I. Quanto à eficácia do caso julgado material, importa distinguir duas vertentes:
a) – uma função negativa, reconduzida à exceção de caso julgado, consistente no impedimento de que as questões alcançadas pelo caso julgado se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em ação futura;
b) – uma função positiva, designada por autoridade do caso julgado, através da qual a solução nele compreendida se torna vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou noutros tribunais.
II. A exceção de caso julgado requer a verificação da tríplice identidade estabelecida no artigo 581.º do CPC: a identidade de sujeitos, a identidade de pedido e a identidade de causa de pedir.
III. Já a autoridade de caso julgado, segundo doutrina e jurisprudência hoje dominantes, não requer aquela tríplice identidade, podendo estender-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado.
VI. A autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação ulterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.
V. Quando, em duas ações instauradas por autores distintos contra seguradoras também diferentes, em que se discutiu o mesmo acidente de viação, tenham sido proferidas decisões a atribuir, em termos divergentes, a responsabilidade, a título de culpa, aos condutores dos veículos intervenientes, não é lícito conferir autoridade de caso julgado a qualquer delas no âmbito de uma terceira ação instaurada por uma daquelas seguradoras (a título de direito de regresso por quantias pagas a familiares do condutor falecido, em sede de acidente de trabalho conexo com o referido acidente de viação) contra a outra seguradora, na qualidade de garante da responsabilidade do outro condutor.
I – Relatório
1. A AA - Companhia de Seguros, SPA, Sucursal em Portugal (A.), intentou ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, em maio de 2006, contra a Companhia de Seguros BB, S.A., ao abrigo do art.º 31.º da Lei n.º 100/97, de 13-09, alegando, no essencial, que:
. A A. celebrou um contrato de seguro do ramo Acidentes de Trabalho com CC, trabalhador independente, titulado pela apólice n.º 0016…;
. Por sua vez, a R. celebrou com a sociedade “Transportes CC, Lda”, um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice n.º 60…, tendo por objeto o veículo pesado de mercadorias de matrícula ...-...-MB, com semi-reboque atrelado de matrícula L-15…;
. No dia 26/09/2000, pelas 01h20, ocorreu um acidente de viação, na A1, ao km 65,25, no município de …, entre o veículo ligeiro de passageiros (táxi) de matrícula ...-...-NQ, que circulava na via mais à direita, no sentido sul-norte, conduzido por CC, na qualidade de motorista profissional, e o veículo pesado de matrícula ...-...-MB com o semi-reboque atrelado, propriedade da sociedade “Transportes CC, Lda”, conduzido por DD, por conta e no interesse desta sociedade;
. O condutor do veículo NQ transportava então passageiros do aeroporto de Lisboa para P…;
. O embate ocorreu quando o veículo pesado MB, após uma curta imobilização para mudança do tacógrafo na berma direita da A1, atento o sentido sul-norte, reiniciou a sua marcha, entrando na faixa da direita daquela via, no mesmo sentido do veículo NQ, sem que o condutor daquele pesado se tivesse certificado previamente de que a mesma se encontrava livre de trânsito de outros veículos;
. Nessas circunstâncias, o condutor do NQ, que circulava a velocidade não superior a 90 km/hora, ao aperceber-se, inesperadamente, da presença do MB, que circulava à velocidade diminuta de 20 km/hora, acionou os travões, mas não conseguiu evitar o embate com a parte dianteira daquele veículo no lado esquerdo da traseira do semi-reboque do veículo MB;
. Tal colisão ocorreu por culpa única e exclusiva do condutor do veículo pesado MB, DD;
. Em consequência desse embate, o condutor do veículo NQ, CC, sofreu lesões que lhe causaram a morte no próprio dia do acidente, deixando como herdeiros beneficiários das pensões emergentes de acidente de trabalho a sua mulher EE e filha FF;
. Na sequência da conciliação realizada, em 30/05/2001, no Tribunal de Trabalho de Coimbra, a A. tem vindo a proceder ao pagamento de todas as quantias devidas na legislação laboral, a saber:
a) – À viúva, EE, as seguintes quantias: € 24,94, por despesas de transporte; € 3.818,80, de subsídio de morte; € 2.545,86, de despesas de funeral; a pensão anual e vitalícia de € 2.094,95, com efeito a partir de 27/09/2000, que passará a € 2.793,27, quando aquela beneficiária perfizer a idade da reforma ou ficar com a capacidade de trabalho sensivelmente afetada;
b) – À filha FF, as seguintes quantias: € 24,94, por despesas de transporte; a pensão anual temporária de € 1.396,63, com início em 27/09/2000, que passará a € 2.793,27 até perfazer 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respetivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou superior ou se vier a ficar afetada de doença que a impossibilite sensivelmente para o trabalho.
Pede a A. que a R. seja condenada a reembolsar a A. da quantia de € 28.271,19, acrescida dos juros vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data dos respetivos e sucessivos pagamentos, sem prejuízo do pagamento das prestações vincendas a relegar para execução de sentença e respetivos juros de mora.
2. A R. contestou a impugnar tanto a versão da dinâmica do acidente apresentada pela A., considerando que a ocorrência do mesmo é única e exclusivamente imputável ao condutor do veículo ligeiro NQ, como os danos ora em causa, alegando ainda que:
. O acidente em referência causou a morte de quatro pessoas e ferimentos noutras cinco, tendo sido já propostas seis ações judiciais contra a ora contestante, duas delas pelo Hospital Distrital de … (processos n.º 1320/03.8TBLRA e n.º 5455/03.TBLRA) e uma pelo Hospital Distrital de … (processo n.º 2365/03.3TBSTR), todas elas para reembolso daquelas entidades hospitalares por despesas de tratamentos das várias vítimas, tendo a ora contestante pago, no âmbito desses processos, respetivamente, € 10.000,00, € 11.378,00 e € 3.171,35, ficando com o capital disponível reduzido a € 586.828,65;
. Corre termos pelo 2.º Juízo de Competência Criminal do Tribunal de …, o processo n.º 179/00.1TASTR, em que foi peticionada a quantia de € 5.040.472,00;
. E, no 2.º Juízo Cível do mesmo Tribunal, corre também termos uma ação declarativa, sob a forma de processo ordinário n.º 2472/05.8TBSTR, na qual os herdeiros de GG e de HH, II e JJ, peticionam a quantia de € 214.301,31.
. Tais pedidos e o da ora A. excedem em muito o capital disponível da aqui R., pelo que, mesmo a admitir a responsabilidade do motorista de veículo pesado, esse capital teria de ser rateado por todos.
Conclui pela absolvição da R. do pedido.
3. Findos os articulados, foi proferido despacho saneador tabelar e selecionada a matéria de facto tida por relevante com organização da base instrutória (fls. 212-216).
4. Estando marcada a audiência final para 25/02/2008, foi, no entanto, decretada a suspensão da instância (fls. 495-496), a requerimento das partes, atento ao facto de o acidente aqui em causa estar a ser discutido no processo n.º 179/00.1TASTR, a correr termos no 2.º Juízo de Competência Criminal do Tribunal de …, suspensão essa que veio a ser posteriormente renovada a aguardar também o desfecho do processo n.º 1175/04. 5TBSTR.
5. Entretanto, foram juntas certidões de processos que tiveram por objeto o acidente em causa nestes autos e que são as seguintes:
i) – A certidão de fls. 1022-1024, respeitante a uma ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, que correu termos sob o n.º 1320/03.8TBLRA, no 3.º Juízo Cível de …, em que foi autor o Hospital de …, S.A., e ré a Companhia de Seguros BB, S.A., na qual foi homologado acordo de transação, a condenar esta ré a pagar ao autor a quantia de € 10.000,00, conforme sentença transitada em julgado em 20/06/2005;
ii) - A certidão de fls. 1025-1027, respeitante a uma ação declarativa, sob a forma de processo sumário, que correu termos sob o n.º 5455/03.9TBLRA, no 3.º Juízo Cível de …, em que foi autor o Hospital de …, S.A., e ré a Companhia de Seguros BB, S.A., na qual foi homologado acordo de transação, a condenar esta ré a pagar ao autor a quantia de € 8.073,20, conforme sentença transitada em julgado em 13/12/2007;
iii) – A certidão de fls. 712-717, respeitante a uma ação declarativa, sob a forma de processo sumário, que correu termos sob o n.º 2365/03.3TBSTR, no Tribunal Judicial de S…, em que foi autor o Hospital Distrital de S…, S.A., e ré a Companhia de Seguros BB, S.A., a qual foi julgada parcialmente procedente, considerando-se que o acidente em referência era imputável a ambos os condutores dos veículos intervenientes, na proporção de 70% para o condutor do veículo MB e 30% para o condutor do veículo NQ, tendo aquela ré sido condenada a pagar ao Hospital ali autor a quantia de € 3.095,70, a crescida de juros de mora, conforme sentença de 23/042004, já transitada;
iv) – A certidão de fls. 634-643, respeitante ao processo n.º 179/00.1TASTR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal de S…, em figurou como arguido DD, no qual foi proferido acórdão, datado de 03/12/2008, a remeter para os meios comuns os ali seguintes demandantes cíveis:
- KK e LL contra o indicado arguido e contra a sociedade Transportes CC, Lda, a Companhia de Seguros BB, S.A. e a Companhia AA, SPA;
- EE, MM, NN, OO e FF contra a Companhia de Seguros BB, S.A.;
- PP, QQ e RR contra a Companhia de Seguros BB, S.A. e a Companhia AA, SPA;
- SS e mulher TT contra a Companhia de Seguros BB, S.A.;
- II e JJ contra o arguido DD, a sociedade Transportes CC, Ld.ª, e a Companhia de Seguros BB, S.A.;
v) - A certidão de fls. 613-633, respeitante também ao mesmo processo n.º 179/00.1TASTR, em que o arguido DD foi absolvido da prática dos crimes de homicídio e de ofensas à integridade física negligentes de que foi acusado pela ocorrência do acidente em referência, conforme acórdão transitado em 04/03/2009;
vi) - A certidão de fls. 1052 e segs., respeitante a uma ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, que correu termos sob o n.º 1175/04.5TBSTR, na Instância Central – Secção Cível – J3 – da Comarca de S…, em que foram autores SS e TT, ocupantes do veículo NQ, e ré AA, SA, na qualidade de seguradora do mesmo veículo, titulado pela apólice n.º 008…, tendo a ação sido julgada parcialmente procedente, por sentença proferida em 23/12/ 2010, tendo esta ré sido condenada a pagar aos ali autores diversas quantias indemnizatórias por danos decorrentes do acidente em referência, considerando-se que era imputável exclusivamente, a título de culpa, ao condutor do veículo NQ; tal sentença foi alterada, quanto aos montantes indemnizatórios, mas confirmada quanto à imputação do acidente a culpa exclusiva do condutor do veículo NQ, sucessivamente, pelo acórdão da Relação de Évora de 29/03/2012 e pelo acórdão do STJ, de 17/06/2014, já transitado em julgado.
6. A 1.ª Instância, considerando que, em face do decidido no processo n.º 1175/04.5TBSTR, que se verificava identidade da causa de pedir, na questão fundamental, entre o objeto daquela ação e o dos presentes autos, absolveu a R. Companhia de Seguros BB, S.A., da instância com fundamento na exceção de caso julgado, nos termos dos artigos 577.º, alínea i), 578.º, 580.º e 581.º, n.º 1, do CPC, conforme sentença de fls. 1232-1252, datada de 14/10/2015.
7. Inconformada com tal decisão, a R. recorreu para o Tribunal da Relação de Évora que, por unanimidade, confirmou a sentença recorrida, agora com fundamento na verificação de uma “exceção inominada de autoridade de caso julgado”, decorrente da decisão proferida no processo n.º 1175/04.5TBSTR, o que impedia que se conhecesse do objeto da presente ação, conforme acórdão de fls. 1289-1319, datado de 30/06/2016.
8. Mais uma vez inconformada, a R. vem pedir revista, formulando as seguintes conclusões:
1.ª - O presente recurso é admissível nos termos das disposições conjugadas dos artigos 7.º, n.º 1, da Lei n.º 41/2013, de 26-06, 629.º, n.º 1, do CPC, 44.º, n.º 3 da LOSJ e 24.º, n.º 1 da Lei n.º 3/99, de 13-01, com as alterações previstas na Lei n.º 105/2003, de 10-12;
2.ª - O acórdão proferido pelo Tribunal a quo é nulo nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, aplicável “ex vi” artigo 666.º do mesmo diploma;
3.ª - Efetivamente, no recurso de apelação interposto, a ora Recorrente alegou que, caso se verificasse a exceção de autoridade de caso julgado, seria sempre e só relativamente à sentença proferida no Processo n.º 2365/03.3TBSTR e não relativamente ao acórdão proferido no Proc. n.º 1175/04.5TBSTR, na medida em que aquela também se pronunciou quanto à culpa na produção do acidente dos presentes autos e transitou em julgado antes do proc. n.º 1175/04.5TBSTR;
4.ª - Quer a sentença respeitante ao processo n.º 2365/03.3TBSTR, quer o acórdão respeitante ao processo n.º 1175/04.5TBSTR encontram-se juntos aos presentes autos, pelo que não podem deixar ambos de ser apreciados e considerados para a análise desta questão da autoridade de caso julgado,
5.ª - A sentença proferida no Proc. n.º 2365/03,3TBSTR é mais antiga, transitou em julgado em primeiro lugar, pronunciou-se quanto à dinâmica do acidente, conheceu dos factos respeitantes ao acidente, que elencou e apreciou, considerando ambos os condutores culpados e repartindo as responsabilidades na proporção de 30% para o condutor do veículo garantido pela Recorrente e de 70% para o condutor do veículo garantido pela Recorrida;
6.ª - Pelo que, a decisão a proferir nestes autos quanto à culpa e procedendo a exceção de autoridade de caso julgado, terá necessariamente que ser no mesmo sentido da decisão proferida no proc. n.º 2365/03.3TBSTR - Recorrente responsável na proporção de 30% e Recorrida na proporção de 70%.
7.ª - Ora, o acórdão recorrido não aflorou sequer a questão da existência do proc. n.º 2365/03.3TBSTR, nem por que motivo ou com que fundamentos a decisão neste proferida gera ou não gera uma situação de autoridade de caso julgado...
8.ª - Fez tábua rasa da sua existência e da decisão nele proferida, que também conheceu dos factos respeitantes à dinâmica do acidente e também se pronunciou quanto à culpa na produção do mesmo;
9.ª - Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo tinha que ter justificado por que motivo optou por considerar existir uma situação de exceção de autoridade de caso julgado relativamente ao acórdão proferido no proc. n.º 1175/04.5TBSTR, em detrimento da sentença proferida no proc. n.º 2365/03.3TBSTR;
10.ª - Ao não o fazer está a contrariar uma decisão anterior que considerou existir culpa de ambos os condutores, na proporção de 70% para o veículo pesado e 30% para o ligeiro, o que obviamente ofende a certeza e segurança jurídicas que se pretende sejam acauteladas por via desta exceção;
11.ª - E a incorrer em omissão de pronúncia sobre uma questão que lhe foi expressamente colocada pela ora Recorrente, violando o preceituado no citado artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, aplicável ex vi artigo 666.º do mesmo diploma;
12.ª - Pelo que o acórdão é nulo, nos termos das referidas normas, devendo em consequência ser substituído por outro que supra a nulidade ora invocada, pronunciando-se sobre a possibilidade de existência de exceção de autoridade de caso julgado quanto à dinâmica do acidente, relativamente à sentença proferida no processo n.º 2365/03. 3TBSTR, que transitou em julgado antes do acórdão proferido no processo n.º 1175/04.5TBSTR;
13.ª - E, na hipótese de considerar que existe tal exceção relativamente aos presentes autos, decidir no sentido de que a mesma se operou por via da decisão transitada em primeiro lugar, naturalmente;
14.ª - Sem embargo do exposto, sempre se dirá que a ora Recorrente considera que, in casu, não se verifica a citada exceção de autoridade de caso julgado, tendo, ao decidir de outro modo, o Tribunal a quo violado quanto dispõem as normas dos artigos 580.º e 581.º do CPC. (Neste sentido, vide designadamente, Acórdão do STJ, de 07.05.2005 e Ac. do STJ de 13.05.2004, ambos disponíveis em www.dgsi.pt);
15.ª - Não há identidade de partes, de pedidos e de causas de pedir entre os presentes autos e o proc. n.º 1175/04.5TBSTR, na medida em que no proc. n.º 1175/04.5TBSTR os autores são ocupantes de um dos veículos intervenientes e reclamam danos apenas contra a Recorrente na qualidade de seguradora do veículo transportador, sem imputar ao respetivo condutor qualquer juízo de culpa;
16.ª - Ao passo que, nos presentes autos, a ora Recorrente, na qualidade de seguradora de acidentes de trabalho, reclama da seguradora Recorrida, na qualidade de garante da responsabilidade civil emergente da circulação da viatura MB, o reembolso das quantias liquidadas aos beneficiários nos termos legais, em virtude da morte do trabalhador seu segurado, imputando culpa ao condutor do MB;
17.ª - A exceção de autoridade de caso julgado justifica-se para impedir que existam decisões contraditórias, que venham a afetar a certeza e segurança jurídicas.
18.ª - Conforme consta e bem do acórdão Recorrido, a parte decisória da sentença não se dissocia dos seus fundamentos;
19.ª - Os fundamentos de facto que estiveram na base da decisão proferida no proc. n.ª 1175/04.5TBSTR, relativamente à dinâmica do acidente, são muito diferentes dos que estão em discussão nos presentes autos;
20.ª - Fazendo uma breve análise do elenco dos factos que foram levados a discussão nos dois processos, verificamos sem dificuldade, que a factualidade alegada e respeitante à dinâmica do acidente, nos presentes autos, é muito mais vasta do que a constante do proc. n.º 1175/04.5TBSTR;
21.ª - E percebe-se porquê: é que no proc. n.º 1175/04.5TBSTR, os aí autores fundamentaram a sua pretensão na simples circunstância de serem transportados num dos veículos intervenientes, não tendo propriamente alegado factualidade que permitisse formular um juízo de culpabilidade relativamente ao condutor do veículo garantido pela ora Recorrente;
22.ª - Ao invés, nos presentes autos, a ora Recorrente alegou um elenco de factos que não foram apreciados no citado proc. n.º 1175/ 04.5TBSTR e que são da maior importância para a descoberta da verdade material e para a formulação consciente de um juízo de culpa;
23.ª - Não pode ofender pois a segurança e a certeza jurídicas uma eventual decisão que venha a ser proferida nestes autos, quando, apesar de estarmos perante o mesmo acidente, são trazidos ao julgador um volumoso elenco de factos que não foram dados a conhecer no processo n.º 1175/04.5TBSTR;
24.ª - Não podendo, repita-se, dissociar-se a parte decisória da sentença dos seus fundamentos, de facto e de direito, não pode também o julgador decidir pela verificação desta exceção sem analisar todos os contornos dos dois processos, quanto às partes envolvidas, às pretensões reclamadas e, sobretudo, à factualidade apresentada;
25.ª - Estamos em crer que o dever de descoberta da verdade material impõe que se conheça da factualidade trazida aos presentes autos, sem que, com isso, se ofenda a certeza e segurança jurídicas da decisão proferida no processo n.º 1175/04.5TBSTR, que foi baseada numa ínfima parte dos factos que estiveram na origem deste trágico sinistro;
26.ª - Pelo que deve ser revogado o acórdão recorrido, considerando-se que não há exceções que inviabilizem o prosseguimento dos autos.
9. A Recorrida apresentou contra-alegações a pugnar pela confirmação do julgado.
10. Embora o Tribunal da Relação, tenha ordenado a subida dos autos sem se pronunciar sobre a nulidade do acórdão recorrido arguida pela Recorrente, tem-se por dispensável a baixa do processo para tal efeito, ao abrigo do artigo 617.º, n.º 5, aqui aplicável ex vi dos artigos 666.º, n.º 1, e 685.º do CPC.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Delimitação do objeto do recurso
Tendo a ação sido proposta em 2006 e as decisões impugnadas proferidas em 14/10/2015 (na 1.ª instância) e em 30/06/2016 (na Relação), é aplicável à presente revista o atual regime recursório, com a ressalva do disposto no n.º 3 do artigo 671.º do CPC, nos termos do artigo 7.º, n.º 1, do Lei n.º 41/2013, de 26-06, ressalvando-se também o valor da alçada para efeitos de admissibilidade do recurso, a que se aplica em lei em vigor à data da propositura da ação.
Como é sabido, o objeto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do CPC.
Assim, das conclusões dos Recorrentes colhem-se as seguintes questões:
i) – A invocada nulidade do acórdão recorrido com fundamento em omissão de pronúncia;
ii) – A questão relativa à autoridade de caso julgado em que se estribou o acórdão recorrido para confirmar a decisão da 1.ª instância no sentido da absolvição da R. da instância.
III – Fundamentação
1. Quanto à invocada nulidade do acórdão recorrido com fundamento em omissão de pronúnica
A A./Recorrente começa por arguir a nulidade do acórdão recorrido com fundamento em omissão de pronúncia, sustentando o seguinte:
i) - No recurso de apelação, alegara que, caso se verificasse a exceção de autoridade de caso julgado, seria sempre e só relativamente à sentença proferida no processo n.º 2365/03.3TBSTR e não relativamente ao acórdão proferido no proc. n.º 1175/04.5TBSTR, porquanto aquela sentença também se pronunciou quanto à culpa na produção do acidente dos presentes autos, tendo transitado em julgado antes do acórdão proferido no proc. n.º 1175/04.5TBSTR;
ii) - A referida sentença conheceu dos factos respeitantes ao acidente aqui em causa, considerando ambos os condutores culpados e repartindo as responsabilidades na proporção de 30% para o condutor do veículo NQ, objeto do contrato de seguro firmado com A./Recorrente, e de 70% para o condutor do veículo MB, objeto do contrato de seguro celebrado com a R./Recorrida;
iii) – Assim, a decisão a proferir nos presentes autos quanto à culpa, caso proceda a exceção de autoridade de caso julgado, terá necessariamente que ser no mesmo sentido da decisão proferida no proc, n.º 2365/03.3TBSTR;
iv) – Todavia, o acórdão recorrido não aflorou sequer a questão da existência do processo n.º 2365/03.3TBSTR, nem o motivo ou fundamentos pelos quais a decisão ali proferida gera ou não gera uma situação de autoridade de caso julgado...
v) - Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo deveria ter justificado por que motivo optou por considerar existir uma situação de exceção de autoridade de caso julgado relativamente ao acórdão proferido no processo n.º 1175/04.5TBSTR, em detrimento da sentença proferida no processo n.º 2365/03.3TBSTR.
Vejamos.
Os vícios típicos de nulidade de sentença previstos no artigo 615.º, n.º 1, do CPC, respeitam a erros de atividade ou de procedimento (error in procedendo) em sede da disciplina legal sobre a elaboração da sentença, cuja relevância decorre do facto de constituírem obstáculo à prolação de um juízo de mérito.
Com efeito, segundo o preceituado no artigo 608.º, n.º 2, do CPC, deve o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação ou de que deva conhecer oficiosamente, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. A inobservância desse dever de pronúncia é cominada com a nulidade da sentença, na parte afetada, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 1.ª parte, do mesmo Código. Tais normativos são aplicáveis também aos acórdãos da Relação por via do disposto no artigo 666.º, n.º 1, do indicado diploma.
Todavia, para tanto, importa distinguir o que constituem “questões” a resolver e o que se reconduz a meros argumentos, linhas de raciocínio ou considerações adentro dessas questões[1].
Assim, não se verifica omissão de pronúncia quando o tribunal, ocupando-se da questão litigiosa, incorra em insuficiente fundamentação ou deixe de abordar determinados argumentos apresentados pelas partes ou algum normativo porventura aplicável. A mediocridade de fundamentação pode, quanto muito, constituir erro de julgamento passível de apreciação de mérito, mas não erro de procedimento que seja obstativo dessa apreciação. A verificação deste só ocorrerá quando exista falta absoluta ou ininteligibilidade da fundamentação ou da própria decisão, casos em que seria inviável o pronunciamento de mérito.
No que aos recursos respeita em sede de impugnação de direito, as questões a resolver definem-se à luz do perfil do respetivo objeto genericamente traçado nos artigos 639.º, n.º 1 e 2, do CPC e podem consistir em erro de interpretação e/ou de aplicação da normas tidas por violadas, ou do erro na determinação da norma que devia ser aplicada - alíneas a) a c) do n.º 2 do art.º 639.º
No caso presente, a A./Recorrente impugnou a sentença da 1.ª instância que decretou a absolvição da R. da instância com fundamento na verificação da exceção de caso julgado decorrente da decisão proferida no processo n.º 1175/04.5TBSTR, nos termos da qual o condutor do veículo NQ, beneficiário do contrato de seguro firmado com a ora A., foi considerado o único e exclusivo responsável, a título de culpa, pela ocorrência do acidente aqui em causa. Tal impugnação foi reconduzida à violação do disposto nos artigos 580.º e 581.º do CPC.
A par disso, a Recorrente sustentou que, a verificar-se a dita exceção de caso julgado, teria de ser em relação à decisão proferida no processo n.º 2365/03.3TBSTR - transitada em julgado antes da proferida no processo n.º 1175/04.5TBSTR - e na qual ambos os condutores foram considerados culpados com repartição das responsabilidades na proporção de 30% para o condutor do veículo NQ, objeto do contrato de seguro firmado com A./ Recorrente, e de 70% para o condutor do veículo MB, objeto do contrato de seguro celebrado com a R./Recorrida.
Por sua vez, o Tribunal da Relação, considerando que a questão suscitada consistia em ajuizar da verificação da exceção de caso julgado, confinou a sua apreciação ao efeitos de autoridade de caso julgado decorrentes da decisão proferida no processo n.º 1175/04.5TBSTR, sem tomar em linha de conta a decisão proferida no processo n.º 2365/03.3TBSTR.
Significa isto que o Tribunal a quo se ocupou da questão da invocada violação dos artigos 580.º e 581.º do CPC, decidindo-a no sentido de que, embora não ocorresse exceção de caso julgado, se verificava ainda assim uma “exceção inominada de autoridade do caso julgado” decorrente da decisão proferida no processo n.º 1175/04, que impedia o conhecimento do objeto da presente ação, confirmando, nesta base, a absolvição da R. da instância.
É certo que o Tribunal da Relação não chegou a equacionar, nesse âmbito, a tese da Recorrente sobre a pretendida prevalência do efeito de caso julgado da decisão proferida no processo n.º 2365/03.3TBSTR, mas tal omissão poderá, quando muito, constituir fundamentação insuficiente a apreciar já em sede de erro de julgamento, que não propriamente omissão de pronúncia, porquanto não se reconduz a uma questão autónoma destacada do âmbito da questão da pretensa violação dos artigos 580.º e 581.º do CPC.
Termos em que improcede a arguida nulidade do acórdão recorrido.
2. Quanto à questão da autoridade do caso julgado
A questão acima enunciada consiste em saber se da decisão proferida no processo n.º 1175/04.5TBSTR decorrem efeitos de caso julgado, mormente a título da designada “autoridade do caso julgado”, que obstem ao conhecimento do objeto da presente ação, tal como foi decidido pelo acórdão recorrido.
Ora, a solução do tribunal a quo ancorou-se no facto de, no sobredito processo, em que foram autores dois ocupantes transportados no veículo NQ, aquando a ocorrência do acidente em causa, e ali ré a ora A./Recorrente, na qualidade de seguradora relativamente à responsabilidade civil resultante da circulação daquele veículo, se ter decidido, como questão fundamental, que o condutor do veículo NQ foi o único e exclusivo responsável, a título de culpa, pela produção do acidente em causa.
Sucede, porém, que também no processo n.º 2365/03.3TBSTR - transitada em julgado antes da decisão proferida no processo n.º 1175/04. 5TBSTR -, em que foi autor o Hospital Distrital de S… e ré a ora R./ Recorrida Companhia de Seguros BB, S.A., na qualidade de seguradora em relação ao veículo MB, conduzido por DD, ambos os condutores dos veículos intervenientes foram considerados culpados, a título de culpa, na proporção 70% para o condutor do veículo MB e 30% para o veículo NQ.
Vejamos
A questão em apreço convoca a complexa problemática da eficácia do caso julgado material e, em especial, no que respeita à sua extensão a terceiros, a qual remonta já ao direito romano clássico.
Das fontes romanas colhe-se o velho princípio de que o caso julgado não deve aproveitar nem prejudicar terceiros, o que se fora plasmado no brocardo latino nec res inter alios judicata aliis prodesse aut nocere solet.[2]
Deve-se, pois, ao direito romano a consagração dos três requisitos fundamentais do caso julgado material: a identidade de sujeitos (eadem personae), a identidade de pedidos (eadem res) e a identidade de causas de pedir (eadem causa petendi)[3].
Todavia, como refere o citado autor[4], “foi o mesmo direito romano que se viu forçado a quebrar a rigidez do princípio e a admitir, em certos casos, que uma sentença proferida entre duas pessoas determinadas atingisse terceiros, estranhos à causa.”
Posteriormente, segundo aquele autor, o direito medieval e o direito moderno vieram conferir forte expansividade ao caso julgado no sentido de projetar a sua eficácia para fora dos limites da lide, nomeadamente sobre relações jurídicas diversas da que fora objeto do pleito e sobre relações de terceiros, colocando-se então o problema da eficácia reflexa do caso julgado.[5]
Seria, pois, perante tal expansividade que o direito processual poderia consagrar uma de três possibilidades: i) - uma solução de indiferença, deixando que a força expansiva do caso julgado se projete livremente; ii) – uma solução de hostilidade, coarctando qualquer eficácia reflexa; iii) – uma solução de transigência prudente, estabelecendo limites aos efeitos reflexos a certos casos ou a certas formas de interdependência.[6]
A solução a adotar passaria, segundo Alberto dos Reis, pela conjugação de dois princípios opostos: “o princípio da autoridade da sentença como formulação da vontade concreta da lei, formulação emanada dum órgão de soberania, o juiz; o princípio da tutela dos direitos de terceiros estranhos ao processo em que foi proferida a sentença.”[7]
Segundo a noção dada por Manuel de Andrade[8], o caso julgado material:
«Consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão.»
Para o mesmo Autor[9], o instituto do caso julgado assenta em dois fundamentos:
a) – o prestígio dos tribunais, que ficaria altamente comprometido “se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente”;
b) – e, mais importante, uma razão de certeza ou segurança jurídica, já que sem a força do caso julgado se cairia “numa situação de instabilidade jurídica (…) fonte perene de injustiças e paralisadora de todas as iniciativas”.
Nas lúcidas palavras daquele Autor:
«O caso julgado material não assenta numa ficção ou presunção absoluta de verdade (…), por força da qual (…) a sentença (…) transforme o falso em verdadeiro. Trata-se antes de que, por uma fundamental exigência de segurança, a lei atribui força vinculativa infrangível ao acto de vontade do juiz, que definiu em dados termos certa relação jurídica, e portanto os bens (materiais ou morais) nela coenvolvidos. Este caso fica para sempre julgado. Fica assente qual seja, quanto a ele, a vontade concreta da lei (Chiovenda). O bem reconhecido ou negado pela pronuntiatio judicis torna-se incontestável.
Vê-se portanto que a finalidade do processo não é apenas a justiça – a realização do direito objectivo ou a actuação dos direitos subjectivos privados correspondentes. É também a segurança – a paz social (Schönke)»
No que respeita à eficácia do caso julgado material, desde há muito, quer a doutrina[10] quer a jurisprudência têm distinguido duas vertentes:
a) – uma função negativa, reconduzida a exceção de caso julgado, consistente no impedimento de que as questões alcançadas pelo caso julgado se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em ação futura;
b) – uma função positiva, designada por autoridade do caso julgado, através da qual a solução nele compreendida se torna vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou em outros tribunais.
Quanto à função negativa ou exceção de caso julgado, é unânime o entendimento de que, para tanto, têm de se verificar a tríplice identidade estabelecida no artigo 581.º do CPC: a identidade de sujeitos; a identidade de pedido e a identidade de causa de pedir.
Já quanto à autoridade de caso julgado, existem divergências. Para alguns, entre os quais Alberto dos Reis, a função negativa (exceção de caso julgado) e a função positiva (autoridade de caso julgado) são duas faces da mesma moeda, estando uma e outra sujeitas àquela tríplice identidade[11]. Segundo outra linha de entendimento, incluindo a maioria da jurisprudência, a autoridade do caso julgado não requer aquela tríplice identidade, podendo estender-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado[12].
Todavia, quanto à identidade objetiva, segundo Castro Mendes[13]:
«(…) se não é preciso entre os dois processos identidade de objecto (pois justamente se pressupõe que a questão que foi num thema decidendum seja no outro questão de outra índole, maxime fundamental), é preciso que a questão decidida se renove no segundo processo em termos idênticos»
Para aquele Autor, constitui problema delicado a “relevância do caso julgado em processo civil posterior, quando nesse processo a questão sobre a qual o caso julgado se formou desempenha a função de questão fundamental ou mesmo de questão secundária ou instrumental, não de thema decidenum.”[14]
Apesar disso, considera[15] que:
«Base jurídica para afirmarmos que, havendo caso julgado e levantando-se num processo civil seguinte inter easdem personas a questão sobre a qual este recaiu, mas levantando-se como questão fundamental ou instrumental e não como thema decidendum (não sendo, pois, de usar a excepção de caso julgado), o juiz do processo novo está vinculado à decisão anterior, é apenas o artigo 671.º n.º 1, na medida em que fala de força obrigatória fora do processo, sem restrição, e ainda a ponderação das consequências a que essa falta de vinculação conduziria.»
E observa[16] que:
«O respeito pelo caso julgado posto em causa num processo posterior, não como questão central, mas como questão fundamental, ou instrumental, representa uma conquista da ciência processual que vem já dos tempos de Roma. Não nos parece estar em causa no direito português. Só nos parece inconveniente que o seu fundamento seja apenas o vago e genérico art.º 671.º n.º 1.
A vinculação do juiz ao caso julgado quando a questão respectiva seja levan-tada como fundamental ou instrumental baseia-se, evidentemente, na função positiva do caso julgado. De iure condito, a excepção de caso julgado, quando peremptória nos termos do art.º 496.º, alínea a), desenvolve igualmente a função positiva do caos julgado.»[17]
Também Lebre de Freitas e outros[18] consideram que:
«(…) a autoridade do caso julgado tem (…) o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida.»
Em suma, a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.
Para tal efeito, embora, em regra, o caso julgado não se estenda aos fundamentos de facto e de direito, tem-se entendido, como se refere no acórdão recorrido, que “a força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.”[19]
Nas palavras de Teixeira de Sousa ali citado[20]:
«Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão».
Relativamente à extensão do caso julgado a terceiros, de entre eles, segundo Antunes Varela e outros[21] distinguir-se-ão:
i) – os terceiros juridicamente indiferentes, a quem a decisão não produz nenhum prejuízo jurídico, não interferindo com a existência e validade do seu direito, embora podendo afetar a sua consistência prática ou económica, em relação aos quais não poderia deixar de se admitir a eficácia do caso julgado;
ii) - os terceiros juridicamente prejudicados, titulares de relações jurídicas independentes e incompatíveis com o caso julgado alheio, em relação aos quais nenhuma razão haverá para serem por ele atingidos;
iii) – os terceiros titulares de uma relação ou posição dependente da definida entre as partes por decisão transitada, a quem se tem reconhecido a eficácia reflexa do caso julgado;
iv) – os terceiros titulares de relações paralelas à definida pelo caso julgado alheio ou com ela concorrentes, considerando-se, quanto às primeiras, que o caso julgado só se estende às partes e, quanto às segundas que, se a lei não exigir a intervenção de todos os interessados, só lhes aproveita o caso julgado favorável.
A ineficácia do caso julgado em relação a terceiros é explicada por Alberto dos Reis nos seguintes moldes[22]:
«É perfeitamente compreensível este princípio da ineficácia do caso julgado em relação a terceiros. A sentença contém a formulação da vontade concreta da lei com referência a um caso particular.
Como se alcança esta formulação? A sentença é um acto do juiz; mas para a produção desse acto contribui, na mais larga medida, a actividade do autor e do réu. São as partes que põem a questão; são as partes que articulam os factos; são as partes que alegam e discutem; são as partes, em suma, que preparam, mobilizam e fornecem ao juiz os materiais de conhecimento, os vários elementos de que há-de sair a sua convicção, expressa na sentença.
Para bem ou para mal, a sentença, se é um acto do juiz, é ao mesmo tempo o produto de intensa e activa colaboração das partes. Por isso a sentença tem, como destinatários naturais, as partes e só as partes.
Estender a eficácia da sentença a terceiros, estranhos ao processo, que não intervieram nele, que não foram ouvidos nem convencidos, que não foram colocados em condições de dizer da justiça, de alegar as suas razões, de exercer qualquer espécie de influência na formação da convicção do juiz – é uma violência que pode redundar numa iniquidade.»
Regressando agora ao caso dos autos, convém reter que:
i) – O Hospital Distrital de S…, S.A., instaurou ação declarativa, sob a forma de processo sumário, contra a Companhia de Seguros BB, S.A., na qualidade de seguradora em relação ao veículo MB, que correu termos sob o n.º 2365/03. 3TBSTR, no Tribunal Judicial de S…, a qual foi julgada parcialmente procedente, ali se considerando que o acidente em referência era imputável a ambos os condutores dos veículos intervenientes, na proporção de 70% para o condutor do veículo MB e 30% para o condutor do veículo NQ, tendo aquela ré sido condenada a pagar ao Hospital ali autor a quantia de € 3.095,70, acrescida de juros de mora, conforme sentença de 23/042004, já transitada – certidão de fls. 712-717;
ii) - SS e TT, ocupantes do veículo NQ, instauraram a uma ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, que correu termos sob o n.º 1175/04.5TBSTR, na Instância Central – Secção Cível – J3 – da Comarca de S..., contra ora A. AA - Companhia de Seguros, SPA, na qualidade de seguradora em relação ao mesmo veículo (NB), titulado pela apólice n.º 008…, na qual se considerou que o acidente em causa era imputável, a título de culpa exclusiva, ao condutor do veículo NQ, tendo a ação sido julgada parcialmente procedente, condenando-se a ali ré a pagar aos ali autores diversas quantias indemnizatórias por danos decorrentes do acidente em referência, conforme sentença proferida em 23/12/2010, alterada, quanto aos montantes indemnizatórios, mas confirmada quanto à imputação do acidente a culpa exclusiva do condutor do veículo NQ, sucessivamente, pelo acórdão da Relação de Évora de 29/03/2012 e pelo acórdão do STJ, de 17/06/ 2014, já transitado em julgado - certidão de fls. 1052 e segs.;
iii) – Na presente ação instaurada pela AA - Companhia de Seguros, SPA, Sucursal em Portugal, contra a Companhia de Seguros BB, S.A., vem pedida a condenação desta a pagar àquela a quantia de € 28.271,19, como reembolso das quantias pagas pela A. à viúva e à filha do falecido condutor do veículo NQ, CC, a título de despesas e pensões decorrentes do acidente de trabalho conexo com o acidente de viação em causa, acrescida dos juros vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data dos respetivos e sucessivos pagamentos, sem prejuízo do pagamento das prestações vincendas a relegar para execução de sentença e respetivos juros de mora.
Perante este quadro, não sofre dúvida que, entre a presente ação e o processo n.º 1175/04.5TBSTR não se verificam os três requisitos de identidade da exceção de caso julgado previstos no artigo 581.º do CPC.
Com efeito, nem os autores do processo n.º 1175/04.5TBSTR são partes nesta ação nem a ora R. foi parte naquele processo. Apenas a ora A., ré naquele processo, se poderá considerar, de algum modo, o mesmo sujeito sob o ponto de vista da qualidade jurídica (art.º 581.º, n.º 2, do CPC), uma vez que aqui intervém, a exercer o direito de regresso (art.º 31.º, n.º 4, da Lei n.º 100/97, de 13-09, então em vigor) no âmbito do contrato de seguro de acidente de trabalho de que o condutor do veículo NQ era beneficiário e, naquele processo, interveio também em substituição do mesmo enquanto seguradora em relação ao referido veículo.
Também quanto aos pedidos não se verifica coincidência, porquanto as indemnizações peticionadas na presente ação visam a reparação do dano, em sede de responsabilidade por acidente de trabalho conexo com o acidente de viação, resultante da morte pelo condutor do veículo NQ, ao passo que as indemnizações peticionadas no processo n.º 1175/04.5TBSTR respeitavam aos danos sofridos pelos dois ocupantes do mesmo veículo. E, no respeitante às causas de pedir, elas apenas coincidem na parte relativa à dinâmica do acidente, divergindo no que toca aos danos e respetivo nexo de causalidade.
Não obstante isso, o Tribunal a quo considerou que o juízo de culpabilidade pela ocorrência do acidente imputada exclusivamente ao condutor do veículo NQ, CC, formulado no processo n.º 1175/04.5TBSTR constituía, em si, uma questão fundamental alcançada pela autoridade do caso julgado da decisão ali preferida, que era vinculativa para a ali ré e aqui A. e que, por isso, obstava, como “exceção dilatória inominada”, ao conhecimento do objeto da presente ação.
A admitir-se tal entendimento, de resto com apoio da doutrina citada no acórdão recorrido, ou seja, a extensão daquele juízo de culpabilidade à presente ação, como efeito positivo da autoridade de caso julgado da decisão proferida no processo n.º 1175/04.5TBSTR, salvo o devido respeito, afigura-se que a solução não seria a absolvição da R. instância, sob a qualificação de exceção dilatória, mas sim a improcedência da presente ação com a absolvição da mesma R. do pedido, em virtude de se considerar assente, por decorrência daquele efeito positivo do caso julgado, a culpabilidade exclusiva do condutor do veículo NQ.
Sucede que, com apelo às mesmas razões, também se imporia considerar que o juízo sobre as culpas repartidas pela ocorrência do mesmo acidente, na proporção de 70% para o condutor do veículo MB e 30% para o condutor do veículo NQ, formulado na decisão proferida no processo n.º 2365/03.3TBSTR, de igual modo vinculativo para a ali e aqui ré Companhia de Seguros BB, S.A., também teria o alcance similar na presente ação, o que se traduziria em dois alcances incompatíveis.
Daqui não se segue que deva lançar-se mão do preceituado no artigo 625.º do CPC para dar prevalência ao caso julgado transitado em primeiro lugar – o constituído no processo n.º 2365/03.3TBSTR -, como pretende a Recorrente, pela simples razão de que a contradição de casos julgados a que se refere aquele normativo pressupõe a verificação da tríplice identidade estabelecida no artigo 581.º do CPC, já que deve incidir “sobre a mesma pretensão”, o que, no caso, não se verifica.
É certo que a Recorrida contrapõe no sentido de que, no âmbito da ação para cobrança de dívidas hospitalares, como foi o processo n.º 2365/ 03.3TBSTR, regulada pelo Dec.-Lei n.º 218/99, de 15-06, ocorre a inversão do ónus da prova da culpa na produção do acidente, recaindo sobre a R. Seguradora a prova de que o condutor por si segurado não foi culpado na produção do acidente que motivou as lesões dos assistidos pelos hospitais. Nessa base, concluiu que se impõe a prevalência da autoridade do caso julgado da decisão proferida no processo n.º 1175/04.5TBSTR.
Não obstante a pertinência desta argumentação, não se vê que esse regime determine, por si só, a irrelevância do juízo de culpabilidade ali formulado.
O que se constata é que no processo n.º 2365/03.3TBSTR, a ali e ora ré não logrou provar que o seu segurado – o condutor do veículo MB – não fosse culpado pela produção do acidente; provou-se sim que era responsável a título de culpa na proporção de 70%. No processo n.º 1175/04. 5TBSTR, os ali autores provaram a culpa exclusiva do condutor do veículo NQ, sem que a ali ré e ora A. tivesse logrado infirmar essa prova.
Aferir a consistência de cada um daqueles juízos de culpabilidade em função dos esforços probatórios exigíveis às partes ou por elas desempenhados numa e noutra ação afigura-se, no mínimo, bastante problemático e até suscetível de alguma arbitrariedade, para mais com vista a lhe conferir autoridade de caso julgado no contexto da presente ação, em que ocorre a oportunidade de ambas as partes poderem litigar em igualdade de circunstâncias. O contexto de cada ação e a contingência da prova daí decorrente exigem prudência numa tal aferição, como se retira das judiciosas observações de Alberto dos Reis, a este propósito, acima transcritas.
Refere-se também a Recorrida a comportamentos processuais da A., a requerer a suspensão da instância no sentido de aguardar a decisão final do processo n.º 1175/04.5TBSTR, quando agora o não aceita. Só que, embora os comportamentos das partes possam ser considerados em sede de valoração da prova, não relevam para efeitos da definição jurídica do alcance dos efeitos do caso julgado.
Assim, perante a incompatibilidade entre os dois julgados em presença, a ilação a extrair só poderá ser a de considerar que nenhum deles oferece consistência suficiente e segura, e portanto indiscutível, para se impor como efeito de autoridade do caso julgado nesta ação.
Aliás, se uma das finalidade da autoridade do caso julgado é precisamente evitar decisões contraditórias sobre a mesma questão e garantir a certeza e segurança jurídica, tal desiderato nunca aqui seria logrado, uma vez que a contradição já existente entre as decisões proferidas nos processos n.º 2365/03.3TBSTR e n.º 1175/04.5TBSTR se mostra irremovível. Restará assim garantir às partes as condições de obtenção de uma tutela efetiva.
Termos em que se conclui pela concessão da revista.
IV - Decisão
Pelo exposto, acorda-se em conceder a revista e decide-se revogar a decisão recorrida e determinar o prosseguimento do processo para o julgamento da causa.
As custas ficam a cargo da Recorrida.
Lisboa, 30 de março de 2017
Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)
Maria da Graça Trigo
Carlos Alberto Andrade Bettencourt de Faria
__________________
[1] A este propósito, veja-se, entre muitos outros, Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1981, p. 143; Lebre de Freitas e outros, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2008, pp. 704-705.
[2] Vide, entre outros, Alberto dos Reis, artigo doutrinário, intitulado Eficácia do Caso Julgado em Relação a Terceiros, in Boletim da Faculdade de Direito, Vol. XVII (1940-1941, pp. 207.
[3] Alberto dos Reis, artigo cit., p. 209.
[4] Artigo cit., p. 209.
[5] Artigo doutrinário cit. p. 211.
[6] Alberto dos Reis, artigo cit. p. 215.
[7] Artigo doutrinário cit. p. 215.
[8] In Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, 304,
[9] Ob. cit. pp 305-306.
[10] Vide, entre outros, Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, pp. 38-39; Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 572; Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2008, p. 354.
[11] In Código de Processo Civil anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 3.ª Edição, 1981, pp. 92-93.
[12] Vide, entre outros, os seguintes acórdãos do STJ: de 13/12/2007, relatado pelo Juiz Cons. Nuno Cameira no processo n.º 07A3739; de 06/3/2008, relatado pelo Juiz Cons. Oliveira Rocha, no processo n.º 08B402; de 23/11/2011, relatado pelo Juiz Cons. Pereira da Silva no processo n.º 644/08.2TBVFR.P1.S1, acessíveis na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[13] In Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, pp. 43-44.
[14] Ob. cit. p. 50.
[15] Ob. cit. p. 51.
[16] Ob. cit. p. 52.
[17] Com a Revisão do CPC de 95/96, o caso julgado deixou de figurar como exceção perentória, sendo incluído no elenco das exceções dilatórias.
[18] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, p. 354.
[19] No sentido exposto, vide, a título de exemplo, o acórdão do STJ, de 20/06/2012, relatado pelo Juiz Cons. Sampaio Gomes, no processo 241/07.0TLSB.L1.S1, acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[20] In Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pp. 578-579.
[21] In Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 1985, pp. 726-729
[22] Eficácia do Caso Julgado em Relação a Terceiros, in Boletim da Faculdade de Direito, Vol. XVII (1940-1941, pp. 208.