os excessos que a acumulação material pode provocar.
A determinação da medida concreta da pena única deve atender, como qualquer outra pena, aos critérios gerais da prevenção e da culpa (art. 71º do CP); e ainda a um critério especial: a consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente, na sua interrelação. Ao tribunal impõe-se uma apreciação global dos factos, tomados como conjunto, e não enquanto mero somatório de factos desligados, na sua relação com a personalidade do agente.
Essa apreciação deverá indagar se a pluralidade de factos delituosos corresponde a uma tendência da personalidade do agente, ou antes a uma mera pluriocasionalidade, de caráter fortuito ou acidental, não imputável a essa personalidade, para tanto devendo considerar múltiplos fatores, entre os quais a amplitude temporal da atividade criminosa, a intensidade da reiteração, a homogeneidade ou diversidade dos tipos legais praticados, se são redutíveis só a um “tipo de criminalidade”, e qual o seu grau de danosidade e censurabilidade, o grau de adesão ao crime como modo de vida, as motivações do agente, as expetativas quanto ao futuro comportamento do mesmo.
A determinação da pena única, quer pela sua sujeição aos critérios gerais da prevenção e da culpa, quer pela necessidade de proceder à avaliação global dos factos na ligação com a personalidade, não é compatível com a utilização de critérios rígidos, com fórmulas matemáticas ou abstratas de fixação da sua medida. Como em qualquer outra pena, é a justiça do caso que se procura, e ela só é atingível com a criteriosa ponderação de todas as circunstâncias que os factos revelam, sendo estes, no caso do concurso, avaliados globalmente e em relação com a personalidade do agente, insiste-se.
O arguido praticou oito crimes de roubo simples, em estabelecimentos comerciais (sete em farmácias e o outro num hotel), executados de forma essencialmente homogénea, ou seja, ameaçando os funcionários desses estabelecimentos com um objeto que aparentava ser uma pistola, mas era na realidade um objeto de plástico, o qual, no entanto, atemorizava os funcionários a quem o arguido se dirigia, que eram assim levados a entregar-lhe o dinheiro existente na caixa registadora e ainda outros objetos (medicamentos) que o arguido os intimava a entregar-lhe, perfazendo, conforme os casos, entre algumas centenas, um ou dois milhares de euros de cada vez.
O arguido atuou sempre sozinho, agindo com assinalável ousadia, desenvoltura e sangue frio, adotando os cuidados adequados a garantir o êxito das suas acções criminosas e a sua não identificação.
Embora não registando antecedentes criminais, o arguido deixou-se facilmente “levar” pelo “sucesso” do primeiro roubo, reiterando a prática por mais sete vezes no espaço de três meses, uma série criminosa que só foi interrompida pela sua detenção imediatamente após a consumação do último crime por que vem condenado.
Como se referiu antecedentemente, o arguido foi motivado para a prática criminosa pela patologia de que sofre: adição ao jogo. Mas como também se assinalou com insistência, essa patologia não lhe atenua a culpa. O arguido sucumbiu aos apelos do “vício”, podendo no entanto contrariá-los, o que exigiria obviamente um esforço nesse sentido, esforço que o arguido não fez. E o facto de não o fazer é evidentemente censurável, porque escolheu para o financiamento da adição ao jogo um meio ilícito gravoso.
Gravoso não tanto pelo valor das apropriações realizadas caso a caso (que também não são insignificantes), mas sobretudo pelos danos causados na segurança da comunidade, sempre seriamente perturbada pela prática de um tipo criminalidade que, pela sua incidência no quotidiano dos cidadãos, causa um justo alarme na sociedade em geral.
Por isso, as exigências de prevenção geral são particularmente fortes neste tipo de criminalidade.
Já no entanto a prevenção especial se mostra menos exigente. Embora a personalidade do arguido revele algumas características preocupantes, atrás realçadas, agravadas pela patologia do jogo, funcionam em sentido inverso outras circunstâncias relevantes, como a inserção comunitária, familiar e laboral, que podem contrariar com êxito as primeiras.
Em qualquer caso, a pena conjunta fixada em 1ª instância (7 anos de prisão), numa moldura que vai de 2 anos e 6 meses a 17 anos de prisão, apresenta-se excessiva em relação à culpa.
Numa avaliação global dos factos e da personalidade e tendo em consideração os fins das penas, julga-se adequada a pena conjunta de 6 anos de prisão, a qual, sem ultrapassar a medida da culpa, satisfaz, embora pelo mínimo, os fins preventivos, gerais e especiais.
Fica prejudicada a apreciação do pedido de suspensão da execução da pena, face ao disposto no art. 50º, nº 1, do CP, que só admite a suspensão de penas não superiores a 5 anos de prisão.
Procede pois parcialmente o recurso.
III. Decisão
Com base no exposto, concede-se provimento parcial ao recurso, reduzindo-se a pena conjunta para 6 (seis) anos de prisão, e confirmando-se, no mais, o acórdão recorrido.
Sem custas.
Lisboa, 9 de março de 2017
Maia Costa (Relator)
Pires da Graça
_______________
[1] Neste sentido, ver Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, 2ª ed., Almedina, 2016, p. 1408.
[2] Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, Almedina, 1983, especialmente pp. 240-251.
[3] Note-se, porém, que parte da doutrina portuguesa atual considera que as regras de punição do concurso de crimes têm a flexibilidade suficiente para adequar a pena à efetiva gravidade da situação, não se justificando assim a própria figura do crime continuado (por todos, ver Conceição Ferreira da Cunha, “Questões atuais em torno de uma ‘vexata quaestio’: o crime continuado”, Estudos em Homenagem ao Prof. Jorge Figueiredo Dias, vol. II, Coimbra, 2009, pp. 363-364).
[4] Eduardo Correia, ob. cit., p. 251.
[5] Sobre este ponto, ver Figueiredo Dias, ob. cit., p. 1030.
[6] Por todos, Conceição Ferreira da Cunha, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, p. 160, e “Questões atuais…”, cit., p. 330 e nota 29.
[7] Ob. cit., p. 251.
[8] Assim, Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, Parte Geral, I, pp. 438-439. Sobre toda esta matéria, ver Figueiredo Dias, Direito Penal, Tomo I, 2ª ed., pp. 583 ss.
[9] A expressão é de Figueiredo Dias, Direito Penal, 2ª ed., p. 584.
[10] Figueiredo Dias, ob. cit., p. 587.
[11] Exatamente assim, Figueiredo Dias, ob. cit., p. 585. Na jurisprudência, ver o acórdão deste Supremo Tribunal de 7.6.1995, proc. nº 46858; e, mais recentemente, os acórdãos de 27.1.2010, proc. nº 401/07.3JELSB.L1.S1; de 13.4.2011, proc. nº 693/09.3JABRG.P2.S1; e de 26.6.2013, proc. nº 10/11.2JAGRD.C1.S1.