REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
DENEGAÇÃO DE JUSTIÇA
NULIDADE
Sumário


I - O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, além de não destacar os concretos factos imputados à arguida, vale dizer como acusação, igualmente não descreve todos os factos susceptíveis de preencher os elementos típicos dos crimes que pretende assacar à arguida (denegação de justiça), não concretizando os concretos factos integradores da violação de algum dever que impenderia sobre a arguida.

II - O requerimento de abertura de instrução impulsado pelo assistente não cumpre assim os requisitos exigíveis por lei – arts. 287.º, ex vi do art. 283.º, do CPP – para servir como elemento ou vector de partida para abertura de uma fase processual em que o tribunal tem como dever comprovar a existência, ou não, de indícios que o alentem a imputar a alguém uma conduta desvalorativa e antijurídica.

III - Desta desconformidade intrínseca e substancial decorre não poder o tribunal deixar de declarar a nulidade do acto inquinado e declarar a sua nulidade, obstando deste modo à prossecução de um encadeado de actos processuais que conteriam o “pecado original” de não concitarem a validade jurídico-objectiva interna ajustada organização sistémica para que o processo tende. O acto que inere o requerimento para abertura de instrução, por se mostrar contrário às prescrições que regem para a formalização deste tipo de prática processual, deve ser taxado de ilegal e, consequentemente, inadmitido, por ilegalidade.

Texto Integral



I. – RELATÓRIO.

AA, com os sinais de identificação que constam de fls. 2, impulsou procedimento criminal mediante o requerimento constante de fls. 2 a 19, em que resumidamente imputa à denunciada, BB, a sequente factualidade:
a) – A arguida, enquanto titular de um inquérito (nº 6318/13.5TDLSB) – oriundo de uma certidão mandada extrair do inquérito nº 3873/13.3TDLSB, de que a arguida era igualmente titular e o denunciante era arguido, juntamente com a mãe, CC – teve conhecimento, em 30 de Setembro de 2013, por declarações prestadas por uma assistente social, DD, de que o denunciante não tinha estado com a mãe, com o menor, EE, junto ao jardim escola “...”, no dia 5 e 6 de Setembro de 2013;
b) apesar de, por dever das suas funções e da posição que ocupava nos inquéritos referidos em a), saber, pelas declarações prestadas pela assistente social, que nem o denunciante nem a mãe tinham estado com o menor junto ao jardim escola, a arguida, no despacho adjunto à acusação que formulou contra o denunciante e a mãe por, no dia 24 de Outubro de 2013, respectivamente,  4 (quatro) e dois (2) crimes de abuso sexual de criança agravado previstos e punidos pelos artigos 171º, º 1 e 2 e 177º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal, promoveu, indicando, expressamente, a situação referida no item antecedente – encontro do denunciante e da mãe com o menor junto do jardim escola;
c) a arguida, BB, sabia que o facto relatado nos itens antecedentes – encontro do denunciante e da mãe com o menor não tinha ocorrido, por ter sido negado pela assistente social – e ainda assim não se coibiu de os referir com o fundamento para o pedido da aplicação ao arguido da medida coactiva de prisão preventiva.
d) por ter consciência de que estava a faltar à verdade e ainda assim ter promovido a aplicação de uma medida com a gravidade que reveste a prisão preventiva, imputa à arguida a prática em, autoria material, de um crime de denegação de justiça e prevaricação previsto e punido pelo artigo 369º do Código Penal.

Organizado o inquérito, o Ministério Público, junto do Tribunal da Relação de Lisboa, em despacho lavrado a fls. 83 a 87, estimou que (sic): ““Em 17/06/2016, foi autuada como inquérito, nesta PGD, a denúncia apresentada por AA, na qual se queixa contra a Sra Magistrada do MºPº, em funções no DIAP de Lisboa, BB, por omissão deliberada de factos relevantes, para, assim, fundamentar promoção no processo nº 3873/13.3TDLSB, no sentido de determinar a prisão preventiva do queixoso no referido processo, praticando, nesta conformidade, um crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo artº 369º, nº 1, do CP.

Os factos pertinentes:

Em 24/10/2013, foi deduzida acusação contra o ora queixoso e sua mãe, no processo nº 3873/13.3TDLSB, tendo a denunciada, titular do processo, promovido a prisão preventiva do arguido, agora queixoso. Entre outros fundamentos, relata a existência de um encontro, no início de Setembro de 2013, entre os arguidos e o menor EE, ao arrepio de decisão do Tribunal De Família, proferida em Julho de 2013, de afastamento e suspensão de visitas do progenitor e avó do menor EE.

A ocorrência de tal encontro chegou ao conhecimento da denunciada, através da mãe e do médico assistente do menor que fez juntar aos autos um relatório, e que constituem fls. 428/429 e 430/433, daqueles autos.

Perante tal informação, a denunciada, extraiu certidão para procedimento criminal contra o ora queixoso, considerando a possibilidade da existência de crime de desobediência e ordenou a sua distribuição e entrega a si mesma.

Procedeu-se a inquérito, tendo a educadora do menor, ouvida em 30/9/2013, negado conhecimento ou existência de qualquer encontro à porta do infantário, patrocinados por si ou por outrem.

Tal inquérito veio a ser arquivado, em 2/7/2014, por inexistência de facto punível, uma vez que se apurou que a notificação da decisão de afastamento, não veio acompanhada de qualquer cominação, informação prestada, em 17/6/2014, pelo Tribunal de Família de Lisboa e junta ao inquérito, a fls. 93.

Entretanto, em 16/10/2013, o menor prestou declarações para memória futura, no processo nº 3873/13.3TDLSB, já depois de a educadora ter negado, no inquérito, entretanto instaurado, o patrocínio de qualquer encontro, entre o menor e o pai e a avó.

Concluindo o queixoso que a Sra Magistrada do MºPº omitiu, deliberadamente, o depoimento prestado no inquérito pela educadora do menor, em que nega o patrocínio ou conhecimento do tal encontro, impedindo, assim, que a Sra. Juiz tomasse conhecimento de tal facto que, sem dúvida, pesaria em decisões futuras e impediu que o mesmo facto fosse questionado nessas declarações, ferindo a defesa do arguido, designadamente, na hipótese de questionar a veracidade do depoimento do menor.

O que está aqui em causa é apreciar se houve omissão deliberada de informação pertinente, por parte da Sra Magistrada denunciada, com intuito de prejudicar a defesa do queixoso, se essa omissão tem ou teve relevância nesse âmbito, e se a omissão prejudicou efectivamente o arguido, agora queixoso, configurando um eventual crime de denegação de justiça e prevaricação.

Diz o artigo 369º;

- O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias.

- Se o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, o funcionário é punido com pena de prisão até 5 anos.

- Se, no caso do n.º 2, resultar privação da liberdade de uma pessoa, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

- Na pena prevista no número anterior incorre o funcionário que, sendo para tal competente, ordenar ou executar medida privativa da liberdade de forma ilegal, ou omitir ordená-la ou executá-la nos termos da lei.

- No caso referido no número anterior, se o facto for praticado com negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa.

Trata-se de um crime que exige o dolo consciente e necessário, ou seja, actuação deliberada no sentido de agir contra legem ou afrontando a justiça, na sua tradução mais elementar.

Esta exigência da consciência da ilicitude e afronta à Justiça, na sua vertente de protecção do interesse geral, tutelado pelo Estado, não se pode confundir com interpretações erradas da norma ou da circunstância ou até com formas peculiares de agir intra processos.

A jurisprudência do nosso mais alto tribunal tem-se pronunciado abundantemente sobre a matéria, enquadrando-a dentro dos parâmetros supra, de que são exemplos os Acórdãos do STJ que, agora transcrevemos, por suficientemente ilustrativos:

Ac. STJ de 12-07-2012 : “IV. O crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369.º, n.º 1, do CP, encontra-se sistematicamente inserido no âmbito dos crimes contra o Estado, mais especificamente no capítulo dos crimes contra a realização da justiça. O bem jurídico tutelado é a realização da justiça em geral, visando a lei assegurar o domínio ou a supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça, maxime judiciais. Tem por elementos constitutivos a ocorrência de comportamento contra o direito, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, por parte de funcionário, conscientemente assumido, havendo lugar à agravação no caso de o agente agir com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém.

Face à exigência típica decorrente da expressão 'conscientemente', só o dolo directo e o necessário são relevantes, como é jurisprudência uniforme do STJ. O dolo, enquanto vontade de realizar o tipo com conhecimento da ilicitude (consciência), há-de apreender-se através de factos (acções ou omissões) materiais e exteriores, suficientemente reveladores daquela vontade, de onde se possa extrair uma opção consciente de agir desconforme à norma jurídica. Não são meras impressões, juízos de valor conclusivos ou convicções íntimas, não corporizados em factos visíveis ou reais, que podem alicerçar a acusação de que quem decidiu o fez conscientemente contra o direito e, muito menos, com o propósito específico de lesar alguém.

Por outro lado, não é a prática de qualquer acto que infringe regras processuais que se pode, sem mais, reconduzir a um comportamento contra o direito, com o alcance definido no n.º 1 do art. 369.º do CP; é preciso que esse desvio voluntário dos poderes funcionais afronte a administração da justiça, de forma tal que se afirme uma negação de justiça. Não basta, pois, que se tenha decidido mal, incorrectamente, contra legem, sendo necessário que quem assim decidiu tenha consciência de que, desviando-se dos seus deveres funcionais, violou o ordenamento jurídico pondo em causa a administração da justiça.

Ac. STJ de 20-06-2012 : “I. No descortinar da actuação prevaricadora do juiz ou de denegação de justiça deve-se usar de um crivo exigente, até porque, a ser diferente, ou seja, de todas as vezes que o destinatário da decisão dela discorde, seja porque não se aplicou a lei, se seguiu interpretação errónea na sua aplicação, se praticou um acto ou deixou de praticar, os Magistrados Judiciais ou do MP incorressem num crime de prevaricação, estava descoberto o processo expedito de paralisar o desempenho do poder judicial, a bel prazer do interessado, pelos factores inibitórios que criaria aos magistrados, a todo o momento temerosos de sobre eles incidir a espada da lei, paralisando-se a administração da justiça, com gravíssimas, intoleráveis e perigosas consequências individuais e comunitárias, não se dispensando, por isso mesmo, a presença de um grave desvio funcional por parte do Magistrado pondo em causa a imagem da justiça e os interesses de terceiro. II. A actuação contra direito é uma forma de acção gravosa e ostensiva contra as normas de ordem jurídica positiva, independentemente das fontes (estadual ou não estadual) e da natureza pública ou privada, substantiva ou processual, incluindo os princípios vertidos em normas positivas designadamente na DUDH, PIDCP e CEUD.

A actuação contra o direito não abrange apenas a interpretação objectivamente errada, mas também a incorrecta apreciação e subsunção dos factos à norma; a aplicação da norma é contra o direito se, reconhecendo-se uma certa discricionariedade, o aplicador se desvia do fim para que foi criada a discricionariedade, incorrendo, então, na prática do crime.

O crime de denegação e prevaricação é doloso, o tipo subjectivo de ilícito fica preenchido com a actuação com dolo (art. 14.º do CP), como resulta do uso 'conscientemente' no descritivo típico; o tipo agravado do n.º 2 não prescinde de uma especial intenção criminosa, de prejudicar ou beneficiar alguém, na forma de dolo específico.

Nesta conformidade, será que a Sra. Dra. BB promoveu ou não promoveu, conduziu, decidiu ou não decidiu, ou praticou acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, conscientemente contra direito? E será que essa actuação, a existir, o foi com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém?

Pensamos que não!

Primeiro, porque tudo se passou no interior do processo. As declarações da mãe do menor e do médico assistente estão juntas aos autos, a extracção de certidão para procedimento criminal por eventual crime de desobediência está documentada nos autos, a acusação foi deduzida muito antes do arquivamento do inquérito e o facto de a educadora ter negado o encontro entre o pai, a avó e o menor no inquérito não significa que esse encontro não tivesse existido, daí a necessidade de o processo de averiguações prosseguir, como prosseguiu.

Na verdade, quando a Sra. Magistrada participou nas declarações para memória futura e promoveu as medidas de coacção, o inquérito que, entretanto, fora instaurado, encontrava-se numa fase incipiente, não sendo, ainda, relevante, a inquirição da educadora, maxime, a sua negativa.

Segundo, nada foi escondido à Sra. JIC e às partes processuais, pois, como vimos, tudo se encontra documentado no processo. Caberia às partes, neste caso, ao arguido e à Sra. JIC, interpretarem e conduzirem o processo de acordo com as informações de que dispunham.

Assim, sempre a Sra. JIC poderia discordar da promoção ou de algum dos seus fundamentos, designadamente, daquele que se refere ao encontro e desconsiderá-lo; o próprio queixoso, na fase de instrução, sempre poderia trazer à colação tal matéria e não o fez, finalmente, é preciso não esquecer que a decisão pertence sempre a um juiz e que foi um juiz que recebeu a acusação, impôs a medida de coacção e proferiu o despacho instrutório.

Terceiro, nada se apurou, muito pelo contrário, que a Sra Magistrada tenha usado de qualquer expediente, de qualquer construção ou artimanha que resultasse em prejuízo para o queixoso. Tudo está documentado e ninguém foi ou é obrigado a aceitar como boa qualquer promoção do MºPº. Por isso é que o MºPº promove e o Juiz decide.

Sempre poderia o Sr. Juiz negar tal fundamento, justificando com a pendência do inquérito. Não o fez.

Sempre poderia o arguido negar tal fundamento, justificando com a pendência do inquérito. Não o fez.

Concluindo, não basta que a denunciada tivesse conhecimento do depoimento da educadora a negar o seu patrocínio no tal encontro, para que passasse a estar ciente da sua inexistência. Se o tivesse feito, após o despacho de arquivamento, poderia a abordagem da questão ser diferente. Não foi o caso. No momento em que a Sr Dra BB esteve presente nas declarações para memória futura do menor e deduziu a acusação, o facto estava em investigação.

Mas, mesmo que o inquérito estivesse concluído, dependeria dos fundamentos desse arquivamento, a possibilidade de esgrimir com tal argumento. É que é muito diferente arquivar-se porque se provou a inexistência de qualquer encontro e arquivar-se porque se não conseguiu reunir prova bastante ou até porque o facto não é criminalmente punível. Como foi o caso.

Por último e não menos importante é a questão de a Sra Magistrada ter ordenado que o inquérito fosse distribuído a si própria.

Trata-se do cumprimento do regulamento interno do DIAP que pode ser livremente consultado por qualquer pessoa.

Finalmente, dada a natureza do processo e tudo o que foi apurado, não se estranha que a Denunciada tenha acreditado na existência de tal encontro. Estranho seria é que perante tais denúncias e face à matéria que estava em causa, não tivesse acreditado.

E é esta crença que retira, in limine, qualquer intenção criminosa a toda a actuação da Dra BB e, por isso, os autos serão arquivados, nos termos do artº 277º, nº 1, do C.P.P., por inexistência de facto punível.

(Para além dos factos indicados no despacho do Ministério Público, acabado de transcrever, sobra lugar para a indicação de que, conforme consta do despacho que determinou o arquivamento do processo de inquérito nº 6318/13.5TDLSB – cfr. fls. 41 e 42 – o ora denunciante tinha suspensa, por decisão proferida no processo nº 95/12.4TBHRT, o regime de visitas ao menor.)   

Pretendendo impugnar a decisão de arquivamento consignada pelo Ministério Público, o denunciante/assistente, requereu a abertura da instrução para o que aduziu os argumentos/razões de facto/fundamentos que a seguir, por lisura procedimental, se deixam extractados na totalidade (citações de jurisprudência inclusive).
1. O Ministério Público é o titular da ação penal (artigo 1.º da Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto), como tal, tem competência exclusiva para promover o processo penal (artigo 2.º da Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro, lei de autorização legislativa em matéria de processo penal), tendo como restrições à sua atuação, o disposto nos artigos: 49.º a 52.º do Código de Processo Penal, deduzindo acusação e sustentando-a efetivamente na instrução e julgamento, sempre que se verifiquem os pressupostos jurídico-factuais da incriminação e os requisitos de procedibilidade da ação penal.
2. Como tal, o “Ministério Público não dispõe do direito de acusar ou não acusar” [[1]] . Imperiosamente, deve exercer a ação penal mediante critérios de legalidade e não de ocasião, uma vez que o nosso legislador consagra nos artigos 277.º a 282.º do Código de Processo Penal, uma “oportunidade legalmente admissível” [[2]], e não uma oportunidade tout court.
3. “…De entre todas as preocupações de uma sociedade democrática, nenhumas são mais absorventes do que a formulação de critérios de responsabilidade criminal e o controlo dos comportamentos considerados crimes…” [[3]]. A negação de tais valores afecta toda a ideia de justiça e a própria estrutura de defesa dos Direitos Fundamentais. Exemplo disso mesmo era a estrutura processual no advento do Código de Processo Penal de 1929, em que o Ministério Público era uma “figura tendencialmente decorativa” no elenco penal, uma vez que, se formalmente era a este que competia “realizar a investigação fundamentadora da acusação, o corpo do delito” [[4]], assim como proceder à respectiva acusação, na verdade, o Julgador, além de julgar, procedia à acusação. Se formalmente existia um processo do tipo acusatório, a prática judicial invertia-se e transformava-o em inquisitório, com consequências gravíssimas para os Direitos, Liberdades e Garantias.
4. Com o advento do Liberalismo, a ideia de Estado de Direito “surge conexada com dois pressupostos que constituirão a sua verdadeira ratio essendi”. A ideia de legalidade, priori e posteriori, de toda a atividade estadual (elemento formal) e a ideia de realização de justiça (elemento material) (segue-se J.J. Gomes Canotilho) [[5]]. Este conceito passou a alicerçar a liberdade do homem enquanto indivíduo autodeterminado, livre e igual.
5. Mas para efetivar as garantias não é suficiente plasmar na Lei Fundamental um conjunto de princípios de grande riqueza material, com o risco de a prática administrativa e judicial converter o conteúdo constitucional em letra morta.
6. Para assegurar o cumprimento das normas fundamentais, surgiram novos órgãos, e redistribuíram-se as competências de outros já enraizados, de modo a criar um sistema de vigilância entre os vários eixos do poder: executivo, legislativo e judicial. É dentro deste contexto histórico-político que surge o Ministério Público na sua estrutura moderna.
7. Entre nós a magistratura do Ministério Público foi estabelecida em 1822, de modo a publicizar o crime pois, no “primitivo direito português a aplicação das penas nas causas por crimes pessoais, isto é, por crimes que tinham por ofendido um particular, era dependente da vontade do ofendido; pelo que era frequente nos forais e considerada uma garantia da liberdade dos burgueses, a frase: - “não respondam sem haver parte queixosa - sine rancura ou sine rancuroso.” [[6]]
8. A esta ideia de publicização do Direito Penal, e Processual Penal não é alheia a interiorização de que existem bens jurídicos colectivos, isto é, supra-individuas, “ valores por todos reconhecidos como essenciais e mínimos necessários para se viver em sociedade.” [[7]]. É esta concepção de bem jurídico e de valoração do crime, que permite ao legislador definir o que são crimes públicos, semipúblicos e particulares, tendo como padrão os “interesses sociais e individuais em virtude do especial significado ético, social e popular” [[8]].
9. A valoração dos tipos de crime é de tal maneira importante que o legislador constituinte, na atribuição de competências, consagrou como reserva de competência da Assembleia da República, a “...definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal...” (Artigo 165.º, n.º1, alínea b) da Constituição da República Portuguesa), tendo sempre presente, como princípio informador da sua atividade, o Princípio da Subsidiariedade, ou seja, “o direito penal só deve intervir para tutelar determinados bens de agressões humanas, quando essa tutela não puder ser eficazmente garantida através de outros quadros sancionatórios existentes no ordenamento jurídico” [[9]], de modo a garantir o respeito pelos Direitos Fundamentais, uma vez que o Direito Penal, grosso modo, é a negação do bem jurídico mais elementar que é o direito à liberdade.
10. Como norma normata, e não mera norma normarum, uma vez que são “normas diretamente reguladoras de relações jurídico-materiais” (J.J. Gomes Canotilho, obra citada), os direitos, liberdades e garantias, e as normas de conteúdo análogo, “vinculam todos os âmbitos funcionais dos sujeitos públicos, e é independente da forma jurídica através da qual as entidades praticam os seus atos ou desenvolvem as suas atividades” (J.J. Gomes Canotilho, Ibidem) isto é, os órgãos públicos devem ter sempre como padrão da sua atuação a “malha” constitucional dos Direitos, Liberdades e Garantias.
11. Esta vinculação, como é óbvio, abrange também os órgãos judiciais, neste sentido a atuação do Ministério Público e dos órgãos de Polícia criminal, assim como a dos Tribunais deve pautar-se, “pelo dever de aplicação, e de interpretação das normas penais e processuais-penais, em conformidade com os direitos, liberdades e garantias, na medida em que eles constituem sempre «direito aplicável» à causa.” (J.J. Gomes Canotilho, Obra citada).
12. Mais o Ministério Público deve exercer a acção penal orientado pelo princípio da legalidade (art. 219.º da C.R.P.), que segundo o qual, “o MP deverá proceder sempre que se verifiquem os pressupostos jurídico-factuais da incriminação e processuais da ação penal.” (Manuel Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, 1.º Volume, 1981,pag. 37), obedecendo em todas as intervenções a critérios de estrita objectividade, isto é, deve carrear para o processo tudo o que sirva para deduzir a acusação ou para absolver o arguido, pois deve colaborar com o tribunal na descoberta da verdade material.
13. A estrutura do processo penal deve garantir condições de procedibilidade dessas opções, e os órgãos judiciais e judiciários, em última análise, devem assegurar o cumprimento efetivo da lei e das normas constitucionais. Quando existe inversão da estrutura penal estabelecida, ou seja , investiga-se com base numa presunção de culpa, um sem número de direitos fundamentais e processuais-penais vão ficar sem proteção.
14. É com base em todos estes pressupostos e razões evocadas que se deverá enquadrar o princípio da oportunidade que consiste, grosso modo, numa certa margem de discricionariedade concedida ao Ministério Público para que desde logo resolva determinados casos, os arquive ou não lhes dê seguimento (arts. 277º segs. CPP).
15. Concede-se assim ao Ministério Público a faculdade de dispor do processo durante a investigação pois pode desde logo decidi-lo, pelo que o princípio da oportunidade, de certa forma, constitui uma limitação ao princípio da legalidade - arts. 277º e 280º do CPP.
16. Mas, se o legislador concede ao Ministério Público a faculdade de, em certas situações, ao deduzir ou não acusação, não obedecer ao princípio da legalidade no seu sentido mais estrito, então há que verificar a própria “legalidade” da ação efectivada pelo Ministério Público; Ou seja, verificar a sua atuação, isenção, objectividade, de modo a que os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos sejam garantidos.
17. Mas existe um denominador comum para que a linha de atuação do Ministério Público em todos os casos se desenvolva: Deve deduzir na acusação todos os elementos de prova (sejam ou não a favor da acusação) de que teve conhecimento durante o Processo; este é o mais basilar direito fundamental que os investigados têm no processo Penal, de modo a que o processo não seja inquisitório.
18. Ora, nos presentes autos, por análise à prova produzida nos mesmos – documentalmente comprovada-, pelo teor da acusação, pelo teor da promoção da medida de coação, verifica-se que o Ministério Público, através da referida Magistrada, indiciariamente, se afastou da legalidade e da objetividade que deve conduzir toda a sua atuação.
19. Conforme facilmente se comprova pela análise de fls. 481 dos Autos do Processo n.º 3873/13,3TDLSB, o Despacho de Acusação foi elaborado em 24 de Outubro de 2013.
20. Do mesmo, para além da matéria acusatória quanto aos crimes contra a determinação sexual do Menor EE, que os Então Arguidos sempre negaram, resulta do mesmo a promoção das medidas de coação a fls. 480 e 481, sustentadas pelo “episódio” visitas do Pai e Avó ao Menor através da Sra. Dra. DD, nomeadamente a medida de segurança, prisão preventiva, contra o AA e a obrigação de permanência no domicilio de CC.
21. No entanto, hoje seguros estamos que através da análise do Inquérito Autónomo com o n.º 6318/13.5TDLSB que correu seus termos na 2.ª Secção DIAP de Lisboa, com inicio em certidão extraída do referido Processo, que do mesmo se comprovou que a Sra. Dra. DD, foi ouvida naquele processo e no qual negou o episódio relatado. Isto em 30 de Setembro de 2013, ou seja, em data muito anterior, conforme melhor se poderá constatar a fls. 81 dos Autos de Inquérito n.º 6318/13.5TDLSB.
22. Informação que a Sra. Dra. Procuradora nunca prestou no Processo Extraído.
23. Isto quando a própria Sra. Dra. Procuradora promove a medida de coação mais grave, porque privativa da liberdade, com base num episódio, que constatou, poderia não ter ocorrido – como de facto não ocorreu. Mas não cabia à mesma a escolha da prova, como titular da Investigação teria que fazer constar esse facto, pois para além de ser do seu conhecimento pessoal, o mesmo é-lhe dado a conhecer pelas funções que tem como Procuradora da República!
24. Resulta, portanto indiciariamente, que apenas por vontade própria da Sra. Dra. Procuradora, AA, e CC, septuagenária, poderiam ter sido privados da sua liberdade, um através da requerida prisão preventiva a outra através de prisão domiciliária. Apenas a Sra. Dra. Procuradora tinha a informação que os ilibava, não a fazendo refletir nos autos onde se discutia a medida de coação.
25. Aberta a Instrução, requerida a audição da referida Sra. Dra. DD, ainda assim, a Senhora Procuradora, que esteve presente no Debate Instrutório, nada disse, nem tão pouco informou –, uma vez mais, o processo. É obrigação legal da Investigação e ainda mais quando a mesma é efetuada por um Magistrado do Ministério Público que o Processo contenha todas as provas, quer serviam para culpar quer para desculpabilizar. Porque quem faz análise das provas, as julga válidas e faz a valoração são os Tribunais.
26. Este atípico episódio torna-se ainda mais insólito, quando nos detemos na fundamentação que serviu de argumento para a extração para e prosseguimento do Processo Autónomo extraído deste Processo e o seu encerramento, conforme se pode verificar pelo documento junto.
27. A fls. 439 do Processo n.º 3873/13.3TDLSB, refere que o Processo por alegado Crime de Desobediência é para ser, ao que parece, distribuído como  inquérito autónomo, mas a distribuir (para manter a titularidade do processo) código 02.00, o código que enumera a Sra. Procuradora, que foi titular destes Autos durante a Investigação.
28. Posteriormente e da compulsão do Inquérito Autónomo constata-se que efetivamente estes foram remetidos uma vez mais para a Sra. Procuradora através do NUIPC: 6318/13.5TDLSB-0200.
29. Ora, resulta dos Presentes Autos que a certidão extraída tinha em vista apurar a eventual investigação de um crime de desobediência por parte da “...educadora DD..”. Ao que parece também o, agora Assistente, estaria a ser investigado. Nunca teve conhecimento desse facto, nunca teve conhecimento do arquivamento, nunca foi constituído arguido ou prestou qualquer declaração ao processo.
30. Do arquivamento do Processo extraído, resulta da motivação da Sra. Procuradora, ora denunciada, que mesmo a provarem-se os factos os mesmos nunca poderiam integrar o crime de desobediência. A Defesa não entende esta argumentação, contraditória do principio da oportunidade e legalidade que deve guiar a atuação do Ministério Público durante todo o processo.
31. Se nunca serviriam para acusar porque é que a Sra. Dra. Procuradora, abriu novo processo? Olvidando ao processo raiz que a Sra. Dra. DD foi ouvida? E ainda assim promovendo a medida de segurança prisão preventiva, sem dar a conhecer aos Juízes titulares deste processo de tal facto determinante?
32. No entanto as consequências dos referidos factos, não se esgotam “apenas” na gravosa promoção no entender do Denunciante ilícita da medida de coação verificação perpetrada pela Sra. Dra. Procuradora BB.
33. Conforme também se alcança pela leitura dos autos já referidos, a Audição do menor AA, nas declarações de memória futura, ocorreu em 16 de Outubro de 2013.
34. Ou seja, nesse momento já o Ministério Público (desde 30 de Setembro de 2013), através da Sra. Dra. Procuradora, era conhecedor de mais informações – nomeadamente que a Sra. Dra. DD negava a visita do Pai e Avó .
35. Como é facilmente verificável nos referidos autos a Sra. Dra. Juiz de Instrução que presidiu a audição do Menor também não conhecia esses factos. Se o fosse, certamente, questionaria o Menor, tanto mais que o “episódio” haveria ocorrido algures no início de Setembro, poucos dias antes.
36. Pelo que poderia acercar-se das contradições dos relatórios do Sr. Dr. FF e ainda das declarações de GG, ou ainda até (o Assistente não acredita nisso, mas coloca-se a questão no campo das hipóteses) confirmar as mesmas através da audição do Menor; - Foi esta postura que impediu um integral conhecimento os factos e  impede-nos de avaliar verdadeiramente o testemunho do pequeno EE – nomeadamente a potencial (para o Assistente é uma certeza) efabulação do seu testemunho e, ao mesmo tempo, permitir a este Ilustre Tribunal apreciar também a veracidade do Testemunho produzido por GG e do pelo Sr. Dr. FF
37. Por outro lado a matéria recente que é do conhecimento da Sra. Dra. Juiz que presidiu à diligência, se os autos lhe foram remetidos integralmente, foi o facto de que o Pai e Avó visitaram o Menor ao arrepio da decisão judicial que os impedia.
38. Mesmo que a Sra. Dra. Juiz de Direito se tente alienar desse facto recente, o mesmo, que se queira ou não, no ponto de vista de sugestão do interrogador perturba a sua capacidade de se distanciar o suficiente para que as perguntas ao Menor, sejam mais ou menos especificas, mais ou menos direcionadas, tendo em vista a valoração que fez da novidade processual que estava então plasmada nos Autos.
39. Ora a Inquirição do Menor, poderia estar por esta via inquinada, uma vez que a Sra. Dra.  Juiz de Direito procedeu à audição do Menor, não estava em condições de o Inquirir sobre todos os elementos relevantes do Processo, que poderiam até resultar, a final, na Prisão Preventiva do seu Pai e Avó.
40. Ora, muita tinta irá certamente ser escrita acerca deste facto, cuja culpabilidade não é nem poderá ser imputada a AA e CC, mas ao aparente escrutínio de prova perpetrado pela Sra. Dra. Procuradora que era então titular do Processo.
41. Tanto mais que, sabendo que tinha existido relato de uma visita irregular, por parte do Pai e da Avó (o Pai comprovadamente encontrava-se nos ...) – facilmente, como se comprovou em Juízo, através das Companhias Aéreas, atividade bancária, testemunhas locais se comprovou esse facto -  mas também não foi essa linha investigatória que foi seguida, poderia a Sra. Procuradora Inquirir o Menor desse facto antes de promover a medida de coação mais gravosa.
42. Sabendo de antemão a Denunciante que não existe relato de tão insólito episódio nos nossos Tribunais, deixa-se aqui desde já exposto de que a referida diligência – declaração para memória futura - foi, pelo menos, uma inquirição materialmente irregular.
43. Ora, perante todo este enquadramento fático-jurídico, totalmente documentado repita-se, a denúncia e a presente abertura de instrução, não é sustentada por uma valoração pessoal efetuada pelo Queixoso, pensa o mesmo que o despacho de arquivamento efetuado pela Senhora Procuradora Dra. ..., afasta-se da melhor jurisprudência aplicável ao caso e muito mais de todo o enquadramento constitucional aplicável.
44. Pois a estrutura constitucional dos Direitos, Liberdades e Garantias constitucionalmente consagrados, não permite, com o devido respeito, que um mero enquadramento formal se sobreponha à verdade material e à estrito respeito que obedecem todos os sujeitos Judiciários quando abordam situações que coloquem em causa os direitos de defesa, liberdade e de verdade.
45.  Em primeiro lugar afirma-se no despacho de arquivamento que se trata de: “...um crime que exige dolo consciente e necessário, ou seja, actuação deliberada no sentido de agir contra legen ou afrontando a justiça...”.
46. No entanto retira-se desde logo do Despacho de arquivamento que tudo se encontrava documentado no Processo, ora, o Assistente não teve acesso ao Processo, nem tão pouco sabia que existia uma extração para um processo autónomo, de que a Criança poderia ter, alegadamente, referido ao Sr. Dr. FF ou Sra. GG que teria existido uma visita, e que como se provou não existiu, não poderiam necessariamente supor que tivesse existido essa imputação que lhes foi formulada. Só tiveram acesso aos Autos após lhe ter sido deduzida acusação e contra eles lhe ter sido requerida uma medida de coação gravosa, a prisão preventiva.
47.  A Sra. Dra. JIC que participou nas declarações para memória futura não teve necessariamente acesso à informação de que a Sra. Dra. DD havia negado o encontro, pura e simplesmente porque ela nos Autos não constava.
48. Pelo que vir dizer que caberia ao Arguido e à Sra. Dra. JIC que presidiu à inquirição para memória futura, indagar sobre um facto que não constava – negação da Sra. D. DD perante a Sra. Procuradora de que tivesse ocorrido a visita.
49. Aliás adiante-se que compulsados os Autos, denota-se antes que até à data da inquirição para memória futura a visita foi oferecida aos Autos como uma certeza processual.
50. Por outro lado, com o devido respeito, ao contrário do que refere o Despacho de Arquivamento, não cabia à Sra. Procuradora estar ciente ou não da existência do encontro, deveria era ter informado os Autos, com esta informação que atacava os depoimentos do Sr. Dr. FF, da Mãe do Menor e do próprio Menor, para os então Arguidos apresentarem o contraditório e em última instância a Sra. Dra. Juiz de Direito decidir.
51. A Sra. Dra. Procuradora, ora denunciada, tinha o conhecimento de toda a prova, era titular dos dois processos, não delegou a investigação, pelo que não se pode racionalmente alegar que tinha um conhecimento contido cada vez que abordava um dos Processos, o seu conhecimento era uno e unitário, ou seja, o seu mandato para com a Justiça e á Verdade é de dar a conhecer ao Processo onde requereu a Prisão Preventiva do Denunciante, toda a informação pertinente, aquela que alcançou no Processo principal e no conhecimento que teve no Processo extraído. Poderia e deveria ter requerido uma certidão a este último Processo, independentemente do seu desfecho, por ser um facto muitíssimo relevante para se aferir não só da medida de coação, mas também da veracidade de todos os intervenientes do Processo, Assistente, Testemunhas e até dos, então, Arguidos.
52. A esta verdade processual, não é compatível, se no Processo Extraído foi ou não comprovado o encontro, e esta verdade processual não é compatível todo o sofrimento, agustia, que levaram o Queixoso e sua Mãe quase até à loucura.
53. Na verdade, não se pode compelir os Arguidos, como pretende efetuar o despacho de arquivamento ónus da investigação, pois conforme resulta da Lei: “... compete ao Ministério Público, no processo penal, colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objetividade...” [[10]]
54. A estrutura do Processo Penal é acusatória, artigo 32.º, n.º 5 da CRP.
55. A presunção da inocência que preside a todo o Processo Penal, confere ao Arguido o direito de ver autuadas todas as provas, recolhidas na investigação, pois determina a lei que: “...A investigação criminal compreende o conjunto de diligências que, nos termos da lei processual penal, se destinam a averiguar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a sua responsabilidade e descobrir e recolher as provas, no âmbito do processo...”. [[11]]
56. Ou seja, a lei determina a investigação e recolha sem qualquer tipo de raciocínio inquisitório, balizado em todo o seu procedimento pelo principio geral do in dúbio pro reu, informado pelo principio geral que sustenta toda atividade penal Portuguesa, a presunção de inocência.
57. O Assistente merecia, tal como a sua Mãe, que a eles lhes fosse conferido o benefício da presunção de inocência, tanto mais que como se comprovou em Julgamento, o relatado encontro que serviu de base para promoção da medida de coação não ocorreu;
58. Os relatórios do Pedopsiquiatra referentes àquele dia foram sustentados por qualquer coisa, mas não pelo encontro;
59. O mesmo raciocínio se aplica às declarações da Mãe, desconhece-se até à presente data em que se basearam;
60. Em Julgamento do Processo 3873/13.3TDLSB, comprovou-se que nem todas as declarações do pedopsiquiatra correspondiam aos factos deduzidos na acusação, afastando-se aliás muito dos mesmos;
61. Aliás como os relatados pela Mãe do Menor.
62. O Assistente e sua Mãe foram absolvidos sem quaisquer dúvidas.
63. Seguro está hoje o Assistente que contra ele se erigiu perante ele um muro quase intransponível, mas com a verdade do seu lado, o mesmo foi segura e lentamente escalado; a sua imagem pública foi reposta; a da Sra. sua Mãe também;
64. Mas está seguro que o processo poderia por todos estes factos relatados ter tido um desfecho diferente. Se constasse, como deveria constar, nos Autos a negação da Sra. DD ao encontro, esse facto seria certamente inquirido pela Sra. Dra. Juiz que presidiu às declarações para memória futura, perante a resposta do EE (o menor) cedo se exporia a atordoada; e quem sabe não estaria o Pai impedido durante quatro anos sem qualquer contacto com o seu Filho.
65. Ou seja, mais de metade de toda a vida do EE.
66. Como referiu a Sra. Dra. Juiz de Instrução logo no interrogatório de arguido detido, aquando da detenção do Assitente e sua Mãe para lhes ser aplicada uma medida de coação, “...seja verdade o que aos Arguidos é imputado, ou não o sendo, o Menor está em perigo...”.
67. Tinha razão a Sra. Dra. Juiz, acrescentamos nós, hoje o Pai embora com todos os esforços prestados pelo Tribunal de Família e Menores, do Procurador titular daquele processo, ainda não sabe do paradeiro do seu Filho. Considera o Assistente que o menor está efetivamente em perigo!
68. Hoje sabemos claramente que ficção criada – neste caso – cristalizada no “episódio da visita”, que desde logo foi negada pela Sra. Dra. DD, teve o propósito exclusivo de submeter os então Arguidos à medida de coação prisão preventiva.
69. Hoje seguros estamos, que não existe qualquer tipo de linha, jurídica, de discernimento pessoal, processual, argumento fático, senso comum ou académico, que justifique que no Processo principal, aquele que iria determinar a MEDIDA DE COAÇÃO, que a informação pertinente para essa medida restritiva, para análise dos depoimentos, para servir como contraprova; ou como meio de prova, suplementar, para se promover outras provas não tenha sido junta ao Processo.
70. Repita-se, foi no Processo principal que a Sr. Procuradora requereu a medida de coação e não no processo extraído!!!!
71. Pelo que, com o devido respeito que é muito, pelo Ministério Público, e pela Ilustre Sra. Procuradora que despachou arquivando, caberia ao Tribunal que decreta a medida de coação, ainda para mais, a mais gravosa, saber quais as provas aplicáveis, mas para isso precisa de estar munido das mesmas. É isto que resulta da Lei, do espírito do Legislador, da Constituição da República Portuguesa e da “Constituição Viva” – a consciência social que se traduz na opinião de qualquer cidadão Português sobre este tema.
72. Quando a Sra. Procuradora que arquiva o presente Processo refere que: “...dada a natureza do Processo e tudo o que foi apurado, não se estranha que a Denunciada tenha acreditado na existência de tal encontro. Estranho seria é que perante tais denuncias e face à matéria que estava em causa, não tivesse acreditado. E é esta crença que retira, in limine, qualquer intenção criminosa a toda atuação da Dra. BB, e por isso, os autos serão arquivados...”
73. O Assistente não é alheio ao facto de ter que existir uma especial proteção do seu Filho durante o inquérito, é aliás uma tendência humana, a proteção de uma criança, mas será que esse facto é condição desculpante?
74. Ainda para mais quando, está plenamente convencida de que os abusos ocorreram, como se extraí das alegações de Recurso que a própria Sra. Dra. Procuradora, ora denunciada motivou, ao que parece, estava plenamente convencida de que tinham ocorrido os abusos, uma vez que a Mãe do Menor lhe fazia chegar essa informação, denota-se esse facto quando refere nas alegações que: “...é um facto que a mãe do menor não tem permitido, desde de 19 de maio de 2013, que os arguidos contactem com o menor seu filho, uma vez que desde essa data que tem fortes suspeitas (ou até certeza) de que o menor foi alvo de abusos sexuais por parte dos arguidos...”.
75. É de facto difícil o discernimento quando estamos perante um Menor de 4 anos em que a Mãe faz querer, juntamente com informações médicas (que durante o Julgamento se verificaram despidas de qualquer tipo de conteúdo), de que ele foi mesmo abusado. Apesar de existirem desde sempre nos autos informações amplamente contraditórias.
76. Mas esse facto é suficiente para que aos então Arguidos fosse negado o seu direito a uma igualdade processual e de oportunidade na defesa?
77. Desde logo o Despacho de Arquivamento coloca ele próprio, em causa um dos pilares essenciais que conformadores da atuação do Ministério Público, a objetividade, pois não se pode conduzir uma investigação acreditando-se que uma versão é melhor que a outra. Deve-se analisar a prova como um todo e sempre que se verifique o mais pequeno desvio à solidez dos factos alegados é de bom senso, efetuar uma verificação de toda a prova, confrontando-os com os factos, ainda para mais quando, como os presentes puramente controvertidos.
78. Da Legalidade, porque cabe ao Investigador recolher e fazer constar toda a prova.
79. Ainda para mais quando o depoimento da Sra. Dra. DD, não é prova indiciária, ou seja, não resulta dos depoimentos de terceiros acerca das alegadas declarações do Menor; é antes prova direta, verificável através da próprias declarações do Menor, mas também através de outros meios de prova suplementar, ANA aeroportos, extratos bancários, as próprias declarações dos então Arguidos.
80. É pilar sólido da nossa jurisprudência que a para que a prova indireta, circunstancial ou indiciária possa ser tomada em consideração exigem-se alguns requisitos: pluralidade de factos-base ou indícios; que tais indícios estejam acreditados por prova de carácter direto; o que não ocorreu, quando ainda para mais, acredita o Assistente que não competia à Sra. Dra. Magistrada denunciada, escortinar a prova que potencialmente é mais relevante, essa é uma prerrogativa dos Tribunais.
81. Tanto é que na Instrução realizada o Testemunho da Sra. D. DD foi de tal modo credível relativamente ao episódio e por outro lado evidenciador de que a restante prova produzida não era sustentável, que serviu em parte para numa primeira instância motivar o arquivamento dos autos por não pronúncia dos então Arguidos.
82. Como sempre ensinou a Sra. Doutora Teresa Pizarro Beleza: “...o Ministério Público tem obrigatoriamente que velar, isto é-lhe imposto pela Constituição e pelo Código do Processo Penal, que velar não só pelo cumprimento da legalidade democrática, mas em casos concretos de processos crime que estejam perante o Tribunal, ele é obrigado a pôr, digamos assim, o mesmo empenho na descoberta da culpa, ou da inocência do Arguido...” [[12]]
83, “...um Ministério Público eficaz, competente e célere é um elemento estruturante do poder judicial e do próprio sistema democrático...” [[13]]
84.  Em sentido semelhante, “...A autonomia do Ministério Público não se pode tornar num “poder autárcico anticonstitucional”, nem reconduzir-se a “uma forma de exílio institucional”, devendo todas as intervenções do Ministério Público obedecer a critérios de estrita legalidade e objetividade. Por outro lado, as funções do Ministério Público em toda a matéria criminal, a que ora nos reportamos, deverão ser exercidas com rigor, consistência e lealdade, do mesmo passo que a autonomia do Ministério Público “será tanto mais perfeita e mais plena quanto mais extenso e transparente for o seu dever de prestar contas à comunidade...” [[14]]
85. “...Como certeiramente sublinha Dá Mesquita, o Código de Processo Penal de 1987 consagrou, enquanto corolário da estrutura acusatória, o inquérito como fase processual teleologicamente vinculada a uma decisão sobre o exercício da acção penal, opção que implica a responsabilização do Ministério Público por um processo que se destina a uma decisão própria e não à instrução com vista a uma decisão judicial. Ou seja, ao Código está subjacente a perspectiva de que, na acusatoriedade material, o inquérito como complexo de actos deve ter apenas a função endoprocessual de determinar a decisão do Ministério Público sobre a decisão processual...” [[15]]
86. Isto é, o Inquérito em si “...não é uma fase pré-processual ou preparatória da abertura do processo penal, mas uma fase própria do processo, normativamente regulada nos seus momentos essenciais, nos termos, actos, ritos e formas...” [[16]]
87. No âmbito do processo penal, no qual se encontra como vimos o inquérito, cada entidade cumpre uma função específica e estabelecida por lei; à Juiz de Instrução no âmbito do Inquérito, cabiam-lhe praticar os atos constante no artigo 268.º, n.º 1 do CPP e dirigir a instrução nos termos do artigo 32.º, n.º 4 da CRP.
88. Ao Ministério Público cabe recolher prova, dirigir o inquérito e sempre que se verificarem os pressupostos que potencialmente indiquem que possa existir responsabilidade criminal, acusar e sustentar acusação em julgamento, ainda assim, mesmo que no decurso do julgamento constate que se verificaram prova contrária pode e deve requerer que o processo seja arquivado por absolvição, prescrição ou por outra qualquer irregularidade, traduzindo-se a sua atuação num mandato legal sustentado pela sua importância popular e democrática, obedecendo a sua atuação a critérios de natureza material e não meramente procedimental, pois exige-se a mesma conformidade na atuação nos processos em que chama a si a investigação ou delega nos órgãos de polícia criminal.
89. Ora, em face do sobredito, resta apenas verificar se existem ou não indícios suficientes para que com base na prova indiciária seja ou não levada a julgamento a Denunciada pela prática do crime público de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369.º, n.º 1, do CP.
90. Tal como enquadrado na Jurisprudência dos Tribunais Superiores, neste sentido destaca-se, entre outros da nossa jurisprudência, os seguintes Acórdãos:
91. Supremo Tribunal de Justiça; 4/11.8TRLSB.S1; 12-07-2012: “...O crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369.º, n.º 1, do CP, encontra-se sistematicamente inserido no âmbito dos crimes contra o Estado, mais especificamente no capítulo dos crimes contra a realização da justiça. O bem jurídico tutelado é a realização da justiça em geral, visando a lei assegurar o domínio ou a supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça, maxime judiciais. Tem por elementos constitutivos a ocorrência de comportamento contra o direito, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar, por parte de funcionário, conscientemente assumido, havendo lugar à agravação no caso de o agente agir com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém...”
92. “...Por outro lado, não é a prática de qualquer ato que infringe regras processuais que se pode, sem mais, reconduzir a um comportamento contra o direito, com o alcance definido no n.º 1 do art. 369.º do CP; é preciso que esse desvio voluntário dos poderes funcionais afronte a administração da justiça, de forma tal que se afirme uma negação de justiça. Não basta, pois, que se tenha decidido mal, incorretamente, contra legem, sendo necessário que quem assim decidiu tenha consciência de que, desviando-se dos seus deveres funcionais, violou o ordenamento jurídico pondo em causa a administração da justiça...”
93. Supremo Tribunal de Justiça; 07P3230; 21-05-2008: “...O bem jurídico objecto imediato de tutela no crime de denegação de justiça é a recta administração da justiça, a defesa dos direitos dos cidadãos e a garantia da pessoa humana, sendo titular imediato de tais interesses o Estado...”.
94. “...Este ilícito pressupõe uma especial qualidade do agente e a violação de poderes funcionais inerentes ao cargo desempenhado, configurando um crime específico, que mais não é do que um comportamento, activo ou omissivo, de funcionário contra direito. Agir contra direito significa, essencialmente, a contradição da decisão (aqui incluindo, claro está, o comportamento passivo) com o prescrito pelas normas jurídicas pertinentes...”.
95. “ O n.º 1 do art. 369.º do CP satisfaz-se com o dolo genérico, o qual terá de revestir a modalidade de dolo direto, desinteressando-se aqui a lei dos fins ou motivos do agente. É certo que quando a lei exige o cometimento doloso para a verificação do tipo subjetivo significa que quer abranger desde a sua forma mais intensa até à sua modalidade mais fraca. Todavia, através de formulação típica – exigindo uma particular forma de conhecimento ou de vontade do agente –, o legislador pode restringir a sua esfera de aplicação. Esse desiderato é conseguido com a introdução de expressões como conscientemente ou intencio-nalmente, pelas quais se cinge o agir doloso apenas ao dolo direto.”
96. “Assim, o crime de denegação de justiça demanda para o seu preenchimento um desvio voluntário e intencional dos deveres funcionais, de forma a poder afirmar-se uma “negação da justiça”.”
97. Tribunal da Relação do Porto; 832/09.4PAVCD.P1; 14-03-2012: “No crime de denegação de justiça e prevaricação, do art. 369.º do CP, o sujeito ativo [funcionário] terá de atuar no exercício dos deveres do cargo no âmbito de inquérito criminal ou de processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar, na fase judicial.”
98. Supremo Tribunal de Justiça; 36/10.3TREVR.S1; 20-06-2012: “A atuação contra direito é uma forma de ação gravosa e ostensiva contra as normas de ordem jurídica positiva, independentemente das fontes (estadual ou não estadual) e da natureza pública ou privada, substantiva ou processual, incluindo os princípios vertidos em normas positivas designadamente na DUDH, PIDCP e CEUD.”
99. “A atuação contra o direito não abrange apenas a interpretação objectivamente errada, mas também a incorreta apreciação e subsunção dos factos à norma; a aplicação da norma é contra o direito se, reconhecendo-se uma certa discricionariedade, o aplicador se desvia do fim para que foi criada a discricionariedade, incorrendo, então, na prática do crime.”
100. Tribunal da Relação de Évora; 957/08.3TASTR.E1; 24-06-2010: “O núcleo essencial consiste, justamente, na atuação (incluindo aqui também, o próprio comportamento omissivo) do funcionário contra direito (…) enquadra-se no amplo sector dos crimes de funcionários (…) em que o factor de união reside na violação dos deveres funcionais decorrentes do cargo desempenhado (Medina de Seiça, in “Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial”, dirigido por Figueiredo Dias, Coimbra, 2001, tomo III, a pág.606).”
101. “Trata-se, pois, inequivocamente, de um crime específico puro, no qual o bem jurídico protegido é a realização da justiça e, ainda conforme Medina de Seiça, ob. cit., a pá. 609, mais concretamente, este tipo de crime pretende assegurar o domínio ou supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça.”
102. “Assume distintas modalidades da ação (ou omissão), que reconduzem-se a um elemento típico comum, que se apresenta, deste modo, como o nódulo problemático fundamental de todo o dispositivo. Referimo-nos, naturalmente, ao inciso contra direito (ob. cit,, a pág.610).”
103. “A conduta será “contra direito” se, objetivamente, contradiz com o prescrito pelas normas jurídicas pertinentes e, também, com a aplicação imparcial e justa do direito.”
104. Acrescendo que, para se aquilatar a ação da Denunciada, a mesma tem que ser objetivada com recurso às normas de direito que protegem o núcleo dos direitos liberdades de garantias.
Considerando que:
105. Conforme resulta do Artigo 286.º do CPP a instrução tem como fim a comprovação judicial de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito com vista a submeter ou não os factos a julgamento.
106. “...para ser proferido despacho de pronúncia embora não seja preciso uma certeza da infracção é necessário que os factos indiciários sejam suficientes e bastantes, para que logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo da culpa do arguido...”.
107. “...Para a pronuncia, como para a Acusação a Lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais da ocorrência de um crime, de onde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que cometido o crime pelo arguido. Esta possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa...” [[17]]
108. Considera o Assistente de que existem sérios e suficientes argumentos probatórios nos Autos, como já se fez a devida referência, para que V. Exa. decida pela Pronúncia da Sra. Dra. Procuradora, ora denunciada.
109. Pois desde logo, resulta claro dos Autos que da conjugação dos meios de prova recolhidos e referidos no douto Arquivamento, a única prova efetuada no âmbito do Inquérito, para além da prova documental oferecida pelo Assistente, foi a inquirição da Sra. Procuradora denunciada.
110. Das declarações da mesma não se evidência qualquer tipo de sustentação fática ou de direito que contrarie a Queixa que lhe foi formulada.
111. Existe uma probabilidade, indiciária, mais positiva do que negativa de que se encontra suficientemente indiciada a factualidade descrita na queixa-crime e nas presentes motivações que presidem à elaboração deste requerimento de abertura de instrução.
112. Qualquer outro entendimento funcionaria como uma verdadeira espada de Dâmocles que só poderá redundar em situações perversas na investigação que é do domínio exclusivo do Ministério Público. E felizmente longe vão os tempos, como já se referiu, em que tal acontecia por decorrência do, felizmente ultrapassado, processo inquisitório, que se afasta em muito do Princípio do Estado de Direito Democrático, aquele que felizmente sobrevive no nosso Portugal.
Requer-se (…) a designação de data para a efectivação do debate instrutório e que após a produção da prova requerida e da discussão deste tema e de outros que, eventualmente, considere pertinentes, a decisão se salde pela pronúncia”
Em despacho prolatado em 12 de Junho de 2017 – cfr. fls. 132 a 147 – o Exmo. Senhor Juiz Desembargador, em funções de Juiz de Instrução, estimou que o requerimento para abertura de instrução não continha elementos de facto que permitissem catalogar o pedido como peça processual idónea, apta, capaz e hábil a iniciar a fase processual requestada pelo assistente.
Para total dilucidação queda transcrita a motivação/fundamentação que determinou o juízo de não aceitação do pedido requestado pelo assistente.
Preceitua o artigo 286.º, n.º 1, do Cód. Processo Penal, que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, cabendo ao juiz indeferir os actos requeridos que não interessem àquela (artigo 291.º, n.º 1, do Cód. Processo Penal).

A abertura de instrução pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação, como dispõe o artigo 287.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal.

Por seu turno, como se extrai do disposto no artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do Cód. Processo Penal, o objeto do processo pode voltar a fixar-se na instrução – todavia, sempre contido dentro do objeto inicial, garantido o exercício cabal dos direitos de defesa do arguido.
Reagindo contra o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público, o requerimento de abertura de instrução do assistente deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação – bem como a indicação dos actos de instrução que ele pretenda que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar – e observar o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º quanto à acusação pelo Ministério Público, como impõe o disposto no artigo 287.º, n.º 2, todas normas do Código de Processo Penal.
Com efeito, o requerimento de abertura de instrução deva conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como as indicações das disposições legais aplicáveis (cf. artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), por remissão expressa do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).

Assim ocorre porque o requerimento de abertura de instrução do assistente, no caso de arquivamento do processo pelo Ministério Público, é o que define e limita o respetivo objeto do processo.

Nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, pág. 769-770), em anotação ao artigo 303.º do Cód. Processo Penal, «O “objecto do processo”, na instrução requerida pelo arguido é fixado pelos factos constantes da acusação do MP ou do assistente. O “objecto do processo” na instrução requerida pelo assistente é fixado pelos factos constantes do requerimento de abertura de instrução, apresentado pelo MP se ter abstido de acusar.» [destacados nossos].

De igual forma, a jurisprudência tem-se pronunciado no sentido de o objecto da instrução ser rigorosamente fixado pelo requerimento de abertura de instrução, não podendo ser considerados quaisquer outros factos para efeitos do juízo de indiciação – neste sentido, vide o aresto desta Relação de Lisboa, de 27/05/2010 (processo n.º 1948/07.7PBAMD-A.L1-9), que decidiu «I – O requerimento para abertura da instrução equivalerá em tudo a uma acusação, condicionando e limitando, nos mesmos termos que a acusação formal, seja pública, seja particular, a actividade de investigação do juiz e a própria decisão final, instrutória. É que, tal como acontece na acusação, também, no caso, o requerimento de abertura da instrução tem em vista delimitar o thema probandum da actividade desta fase processual. (…) III – O objecto da instrução tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa e essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis, dito de uma forma simplista, os factos narrados como integrantes da conduta ilícita do agente têm de “caber” nos elementos objectivos e nos elementos subjectivos do tipo legal em causa (do respectivo preceito legal).».
Ou seja, pois não é demais sublinhá-lo, os poderes de cognição e de pronunciamento do juiz de instrução criminal estão limitados pelo objeto do processo previamente delimitado na acusação ou no requerimento de abertura de instrução.
É que, em virtude do princípio da vinculação temática, a partir da abertura de instrução só é possível alterar ou ampliar o objeto processual através do instituto da alteração dos factos, segundo o qual, em sede de instrução, apenas é admitida a alteração não substancial dos factos enunciados no requerimento de abertura de instrução, estando completamente afastada a possibilidade duma alteração substancial desses factos (cf. artigo 303.º do Código de Processo Penal).
Por essa razão, o artigo 309.º, n.º 1 do Código de Processo Penal estabeleça que a é nula a decisão instrutória que pronunciar o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou do requerimento para abertura de instrução.
Em suma, o juiz de instrução criminal ao emitir decisão de pronúncia está limitado pelos factos que constam da acusação ou, em caso de arquivamento, que constam do requerimento de abertura de instrução do assistente, por este considerar que deveriam ter constando da acusação do Ministério Público.
Assim o impõe a estrutura acusatória do processo penal, que é consagrada no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
Daí que, tudo conjugado, o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente tenha que constituir uma verdadeira acusação em sentido material, sob pena de nulidade (neste sentido, veja-se o acórdão do STJ, de 25/10/2006, disponível em www.dgsi.pt)
Com efeito, e como bem refere Germano Marques da Silva (in Do processo Preliminar, pág. 264), o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui substancialmente uma acusação alternativa (ao arquivamento ou à acusação deduzida pelo Ministério Público) que, dada a divergência com a posição assumida pelo Ministério Público, irá ser necessariamente sujeito a comprovação judicial.
Doutra forma a instrução seria absolutamente inexequível, porquanto o juiz de instrução criminal não saberia que factos concretamente imputar ao arguido na pronúncia (neste sentido veja-se Souto Moura, in Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina p. 120, e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 19.02.1997, BMJ, 472, p. 585).
De resto, a instrução é uma instância de controlo e não uma instância de investigação, sendo vedado ao juiz de instrução criminal – enquanto juiz erigido como o garante dos direitos e liberdades num processo penal de estrutura acusatória – dirigir qualquer investigação, coligindo factos e qualificando-os juridicamente de forma a imputar a alguém a prática de crimes.

Querendo reagir contra o entendimento do dominus do inquérito, o meio processual adequado seria o pedido de intervenção hierárquica. A instrução não serve o propósito da realização de diligências que permitam a continuação da investigação.

A atividade probatória admitida nesta fase, facultativa, há-de cingir-se à que possa adiantar ao juízo de indiciação de uma tese concreta avançada pelo requerente.

Nesta senda, o entendimento acolhido pela jurisprudência é o de que, nos casos em que não estejam descritos no requerimento de abertura de instrução os factos que possam subsumir-se a um tipo legal de ilícito, não é viável o convite ao aperfeiçoamento (Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2005, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 12/05/2005, e, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 13/04/2010 [processo n.º671/08.0PBVFX.E1] e os do Tribunal da Relação de Lisboa, de 31/01/2008 [processo n.º 10280/07-9], 30/05/2006 [processo n.º 1111/2006-5] e 27/05/2010 [processo n.º 1948/07.7PB AMD-A.L1-9].
Daí que a referida nulidade do requerimento de abertura de instrução é de conhecimento oficioso e insanável, conforme decidiu o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão para fixação de jurisprudência n.º 7/2005, publicado no Diário da República, I Série-A, de 4 de Novembro de 2005.

No caso dos autos, o assistente não cumpre aquele imperativo, limitando-se a apresentar as suas discordâncias com o despacho de arquivamento e, em seguida, a apresentar, a par de uma teia confusa e dispersa de factos, mesclada com conclusões e juízos de valor de forma totalmente genérica.

Com efeito, atento o teor do requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, fácil será constatar que este não comporta uma verdadeira acusação em sentido material, sendo um enorme emaranhado de considerações do ilustre mandatário do assistente, por um lado, jurídicas, com referência à lei fundamental (a Constituição da República Portuguesa) e às leis penais e processuais penais, a par de considerações sobre o despacho de arquivamento (vd. pontos 1 a 3, 5,6, 8 a 17, 42 a 46, 48 a 50 e 53), doutrinárias (vd. pontos 2 a 4, 7 a 12, 82 a 86, 90 a 103, 106 e 107) e jurisprudenciais (vd. pontos 80 e 90), e, por outro lado, meros juízos de valor ou de questões que vai interrogativamente colocando (vd. pontos 18, 25, 2ª parte, 26, 30, 2ª parte, 3, 32, 38 a 43, 52, 57, 63,a 65, 69, 71, 2ª parte, 72, 74 a 79, 81, 87 a 89, 104, 105 e 108 a 112), sendo muito difícil, no meio de tal texto, com o devido respeito e salvo melhor opinião, retirar os pertinentes factos. A própria identificação da arguida, que é de menção obrigatória, custa ao assistente fazê-la, mencionando tão só “a referida Magistrada”, sem indicar quem seja e sem nunca anteriormente o ter feito (vd. ponto 18), ou a “Sra. Dra. Magistrada denunciada” ou “a Sra. Dra. Procuradora, ora denunciada”, sem indicar quem seja (vd. ponto 80 e 30), ou ainda “a Sra. Dra. Procuradora” (vd. pontos 22 a 25, 27, 28, 31, 34, 41, 50, 70 a 72 e 74), apenas referindo o nome daquela uma única vez no ponto 32 (“pela Sra. Dra. Procuradora BB.”).

Com algo esforço e muito boa vontade, num trabalho como quase “de quem anda à pesca à linha em grande mar” – tarefa que, de resto, como dissemos, não nos cabe, mas que, ainda assim, para melhor elucidação da nossa argumentação, empreendemos – encontramos nele (no requerimento de abertura de instrução), a pontos 19 a 25, 1ª parte, 27 a 29, 30, 1ª parte, 33 a 37, 39, 41, 47, 51, 57, 2ª parte, 58 a 62, 66, 68, 70 e 71, 1ª parte, a seguinte materialidade fática:

“19. Conforme facilmente se comprova pela análise de fls. 481 dos Autos do Processo n.º 3873/13,3TDLSB, o Despacho de Acusação foi elaborado em 24 de Outubro de 2013.

20. Do mesmo, para além da matéria acusatória quanto aos crimes contra a determinação sexual do Menor EE, que os Então Arguidos sempre negaram, resulta do mesmo a promoção das medidas de coação a fls. 480 e 481, sustentadas pelo "episódio" visitas do Pai e Avó ao Menor através da Sra. Dra. DD, nomeadamente a medida de segurança, prisão preventiva, contra o AA e a obrigação de permanência no domicilio de CC.

21. No entanto, hoje seguros estamos que através da análise do Inquérito Autónomo com o n.º 6318/13.5TDLSB que correu seus termos na 2.ª Secção DIAP de Lisboa, com inicio em certidão extraída do referido Processo, que do mesmo se comprovou que a Sra. Dra. DD, foi ouvida naquele processo e no qual negou o episódio relatado. Isto em 30 de Setembro de 2013, ou seja, em data muito anterior, conforme melhor se poderá constatar a fls. 81 dos Autos de Inquérito n.º 6318/13.5TDLSB.

22. Informação que a Sra. Dra. Procuradora nunca prestou no Processo Extraído.

23. Isto quando a própria Sra. Dra. Procuradora promove a medida de coação mais grave, porque privativa da liberdade, com base num episódio, que constatou, poderia não ter ocorrido - como de facto não ocorreu. Mas não cabia à mesma a escolha da prova, como titular da Investigação teria que fazer constar esse facto, pois para além de ser do seu conhecimento pessoal, o mesmo é-lhe dado a conhecer pelas funções que tem como Procuradora da República!

24. Resulta, portanto indiciariamente, que apenas por vontade própria da Sra. Dra. Procuradora, AA, e CC, septuagenária, poderiam ter sido privados da sua liberdade, um através da requerida prisão preventiva a outra através de prisão domiciliária. Apenas a Sra. Dra. Procuradora tinha a informação que os ilibava, não a fazendo refletir nos autos onde se discutia a medida de coação.

25. (1ª parte) Aberta a Instrução, requerida a audição da referida Sra. Dra. DD, ainda assim, a Senhora Procuradora, que esteve presente no Debate Instrutório, nada disse, nem tão pouco informou -, uma vez mais, o processo.

27. A fls. 439 do Processo n.º 3873/13.3TDLSB, refere que o Processo por alegado Crime de Desobediência é para ser, ao que parece, distribuído como inquérito autónomo, mas a distribuir (para manter a titularidade do processo) código 02.00, o código que enumera a Sra. Procuradora, que foi titular destes Autos durante a Investigação.

28. Posteriormente e da compulsão do Inquérito Autónomo constata-se que efetivamente estes foram remetidos uma vez mais para a Sra. Procuradora através do NUIPC: 6318/13.5TDLSB-0200.

29. Ora, resulta dos Presentes Autos que a certidão extraída tinha em vista apurar a eventual investigação de um crime de desobediência por parte da " ... educadora DD ... ". Ao que parece também o, agora Assistente, estaria a ser investigado. Nunca teve conhecimento desse facto, nunca teve conhecimento do arquivamento, nunca foi constituído arguido ou prestou qualquer declaração ao processo.

30. (1ª parte) Do arquivamento do Processo extraído, resulta da motivação da Sra. Procuradora, ora denunciada, que mesmo a provarem-se os factos os mesmos nunca poderiam integrar o crime de desobediência.

33. Conforme também se alcança pela leitura dos autos já referidos, a Audição do menor EE, nas declarações de memória futura, ocorreu em 16 de Outubro de 2013.

34. Ou seja, nesse momento já o Ministério Público (desde 30 de Setembro de 2013), através da Sra. Dra. Procuradora, era conhecedor de mais informações - nomeadamente que a Sra. Dra. DD negava a visita do Pai e Avó.

35. Como é facilmente verificável nos referidos autos a Sra. Dra. Juiz de Instrução que presidiu a audição do Menor também não conhecia esses factos. Se o fosse, certamente, questionaria o Menor, tanto mais que o "episódio" haveria ocorrido algures no início de Setembro, poucos dias antes.

36. Pelo que poderia acercar-se das contradições dos relatórios do Sr. Dr. FF e ainda das declarações de GG, ou ainda até (o Assistente não acredita nisso, mas coloca-se a questão no campo das hipóteses) confirmar as mesmas através da audição do Menor; - O Esta postura que impediu um integral conhecimento dos factos e nos impede-nos de avaliar verdadeiramente o testemunho do pequeno David - nomeadamente a potencial (para o Assistente é uma certeza) efabulação do seu testemunho e, ao mesmo tempo, permitir a este Ilustre Tribunal apreciar também a veracidade do Testemunho produzido por GG e do pelo Sr. Dr. FF

37.Por outro lado a matéria recente que é do conhecimento da Sra. Dra. Juiz que presidiu à diligência, se os autos lhe foram remetidos integralmente, foi o facto de que o Pai e Avó visitaram o Menor ao arrepio da decisão judicial que os impedia.

39. Ora a Inquirição do Menor, poderia estar por esta via inquinada, uma vez que a Sra. Dra. Juiz de Direito procedeu à audição do Menor, não estava em condições de o Inquirir sobre todos os elementos relevantes do Processo, que poderiam até resultar, a final, na Prisão Preventiva do seu Pai e Avó.

41. Tanto mais que, sabendo que tinha existido relato de uma visita irregular, por parte do Pai e da Avó (o Pai comprovadamente encontrava-se nos ...) - facilmente, como se comprovou em juízo, através das Companhias Aéreas, atividade bancária, testemunhas locais se comprovou esse facto - mas também não foi essa linha investigatória que foi seguida, poderia a Sra. Procuradora Inquirir o Menor desse facto antes de promover a medida de coação mais gravosa.

47. A Sra. Dra. JIC que participou nas declarações para memória futura não teve necessariamente acesso à informação de que a Sra. Dra. DD havia negado o encontro, pura e simplesmente porque ela nos Autos não constava.

51. A Sra. Dra. Procuradora, ora denunciada, tinha o conhecimento de toda a prova, era titular dos dois processos, não delegou a investigação, pelo que não se pode racionalmente alegar que tinha um conhecimento contido cada vez que abordava um dos Processos, o seu conhecimento era uno e unitário, ou seja, o seu mandato para com a Justiça e á Verdade é de dar a conhecer ao Processo onde requereu a Prisão Preventiva do Denunciante, toda a informação pertinente, aquela que alcançou no Processo principal e no conhecimento que teve no Processo extraído. Poderia e deveria ter requerido uma certidão a este último Processo, independentemente do seu desfecho, por ser um facto muitíssimo relevante para se aferir não só da medida de coação, mas também da veracidade de todos os intervenientes do Processo, Assistente, Testemunhas e até dos, então, Arguidos.

57. (2ª parte) como se comprovou em Julgamento, o relatado encontro que serviu de base para promoção da medida de coação não ocorreu;

58. Os relatórios do Pedopsiquiatra referentes àquele dia foram sustentados por qualquer coisa, mas não pelo encontro;

59. O mesmo raciocínio se aplica às declarações da Mãe, desconhece-se até à presente data em que se basearam;

60. Em Julgamento do Processo 3873j13.3TDLSB, comprovou-se que nem todas as declarações do pedopsiquiatra correspondiam aos factos deduzidos na acusação, afastando-se aliás muito dos mesmos;

61. Aliás como os relatados pela Mãe do Menor.

62. O Assistente e sua Mãe foram absolvidos sem quaisquer dúvidas.

66. Como referiu a Sra. Dra. Juiz de Instrução logo no interrogatório de arguido detido, aquando da detenção do Assitente e sua Mãe para lhes ser aplicada uma medida de coação, " ... seja verdade o que aos Arguidos é imputado, ou não o sendo, o Menor está em perigo ... ".

68. Hoje sabemos claramente que ficção criada - neste caso - cristalizada no "episódio da visita", que desde logo foi negada pela Sra. Dra. DD, teve o propósito exclusivo de submeter os então Arguidos à medida de coação prisão preventiva.

70. Repita-se, foi no Processo principal que a Sr. Procuradora requereu a medida de coação e não no processo extraído!!!!”.

Em face destes, afigura-se-nos estarmos perante um requerimento que não contém a narração de factos que, provados, pudessem subsumir-se aos elementos objetivos e subjetivos dum tipo de ilícito criminal, nomeadamente do alegado crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369.º, n.º 1, do Código Penal praticado pela Senhora Magistrada do Ministério Público, em funções no Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, Drª. ..., por omissão deliberada de factos relevantes, para, assim, fundamentar promoção no processo n.º 3873/13.3TDLSB, no sentido de determinar a prisão preventiva, no referido processo, do ali arguido e ora queixoso/ assistente AA. 

Mas mesmo que se considerasse que tal confusa factualidade conteria porventura todos os elementos objetivos do imputado crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369.º, n.º 1, do Código Penal, ainda assim, é manifesto faltarem naquela os elementos subjetivos integradores de tal ilícito penal, sendo que como foi decidido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 (publicado no Diário da República n.º 18/2015, Série I de 2015-01-27): “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.”.

Na verdade, como douta e igualmente refere a Exma. Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação, naquela sua promoção de fls. 125, com que inteiramente concordamos:

“Compulsado o requerimento, para além da deficiente articulação do pedido e, consequentemente do thema decidendum, omite-se a enunciação dos elementos subjectivos do crime, necessários como fixado no Acórdão de Fixação de Jurisprudência 1/2015, a completar o acervo factual da acusação. Nesta conformidade, p. que seja, pura e simplesmente, rejeitado, por inadmissibilidade legal.”.
Em suma, por todo o exposto, verificamos estar em presença de um requerimento que não contém a narração de factos que, provados, pudessem subsumir-se aos elementos objetivos e subjetivos dum tipo de ilícito criminal, pelo que declaro verificada a inadmissibilidade legal da instrução, rejeitando o requerimento apresentado nos autos pelo assistente em 28 de março de 2017 e nele constante de fls. 94 a 120 (artigos 286.º, n.º 1 e 287.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal).”
Desalinhado com o decidido, recorre o assistente, para o que convoca e dessume o sequente epitome conclusivo (sic):     
I) O presente recurso vem interposto da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa indeferir do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Recorrente, com fundamento na inadmissibilidade legal da abertura desta fase processual;
II) Porquanto, entendeu o Mm.º Juiz de Instrução que o RAI apresentado pelo Recorrente, “não contém a narração de factos que, provados, pudessem subsumir-se aos elementos objectivos e subjectivos dum tipo de ilícito criminal, nomeadamente do alegado crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art.º 369.º, n.º 1, do Código Penal praticado pela Senhora Magistrada do Ministério Público, em funções no Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, Dr.ª BB, por omissão deliberada de factos relevantes, para assim fundamentar promoção no processo n.º 3873/13.3TDLSB, no sentido de determinar a prisão preventiva, no referido processo, do ali arguido e ora queixoso/assistente AA” e que “mesmo que se considerasse que tal confusa factualidade conteria porventura todos os elementos objetivos do imputado crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art.º 369.º, n.º 1, do Código Penal, ainda assim, é manifesto faltarem naquela os elementos subjetivos integradores de tal ilícito penal”
III) Salvo o devido respeito, entende o Recorrente que respeitou o preceituado nos artigos 287.º e 283.º, n.º 3, alienas a) e b) do Código de Processo Penal, e o seu RAI deveria ter sido admitido, porquanto;
IV) O requerimento de abertura de instrução apresentado, contém:

- a súmula das razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação da Sra. Procuradora BB (vide pts. 43 a 50, 71 a 80 e 108 a 112 do RAI);

- a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo (vide o requerimento probatório apresentado pelo Assistente no RAI, nomeadamente rol de testemunhas e prova documental cuja junção requer aos autos);

- a indicação dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito (vide pts. 19 e 20, 21, 27, 33, 72 e 109 a 111 do RAI), e;

- a indicação dos factos que através de uns e outros se pretende provar (vide pts. 18, 27, 21, 19 e 20, 23 a 25, 26 a 31, 33 a 40, 72 a 74 e 109 a 111 do RAI);

- a narração dos factos que fundamentam a aplicação à Sra. Procuradora BB de uma pena ou de uma medida de segurança, inclusive, em termos de lugar e tempo da sua prática (vide pts. 19 a 40 do RAI), bem como;

- o grau de participação da denunciada, Sra. Dra. BB, nestes (vide pts. 72 a 77 e 95 do RAI), e;

- a indicação das disposições legais aplicáveis (vide pt. 89, com o enquadramento nos pts. 1, 2, 9, 12, 14, 15, 54 e 87, todos do RAI).
V) O Recorrente imputa à denunciada factos que consubstanciam a prática do crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art.º 369.º do C.P.
VI) E ao narrar os factos da forma minuciosa e circunstanciada como o fez, designadamente, nos pts. 19 a 40 do RAI, fez referência a todos os elementos quer do tipo objetivo, quer do tipo subjetivo do crime de denegação de justiça e prevaricação que imputa à Magistrada do MºPº;
VII) Tendo-se ainda referido expressamente aos elementos subjetivos do crime e afastado os argumentos utilizados no arquivamento que pugnam pela sua não verificação, vide pts. 72 a 77 e 95 do RAI;
VIII) Tratando-se de um crime praticado por via da omissão de um dever que lhe competia, a intencionalidade subjacente a essa omissão depreende-se das próprias declarações prestadas pela Denunciada, que confirmam toda a matéria de facto alegada pelo Assistente, nas quais esta reitera que vislumbrou e quis omitir aquela prova (o depoimento da testemunha DD) do inquérito 3873/13.3TDLSB com base numa justificação (o não prolongamento do inquérito e a crença, ainda assim, de que a visita tinha realmente acontecido) que na perspetiva do Assistente não só não tem procedência fática (dado que depois desse depoimento ainda havia pelo menos um ato de instrução pendente e já agendado – as declarações para memória futura do menor) como não é juridicamente atendível, ou pôr-se-ia em causa os princípios da oportunidade e legalidade que pautam toda a atuação do MºPº, ou seja não tem que valorar a prova mas antes dá-la a conhecer ao Processo para o Juiz Competente decidir.
IX) O Assistente considera que a Procuradora BB, exclusiva titular da investigação dos processos 3873/13.3TDLSB e 6318/13.5TDLSB, em que se discutia a prática do mesmo facto – visita ao menor - estava perfeitamente consciente da errada aplicação da Lei ao não promover a junção das declarações da testemunha DD prestadas no processo 6318/13.5TDLSB, ao processo 3873/13.3TDLSB, e ao promover a medida de coação mais gravosa tendo conhecimento pessoal de prova contrária àquela que utilizou para sustentar tal medida no segundo.
X) Ainda que se entenda que esta não tenha vislumbrado e querido, com a sua conduta, violar os deveres funcionais a que está adstrita, pelas suas funções, nunca poderia ignorar os mais elementares deveres de cuidado a que está vinculada, logo haverá sempre, pelo menos, lugar a negligência grosseira da parte da agente. Com clara violação dos artigos 32.º, n.º 5 e 219.º n.º 1 da CRP.
XI) Do Requerimento de Abertura de Instrução constam como se verificou todos os elementos de que a Lei faz depender a submissão à Instrução, “...sem que seja de exigir ao Sr. Juiz algum esforço para além do que lhe é pedido no exercício regular do seu múnus...”
XII) Adiante-se também que o Assistente teve o cuidado de requerer prova suplementar, e o Mmº Juiz de Instrução poderia sempre ouvir a Denunciada, pois não está dispensado de investigar, como bem decorre do que se estatue no art.º 288.º, n.º4, e 292.º, n.º 2, ambos do C.P.P., acrescendo nestes Autos que todos os factos estão comprovados documentalmente, não existindo qualquer dúvida acerca da veracidade da prova junta, uma vez que toda ela resulta da junção de certidões judiciais.
XIII) Pois ao contrário do que refere o Tribunal a quo a decisão instrutória só será nula, nos termos do disposto no artigo 309.º do Código de Processo Penal, quando pronunciar o arguido por factos que constituam uma «alteração substancial dos factos» descritos no requerimento de abertura de instrução; o que não ocorre nos presentes Autos.
XIV) Ao não o fazer, a decisão recorrida violou duplamente o disposto nos artigos 287.º n.ºs 1, 2 e 3 e 283.º n.º 3 do Código de Processo Penal e os artigos 20.º e 32.º, n.º 7 da Constituição da República Portuguesa, o que determina a invalidade daquela decisão e a sua substituição por outra que admita o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Recorrente e declare aberta a fase de instrução.
 XV) Por outro lado a não submissão da causa a Instrução por parte do Tribunal a quo é uma clara divergência à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (vide artigo 6.º, n.º 1) pois com o devido respeito a causa deixa de ser examinada equitativamente sendo antes morta à nascença por uma pretensa “deviance” processual.”
Remata pedindo que, devendo ser dado provimento ao recurso, dever-se-á declarar a revogação da “decisão recorrida, sendo admitido o requerimento de abertura de instrução do recorrente e declarada abertura da instrução (…)”
Em resposta, o Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, desquiciada e “desmadejada” de rigor conclusivo, considera que (na parte mais interessante da fundamentação) que (sic): “Entendeu o MºPº, nesta PGDL, arquivar a queixa que o recorrente fizera, por entender que inexistia qualquer prova da prática do crime que imputava à denunciada, a Sra Procuradora, BB, ou qualquer outro, despacho que se encontra totalmente transcrito na decisão em crise.

Inconformado, o queixoso requereu a abertura da instrução, tendo o MºPº nesta PGDL sido de parecer que o requerimento era inadmissível pelo que teria de ser rejeitado.

Também foi essa a opinião do Sr Juiz que rejeitou o requerimento, com fundamento na falta da descrição, ainda que sumária dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena e que constituirão a thema decidenda, bem como a omissão dos elementos subjectivos do ilícito que, conforme decidido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência desse Supremo Tribunal, nº 1/2015, fazem parte integrante da acusação.

É desta decisão que o queixoso interpõe recurso, argumentando, por um lado, que o requerimento contém os elementos de facto e de direito suficientes para a realização da instrução e, por outro, que a simples e considerada violação grosseira dos seus deveres de objectividade e isenção, consubstanciada nos factos que enumera, revelam a intenção de agir contra o direito, ao arrepio dos seus deveres funcionais, favorecendo a tese da acusação, desvalorizando e omitindo factos.

Em suma, e porque, quanto à factualidade, as versões são basicamente concordantes, o que o recorrente pretende é que toda a actuação da Sra Magistrada denunciada se inscreveu num quadro preconceituoso contra o queixoso, agindo no sentido de o prejudicar, submetendo-o a uma medida de coacção de prisão preventiva, sabendo que violava a lei, maxime a justiça como garante dos direitos dos cidadãos, sem que tenha articulado qualquer facto que permita fundamentar a sua opinião.  

Não nos iremos estender em quaisquer considerações sobre os deveres constitucionais do MºPº, embora reconheçamos que é sempre bom que alguém se disponha a relembrá-los e quiçá "levantar o pau" aos mais esquecidos, mas, na verdade, o que mesmo, mesmo, está aqui em causa é uma questão muito simples: estão ou não estão alegados os elementos subjectivos da infracção? Há ou não factos que fundamentem intenção de agir contra direito, por parte da denunciada?

Manifestamente, não!

Não há factos que o sustentem, não foi alegado o elemento subjectivo. Como se refere no Acórdão da Relação de Guimarães de 06.12.2010, disponível em www.dgsi.pt.: I) O dolo constitui matéria de facto e, por isso, têm de ser devidamente alegados os factos donde tal se possa concluir. II) Assim sendo, não é legítimo afirmar o dolo simplesmente a partir das circunstâncias externas da ação concreta pois, a não ser assim, o arguido estaria impedido de se defender cabalmente por ignorar a modalidade do dolo",

O que temos aqui é alguém, inconformado com o rumo processual e que, como tantas vezes acontece, procura personalizá-lo, subjectivizando-o contra si e personalizando o mal na pessoa de alguém (o perseguidor) neste caso, o MºPº, na pessoa da Ora BB.

São as interpretações tendenciosas e subjectivas do queixoso sobre a actuação da Sra Procuradora que lhe conferem a intenção que lhe assaca, interpretações susceptíveis de ser ilididas e sobrepostas por muitas outras, consoante os intervenientes ou interessados.

Na verdade, tudo se passou nos autos, mesmo a existência do inquérito está documentada nos autos.

Nada foi escondido, retirado ou omitido.

Tudo estava acessível a todos os sujeitos processuais, inclusive ao queixoso que, em tempo, não mencionou o que, agora, pretende fazer valer, pretendendo, a destempo, tirar desforço de um processo que, com razão ou sem razão, esteve envolvido, procurando um bode expiatório, procurando um culpado.

E, por isso, o recorrente não consegue articular o dolo, para além da sua própria convicção, porque, simplesmente, não existem factos que o possam sustentar e que permitam dizer que a Ora BB agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do doto, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo) II. - Acórdão da Relação de Coimbra de 30/9/2009, disponível em www.dgsi.pt.

E sem factos que o sustentem e sem a articulação do dolo, o RAI não obedece à forma determinada no art° 287°, n.º2, do C.P.P. que prevê que o requerimento para abertura da instrução "não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.°. ( ... )”

Sendo a instrução requerida pelo assistente, como no caso vertente se verifica, ao respetivo requerimento, por força da parte final do citado art.287.° n.°2, é aplicável o disposto no artigo 283.°, n.° 2, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, o que significa que tem de conter, sob pena de nulidade:

- a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

- a indicação das disposições legais aplicáveis.

Daí que a falta das exigências previstas na 2ª parte do artigo 287.°, torne nulo o requerimento para abertura da instrução (cfr., artigo 287.°, n.° 2 segunda parte, 283.°, n.º 3, alineas b) e c) e 118.°, n.°1, todos do Código de Processo Penal).

Estabelecendo o n.°2 do artigo 287.° do Código de Processo Penal que ao requerimento do assistente é aplicável o disposto no artigo 283.°, n.°3, ais. b) e c) e sendo esta norma aplicável ao requerimento de abertura de instrução, este deve conter uma verdadeira acusação, já que tal requerimento fixa o objeto do processo, delimitando a atividade investigatória do juiz de instrução.

Esta exigência de que o requerimento do assistente para abertura da instrução conforme uma acusação decorre da estrutura acusatória do processo penal, consagrada pelo artigo 32.ºn.°5 da Constituição da República Portuguesa, impondo que o objeto do processo seja fixado com rigor em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura de instrução (cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional de n.° 358/2004, de 19 de Maio, Processo n.° 807/2003, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 150, de 28 de Junho de 2004).

 Desta delimitação do objecto do processo resulta o estabelecido nos artigos 303.° n.°3 e 309.° n.°1, ambos do Código de Processo Penal, que proíbe a pronúncia do arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para abertura da instrução, assim como os factos que representem uma alteração não substancial dos alegados nesse requerimento só podem ser atendidos caso seja observado o mecanismo processual previsto no n.°1 desse artigo 303.°.

O entendimento de que o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente deve corresponder a uma acusação é unânime na jurisprudência, salientando-se, entre muitos:   

- O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.11.1993, (In C.J. de 1993, Tomo V, p.61), no qual se defende que: "Não compete ao juiz perscrutar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que se poderão indiciar como cometidos pelo arguido, pois, se assim fosse, estar-se-ia a transferir para o juiz o exercício da acção penal, com violação dos princípios constitucionais e legais vigentes. Após o arquivamento pelo M.P., o requerimento de abertura de instrução do assistente equivalerá em tudo à acusação, definindo e limitando o objecto do processo a partir da sua apresentação. Não descrevendo o assistente os factos que pretende imputar ao arguido, qualquer descrição que se venha a fazer numa eventual pronúncia redunda necessariamente numa alteração substancial, estando ferida da nulidade cominada no artigo 309.° do Código de Processo Penal".

- O acórdão da Relação de Guimarães de 14.02.2005, disponível em www.dgsi.pt.. em cujo sumário se lê que "o requerimento do assistente para abertura da instrução deve configurar substancialmente uma acusação, concluindo-se, que a indefinição do campo factual torna a instrução a todos os títulos inexequível."

- O acórdão da Relação de Évora de 3/12/2009, disponível em www.dgsi.pt.. assim sumariado "1. Atento o paralelismo que se estabelece entre a acusação e o requerimento para abertura de instrução deduzido pelo assistente, na sequência de um despacho de arquivamento, tal requerimento deverá conter substancialmente uma acusação, com a narração dos factos e a indicação da prova a produzir ou a requerer, tal como para a acusação o impõe o artigo 283°, nº 3, alíneas b) e d), do CPP. 2. Se o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente consubstancia uma manifestação de discordância em relação ao despacho de arquivamento do Ministério Público, e se é essencial que na instrução se proceda ao controle da acusação que, no caso, seria do assistente, só se justificará tal comprovação judicial com a apresentação de uma narrativa dos factos concretos cuja prática é imputada ao arguido. 3. Não tendo o Ministério Público deduzido acusação e não indicando a assistente, no requerimento para abertura da instrução, os factos concretos que imputa ao(s) denunciado(s), verifica-se que a instrução carece de objeto, o qual deveria ter sido definido pelo aludido requerimento, que não cumpriu a função imposta pelos artigos 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do CPP, não sendo, por isso, exequível".

- O acórdão da Relação do Porto de 20/1/2010, disponível em www.dgsi.pt.. em que se decidiu que “I - A estrutura acusatória do processo penal português impõe que o objeto do processo seja fixado com rigor e precisão. II - O requerimento de abertura de instrução (RAI) deduzido pelo assistente deve consubstanciar, materialmente, uma acusação, na medida em que por via dele é pretendida a sujeição do arguido a julgamento, por factos geradores de responsabilidade criminal. III - A liberdade de investigação do JIC está limitada pelo objeto da acusação. IV - Se o RAI não contém a narração dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, padece de nulidade, de conhecimento oficioso, a impor a inadmissibilidade legal da instrução". - Apud Acórdão do Tribunal de Coimbra, proferido em 20/1/2015 , no Processo nº 511/13.8TACVL.C1.”

Neste Supremo Tribunal de Justiça, a Digna Magistrada do Ministério Público, em diserto e munificente parecer, é de parecer que (sic): 

1 – O Assistente AA apresentou denúncia contra a Procuradora da República, BB, imputando-lhe um crime de denegação de justiça, p. e p. pelo art. 369º, nº 1, do CP.

2 – Realizado que foi o inquérito pelo MP no Tribunal da Relação de Lisboa, o Magistrado titular proferiu despacho de arquivamento, nos termos do art. 277º, nº 1, do CPP, por inexistência de facto punível.

3 – Irresignado, requereu o Assistente a abertura de instrução, conforme doc. de fls. 94 e segs. que aqui se dá por inteiramente reproduzido.

4 – O Sr. Juiz Desembargador, nas vestes de Juiz de Instrução, em despacho, bem fundamentado e pormenorizado, decidiu indeferir o pedido de abertura de instrução, porquanto o respectivo requerimento não obedecia aos requisitos exigidos pelo art. 287º, nº 2, do CPP.

4.1. Fundamentou o Sr. Juiz Desembargador a sua decisão no facto de o requerimento de abertura de instrução ter de constituir uma verdadeira “acusação”, em sentido material, sob pena de nulidade.

“O assistente não cumpre aqui esse imperativo, limitando-se a apresentar as suas discordâncias com o despacho de arquivamento e, em seguida, a apresentar, a par de uma teia confusa e dispersa de factos, mesclada com conclusões e juízos de valor de forma totalmente genérica”, pode ler-se na decisão recorrida, fls. 142.

4.2. O MP, na sua resposta, defende proficientemente, a bondade da decisão.

5 – O recurso do Assistente não merece provimento.

5.1. Determina o nº 2, do art. 287º, do CPP, que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidade especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito da discordância relativamente à não acusação, sendo-lhe aplicável, ao requerimento do assistente, o disposto nas als. b) e c), do nº3, do art. 283º.

As alíneas b) e c), do nº 3, do art. 283º, do CPP, dispõem que, mutatis mutandis, o requerimento de abertura de instrução tem de conter a narração ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática (al. b)), e a indicação das disposições legais aplicáveis (al. c)) aqueles factos.

5.2. Dispõe o nº 1, do art. 369º, do C. Penal, que o funcionário que, no âmbito de inquérito processual ou processo jurisdicional, consciente e voluntariamente, não promover ou não decidir, no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias.

Os números 2 e 3, do mesmo preceito, prevêem casos de agravação da pena.

5.3. O Assistente não imputa à Magistrada por si denunciada quaisquer factos que, directa ou indirectamente, preencham o tipo subjectivo do crime, a actuação dolosa, consciente e voluntária, e contra direito, por banda da Sra. Procuradora ..., sendo certo que dos autos não resultam quaisquer indícios, muito menos suficientes, para sustentar uma “acusação” por factos indiciariamente cometidos, consciente e voluntariamente, contra direito, pela Sra. Magistrada visada.

Como regista Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação ao art. 369º, do seu Comentário do Código Penal, “O tipo subjectivo só admite o dolo directo, em face da exigência típica resultante da expressão «conscientemente» (…)” – nota 6.

5.4. Escreve Maia Costa, em anotação ao art. 287º, in Código de Processo Penal, de Henriques Gaspar et alü que “(…) o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente assume formalmente a natureza de uma acusação que fixa o objecto da instrução, podendo embora o juiz de instrução investigar automaticamente (art. 288º, nº 4), ele terá de o fazer no quadro temático definido pelo requerimento do Assistente (…)”.

E isto porque, no nosso sistema processual penal, o juiz carece de iniciativa para dar impulso a qualquer fase processual, competindo-lhe dizer o direito, sem prejuízo de proceder a diligências de investigação, autonomamente, em caso submetido a instrução ou a julgamento, em obediência ao princípio da verdade material que enforma o CPP (cfr. art. 288º, nº 4 e 340º, nºs 1 e 2, ambos do CPP e respectivas anotações, Código de Processo Penal, supra referido).

No requerimento de abertura de instrução é difícil aceitar que se está perante uma acusação, uma súmula dos factos imputados à Magistrada do MP pelo Assistente, sendo que dos arts. 1º a 17º apenas constam meras considerações genéricas, citações doutrinais e jurisprudenciais, que não têm, nem devem, constar de uma acusação, conforme resulta do disposto no art. 283º, do CPP.

E, acompanhando o douto despacho de não pronúncia, se bem que no arrazoado confuso, extenso e algo desorganizado, se possa, mesmo assim, captar a factualidade de que o Assistente “acusa” a Sra. Magistrada ..., o que dele não consta efectivamente, são os elementos subjectivos do crime de denegação de justiça que o Assistente lhe imputa.

“A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de poder, as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358º, do Código de Processo Penal”, decidiu o Ac. do STJ de fixação de Jurisprudência, nº 1/15, publicado no DR 18, Série I, de 27.01.2015.

Esta Jurisprudência tem plena aplicabilidade na fase da instrução, mutatis mutandis, uma vez que o art. 287º determina que no caso de ser o Assistente o requerente, o requerimento de abertura de instrução, tem de conter, ainda que em súmula, os factos criminosos praticados pelo agente e respectiva qualificação jurídico-penal, com indicação dos meios de prova não só a realizar naquela fase, como os a apresentar em julgamento.

6 - Por todo o exposto e o que mais e melhor se diz na resposta do MP e no despacho ora recorrido, emite-se parecer no sentido do improvimento do recurso interposto pelo Assistente, AA.”

I.a). – QUESTÕES A RESOLVER.

A solução do recurso ficará satisfeita com a resposta a conferir para a organização estrutural-funciona do RAI, assumindo-se a exigência/necessidade de dele constarem, e estarem nele contidos, os elementos de facto – tanto de feição objectiva, como de índole subjectiva – que conformam e compõem um requerimento de acusação.

II. – FUNDAMENTAÇÃO.

II.A. – ELEMENTOS PERTINENTES PARA A DECISÃO.

Com saliência para a decisão recenseiem-se os sequentes factos aceites e que resultam dos documentos juntos com ao processo.

- Por decisão proferida no processo nº 95/12.4TBHRT, em 17 de Julho de 2013, ao pai do menor ...., ora denunciante, AA, tinha sido suspenso o regime de visitas ao menor;

- Em data não apurada, o menor terá feito menção à mãe que o pai o havia visitado, acompanhado da avó, CC, em princípios do mês de Setembro, no jardim-escola, “...”;

- A notícia foi levada, pela mãe do menor, ao processo de inquérito nº 3873/13.3TDLSB, que corria contra o ora denunciante e a mãe (avó do menor) pela prática de crimes de abuso sexual de criança, tendo sido extraída certidão deste processo para averiguação da eventual prática de um crime de desobediência;

- No âmbito desta averiguação (processo de inquérito a que coube o nº 6318/13. 5TDLSB) foi ouvida a assistente social, DD, que negou a presença do pai do menor e a avó junto do jardim-escola – cfr. fls. 44-45;
- O denunciante e a avó do menor foram, no âmbito do processo nº 3873/13.3TDLSB, acusados, no dia 24 de Outubro de 2013, respectivamente, o primeiro, pela prática, em autoria material, de quatro crimes de abuso sexual de criança agravado, previstos e punidos pelos artigos 171º, º 1 e 2 e 177º, nº 1, alínea a) e a avó de dois crimes de abuso sexual agravada igualmente previstos e punidos pelos artigos 171º, º 1 e 2 e 177º, nº 1, alínea a), do Código Penal;
- Na proposta para imposição de medidas de coacção, a arguida, apelando ao facto de o tribunal da Horta, “no âmbito do processo de regulação das responsabilidades parentais, ter determinado a suspensão do regime de vistas ao pai, aqui arguido, existem indícios sérios, atentas as revelações feitas pelo menor à mãe e ao médico psiquiatra que o acompanha, conforme consta de fls. 428 a 433, de que ambos os arguidos, no inicio de Setembro de 2013, entraram em contacto com o menor, num encontro ocorrido junto ao jardim de infância que o menor frequentava, onde lhe terão dito para não contar nada, episódio que, além do mais, perturbou gravemente o menor, que focou muito receoso” – cfr. fls. 31 – foi proposto que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo na situação de prisão preventiva e a avó, ..., com a de obrigação de permanência na habitação;
- O processo de inquérito nº 6318/13. 5TDLSB, foi mandado arquivar por se ter considerado que (sic): “(…) apesar de, quer  a DD, quer o pai do menor, AA, terem conhecimento de que estava suspendo o regime de visitas e de que, portanto, desde 16 de Julho de 2913, que o pai não podia visitar o filho, por ordem do Tribunal de Família, e estarem cientes de que ao fazê-lo incumpriam uma ordem judicial, tendo em conta que não existe disposição legal a cominar tal ato como desobediência simples, e que não foi feita em concreto tal cominação, no âmbito do aludido processo, logo se concluiu que nem um nem outro cometeram o crime de desobediência p. e  p. pelo artigo 348º do Código Penal.” – cfr. fls. 42.
II.b). – RAZÕES/JUSTIFICAÇÃO DE DIREITO.
A pretensão recursiva do recorrente atina com o julgamento (negativo ou infirmatório), por parte do Senhor Juiz de Instrução, de não admissão/aceitação do requerimento para abertura de instrução por carência de elementos de facto que possibilitem a actividade probatória (entendida esta como o conjunto de acções encetadas pelas partes ou pelo tribunal para comprovar/validar um enunciado fáctico alegado e constitutivo de um direito que se estima ter sido vulnerado por uma acção ilícita e típica).  
A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.” – cfr. nº 1 do artigo 286º do Código Processo Penal.
A instrução foi inicialmente pensada como um puro instrumento de controlo, posto a cargo de um juiz, a ter lugar após a fase processual especificamente destinada à investigação criminal, o inquérito. A instrução não se destinaria a sindicar directamente o modo como no inquérito o Ministério Público desenvolveu a actividade de investigação. Tal tipo de escrutínio violaria o estatuto de autonomia reconhecido ao Ministério Público tanto pela lei ordinária (art. 2.º do Estatuto do Ministério Público), como pela lei fundamental (art. 219.º-2 da CRP). Por outra banda, sem prejuízo dos poderes de averiguação oficiosa do juiz de instrução fundados no princípio subsidiário da investigação (arts. 289.º e 291.º-1, parte final, da versão originária do CPP), a instrução também não deveria constituir um complemento da investigação levada a cabo no inquérito, destinado a imputar ao arguido, por livre e exclusiva iniciativa do juiz de instrução, novos factos que pudessem fundar a imputação de um crime diverso ou determinar uma agravação do limite máximo da sanção aplicável pelo crime imputado (cf. arts. 1.º-1, f), 286.º-1, 303.º-3 e 309.º-1 do CPP). Uma instrução concebida como suplemento investigatório seria absolutamente incongruente com a repartição de funções entre a magistratura do Ministério Público e a magistratura judicial que constituiu a pedra de toque do modelo processual erigido no Código de 1987 e do mesmo passo constituiria um desvio incompreensível à dimensão material da estrutura acusatória de que o mesmo se reveste, em observância do preceituado no n.º 5 do art. 32.º da Constituição.
Através da instrução, em caso de abstenção de acusação ou da prolação de uma acusação que fique aquém do que considera devido, o ofendido constituído assistente poderá ver tutelado o seu interesse legítimo na submissão a julgamento e condenação daquele que praticou um crime que visa a protecção de um bem jurídico de que é o concreto portador8, dando-se assim expressão à garantia constitucional da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º-1 da CRP). Por outra via, estando em causa interesses supra-individuais em relação aos quais ninguém poderá considerar-se especialmente ofendido, a instrução, associada à constituição de assistente em acção popular penal (art. 68.º-1, e)), dá satisfação às crescentes e legítimas exigências comunitárias de transparência no exercício da acção penal e de um efectivo controlo da decisão de abstenção de acusação pelo Ministério Público, em especial no âmbito da criminalidade de colarinho branco que contende com bens jurídicos colectivos estruturantes da organização social e do próprio Estado de direito material. Tal como nas demais projecções de exercício do poder estadual, num quadro democrático também o exercício da acção penal deverá estar sujeito a mecanismos de controlo externo. Atenta a sua manifesta incompatibilidade com o modelo acusatório que, por imposição constitucional, conforma o processo penal português, será de repudiar qualquer mecanismo de intervenção judicial oficiosa de controlo do arquivamento decidido pelo Ministério Público, mesmo no domínio da criminalidade dos detentores do poder. A via encontrada pelo legislador, e que julgamos equilibrada, para criar condições processuais para a realização desse controlo sem sacrificar o modelo acusatório tem sido precisamente a de associar a instrução à acção popular penal.” [[18]]
Destinando-se a instrução à i) comprovação judicial da decisão de deduzir acusação;  ou ii) de arquivar o inquérito; e tendo como escopo teleológico a i) introdução do feito em juízo; ou ii) inanição da matéria denunciada e investigada no inquérito, por absoluta carência e aptidão para a subsunção num suposto de ilícito, a instrução realiza e erige-se como momento decisivo para o arguido ou o assistente consolidaram os enunciados fácticos que em seu juízo conduzam ao fim com que requereram a intervenção do juiz de instrução.
Formalmente o requerimento em que um sujeito processual – Ministério Público, assistente ou arguido – formule a respectiva pretensão - princípio da iniciativa das partes – não está sujeito a formalidades “mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou à não acusação (…) sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º.”
Nos termos das alíneas indicadas no preceito citado a acusação deve conter, sob pena de nulidade, alínea b) “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar , o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a sanção que lhe deve ser aplicada;” e na alínea c) “a indicação das disposições legais aplicáveis.”     
Compreende-se que assim seja. Hipotezemos a situação de um arquivamento e o assistente requer a abertura da instrução para demonstrar a existência de elementos indiciários materializadores de um suposto de ilícito típico. Torna-se invadeável que o requerente sistematize enunciados fácticos e elementos de prova para comprovação desses enunciados, para que o encarregado da realizar os actos instrutórios i) possa eleger esses “pedaços da vida” e sobre eles fazer recair os elementos de prova que que lhe foram aportados no requerimento de instrução para, no despacho final – se comprovada a existência dos factos enunciados – formular uma “acusação” que se constituirá como objecto do processo, [[19]] o identificará [[20]] e vinculará tematicamente [[21]] a actividade do tribunal de julgamento.    
De forma munificente e diserta, escreveu-se a propósito da delimitação do objecto do processo e da vinculação temática, no acórdão de uniformização de jurisprudência nº 11/2013, (sic): “I. O objecto do processo corresponde à matéria sobre que ele versa, ao quid sobre que recai.
O processo, nas suas fases declarativas, recai também sobre a qualificação jurídica dos factos. A valoração ou qualificação jurídica vai-se progressivamente elaborando no decurso do procedimento, sendo algum tanto fluida (como aliás, a matéria de facto) até à acusação, mas devendo estabilizar-se na acusação (arts. 283.° a 285.°) ou no requerimento de instrução (em caso de este ser deduzido na sequência de arquivamento do inquérito - art. 287.°, n.º 2).
Ora, se assim é, e tendo presente que da qualificação jurídica dos factos depende ou pode depender não só a pena a aplicar como a própria responsabilidade penal do agente, não se entenderia a razão pela qual a lei cercaria de garantias a delimitação do pressuposto factual objectivo do crime e do processo e havia de deixar inteira liberdade ao tribunal no que concerne à qualificação jurídica, o que representaria, ultima ratio, a irrelevância para o processo do pressuposto factual subjectivo consistente na consciência da ilicitude, em clara contradição com as exigências do direito substantivo.
Não há razão para tal assimetria. Sobretudo não há razão quando se considere, como deve agora, perante o direito penal substantivo emergente do Código Penal vigente, que a consciência da ilicitude do comportamento por parte do arguido é elemento da culpabilidade, não bastando já a simples possibilidade de conhecer, de distinguir o bem do mal, o lícito do ilícito, a mera susceptibilidade de imputação, como foi a orientação predominante em face da lei penal anterior ao Código Penal de 1982.”
3. E sobre a problemática de que a qualificação jurídica dos factos pode e deve ser encarada numa perspectiva de facto, adianta:
“Com efeito, enquanto a consciência da ilicitude do facto é agora elemento essencial da culpabilidade e a culpabilidade é pressuposto essencial da punibilidade, a consciência da ilicitude é também um elemento do crime que há-de ser objecto da prova, e é também um facto processual incluído no thema probandi.
Os factos jurídico-processuais que hão-de constar da acusação são, por isso, todos os que integram os pressupostos necessários à procedência do pedido (a aplicação da sanção solicitada).
O agente, para poder ser punido a título de dolo, há-de ter tido consciência da ilicitude do seu comportamento. Esta consciência da ilicitude é, por isso, também pressuposto da punição a esse título e necessariamente objecto de prova no processo.
Ora, em muitos casos, a ilicitude do comportamento só pode aferir-se por referência às normas incriminadoras e daí a necessidade, sob pena de nulidade, de essas normas serem indicadas na acusação.
 A norma incriminadora não faz parte do facto, como já referimos, mas é a referência à norma que dá ao facto o concreto sentido de ilicitude.
O facto com relevância penal é o facto com significado e esse significado é-lhe dado pela referência à norma incriminadora. Por isso que a alteração da norma incriminadora pode alterar a significação do facto, logo a sua relevância jurídico-penal.
A referência à norma revela o interesse tutelado e os limites em que o bem jurídico é tutelado pelo direito penal e o que a lei penal exige é o conhecimento da protecção penal desse interesse, e dos termos em que é protegido, do desvalor jurídico do comportamento objecto da acusação. Ora, para esse conhecimento, para que o agente tenha consciência da ilicitude do seu comportamento, não é de exigir necessariamente o conhecimento da norma proibitiva, mas basta a consciência da existência da protecção penal do interesse violado.
A norma indicada na acusação dá o critério de valoração, revela ao acusado que é em função do desvalor penal que aquela norma traduz que é requerido o seu julgamento. Enquanto a variação do tipo incriminador não implicar alteração do critério essencial de valoração do interesse, o arguido não fica defraudado no seu direito de defesa”.
4. Nesta medida se compreende o conteúdo do no nº 4 do artº 339º do CPP: supra referido, nomeadamente no que ora se realça em itálico “- Sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369”
Como salienta a propósito, PAULO PINTO de ALBUQUERQUE, “A Lei nº 59/98, de 25.8, introduziu o novo nº 4. Ela visa rejeitar as teses herdeiras da teoria do fait qualifié, que vinculam o objecto do processo à incriminação da acusação ou da pronúncia. O objecto do processo não é constituído pela incriminação imputada ao arguido, mas antes pelos factos que lhe são imputados, O legislador nacional quis, portanto, verter para o direito português a norma, segundo a qual “a investigação e a decisão abrangem o facto descrito na acusação e as pessoas imputadas pela acusação. Dentro destes limites estão os tribunais autorizados e obrigados a uma actividade autónoma e, em especial, eles não estão vinculados na aplicação da lei penal aos requerimentos feitos” […]
Ou seja, o tribunal está apenas vinculado tematicamente pelo “facto histórico unitário” descrito na acusação (prozessualer Tatbegriff, CLAUS ROXIN/HANS ACHENBACH, 2006:146), não pela qualificação jurídica dada ao facto na acusação. Portanto, o MP, o arguido e o assistente têm o direito de discutir a qualificação jurídica dos factos sem quaisquer restrições durante a audiência e o juiz tem o dever de suscitar essa discussão, caso pondere como plausível uma qualificação jurídica dos factos distinta da que consta da acusação ou da pronúncia.”
5. Em suma, como observa o mesmo Autor, “A solução da imodificabilidade da qualificação jurídica no momento do saneamento judicial dos autos é a única consentânea com a proibição da sindicância do uso pelo Ministério Público da faculdade do artigo 16º, nº 3, por via da sindicância da imputação penal feita na acusação […] Em síntese, o legislador quis que a qualificação jurídica dos factos feita pela acusação (pública ou particular) ou, havendo instrução, pela pronúncia fosse discutida na audiência de julgamento e só nesse momento (acórdão do TC nº 518798), podendo então os sujeitos processuais proceder a essa discussão jurídica sem quaisquer restrições ou vinculações à qualificação feita em momento anterior. Razão pela qual o juiz, aquando da prolação do despacho do artigo 311º, não deve rejeitar a acusação e devolvê-la ao MP para as corrigir erros “claros” de qualificação jurídica dos factos, sendo certo que a “clareza” do direito não é indiscutível.
O tribunal não pode, no início da audiência de julgamento, proferir despacho a alterar a qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido na acusação […] Esta conclusão não prejudica o exercício do poder do tribunal durante a audiência nos termos do artº 358º nº O juiz não pode, no início da audiência, proferir despacho que implique o conhecimento do mérito da causa quanto ás questões relacionadas com a matéria de facto, por exemplo, considerando que não estão indiciados suficientemente certos factos atinentes à especial censurabilidade e convertendo, por isso, a imputação de um crime de ofensa à integridade física qualificado num crime simples (acórdão do STJ, de 20.11.1997, in BMJ, […])”[[22]]
O requerimento que se formula para sobre os factos que enuncia virem a recair os actos instrutórios destinados a eleger um amplexo factual que materialize um ilício típico, não dependendo de formalidades especiais deve conter, como se vem apurando, um elenco factual que permita definir o objecto do processo e vincular tematicamente o tribunal na operação de julgar.
O requerente da instrução é, pois, obrigado a observar os mencionados requisitos, dado que, não tendo sido formulada acusação pelo Ministério Público, o requerimento para abertura de instrução funciona como equivalente dessa acusação, da qual decorre a vinculação factual que o juiz tem de respeitar, pautando a sua conduta no processo, logo por força do princípio do acusatório, dentro dos parâmetros fornecidos por aquela delimitação factual, sendo certo que não actua oficiosamente e não investiga por conta própria, embora dirija e conduza a instrução de forma autónoma (art. 288.º, n.º 2 e 309.º do CPP, este afectando de nulidade a decisão instrutória na parte em que o juiz pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente).

Como diz Germano Marques da Silva, «o requerimento do assistente tem que conformar uma verdadeira acusação e, por isso, o requerimento não é admissível se dele resultar falta de tipicidade da conduta ou a falta ou a inimputabilidade do arguido, porque é o próprio procedimento que não pode prosseguir por falta dos pressupostos de objecto e de arguido. Faltando no processo o seu objecto ou o arguido o processo é inexistente» (Curso de Processo Penal III, Editorial Verbo 2000, pp. 138-139).

E salienta-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24/09/2003, Proc. n.º 2299-03, da 3.ª Secção, que o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente «não sendo uma acusação em sentido processual-formal, deve, pois, constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo».

Apresentado o requerimento para abertura da instrução, o mesmo só pode ser rejeitado com três fundamentos: ser extemporâneo; o juiz ser incompetente; verificar-se inadmissibilidade da instrução.

No presente caso, as duas primeiras hipóteses estão excluídas, conforme desde logo se afirmou no despacho recorrido, só a última merecendo análise por ter sido com base nela que o requerimento do assistente foi rejeitado.

9. No acórdão de 12/03/2009, Proc. n.º 3168-08, da 5.ª Secção, com o mesmo relator, e que respeita a um caso paralelo, houve ocasião para afirmar: O conceito de "inadmissibilidade legal" tem sido objecto de larga elaboração, quer doutrinária, quer jurisprudencial.

Nas Jornadas de Direito Processual Penal "O Novo Código de Processo Penal", organizadas em 1987 pelo Centro de Estudos Judiciários, o Conselheiro Souto Moura, na sua comunicação "Inquérito e Instrução", depois de indicar casos de inadmissibilidade legal (nos processos especiais, a requerimento do Ministério Público, a pedido do arguido quando exorbitar dos factos da acusação, requerida pelo assistente se versar factos já contemplados na acusação do Ministério Público, falta da legitimidade para a requerer mesmo por parte de quem em princípio deteria tal legitimidade), apoda de inexequível "um requerimento de instrução (do assistente) sem factos, subsequente a um despacho de arquivamento", o que, em sua opinião "libertaria o juiz de instrução de qualquer vinculação temática". Acrescenta também relativamente à instrução requerida pelo assistente que a expressão legal "(factos) pelos quais o MºPº não tiver deduzido acusação" abrange para além dos factos nem sequer referidos na acusação, todos aqueles ali presentes de modo instrumental.

Os Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques (Código de Processo Penal - Anotado, II, 2000, pág. 163), depois de indicarem a instrução requerida no âmbito dum processo especial ou por quem não tenha legitimidade para tal como sendo casos de inadmissibilidade da instrução, sustentam que "se do próprio requerimento para abertura da instrução resultar falta de tipicidade da conduta, ausência de queixa, prescrição do procedimento ou inimputabilidade do arguido, etc., somos a entender que, mesmo assim, a instrução não poderá nem deverá ser desde logo recusada por inadmissibilidade, servindo, todavia, para analisar também essas questões."

Já o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, III, pág. 134-135), considera que no conceito cabem realidades diversas, e após enunciar os casos em que não pode haver instrução, afirma: "o requerimento do assistente tem de conformar uma verdadeira acusação e, por isso, o requerimento não é admissível se dele resultar falta de tipicidade da conduta ou a falta de inimputabilidade do arguido, porque é o próprio procedimento que não pode prosseguir por falta dos pressupostos do objecto, de arguido. Faltando no processo o objecto ou o arguido o processo é inexistente. Se, porém, em lugar de inexistência ocorrer apenas a nulidade da acusação, nos termos do art. 283º, já não será caso de inadmissibilidade legal da instrução, tanto que a nulidade da acusação não é de conhecimento oficioso, tendo de ser arguida".

Por sua vez, o Conselheiro Maia Gonçalves (Código de Processo Penal Anotado, pág. 629) refere, a respeito do nº 4 do art. 287º do Código de Processo Penal que a rejeição por extemporaneidade e por incompetência do juiz não se afigura passível de dúvidas relevantes, acrescentando: "A rejeição por inadmissibilidade legal da instrução inclui os casos em que aos factos não corresponde infracção criminal (falta de tipicidade), de haver obstáculo que impede o procedimento criminal e de haver obstáculo à abertura da instrução, v.g. ilegitimidade do requerente (caso do MP) ou inadmissibilidade legal da instrução (v.g. casos dos crimes particulares e de alguns processos especiais).

Também o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal, pág. 737) que, na nota 2 ao art. 286º, procede à enumeração dos casos de inadmissibilidade legal, inclui neles o requerimento do assistente que não contém a narração dos factos ou não indica as disposições legais violadas e bem assim o requerimento do assistente que contém factos que não constituem crime (artigo 311, n.º 3, al. c), por identidade de razão). Embora em nota ao artigo seguinte, citando o ac. da Rel de Lisboa, de 12-07-19956 (CJ, XX, 4, 140) refira que não constitui fundamento de indeferimento a insuficiência dos factos, suas consequências e seus autores.

O Procurador-Geral Adjunto Vinício Ribeiro (Código de Processo Penal - Notas e Comentários, pág. 590) refere, por seu turno, que "o não descrever factos, ou descrever factos que não constituam crime, não pode deixar de conduzir à mesma solução, isto é, à inadmissibilidade legal do RAI do assistente por falta de requisitos legais".

Estes três últimos autores sustentam, pois, a existência de inadmissibilidade legal da instrução nos casos em que o requerimento do assistente contenha apenas a referência factos que não constituam crime.” [[23]]
Os sujeitos processuais com faculdade/direito de contrariarem a posição assumida no final do inquérito por qualquer dos interessados na introdução, ou não, de um feito em juízo, são o Ministério Público, o assistente e o arguido.
Desbordando – por não serem chamados ao palco deste processo – o Ministério Público e a denunciada/arguida, importará, à luz dos ensinamentos colectados perquirir qual a modelação estrutural-funcional, vale dizer formulação narrativa factual e lógico-organi-zativa, que deve enuclearizar e dirigir a estruturação de uma peça que se destina a i) definir o objecto de processo; ii) delimitar a acção investigativa do juiz de instrução; e iii) percintar a vinculação temática do tribunal na prossecução e julgamento do processo.
O requerimento de abertura de instrução, quando o Ministério Público se haja abstido de formular uma acusação, vale dizer quando o Ministério Público não encontre na colecção de factos que foi possível coligir para o inquérito elementos que consubstanciem uma acção ilícita e tipicamente relevante, não pode, em nosso juízo, deixar de ser estruturada e organizada como se de um verdadeiro e típico requerimento acusatório se tratasse.    

Dito com as palavras de lei "a instrução, quando requerida pelo assistente, visa os factos pelos quais o Ministério Público não deduziu acusação e deve indicar os factos a provar, narrando aqueles que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (arts. 287º, nº 1, al. b) e nº 2 e 283º, nº 3, als. b) e c) do Cód. Proc. Penal” – cfr. artigo 287º do Código Processo Penal.

A descrição de factos – «pedaços da vida» imputados/vinculados ao agir e proceder concreto e material de um determinado sujeito – constitui-se como pedra angular para i) definir e percintar a factualidade que reveste a conduta de uma determinada pessoa a quem se irroga um agir contrário à lei; ii) servir de guião ao instrutor da fase (jurisdicional) de instrução na actividade a ser desenvolvida no sentido de comprovar, ou infirmar, os factos imputados e reputados penalmente relevantes que o assistente estima terem colhido comprovação no inquérito e que espera a vir a coonestar na fase instrutória.  

A actividade probatória nesta fase processual (de instrução), não tendo o Ministério Público coligido indícios (factos indiciários) durante a fase de inquérito, não pode deixar de incidir sobre realidades factuais concretas e históricas, porque passadas e supostamente acontecidas, e só constando do requerimento, em que se pede a verificação da sua existência (histórico-processual) e respectiva comprovação probatória, é possível o processo adquirir e consolidar uma existência objectiva susceptível de se poder constituir como thema decidendum.      

A narração de factos no requerimento de instrução induz uma actividade sequencial vinculada, por banda do tribunal, a saber i) estabelecer os limites da actividade instrutória do tribunal que terá como limites os factos narrados e sujeitos a verificação/comprova-ção; ii) se verificados/comprovados, conduzir à organização de uma peça processual – a decisão instrutória – em que seja possível ao juiz de instrução estruturar um «requerimento» (acusatório) contendo os factos que o tribunal de julgamento há-de ter como atendíveis para constituição/formação de um juízo culpabilidade, ou isenção de responsabilidade criminal, relativamente ao visado na acusação/decisão instrutória. 

Tratando-se de requerimento impulsionado pelo assistente – não cuidaremos das demais situações que a norma contempla – a exigência de uma narração factual capaz e apta a ser transmutada em acusação não pode deixar se ser uma exigência axial e determinante no acto de formação/estruturação a desenvolver. Como se procurou demonstrar supra a narração/descrição factual da situação que se pretende ver verificada através da actividade probatória a efectuar pelo magistrado instrutor não pode deixar de recair sobre uma realidade escalonada com precisão e configurada de modo a constituir um guião susceptível de materializar uma realidade integrável e subsumível numa norma incriminante.       

É, por conseguinte, uma constatação inarredável que o requerimento se deve perfilar como um putativo e antecipado requerimento acusatório, sob a cominação de não o sendo lhe falecerem as capacidades intrínsecas e performativas de uma peça processual apta a prosseguir os fins para que é destinada.  

Adite-se que no plano da garantia da defesa não pode o requerimento deixar de integrar os factos que o assistente imputa (realmente) ao arguido/denunciado. Em caso e arquivamento do inquérito, e após a actividade investigatória do Ministério Público, esta entidade formulou, quanto a uma realidade denunciada e que na perspectiva/compreen-são cognitiva do assistente constituiriam ilícito penal, um juízo de exculpação do arguido. Mantendo o assistente a perseverança na existência de factos penalmente relevantes e requerendo a instrução para comprovação de factos donde retira esse juízo de culpabilidade do arguido, não pode deixar de descrever os factos (concretos) que imputa ao arguido de modo a que este tenha possibilidade de organizar a sua defesa e contraditar, pontualmente e especificadamente, cada um dos factos que lhe hajam sido assacados no requerimento de abertura de instrução. O arguido tem o direito de tomar conhecimento e perceber os factos – eventualmente não totalmente coincidentes com o que lhe haviam sido inicialmente assacados – que o assistente lhe imputa para que possa organizar a sua defesa e impedir a sua inculpação.    

A composição performativa do direito de defesa impõe a observância de rigor na formulação de uma peça que, a vir a demonstrar-se a veracidade do que nela se contém, se transmutará numa peça de imputação (inculpatória) de um sujeito. E, parece invadeável, que este sujeito, por ser mais onerado com essa imputação, tem o direito de i) tomar conhecimento dos factos que lhe são imputados; ii) que esses factos lhe sejam transmitidos e participados com o detalhe necessário e suficiente para que ele os possa apreender e compreender; iii) que dessa percepção/compreensão possa decorrer uma defesa capaz e plena, sem deficiência da compreensibilidade total a completa do sentido inculpatório que na factualidade arrolada se encerra.        

Daí que, no plano da organização/estruturação de um requerimento desta natureza, não possa deixar de se exigir um rigor necessário e cogente ao apresentante da referida peça processual.

Iterando o já asserido o requerimento para abertura de instrução apresentado em caso de arquivamento pelo Ministério Público, equivalerá em tudo a uma acusação, condicionando e limitando, nos mesmos termos que a acusação formal, seja pública, seja particular, a actividade de investigação do juiz e a decisão instrutória: assim é de modo tal que apenas poderão ser considerados os factos descritos no requerimento para abertura de instrução (ressalvada a hipótese a que se refere o art. 303º do Cód. Proc. Penal de alteração não substancial dos factos descritos nesse requerimento), sob pena de nulidade, como claramente resulta do disposto no art. 309º, nº 1 do Cód. Proc. Penal.

No despacho a que se alude no artigo 308º, nº1 do Código Processo Penal, o juiz só poderá considerar os factos que tenham sido objecto de actividade probatória e esta, como se deixou asseverado supra, só poderá recair sobre os factos que hajam sido enunciados/arrolados/narrados no requerimento em que for pedida a verificação/comprovação desses mesmos factos.

Sendo a actividade probatória vinculada, se não existisse uma narração minimamente especificada de uma realidade factual, o juiz não poderia atender no despacho de pronúncia, salvos casos a que alude o artigo 303º, nº 1 do Código Processo Penal, a outros factos que pudessem resultar da actividade probatória e sejam atendíveis para o enquadramento jurídico-penal, tanto mais que a possibilidade de alteração só pode resultar relativamente aos factos narrados no requerimento para abertura, ou no caso de ter havido acusação, daqueles que tiverem sido aí descritos. Como se saca do estatuído no artigo 303º, nº 1 do Código Processo Penal o legislador faz equivaler, para efeitos de uma eventual alteração não substancial dos factos, a acusação e o requerimento para abertura da instrução. Para o legislador, depreende-se com lidima e linear percepção intelectiva, a acusação e o requerimento para abertura da instrução constituem-se como balizas inarredáveis e irremíveis da actividade instrutória, na medida em que só aa realidade factual que nessas peças processuais estiver contida se poderá extrapolar para uma eventual modificação do quadro factual a ser imputado ao arguido.  

A atendibilidade de novos factos – itera-se que a novidade só pode revelar-se relativamente aqueles que hajam sido descritos e especificados no requerimento de abertura de instrução – fora de um quadro não enunciado em qualquer das peças referidas – acusação ou requerimento de abertura de instrução – nunca poderia constar de um despacho de pronúncia, sob pena de nulidade, e na justa medida em que, ao pronunciar por factos que não constassem em qualquer das referidas peças, o juiz estaria a cometer uma nulidade de emitir pronúncia para além do que havia sido pedido. Ocorreria um excesso de pronúncia a ser acoimado com a nulidade de pronúncia para além do pedido/rogado. Ainda que, em processo penal haja uma liberdade investigatória mais permissiva e alargada do que em processo civil, ou a parir da reforma de 2013, talvez não [[24]], dados os valores que se planteiam, não se poderá olvidar a necessidade de ainda assim se deverem constituir barreiras e limites que não podem ser ultrapassados pela necessidade de garantir ao arguido um efectivo direito à defesa. Como em qualquer actividade jurisdicional o tribunal não pode por iniciativa própria, fora de determinadas circunstâncias prefiguradas na lei adjectiva, modelar e prefigurar os factores essenciais que balizarão a formação da matriz inculpatória e que confinarão a actividade julgadora em sede de julgamento.       

Não deixará de se vincar que a instrução tem natureza judicial, e não de actividade investigatória, destinando-se à comprovação judicial da decisão tomada pelo Ministério Público de deduzir, ou não, acusação (art. 286º, nº 1 do Cód. Proc. Penal) e não a constituir um complemento da investigação prévia à fase de julgamento.

A estrita vinculação temática do tribunal a que se fez referência (limitação da actividade de instrução aos factos alegados no requerimento para abertura de instrução) relaciona-se com essa natureza judicial da instrução, sendo uma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo penal e constituindo uma garantia de defesa consagrada no art. 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa.

Não pode pretender-se através da instrução alcançar os objectivos próprios do inquérito. Outros meios processuais são os adequados para o efeito e aos mesmos podem os sujeitos processuais interessados recorrer (veja-se, nomeadamente, as possibilidades permitidas pelos art. 279º, 277º, nº 2 e 278º do Cód. Proc. Penal).

A admitir-se entendimento diverso, "(...) estar-se-ia a transferir para o juiz o exercício da acção penal, contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor e a transformar a natureza da instrução que passaria de contraditória a inquisitória".
De harmonia com o disposto no art. 287.º do CPP, a instrução pode ser requerida pelo assistente relativamente aos factos pelos quais o MP não tenha deduzido acusação — vale por dizer, num processo onde se procedeu ao arquivamento do inquérito, relativamente a todos os factos, pois todos eles não foram objeto de qualquer acusação.
Todavia, a instrução não constitui uma nova fase de inquérito. Na verdade, a instrução, como puro instrumento de controlo apenas e não como instrumento de fiscalização da atividade desenvolvida pelo MP durante o inquérito, nem como complemento de investigação, assegura a necessária compatibilização com o modelo acusatório (articulado com o princípio da investigação) imposto pela CRP (art. 32.º, n.º 5).  A instrução apenas “visa a comprovação judicial da decisão (…) de arquivar o inquérito” (art. 286.º, n.º 1 do CPP), “não se destina, pois, a repetir ou a “completar” o inquérito ou a sindicar a investigação, apenas a fiscalizar a decisão que põe termo ao inquérito”[Henriques Gaspar e outros, Código de Processo Penal — Comentando, Coimbra: Almedina, 2014, p. 999]
Assim, se o requerente pretendia uma nova investigação ou a realização da investigação que, segundo o seu entendimento, não foi realizada, deveria ter usado a faculdade que o art. 278.º do CPP lhe concedia — a de requerer a intervenção hierárquica para que fosse avaliada a necessidade (ou não) de prosseguir a investigação.
Ora, o requerimento de abertura de instrução, ao lado da acusação, quando esta exista, permitem delimitar o objeto do processo. E por isto tem-se considerado que aquele requerimento deve conter em súmula as razões de facto e de direito da discordância do requerente relativamente à decisão anterior, no caso a decisão de arquivamento; e deve também indicar as provas a produzir durante a instrução. Deve ainda conter a narração dos factos e a indicação das disposições legais aplicáveis. E se se entende que “o assistente e o arguido devem ser convidados a aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, faltando algum ou alguns dos seus requisitos”, “excetua-se, porém, a falta da narração dos factos no requerimento do assistente, [pois] constitui o elemento definidor do âmbito temático da instrução” [Henriques Gaspar e outros, Código de Processo Penal — Comentando, Coimbra: Almedina, 2014, p. 1003]. Caso que que “o requerimento terá de ser indeferido, não podendo ser renovado, a não ser que a renovação se efective antes do termo do prazo”[ Henriques Gaspar e outros, Código de Processo Penal — Comentando, Coimbra: Almedina, 2014, p. 1003].
Ou seja, para além dos fundamentos de indeferimento do requerimento de abertura de instrução constantes do art. 287.º, n.º 3, do CPP, ainda se acrescenta o da falta de narração dos factos pelo assistente.” [[25]]

Com este vector normativo contido no artigo 287º do Código Processo Penal é difícil sustentar que o requerente da comprovação da decisão de não acusação não tenha o dever legal de, de uma forma sintética, alinhar a soma de factos que considera, na sua perspectiva, terem sido levados a cabo pelo arguido(s), qual a forma de participação que cada um dos arguidos teve na execução material dos factos que lhe são assacados e demais elementos que importam para que quem tem o dever de julgar possa, em concreto, confrontar o arguido com dados objectivos. Trata-se, afinal, mutatis mutandis, da exigência constitucionalmente caucionada de o juiz no primeiro interrogatório – cfr. art. 141.º, n.º4 do CPP – dever confrontar e informar o arguido dos factos que lhe são imputados na averiguação que conduziu à sua indiciação por uma determinada e concreta facticidade. Tanto num caso como noutro, emerge e soleva um dever constitucional de o arguido saber quais, concretamente os factos que lhe são imputados e para os quais terá de engendrar e ajaezar a sua defesa. Não pode o arguido ser confrontado com alusões vagas e indeterminadas que não induzem ou enuclearizam comportamentos naturais, intelectualmente assumidos, e pelos quais possam ser responsabilizados jurídico-penalmente.

São fins irremovíveis da instrução: 1º) – a chancela, homologação ou comprovação judicial, de: a) - da decisão de deduzir acusação; b) – da decisão de arquivamento do inquérito; 2º) – (a comprovação judicial) tem como finalidade submeter ou não a causa a julgamento – tendo por base uma acusação ou, no caso de ausência de acusação, a decisão de manutenção da decisão de arquivamento do inquérito. Se o requerente da instrução, por ter ocorrido uma decisão de arquivamento do inquérito, pretender obter uma decisão de consistência de uma base de imputabilidade factual e de culpabilidade do arguido, que, contrariando a esta decisão, afirme, pela positiva, a existência de base fundante, terá que formatar, no requerimento em que pretende ver coonestada a sua tese, uma base factual concreta de onde seja possível extrair ou nuclearizar o objecto formal que será, comprovada a sua viabilidade, na fase instrutória, o módulo cardeal por que o julgador se imbricará no apuramento da culpabilidade suficientemente materializada.

Não pode, em nosso juízo, um requerimento assim alinhado servir como modelo de libelo acusatório para que o tribunal possa discernir entre o emaranhado de factos, suposições, suspeitas e indicações genéricas imputar, em concreto, condutas determinadas para as quais, de forma individualizada, possa aferir da concreta responsabilidade penal por um resultado que, em concreto, possa ser assacada a cada um dos sujeitos contra quem foi dirigida a denúncia.

Dir-se-á que é uma questão de forma. Mas onde acaba a forma e começa a substância? Não emoldura a forma o conteúdo e nesta delimitação orgânico-funcional se representa a nominação qualificativa que permite a distinção dos objectos performativos? É a denotação que informa quanto à conotação e é a representação que exprime a substância e manifesta na apreensão perceptiva que o indivíduo adquire como existência material e realmente configurada. “A forma é a maneira como estamos directamente conscientes do atributo”. [[26]]

Sem indicação que possa conduzir a uma conotação exterior das condutas é impossível imputar acções individualizadas que possibilitem a responsabilização jurídico-penal de um qualquer sujeito.

Reafirmamos o já adiantado supra, de que o requerimento apresentado pela assistente não conforta, por carência de requisitos, jurídico-processuais, mínimos, o conteúdo que é mister estar contido num requerimento em que se pretenda requestar a comprovação da existência de indícios a um determinado sujeito passivo.

Que o requerimento para abertura da instrução tem que conter alguns requisitos atinentes com uma estrutura formal e assimilável à de um requerimento em que se deduz o acervo factual indutor da introdução do “feito em juízo”, como os tratadistas de antanho soíam dizer, atesta-o o normativizado no artigo 303.º, n.º 1 e 3, do CPP, quando inculca a necessidade de o Juiz comunicar ao arguido qualquer alteração dos “factos descritos na acusação do Ministério Público ou o do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução (…)”. Só a dedução do requerimento para abertura da instrução com enunciação dos factos, donde conste o tempo, o lugar, o modo como os agentes procederem para conduzir o processo executório é possível individualizar e suscitar confrontos pontuais donde possa inferir-se uma denotação diversa da factualidade descrita e que permita ao juiz de instrução operar a destrinça necessária indicativa na norma citada. Não se encontrando individualizados e arrumados os factos pela ordem e alinhamento que possibilitem esse exercício de joeiramento não será possível ao juiz cumprir este desígnio normativo. Impõe-se, pois, em nosso juízo, que o requerimento para abertura da instrução contenha um alinhamento factual susceptível de sobre ele poder ser produzida prova.

Intimamente conectada com esta exigência está o regime de nulidades inserto no artigo 309.º, n.º 1 do CPP ao taxar de nula a decisão instrutória “na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução”. Parece-nos que mais uma vez o legislador quis conferir ao requerimento para abertura da instrução uma feição e estrutura similar ao de um requerimento em que o Ministério Público ou o assistente requerem ao tribunal a introdução de um feito que eles reputam de revestir natureza criminosa ou que contem os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. A acusação, do Ministério Público ou do assistente, não deixam de ser requerimentos dirigidos ao tribunal onde se impetra, que segundo os pressupostos jurídico-materiais alinhados no requerimento, aplique ao arguido uma pena ou uma medida de segurança. Daí que o requerimento para abertura da instrução, embora não exigindo a mesma estrutura descritiva e expositiva não possa deixar de conter o mínimo de individualização dos factos que possibilitem ao juiz destrinçar neles a indicação factual e jurídica que permita colimar a pressuposição de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança.

Tanto o requerimento de acusação, do Ministério Público ou do assistente, como o requerimento para abertura da instrução, hão-de conter os elementos cingidos e confinados em que o juiz de instrução vai orientar e direccionar a actividade comprovatória, que permitirá concluir por um juízo de verificação dos pressupostos de que hão-de depender a aplicação da pena ou medida de segurança, do mesmo passo que haverão de permitirão arguido colimar a sua defesa de modo a aduzir as causas de justificação que contraminem as razões de facto e de direito que o requerente lhe antepõe. Não pode o tribunal diluir a sua actividade e a sua capacidade de indagação num “pântano”, para utilizar um termo muito em voga num determinado momento politico, factual onde não é possível escandir com o mínimo de certeza e objectividade quais os factos que, em concreto, um sujeito processual imputa a outrem. O thema probandum quedaria de tal modo incerto e impreciso que permitiria a evanescência do sentido e arrimo probatório, ocasionando uma dispersão incompatível com um agir finalístico do processo penal, qual seja o de comprovar, através de um procedimento concatenado e direccionado, a existência, ou não, da verificação de um ilícito de natureza penal. Agir no interior de um quadro factual arrumado e dirigido à conformação processual de uma actividade investigativa é o que se requesta de um requerimento em que um sujeito processual impetra a um órgão formal de controlo uma actividade investigativa destinada a comprovar ou a infirmar a ocorrência da factualidade elencada. Deixar ao alvedrio e errático alinhamento factual, ou de meras suposições e indicação suspeitosas, de um requerimento a actividade investigativa de um tribunal suscitaria um nível de insegurança e indefinição inconciliáveis como o rigor e arrimo à certeza que devem nortear e orientar a actividade de qualquer órgão jurisdicional.

Ao tribunal não cabe, em face do que se deixa dito, a tarefa de convidar o assistente a aperfeiçoar um requerimento que, de forma ostensiva, não narra, com arrimo aos preceitos supra citados, os factos que considera deverem ser imputados e pelos quais hajam de ser responsabilizados jurídico-penalmente. O convite ao aperfeiçoamento constituiria uma intolerável, e não desejável, intromissão do tribunal na esfera de actividade processual de um sujeito que deve, obrigatória e estatutariamente, representado por mandatário judicial [[27]].

A assistente pretenderia conformar a conduta da arguida na previsão legal contida no artigo 369º do Código Penal (Denegação de justiça e prevaricação: nº 1. “O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes de cargo que exerce, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 120 dias; 2. se o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, o funcionário é punido com pena de prisão até cinco anos; 3. Se, no caso do nº 2, resultar privação da liberdade de uma pessoa, o agente é punido com pena de prisão de um a oito anos; 4. Na pena prevista no número anterior incorre o funcionário que, sendo para tal competente, ordenar ou executar medida privativa de liberdade de forma ilegal, ou omitir ordená-la ou executá-la nos termos da lei. 5. No caso referido no número anterior, se o facto for praticado com negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa.”)  

O crime de denegação de justiça e prevaricação, previsto e punível pelo artigo 369º, nº 1, do Código Penal, encontra-se sistematicamente inserido no âmbito dos crimes contra o Estado, mais especificamente no capítulo dos crimes contra a realização da justiça. O bem jurídico tutelado é a realização da justiça em geral, visando a lei assegurar o domínio ou a supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça, maxime judiciais. Tem por elementos constitutivos a ocorrência de comportamento contra o direito, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, por parte de funcionário, conscientemente assumido, havendo lugar à agravação no caso de o agente agir com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém.

Face à exigência típica decorrente da expressão “conscientemente”, só o dolo directo e o necessário são relevantes, como é jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal [[28]]. Em sentido coincidente se vem pronunciando a doutrina nacional [[29]].

Assim sendo, como se consignou no acórdão deste Supremo Tribunal de 8 de Outubro de 2008, citado, o dolo, enquanto vontade de realizar o tipo com conhecimento da ilicitude (consciência), há-de apreender-se através de factos (acções ou omissões) materiais e exteriores, suficientemente reveladores daquela vontade, de onde se possa extrair uma opção consciente de agir desconforme à norma jurídica. Não são meras impressões, juízos de valor conclusivos ou convicções íntimas, não corporizados em factos visíveis ou reais, que podem alicerçar a acusação de que quem decidiu o fez conscientemente contra o direito e, muito menos, com o propósito específico de lesar alguém.

Por outro lado, como igualmente se refere naquele acórdão, não é a prática de qualquer acto que infringe regras processuais que se pode, sem mais, reconduzir a um comportamento contra o direito, com o alcance definido no n.º 1 do artigo 369º do Código Penal; é preciso que esse desvio voluntário dos poderes funcionais afronte a administração da justiça, de forma tal que se afirme uma negação de justiça [[30]].

Não basta, pois, que se tenha decidido mal, incorrectamente, contra legem, sendo necessário que quem assim decidiu tenha consciência de que, desviando-se dos seus deveres funcionais, violou o ordenamento jurídico pondo em causa a administração da justiça.” [[31]]

 “Como refere Medina de Seiça [[32]] o normativo invocado pelos denunciantes recorrentes -crime de denegação de justiça e prevaricação do artigo 369 do Código Penal- cobre uma multiplicidade de condutas, as quais, porém, se podem reconduzir a um étimo comum que consiste na actuação contra direito. Consequentemente, o crime enquadra-se no amplo sector dos crimes de funcionários, em que o factor de união reside na violação dos deveres funcionais decorrentes do cargo desempenhado pelo se configura como um típico crime específico (próprio).

Adianta aquele autor que as decisões dos aplicadores judiciais apresentam uma intrínseca capacidade lesiva (prisão, multa, interdição de direitos, expropriação, etc.), cuja potencialidade danosa é acrescida em virtude da generalizada credibilidade institucional de que se revestem…..Este tipo de crime pretende assegurar o domínio ou supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça, maxime, judiciais …….). Pode dizer-se que, enquanto noutros tipos de crime incluídos neste capítulo, a lesão do bem jurídico realização da justiça provém de agentes que se situam fora do aparelho estadual da administração da justiça (assim, no falso testemunho, no favorecimento pessoal), na fattispecie em apreço (como também no favorecimento por funcionário: art. 368°) o ataque ao bem jurídico dá-se de dentro, i. é, por parte dos órgãos deputados pela comunidade estadual justamente para a tarefa da correcta realização da justiça. É esta perversão ab imo - transformação do direito em injusto por parte de quem é chamado a servir de garante institucional à própria Ordem Jurídica - que convoca a particular censura da norma incriminadora.

Em termos nucleares do tipo está em causa uma resposta penal aos abusos da função judicial, determinando-se a criação de um tipo específico de prevaricação e com ele a estatuição da responsabilidade penal do juiz que se assume como contra-peso à garantia da irresponsabilidade e independência judiciais

Na integração dos elementos objectivos tipificadores do crime é essencial o agir contra direito sendo certo que este agir abrange e, em primeiro lugar, o conjunto das normas vigentes na ordem jurídica positiva, independentemente da sua origem ou modo de revelação (se. fonte), tenham cunho material ou, antes, processual, natureza pública ou privada, de criação estadual ou não (v. g., convenções colectivas de trabalho). Porém, para além do referido estão também em causa os princípios jurídicos não directa ou expressamente consignados em normas positivadas, mas que delas decorrem e gozam de força cogente, como o princípio in dubio pro reo, ou a proibição do venire contra factum proprium, etc.

O núcleo típico deste crime verifica-se, assim, quando o agente realiza ou omite um comportamento contra direito. Tal conduta pode, naturalmente, assumir diversas formas. que, como refere o mesmo autor, pode passar por uma incorrecta aplicação das normas jurídicas, quer de direito substantivo quer processual, ou um falso ou erróneo estabelecimento da base factual que é pressuposto da aplicação normativa, ou, ainda, a violação da esfera de discricionariedade que, eventualmente, a norma comporte

Importa, ainda, para que aquela integração se verifique precisar se essência da prevaricação reside numa conduta tomada contra a convicção pessoal do agente sobre qual seja a verdade ou direito objectivo; ou, por último, na lesão dos deveres funcionais do agente impostos no interesse da descoberta da verdade e do direito. A resposta ensaiada a esta questão passa, como alude Medina de Seiça, por três teses fundamentais: a teoria subjectiva, a teoria objectiva e a teoria do (ou da violação do) dever.

Para a primeira daquelas teorias o funcionário age contra direito quando a sua decisão (de promover ou não, etc.) diverge da decisão que, em sua convicção pessoal, corresponde à juridicamente correcta ou imposta. O mesmo vale por dizer que o critério aferidor da verificação do delito reside na subjectiva convicção do agente sobre o sentido ou conteúdo do direito). O crime de prevaricação expressaria, assim, um autêntico delito de convicção.

Por seu turno os defensores da tese objectiva sustentam que existe prevaricação sempre que a decisão tomada pelo funcionário não for aquela que o direito objectivamente impunha ou que não corresponda à situação jurídica objectiva. Desta forma, para a realização do tipo objectivo da prevaricação é irrelevante se a decisão tomada corresponde ou não à convicção pessoal do funcionário.

Para a teoria da violação do dever a prevaricação significa a violação dos deveres (de metódica jurídica) a que o funcionário, maxime o juiz, se encontra sujeito em ordem à efectivação do interesse que na realização da verdade e do direito).

Agir contra direito significa, essencialmente, a contradição da decisão (aqui incluindo, claro está, o comportamento passivo) com o prescrito pelas normas jurídicas pertinentes. Mas tal contradição só por si nada mais significa do que a existência dum erro de direito que pode justificar uma alteração do decidido.

A nota definidora do crime imputado é a consciência de tal contradição de agir contra o direito ou seja é o assumir da violação dos deveres profissionais em função de outras razões. A colisão com o direito, procurada de forma deliberada, é o núcleo essencial do crime de prevaricação.

No caso vertente a procedência da denúncia pressupõe, assim, em primeiro lugar, e independentemente de qualquer consideração sobre a vertente subjectiva que a iluminou, que exista uma decisão contrária ao direito e, só depois de tal demonstração, o esclarecimento sobra uma participação pessoal, ou seja, uma livre e subjectiva convicção de actuar contra o sentido correcto do agir.

Como refere Medina de Seiça o juízo de antinormatividade do acto afere-se pela sua concreta exteriorização, pelo seu conteúdo de desvalor extrínseco - ainda que consequencial à leviandade do agente, ao desrespeito pelas leges artis, o juízo de ilicitude na prevaricação não se confunde com aquele desrespeito, tal como na ofensa corporal causada por um médico em virtude da violação das regras de cuidado da medicina, o dano objectivo afere-se pela amplitude da lesão.

Porém, e na verdade, se a decisão tomada se incluía no possível âmbito hermenêutico do preceito aplicado, ela já não se mostra contra direito; pelo contrário, expressa uma solução de direito, por conseguinte refractária à censura normativa da presente incriminação.  Se para a norma em causa, ou antes, se a aplicação ao caso concreto de uma norma não se circunscreve à pura subsunção de uma fattispecie unívoca (hipótese em que a prevaricação se afirma com a simples desconformidade da solução com o prescrito no comando legal), mas se espalha por diversas vias juridicamente admissíveis de acordo com os cânones da metodologia jurídica, muitas vezes sancionadas na sua contrastante variedade pelas mais altas instâncias judiciais e conceituada doutrina, parece-nos que a escolha de uma delas feita pelo concreto aplicador conforma, em princípio, uma solução de acordo com o direito. [[33]]

Revisitando a matéria narrada/descrita no requerimento para abertura da instrução, e que deixamos supra extractada, teremos que i) por decisão proferida no processo nº 95/12.4TBHRT, em 17 de Julho de 2013, ao pai do menor EE, ora denunciante, AA, tinha sido suspenso o regime de visitas (ao menor); ii) em data não apurada, o menor terá feito menção à mãe que o pai o havia visitado, acompanhado da avó, CC, em princípios do mês de Setembro, no jardim-escola, “...”; iii) a notícia foi levada, pela mãe do menor, ao processo de inquérito nº 3873/13.3TDLSB, que corria contra o ora denunciante e a mãe (avó do menor) pela prática de crimes de abuso sexual de criança, tendo siso extraída certidão deste processo para averiguação da eventual prática de um crime de desobediência; iv) no âmbito desta averiguação (processo de inquérito a que coube o nº 6318/13. 5TDLSB) foi ouvida a assistente social, DD, que negou a presença do pai do menor e a avó junto do jardim-escola – cfr, fls. 44-45; v) o denunciante e a avó do menor foram, no âmbito do processo nº 3873/13.3TDLSB, acusados, no dia 24 de Outubro de 2013, respectivamente, o primeiro, pela prática, em autoria material, de quatro crimes de abuso sexual de criança agravado, previstos e punidos pelos artigos 171º, º 1 e 2 e 177º, nº 1, alínea a) e a avó de dois crimes de abuso sexual agravada igualmente previstos e punidos pelos artigos 171º, º 1 e 2 e 177º, nº 1, alínea a), do Código Penal; vi) na proposta para imposição de medidas de coacção, a arguida, apelando ao facto de o tribunal da Horta, “no âmbito do processo de regulação das responsabilidades parentais, ter determinado a suspensão do regime de vistas ao pai, aqui arguido, existem indícios sérios, atentas as revelações feitas pelo menor à mãe e ao médico psiquiatra que o acompanha, conforme consta de fls. 428 a 433, de que ambos os arguidos, no inicio de Setembro de 2013, entraram em contacto com o menor, num encontro ocorrido junto ao jardim de infância que o menor frequentava, onde lhe terão dito para não contar nada, episódio que, além do mais, perturbou gravemente o menor, que focou muito receoso” – cfr. fls. 31 – foi proposto que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo na situação de prisão preventiva e a avó, CC, com a de obrigação de permanência na habitação; vii) o processo de inquérito nº 6318/13. 5TDLSB, foi mandado arquivar por se ter considerado que (sic): “(…) apesar de, quer  a DD, quer o pai do menor, AA, terem conhecimento de que estava suspenso o regime de visitas e de que, portanto, desde 16 de Julho de 2913, que o pai não podia visitar o filho, por ordem do Tribunal de Família, e estarem cientes de que ao fazê-lo incumpriam uma ordem judicial, tendo em conta que não existe disposição legal a cominar tal ato como desobediência simples, e que não foi feita em concreto tal cominação, no âmbito do aludido processo, logo se concluiu que nem um nem outro cometeram o crime de desobediência p. e  p. pelo artigo 348º do Código Penal.” – cfr. fls. 42.

O assistente entona a existência de um comportamento contrário ao Direito no facto de a Procuradora do Ministério Público ter conhecimento, por aquisição de informação advinda da sua actividade funcional-profissional e pelas declarações prestadas por uma testemunha noutro inquérito de que era titular, de que nem ele nem a mãe haviam estado junto ao jardim-escola onde se encontrava o filho – de quem ele estava interdito de se abeirar – e ainda assim, fazendo caso omisso desse facto, não deixou de, num outro inquérito, de que também estava encarregada ter deixado de propor/promover a medida de coacção de prisão preventiva relativamente a si, invocando esse facto. 

Para o assistente a omissão terá sido efectuada com o objectivo de o prejudicar e com pleno conhecimento de que estava a referir factos que sabia não corresponderem à verdade, por estarem negados noutro inquérito por uma testemunha.

«Sencillamente» o imo da imputação nucleariza-se, ou condensa-se, em a arguida ter adquirido conhecimento de um facto no âmbito da sua função, e num determinado inquérito – através de um depoimento de uma testemunha –, e sabendo-o utilizou-o de forma capciosa e suspicaz, iria prejudicar, ou pelo menos influenciar negativa ou depreciativamente, quem dele poderia beneficiar – em acto processual que poderia ter importado a aplicação da medida de coacção mais gravosa, a prisão preventiva. A arguida sabendo da «inverdade» de um facto deveria ter, em sã e escorreita consciência, ter-se abstido de o referir aquando da promoção da medida de coacção, dado que devendo esse facto ser tomado em consideração na ponderação da aplicação da medida de coacção então ela nunca poderia ter proposto a medida que propus sob pena de violação grave do seu dever funcional.

Tendo-se confirmado que o facto – «pretensa visita» do arguido e da mãe ao jardim-escola frequentada pelo – foi utilizado pela arguida no inquérito em que o arguido e a mãe estavam a ser investigados pela prática de crimes de abuso sexual de menor, o facto é que também se encontra comprovado (documentalmente) que o inquérito que havia sido instaurado ao arguido por desobediência (inquérito nº 6318/13) foi arquivado, não porque tivesse sido provado que o arguido não visitou o menor no jardim-escola, mas por que (sic): ““(…) apesar de, quer  a DD, quer o pai do menor, AA, terem conhecimento de que estava suspenso o regime de visitas e de que, portanto, desde 16 de Julho de 2913, que o pai não podia visitar o filho, por ordem do Tribunal de Família, e estarem cientes de que ao fazê-lo incumpriam uma ordem judicial, tendo em conta que não existe disposição legal a cominar tal ato como desobediência simples, e que não foi feita em concreto tal cominação, no âmbito do aludido processo, logo se concluiu que nem um nem outro cometeram o crime de desobediência p. e  p. pelo artigo 348º do Código Penal.”  

A razão do arquivamento do inquérito onde foi produzido o depoimento que o assistente pretende fazer valer contra a arguida – as prestadas pela assistente social – não foram a causa do arquivamento do inquérito mas sim que aos arguidos não tinha sido efectuada a cominação de que se visitassem o menor incorreriam num crime de desobediência. Desconhece-se se no inquérito nº 6318/13 existiria prova que infirmasse o depoimento que o assistente exalça e entroniza com talho axiomático e de truísmo. Do despacho de arquivamento, pensa-se, ser legitimo extrair uma ilação, qual seja a de que a visita ocorreu – (“que o pai não podia visitar o filho, por ordem do Tribunal de Família, e estarem cientes de que ao fazê-lo incumpriam uma ordem judicial”) só que a inculpação não seria possível por carência de um elemento constitutivo do ilícito-típico, a saber a ordem de proibição expressa pelo órgão competente.

O facto esgrimido pela arguida – a ocorrência de uma visita por parte do assistente e da mãe deste ao menor, no jardim-escola –, no momento em que promoveu a aplicação da medida de coacção mais gravosa não tinha um valor absoluto e definitivo e provavelmente a Senhora magistrada estaria convencida que a visita teria mesmo ocorrido, malgrado a afirmação de feição negativa asseverada pela assistente social.

Não resulta, com os elementos factuais documentados disponíveis e extractados supra, que a arguida, com os elementos de que dispunha não pudesse utilizar o facto que utilizou e do mesmo passo que com essa utilização estivesse, de forma consciente, a pretender conferir um estado de privação de liberdade ao assistente.  

Falece, em nosso juízo, e não vem inerido no requerimento de abertura o elemento que prevaleceria para imputação do crime de denegação de justiça, por parte da arguida.

Em jeito de remate, dir-se-á que, em nosso juízo, e em conformidade com o juízo expresso pelo tribunal recorrido, o requerimento de instrução impulsado pelo assistente não cumpre os requisitos exigíveis por lei – cfr. artigos 287º, ex vi do art. 283º, ambos do CPP - para servir como elemento ou vector de partida para abertura de uma fase processual em que o tribunal tem como dever comprovar a existência, ou não, de indícios que o alentem a imputar a alguém uma conduta desvalorativa e antijurídica.

Segundo os tratadistas [[34]] são três os perfis formais sob os quais um acto processual pode ser examinado: a) – relevância jurídica; b) – perfeição do acto; e c) – eficácia do acto. Pelo primeiro, afere-se a existência jurídica de um acto para produzir efeitos relevantes para o direito, o que equivale a dizer que um acto não pode ser somente materialmente existente, deve sê-lo também do ponto de vista jurídico. Pelo segundo, afere-se o requisitório formal necessário para que corresponda ao modelo de conformidade predisposto, em geral e abstracto, com a lei. Pelo terceiro, o acto existente e perfeito, deve ser eficaz, deve cumprido tempestivamente, no sentido em que devem ser respeitados os termos da lei, por razões de continuidade procedimentar, prevê para a sua apresentação ou deve ser executado após o decurso de um prazo prefixado.  

Desbordando do primeiro dos perfis enunciados, importa, no caso em apreço, conferir o conceito de nulidade. Segundo os tratadistas supra referidos, “nulidade é a sanção que atinge, tornando-o anulável, o acto não correspondente ao esquema legal – nos casos e nos limites taxativamente previstos – ou seja o acto formalmente perfeito, mas executado sem a observância, prescrita, no caso («appunto»), com a pena de nulidade, de determinados requisitos”. [[35]]

As nulidades assumem ou revestem a natureza de absolutas ou relativas, ou ainda, para o regime processual italiano “nulidades de regime intermédio”, “le nullità a regime intermedio”, no que diferem das meras irregularidades, ou seja aquelas imperfeições de actos processuais que, “pela sua menor consistência com respeito á ortodoxia formal ou substancial, não pode ser reconduzida á noção de nulidade e ainda menos à de inexistência”. [[36]] Por consequência é irregularidade “aquela imperfeição que do ponto de vista positivo se traduz numa inobservância da lei (frequentemente susceptível de correcção) e que, do ponto de vista negativo, não alcança aquela consistência que poderia integrar uma verdadeira e própria nulidade”.

As deficiências apontadas ao requerimento afectam a validade da estrutura endógena em que assenta o perfil organizativo de uma peça processual com as características de uma acusação, com as consequentes implicações que daí decorrem para o desenrolar normal do iter procedimentar. Como se procurou explicar supra, o juiz de instrução não pode permitir que um requerimento que não cumpra as exigências insertas no art. 283º, ex vi do art. 287º do CPP, prossiga e seja recebido, potenciando, et pour cause, o desenrolar de actividade processual donde o tribunal pudesse vir a extrair consequências jurídicas, para os imputados, se ele não conforta o mínimo de requisitos que o configurem como paradigma válido de expediente processual admitido pelo ordenamento jurídico-processual. 

Desta desconformidade intrínseca e substancial decorre não poder o tribunal deixar de declarar a nulidade do acto inquinado e declarar a sua nulidade, obstando deste modo à prossecução de um encadeado de actos processuais que conteriam o “pecado original”de não concitarem a validade jurídico-objectiva interna ajustada organização sistémica para que o processo tende.  

A inadmissibilidade da prática de um acto, por contravenção à lei, ou por ausência de requisitos prescritos na lei, podem não estar elencados na lei com exaustividade, o que equivale por dizer que não têm enumeração taxativa e são sujeitas a numerus clausus no ordenamento jurídico-processual, como acontece, por ex., com as nulidades insanáveis. No entanto, desde que ao acto praticado por um sujeito processual esteja, ou seja praticado, em contravenção com as prescrições normativas que regem para a prática e exercício de determinado acto processual, o acto assim praticado é ilegal por se mostrar desconforme e em antinomia com o que está prescrito na lei. A ilegalidade, nestes casos, não é uma ilegalidade expressamente prevista e elencada, mas sim uma imanência inserta no próprio acto, em si mesmo contrário ao arrimo sistémico do ordenamento.

Daí que o acto que inere o requerimento para abertura de instrução, por se mostrar, em nosso juízo, e como procuramos demonstrar supra, contrário às prescrições que regem para a formalização deste tipo de prática processual, deve ser taxado de ilegal e, consequentemente, inadmitido, por ilegalidade. 

De tudo o que procuramos explicitar se conclui pela inadmissibilidade do requerimento de instrução impulsado pelo assistente. 

Isto posto, torna-se cogente concluir que o requerimento do assistente, além de não destacar os concretos facto imputados à arguida, vale dizer como uma acusação, igualmente não descreve todos os factos susceptíveis de preencher os elementos típicos dos crimes que pretende assacar ao arguido, não concretizando os concretos factos integradores da violação de algum dever que impenderia sobre a arguida.

III. – DECISÃO.

Na defluência do exposto, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 3ª secção criminal, do Supremo Tribunal de Justiça, em:

-Negar provimento ao recurso;

- Condenar o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 Uc´s.

  Lisboa, 7 de Fevereiro de 2018

  (Gabriel Catarino – Relator)

                                                      

  (Manuel Matos)  

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[1] Moreira, Vital, in Declaração de Voto ao Ac.7/87 de 8-1 do Tribunal Constitucional.
[2] Teixeira, Carlos Adérito, Princípio da Oportunidade, Almedina, 2000, Coimbra pag. 21
[3] William Warren em Prefácio a Leon Radzinowicz, Ideology and Crime, Heinemamm Educational Books, Londres, 1966, pag. 8
[4] Figueiredo Dias, A Nova Constituição da Republica e o Processo Penal, Lisboa, 1976, pag. 10
[5] Direito Constitucional, Almedina, Coimbra, 1986, pag. 281
[6] Manuel Dias da Silva, Lições de Processo, 3.ª parte, Processo Criminal, apontamentos por Afonso Costa, Coimbra, 1894 in, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 1.º Volume, Verbo, Lisboa, 1996.
[7] Frederico Lacerda da Costa Pinto, Direito Penal I, Aulas Policopiadas, Universidade Autónoma de Lisboa, 1995
[8] Frederico Lacerda da Costa Pinto, obra citada
[9] Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal I, Aulas Policopiadas, A.A.F.D.L., Lisboa, 1984)
[10] artigo 53, n.º 1 do CPP.
[11] Lei n.º 49/2008 de 27 de Agosto
[12] Teresa Pizarro Beleza, com a colaboração de Frederico Isasca e Rui Sá Gomes, apontamentos de Direito Processual Penal, Lisboa, AAFDL, Volume I, 1992.
[13] João Paulo Dias, Paula Fernando e Teresa Maneca Lima, “O Ministério Público em Portugal: Que papel, que lugar?” - Oficina do CES n.º 272- Março de 2007
[14] F. Teodósio Jacinto, O modelo de processo penal entre o inquisitório e o acusatório : repensar a intervenção judicial na comprovação da decisão de arquivamento do inquérito, In: Revista do Ministério Público. - Lisboa : S.M.M.P., 1980 -. - A. 30, Nº 118 (Abr./Jun. 2009), p. 5-44
[15] Idem
[16] Idem
[17] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Volume III, 2.ª edição, pág. 179.
[18] Nuno Brandão, “A Nova Face de Instrução”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2 e 3/ 208, pág. 228-229, relatado pelo Conselheiro   
[19] O objecto do processo “individualiza-se e identifica-se por um caso jurídico-criminal concreto que, perante uma actuação polarizada pela conduta de uma pessoa, com o seu sentido axiológico-social particular, se oferece explicita ao perguntar-se pela validade jurídico-criminal de quele sentido axiológico social da conduta-situação” – cfr. Castanheira Neves, Sumários de processo Criminal, Coimbra Editora, 1968, pág. 268. 
O decurso de um processo penal, seja na forma comum, seja numa das formas especiais que mais divergem das fases processuais daquela, como acontece com o processo sumário (art. 382º e ss do CPP), pressupõe a identificação dos factos que, tendo relevância criminal, podem ser imputados ao arguido através do processo.
Essa selecção dos factos é uma exigência, desde logo, das normas penais substantivas que serão aplicadas no processo, já que elas próprias descrevem factos e circunstâncias de factos que, uma vez imputados ao arguido no processo, podem gerar responsabilidade criminal.” – Cfr. Teresa Pizarro Beleza e Frederico Lacerda Costa Pinto, Direito Processual Penal I – Objecto do Processo, Liberdade de Qualificação Jurídica e Caso Julgado”, Lisboa, 2001, p. 7. 
[20] “o princípio da identidade do complexo de factos que integram o objecto do processo, de acordo com o qual as oscilações da matéria de facto durante o processo não podem em regra afectar a identidade do objecto do processo definido na acusação; por outro lado, o princípio da estabilidade, ou seja, a preservação do círculo de factos ao longo do processo sem oscilação significativas ou intoleráveis. Por outro, ainda, o princípio da indivisibilidade do objecto do processo, através do qual se veda a segmentação da sequência de factos que, em função da sua conexão interna e da sua unidade jurídica, devem ser tratados conjuntamente e não ser objecto de fragmentações processuais discricionárias. Daqui resulta, por seu turno, um princípio de consunção dos poderes de cognição do Tribunal que se esgotam não só no efectivamente conhecido, como também naquilo que, estando em sequência unitária com o acusado e o conhecido, deveria ter sido efectivamente apreciado pelo Tribunal, ficando preterida a possibilidade do seu conhecimento autónomo.
Neste exacto sentido, pode-se concluir que o problema da delimitação do objecto do processo não é apenas o da identificação do complexo natural de factos efectivamente descritos na acusação e realmente conhecidos pelo Tribunal, mas sim o problema da delimitação factico-normativa dessa realidade, que tanto abrange os factos reais, como os factos hipotéticos em unidade sequencial com aqueles (caso dos fragmentos de acções não descritas numa acusação que impute ao arguido a prática de um crime continuado. – Cfr. Teresa Pizarro Beleza e Frederico Lacerda Costa Pinto, Direito Processual Penal I – Objecto do Processo, Liberdade de Qualificação Jurídica e Caso Julgado”, Lisboa, 2001, p. 12
[21]Num modelo acusatório, mesmo integrado pelo princípio da investigação, não cabe ao Tribunal compor livremente o objecto do processo. E a ser “reformulado” esse objecto após a acusação – o que apenas excepcionalmente se admite – tal só poderá acontecer com o acordo dos demais sujeitos processuais (MP, arguido e defensor, mas também do assistente). Doutro modo serão lesados a estrutura acusatória e o princípio do contraditório. O Tribunal não pode reformular livremente o objecto do processo pois, entre outras razões, estará simultaneamente a investigar e a julgar os factos criminalmente relevantes. E se o fizer unilateralmente viola ainda o princípio do contraditório. Por isso, na nossa lei, uma reformulação do objecto do processo em julgamento que altere a sua identidade essencial só é possível com o acordo de todos os sujeitos processuais (art. 359.º, n.º 2 do CPP). Isto porque, exactamente, está em causa o princípio da acusação, a vinculação temática associada à estrutura acusatória, a imparcialidade do tribunal de julgamento, o direito de defesa do arguido e, de forma mais genérica, o contraditório decorrente da existência de diferentes pretensões de natureza penal assumidas no processo.
A verdade material, por seu turno, fito essencial de um processo (cfr. arts 53º, nº 1, 299º, nº 1 e 2, 340º, nº1 do CPP) que procura dentro dos limites da instância a verdade histórica sobre os factos eventualmente geradores de responsabilidade, não é um fim que justifique todos os meios. Não é um fim absoluto, mas sim um fim a prosseguir de forma condicionada, nos limites dos factos acusados (cfr. arts 303º, 309º, 311º, nº 2, al. b), 359º e 379º do CPP) e, dentro deste, de tudo aquilo que o Tribunal pode e deve conhecer, sob pena desse conhecimento ficar definitivamente preterido (princípio da consunção do objecto do processo).
Em suma, num modelo de processo penal que acolha uma estrutura acusatória, o tribunal de julgamento estará vinculado tematicamente pelo conteúdo material da acusação, isto é, o conjunto de factos descritos na acusação. O conhecimento de outros factos que não tenham sido legitimamente integrados no objecto do processo só pode ocorrer dentro de certos limites e regimes previstos na lei processual.” – cfr. Cfr. Teresa Pizarro Beleza e Frederico Lacerda Costa Pinto, Direito Processual Penal I – Objecto do Processo, Liberdade de Qualificação Jurídica e Caso Julgado”, Lisboa, 2001, p. 15.
[22] Proferido no processo nº 788/10.0GEBRG.G1-A.S1, publicado no DR. Iª Série, de 19 de Julho de 2013, pág. 4220 e em www.dgsi.pt
[23] Cfr. acórdão Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Janeiro de 2011, prolatado no processo nº 3/10.0YGLSB.S1, relatado pelo Conselheiro Sottomayor, e acessível em www.dgsi.pt,  de que queda extractado o respectivo sumário. I - O requerimento para abertura da instrução, quando apresentado pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento do MP, deve observar o disposto no art. 283.º, n.º 3, als. b) e c), do CPP, quer dizer, deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis. II - Não tendo sido formulada acusação pelo MP, o requerimento para a abertura da instrução funciona como equivalente dessa acusação, do qual decorre a vinculação factual que o juiz tem de respeitar, pautando a sua conduta no processo, por força do princípio do acusatório, dentro dos parâmetros fornecidos por aquela delimitação factual, uma vez que o juiz não actua oficiosamente e não investiga por conta própria, embora dirija e conduza a instrução de forma autónoma. III -Nestes casos, o requerimento para a abertura de instrução subscrito pelo assistente, não sendo uma acusação em sentido processual-formal, deve constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo, resultando da falta de indicação dos factos essenciais à imputação da prática de um crime ao agente a inutilidade da fase processual de instrução. IV -Um dos princípios que presidem às normas processuais é o da economia processual, entendida como a proibição da prática de actos inúteis (art. 137.º do CPC). O CPP não contém norma equivalente, mas tal não impede a aplicação deste preceito nos termos do art. 4.º do CPP, por se harmonizar em absoluto com o processo penal, havendo afloramentos do referido princípio no art. 311.º, ao permitir ao juiz rejeitar a acusação manifestamente infundada e no art. 420.º ao prever a rejeição do recurso quando for manifesta a sua improcedência. V - Se o juiz de instrução, apreciando o requerimento do assistente, concluir que de modo algum o arguido poderá ser pronunciado, uma vez que os factos que narra jamais constituirão crime, deve rejeitar tal requerimento, por o debate instrutório nenhuma utilidade ter, porque “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, … quando este for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido” (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/2005). VI -A instrução é de considerar legalmente inadmissível quando, pela simples análise do requerimento para a abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se concluir que os factos narrados pelo assistente jamais podem levar à aplicação duma pena ao arguido. VII - Nos casos em que exista um notório demérito do requerimento de abertura de instrução, a realização desta fase constitui um acto processual manifestamente inútil por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia. VIII - O assistente indicou, com minúcia, a conduta do denunciado que, na sua óptica, era integradora dos tipos de crime que entende preenchidos; porém, claudicou quanto ao elemento subjectivo, ficando-se pelo mero uso de expressões conclusivas, sem alegar qualquer facto capaz de pôr em evidência o motivo por que o denunciado voluntariamente assim agiu. IX -Como os poderes de indagação do juiz de instrução se encontram limitados pelos factos alegados, vedado lhe fica indagar das razões por que aquele teria agido contra direito com a finalidade de prejudicar o assistente e de beneficiar a contraparte, o que constitui verdadeiramente um dos pressupostos do requerimento de abertura de instrução. X - Tendo o denunciado a qualidade de magistrado, goza, no exercício da sua função, da garantia da irresponsabilidade quanto às suas decisões (art. 216.º, n.º 2, da CRP), que, embora não sendo absoluta, faz com que o juiz deva beneficiar da presunção hominis de integridade funcional. XI -O princípio da irresponsabilidade dos juízes não isenta os magistrados de responsabilidade criminal. Mas o apuramento desta torna-se mais exigente, sendo necessário que os indícios da prática do crime estejam bem consolidados, especialmente quanto ao elemento subjectivo, que, de modo algum, pode estar fundamentado em meras afirmações conclusivas, sendo de exigir que se adiante um hipotético móbil para o pretenso crime. XII - Por o requerimento de abertura de instrução primar pelo silêncio quanto aos motivos que teriam levado o denunciado a agir ilicitamente, não merece censura o despacho recorrido na parte em que conclui pela inutilidade da realização da fase instrutória, por não existir qualquer probabilidade, ainda que remota, de o denunciado vir a ser pronunciado por qualquer dos crimes cuja autoria o assistente lhe imputa, conclusões a que sempre se poderia chegar pela simples análise do requerimento de abertura de instrução, totalmente omisso na caracterização factual do elemento subjectivo.
[24] Cfr. Miguel Matias, “A «morte» do princípio do dispositivo”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 147º, nº 4007, págs. 86 a 119. 
[25] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de de 12 Junho de 2014, relatado pela Conselheira Helena Moniz, disponível em www.dgsi.pt.
[26] D. Kelly, “The evidence of the sens”, citado por Fernando Gil, in “Tratado da Evidência”, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, p.67. 
[27] Em apoio da tese que defendemos vai o acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/05, de 4.11.2005, publicado no Diário da República, Iª série, que reza: “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º,nº2 do Código Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”

[28] Cf. entre outros, os acórdãos de 07.02.08, 08.05.21 e 08.10.08, proferidos nos Processos n.ºs 4816/06, 32320/07 e 31/07.

[29] Cf. Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado (2ª edição), 1163, Medina Seiça, Comentário Conimbricense do Código Penal, III (1ª edição), 619 e Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal (2ª edição), 962, que só admite o dolo directo.

[30] Como expressivamente se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 07.02.08, já citado: «Nem todo o acto que infringir as regras processuais pode ser considerado “contra direito” no sentido específico do artigo 369º, n.º, 1, do Código Penal, pois então qualquer nulidade processual seria sancionável como crime».
[31] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Julho de 2012, relatado pelo Conselheiro Oliveira Mendes, acessível em www.dgsi.pt
[32] A. Medina de Seiça Código Penal Conimbricense (§§ 22-23) Anotação ao art. 369.
[33] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Setembro de 2014, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral, e acessível em www.dgsi.pt
[34] Andrea Antonio Dália e Marzia Ferraioli, Manuale di Diritto Processuale Penale, CEDAM,5ª Editizione, 2003, pag.429 e segs.
[35] Cfr.op. loc. cit., pag. 430.
[36] E. Fortuna; S. Dragone; E.Fassone; R. Giustozzi; A. Pignatelli, in Manuale Pratico del Nuovo Processo Penal, CEDAM, Quarta Edizione, 1995, pag. 315.