I. Havendo impugnação da decisão sobre a matéria de facto, que tenha por objeto a reapreciação da prova gravada, a lei concede um alargamento do prazo, por mais dez dias, para a interposição do recurso de apelação.
II. O benefício do alargamento do prazo justifica-se pelo ónus de alegação que recai sobre o recorrente, no âmbito da impugnação da matéria de facto.
III. O benefício não se estende à impugnação da matéria de facto baseada apenas na reapreciação da prova documental.
IV. A interpretação feita do art. 638.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, não viola qualquer princípio de natureza constitucional, nomeadamente o da igualdade e da tutela jurisdicional efetiva.
I – RELATÓRIO
AA instaurou, em 4 de novembro de 2014, no Juízo Cível Local de …, Comarca de Aveiro, contra BB e CC, ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que fosse decretada a cessação do contrato de arrendamento, tendo por objeto o prédio urbano sito na Rua …, n.º 1…0, …, concelho de Santa Maria da Feira, o Réu condenado na sua entrega, e os Réus condenados a pagar-lhe as rendas vencidas, no valor de € 1 800,00, e as rendas vincendas, bem como os correspondentes juros de mora, à taxa legal.
Para tanto, alegou, em síntese, que o R., sendo arrendatário, deixou de pagar a renda, no valor mensal de € 600,00, a partir de agosto de 2014, sendo a R. fiadora.
Contestaram os RR., alegando a exceção de incumprimento e o abuso do direito e concluindo pela improcedência da ação. Em reconvenção, foi pedido que o A. fosse condenado a pagar ao R. a quantia de € 39 255,03, correspondente ao prejuízo sofrido com o encerramento do estabelecimento comercial sito no local arrendado.
Replicou o A., concluindo pela improcedência da reconvenção.
Prosseguindo o processo e realizada a audiência de discussão e julgamento, com gravação, foi proferida, em 21 de julho de 2016, sentença, que, julgando a ação procedente, declarou resolvido o contrato de arrendamento e condenou também os Réus a pagar ao Autor quantia de € 1 800,00, acrescida da quantia de € 600,00, por cada mês, desde novembro de 2014 até à efetiva entrega do locado, na sequência do despejo decretado, bem como, julgando improcedente a reconvenção, absolveu o Autor do respetivo pedido.
Inconformado, o Réu apelou, para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 20 de abril de 2017, decidiu não conhecer do recurso, por extemporâneo.
De novo inconformado, o Réu recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou essencialmente as conclusões:
a) Verifica-se relevância jurídica fundamental da questão, bem como relevância social, para além da violação ou errada aplicação da lei de processo.
b) A questão prende-se com a violação do princípio da igualdade e da tutela jurisdicional efetiva, princípios constitucionais que configuram a base do Estado de Direito e do acesso à justiça e aos tribunais, razão pela qual não pode deixar de se entender pela admissibilidade do presente recurso.
c) O objeto do recurso interposto fundamenta-se no facto da sentença ter feito incorreta apreciação dos factos e do direito e ter deixado violadas normas jurídicas, designadamente os artigos 428.º e 1031.º, ambos do Código Civil, e a Portaria n.º 215/2011, de 31 de maio, não podendo subsistir na ordem jurídica.
d) Impugnaram-se os factos julgados provados e não provados, porquanto os factos elencados não correspondiam à prova produzida nos autos.
e) O alargamento do prazo considerado no art. 638.º do CPC tem por finalidade a possibilidade das partes analisarem a prova produzida, relacionando-a com a matéria de facto provada e não provada, e, para além disso, adequarem-na à matéria de direito, análise que não se mostra necessária quando apenas se impugna a matéria de direito que fundamenta a sentença proferida.
f) A decisão recorrida, fundamentando-se na não aplicabilidade do alargamento do prazo estabelecido no art. 638.º do CPC, conduz a interpretações injustas e inconstitucionais, encurtando o prazo do recurso, violando a Constituição da República Portuguesa, e mais concretamente o princípio da igualdade (art. 13.º) e o princípio do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º).
Com a revista, o Recorrente pretende a revogação do acórdão recorrido.
O A. não contra-alegou.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
Neste recurso, está essencialmente em discussão o prazo para a interposição do recurso de apelação, havendo reapreciação da prova.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Pela Relação foi dado como provado:
1. A sentença foi notificada ao Réu, na pessoa da mandatária, através de comunicação eletrónica de 25 de julho de 2016.
2. Dessa sentença, o R. interpôs recurso em 8 de outubro de 2016.
2.2. Descrita a dinâmica processual, importa então conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, e que, na essência, respeita ao prazo para recorrer da sentença, tendo o recurso por objeto a reapreciação de prova.
O Recorrente, alegando ter impugnado a decisão relativa à matéria de facto, entende beneficiar do alargamento do prazo de dez dias previsto no art. 638.º, n.º 7, do Código de Processo Civil (CPC).
Por sua vez, o acórdão recorrido decidiu que, pretendendo-se impugnar a decisão sobre a matéria de facto sem ter por objeto a reapreciação da prova gravada, o recorrente não pode beneficiar do alargamento do prazo, por mais dez dias, previsto no n.º 7 do art. 638.º do CPC.
Delineado o thema decidendum, verifica-se que, para a interposição do recurso de apelação, o prazo geral corresponde a 30 dias, nos termos do disposto no art. 638.º, n.º 1, do CPC.
Todavia, “se o recurso tiver por objeto a reapreciação da prova gravada, ao prazo de interposição e de resposta acrescem 10 dias” (art. 638.º, n.º 7, do CPC).
Na verdade, havendo impugnação da decisão sobre a matéria de facto, que tenha por objeto a reapreciação da prova gravada, a lei concede um alargamento do prazo, por mais dez dias, para a interposição do recurso de apelação.
Este benefício no prazo justifica-se, inicialmente, pelo ónus que recaía sobre o recorrente de “proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda” (art. 690.º-A do CPC/1961, introduzido pelo DL n.º 39/95, de 15 de fevereiro) e tem razão de ser, posteriormente, de forma a permitir o cumprimento do ónus de alegação consagrado no art. 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC, para o qual, evidentemente, é indispensável a audição da prova gravada (LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, 2004, págs. 594 e 595, e AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, 2000, pág. 138).
É, portanto, por efeito do ónus de alegação, no âmbito da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, nomeadamente da resultante da reapreciação da prova gravada, que a lei fixa um benefício no prazo, para a interposição do recurso de apelação, favorecimento temporal que, por razões de igualdade, também se estende à resposta da contraparte.
Todavia, para o benefício do prazo, não é suficiente a mera impugnação da decisão relativa à matéria de facto, como parece sugerir o Recorrente, sendo ainda necessário que a impugnação respeite à reapreciação da prova gravada. Efetivamente, tanto pela expressão da lei, ao referir-se especificamente a “prova gravada”, como pela sua razão de ser, que antes se enunciou, é essa a interpretação que se retira do disposto no art. 638.º, n.º 7, do CPC.
Compulsando a alegação da apelação, verifica-se que a impugnação da decisão relativa à matéria de facto não tem por objeto a reapreciação da prova gravada, não obstante esta se tenha realizado, mas apenas a reapreciação da prova documental especificada.
Nestas circunstâncias, não ocorrendo qualquer dificuldade na reapreciação da prova documental, pois é fácil localizar e examinar os documentos especificados, na impugnação da matéria de facto, não se justifica o benefício do alargamento do prazo para a interposição da apelação da sentença.
O tratamento diferenciado, quando o objeto do recurso é a reapreciação da prova gravada, encontra-se justificado, nomeadamente como forma de permitir o cumprimento do exigente ónus de alegação na impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Por outro lado, e ao contrário do que pressupõe a alegação do Recorrente, o alargamento do prazo representa um benefício para o recorrente, que assim dispõe de um alargamento por mais dez dias, não podendo nunca constituir uma limitação intolerável e injusta da tutela jurisdicional efetiva.
Assim, a interpretação feita da norma do art. 638.º, n.º 7, do CPC, não viola qualquer princípio de natureza constitucional, nomeadamente o da igualdade e da tutela jurisdicional efetiva.
Em face do exposto, o prazo, para a interposição do recurso de apelação da sentença, era de trinta dias, por aplicação do disposto no art. 638.º, n.º 1, do CPC.
Não obstante o objeto do recurso contemple a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, não inclui a “reapreciação da prova gravada”, mas apenas a reapreciação da prova documental, situação à qual não é aplicável o alargamento do prazo, por mais dez dias, previsto no art. 638.º, n.º 7, do CPC.
Não se questionando que o Recorrente interpôs o recurso para além do prazo de trinta dias após a notificação da sentença, é o recurso intempestivo e, por esse motivo, não pode o seu objeto ser conhecido, como não foi.
Nestes termos, não relevando as conclusões do recurso, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.
2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:
I. Havendo impugnação da decisão sobre a matéria de facto, que tenha por objeto a reapreciação da prova gravada, a lei concede um alargamento do prazo, por mais dez dias, para a interposição do recurso de apelação.
II. O benefício do alargamento do prazo justifica-se pelo ónus de alegação que recai sobre o recorrente, no âmbito da impugnação da matéria de facto.
III. O benefício não se estende à impugnação da matéria de facto baseada apenas na reapreciação da prova documental.
IV. A interpretação feita do art. 638.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, não viola qualquer princípio de natureza constitucional, nomeadamente o da igualdade e da tutela jurisdicional efetiva.
2.4. O Recorrente, ao ficar vencido por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC, sendo, no entanto, inexigível o pagamento, por efeito do benefício do apoio judiciário.
III – DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
1) Negar a revista.
2) Condenar o Recorrente (Réu) no pagamento das custas, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Lisboa, 9 de novembro de 2017
Olindo Geraldes (Relator)
Maria do Rosário Morgado
José Sousa Lameira