I – Um contrato de arrendamento para habitação celebrado nos anos 60 está sujeito às normas transitórias que integram o regime estabelecido no Título II, Capítulo II, da Lei nº 6/2006, de 27/2, com as alterações introduzidas pela Lei nº 31/2012, de 14/8, nomeadamente as constantes da Secção I – “Disposições gerais”, arts. 27º a 29º –, da Secção II – “Arrendamento para habitação”, arts. 30º a 49º – e da Secção IV, comum a arrendamentos habitacionais e não habitacionais – “Transmissão”, arts. 57º e 58º -; está igualmente sujeito ao NRAU na parte não abrangida por aquelas.
II – Nenhuma, de entre este conjunto de normas, rege especificamente a questão da comunicabilidade do direito ao arrendamento ou exclui a aplicação do art. 1068º do CC, pelo que se impõe, em princípio, concluir pela aplicabilidade desta norma aos contratos coevos do aqui contemplado.
III – A tradição jurídica portuguesa era no sentido de que o direito ao arrendamento se não comunicava ao cônjuge do arrendatário e caducava por morte deste.
IV – Com a publicação da Lei nº 6/2006, que aditou ao Código Civil o art. 1068º, instituiu-se a regra da comunicabilidade para todos os arrendamentos de prédios urbanos.
V – Do art. 59º do NRAU resulta a aplicação do art. 1068º a contratos anteriores, que subsistam, e não apenas aos constituídos após a sua entrada em vigor.
VI – Não se trata de uma aplicação retroativa, antes sendo uma aplicação imediata da lei nos termos previstos no art. 12º, nº 1 e 2, 2ª parte do CC, pressupondo a vigência da relação jurídica em causa.
VII – Mas, para tal, será necessário que exista um casamento atual do arrendatário, pois se não concebe que, de outra maneira, este possa comunicar ao cônjuge o seu direito ao arrendamento.
VIII – Vigorando, à data da morte do primitivo arrendatário, os arts. 1110º, nº 1 e 1111º, nºs 1 e 2, al. a) do CC, o direito ao arrendamento era um bem próprio seu e transmitiu-se nessa data para o seu cônjuge.
IX – Daí que, com a entrada em vigor do NRAU e do referido art. 1068º, não possa ter ocorrido a comunicação do direito ao arrendamento, porque:
a) sendo já a ex-mulher do falecido arrendatário, enquanto transmissária, titular desse direito, não podia comunicar-se-lhe o que já detinha;
b) à data do início da vigência do art. 1068º não se mantinha, nem o casamento, nem o direito ao arrendamento na esfera jurídica do primitivo arrendatário.
X – Ainda que tivesse sido determinada a eficácia retroativa do art. 1068º, a comunicação do arrendamento ao cônjuge seria, no caso, impedida pela presunção de ressalva dos efeitos já produzidos constante da segunda parte do citado nº 1 do art. 12º do CC, já que não poderia ficar sem efeito a transmissão já ocorrida.
XI – Falecida a transmissária, o arrendamento caduca, não podendo operar-se uma outra transmissão a favor de um seu filho.
XII – Os réus, ao ocuparem, sem título, o imóvel de que as autoras são donas, privando-as dos direitos de uso e fruição que são conteúdo do seu direito de propriedade, incorrem na prática de facto ilícito e culposo que será gerador da obrigação de indemnizar se pudermos concluir pela verificação cumulativa dos demais pressupostos da responsabilidade civil, a saber, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
XIII – Perante a demonstração da utilidade económica do imóvel e, bem assim, do aproveitamento que dela vêm fazendo, há cerca de 58 anos, as autoras e os seus antecessores, afetando o bem ao mercado de arrendamento, modo de rentabilização que as autoras se propunham prosseguir, pelo menos, poucos meses antes da propositura da ação, e de que agora estão impedidas por virtude da conduta ilícita dos réus, é de concluir que a privação de uso em causa envolve dano indemnizável, correspondente ao valor locativo não auferido.
XIV – Sabendo-se que: a) a título de renda eram pagos pelos arrendatários, ultimamente, € 18,59 por mês; b) os réus, após a morte da transmissária, continuaram a viver no prédio, procedendo ao depósito desse valor; c) as autoras, desconhecendo a morte dos arrendatários, propuseram, através de carta que lhes dirigiram, o aumento da renda para € 300,00 mensais; c) em 2007, o valor locativo do imóvel, atendendo à tipologia de T2 e à localização do prédio, caso se encontrasse em boas condições de conservação, era de valor nunca inferior a € 500,00 mensais; d) mercê das obras feitas pelo arrendatário e pela transmissária, com a ajuda dos réus, o prédio 54tem sido mantido em bom estado de conservação e melhorado;
- socorrendo-nos da equidade, consideramos o valor de € 132,00 mensais, pedido pelas autoras, como adequado para ressarcir a privação de uso do bem que os réus lhes vêm impondo.
2ª SECÇÃO CÍVEL
I - As heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de AA e BB, representadas por todas as suas herdeiras, propuseram contra CC e DD a presente ação declarativa, pedindo que:
- se declare que o prédio que os réus ocupam é propriedade das autoras;
- se condenem os réus a reconhecer o direito de propriedade das autoras;
- se declare que a ocupação por parte dos réus é ilícita, ilegítima e insubsistente;
- se condenem os réus a restituir às autoras, imediatamente, livre de pessoas e bens, o identificado prédio;
- se condenem os réus no pagamento de indemnização no valor de €132,00 mensais, desde o mês de Julho de 2014, até à restituição efetiva do prédio.
Alegaram, em síntese nossa, que:
- os falecidos AA e mulher BB construíram um prédio urbano num terreno próprio, tendo depois esse prédio urbano sido dado de arrendamento pelo primeiro a EE, pai dos réus, para habitação;
- tendo falecido o arrendatário, primeiro, e sua mulher FF, depois, caducou o dito arrendamento;
- os réus ficaram a residir no referido prédio, que não entregam apesar de a tal instados; ao assim procederem, os réus privam as autoras de usar e fruir o prédio, perdendo o valor da renda que receberiam dando-o de arrendamento, de montante não inferior a € 132,00 mensais.
Contestou o réu DD.
Alegou, em resumo, que o arrendamento se transmitiu para si e para seu irmão no seguimento do óbito de sua mãe, para quem antes se havia transmitido dado o falecimento de seu marido, disto extraindo a improcedência da acção com a absolvição dos réus dos pedidos formulados.
E deduziu reconvenção pedindo que, a ser julgada procedente a ação, as reconvindas sejam condenados a pagar aos reconvintes:
- € 10.500,00, correspondentes à indemnização a que se refere a al. a) do nº 5 do art. 33º do NRAU;
- € 23.970,76, com juros à taxa legal desde a notificação da reconvenção até integral pagamento, pelas benfeitorias feitas no locado.
O réu CC também contestou pedindo a absolvição do pedido, fundado na alegação de factos essencialmente idênticos aos invocados pelo réu DD.
Veio a ser proferida sentença que:
a) condenou os réus a reconhecerem o direito de propriedade das autoras sobre o prédio urbano, localizado nas …, atualmente caminho …, 1…8-A, Entrada …, .., freguesia de São Gonçalo, concelho do Funchal, inscrito na matriz predial sob o art. 1829°, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal, sob o n°3041, da freguesia de São Gonçalo;
b) declarou que a ocupação daquele imóvel por parte dos réus é ilícita, condenando-os a restitui-lo às autoras, livre de pessoas e bens;
c) condenou os réus no pagamento de indemnização no valor de € 132,00 mensais, desde Julho de 2014 até à restituição efetiva do imóvel;
d) condenou as autoras no pagamento da quantia de € 8.470,76 a título de indemnização pelo valor dos materiais aplicados nas obras de conservação do imóvel, acrescida de juros à taxa legal, desde a notificação da reconvenção, até efetivo pagamento;
e) condenou as autoras a pagarem a quantia que venha a ser liquidada em sede de execução de sentença, correspondente às despesas “com a mão de obra que efetuou as benfeitorias no imóvel” (sic), com o limite máximo de €15.500,00, a que acrescem juros de mora, à taxa legal, deste a notificação da reconvenção, até efetivo pagamento;
f) absolveu as autoras do restante pedido reconvencional.
Apelaram os réus, impugnando a decisão proferida sobre alguns dos factos julgados como provados, pedindo se julgue ser legítima a ocupação que vêm fazendo do prédio e a sua absolvição do pedido indemnizatório de € 132,00 mensais e, ainda, a condenação das autoras a pagarem-lhes, além de € 8.470,76 de valor aplicado nas obras de conservação, a quantia de € 15.500,00 referente a despesas tidas com a mão-de-obra.
Também as autoras apelaram, pedindo igualmente a alteração da decisão proferida sobre alguns dos factos e que se julgue improcedente a reconvenção.
Foi proferido no Tribunal da Relação de … acórdão que julgou procedente a apelação dos réus e:
- revogou a sentença relativamente às condenações constantes das als. b) e c);
- condenou os réus no reconhecimento do direito de propriedade das autoras sobre o prédio urbano, localizado nas …, atualmente caminho …, 1…8-A, Entrada …, …, freguesia de São Gonçalo, concelho do Funchal, inscrito na matriz predial sob o art. 1829º, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal, sob o nº3041, da freguesia de São Gonçalo;
- absolveu os réus do mais que lhes era pedido.
E, na parte final da respectiva fundamentação, considerou prejudicado o conhecimento do pedido reconvencional, dizendo assim:
“A transmissão do arrendamento ao Réu DD legitima a ocupação que os Réus vêm fazendo do locado e faz improceder a pretensão de restituição do imóvel e de serem ressarcidas dos prejuízos decorrentes da ilicitude da ocupação. Consequentemente, mostra-se prejudicada reconvenção e, bem assim, o conhecimento das demais questões suscitadas pelas Autoras no recurso interposto.”
Contra esta decisão as autoras interpuseram a presente revista, pedindo a sua revogação e formulando, para tanto, as conclusões que passamos a transcrever:
I – O regime legal aplicável ao caso dos autos, cuja matéria factual, por razões de economia, se dá aqui por integralmente reproduzida, é o que resulta do regime transitório previsto no art. 57° da Lei 6/2006 (NRAU) na redação dada pela Lei 31/2012 de 14 de Agosto, (arts. 26 n° 2, 27° e 28° n°1 do NRAU).
II - Ainda que se entenda, tal como defende o Douto acórdão recorrido, e ao contrário do decidido em 1a instância, que a mãe do R. DD, FF, tenha ocupado o imóvel como co-arrendatária, por efeito da comunicabilidade da posição de arrendatário, prevista no art. 1068° do C.C., afigura-se que o recorrido, DD, não estava dispensado de comunicar o óbito da sua mãe, bem como demonstrar que reunia os requisitos legais para lhe ser transmitido o contrato.
III – Aliás, neste aspecto afigura-se ser também este o posicionamento do Acórdão recorrido, quando, V.g., refere "verífíca-se pois que o NRAU se aplica, globalmente, aos contratos de arrendamento celebrados antes da sua entrada em vigor, apenas com excepção de alguns aspectos de regime para os quais existem normas transitórias, como é o caso da norma constante do art. 57° da Lei 6/2006:'(Vd. 1°§, 1a parte pag.40 do Acórdão recorrido).
IV – O R. não logrou provar os pressupostos constitutivos do seu direito de forma a operar a transmissão no arrendamento após o falecimento de sua mãe, FF, designadamente que era portador, à data do óbito da progenitora, de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
V – Tal como resulta da factualidade provada nos pontos 2.1.10 a 2.1.18, que se deixou transcrita no corpo das alegações, as AA., ora recorrentes, tomaram conhecimento dos óbitos do primitivo arrendatário, EE e da sua esposa, FF, por carta/resposta enviada pelo R. CC, através da mandatária nomeada - a qual foi rececionada a 07/03/2014 -, ao procedimento de transição do contrato para o NRAU e atualização da renda, iniciado pelas AA., ora recorrentes, em 27/01/2014.
VI – A Exma. Sra. Advogada, subscritora das referidas cartas, atuou no âmbito do apoio judiciário, em representação, na qualidade de Advogada nomeada, na modalidade de consulta jurídica a prestar ao CC, único requerente do apoio judiciário. (Cfr. cartas junto aos autos a fls 19 e 20; 23; 27v. e 28 e facto provado em 2.1.13), e não já ou também ao R. DD;
VII – Jamais o R., DD, se dirigiu por ele, ou por outrem em sua representação (não estando a Sra. Advogada legitimada para agir por si), ao senhorio a comunicar o óbito da mãe e a alegar e provar que reunia os requisitos legais para lhe ser transmitido o contrato de arrendamento.
VIII – A alusão, na carta rececionada em 07/03/2014, ao seu nome bem como a uma alegada deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%, desacompanhada da respetiva prova documental, (Cfr. facto provado em 2.1.14), é irrelevante e inócua, não podendo, salvo o devido respeito e melhor opinião, produzir quaisquer efeitos legais, nomeadamente para operar a transmissão do arrendamento a seu favor.
IX – O documento intitulado de declaração, emitido pelo SESARAM, do qual apenas resulta que DD, esteve presente no Hospital Dr. GG, no dia 03/03/2014 a "fim de solicitar relatório clinico da médica assistente, Dra. HH, para entregar a advogada'. (Cfr. declaração, junta à carta que constitui o doe. 7), não é documento idóneo, nem tem a virtualidade de demonstrar uma alegada deficiência.
X – Tal como consignado no Douto acórdão recorrido, "para a integração da situação na al. e) do n° 1 do art. 57° do NRAU, bastaria que o grau de incapacidade fosse reportado à data do óbito da mãe dos RR." (Vd. último paragrafo de fls. 24 do acórdão recorrido).
XI – Na verdade, o R. deveria ter alegado e provado além da vivência com a mãe, há mais de um ano, que era, à data da sua morte, portador de deficiência com grau de incapacidade superior a 60%.
XII – O R. não logrou fazer prova que à data do falecimento da mãe, ocorrido em 24/01/2014 {cfr. facto 2.1.7) já sofria de uma incapacidade de grau comprovado superior a 60%, a qual, conforme resulta da factualidade provada, só sobreveio em 28/03/2014, ou seja em data muito posterior à data do óbito. (Cfr. facto provado em 2.1.24)
XIII – Pelo que, o Douto acórdão recorrido ao decidir pela transmissão do arrendamento a favor de DD, violou por erro de interpretação e aplicação o disposto no art. 57° n°1 al. e) do NRAU.
XIV – O falecimento de FF, ocorrido em 24/01/2014, determinou a caducidade do contrato de arrendamento, nos termos da al. d) do art. 1051° do C.C, não existindo qualquer título que justifique a ocupação do imóvel em casa pelo R. DD.
XV – Consequentemente deverão as demais questões suscitadas pelas recorrentes serem conhecidas, nomeadamente a indemnização, mantendo-se quanto a esta a decisão proferida pelo tribunal de 1ainstância, mas alterando-se a decisão relativa à reconvenção, que deverá ser revogada, nos termos e com os fundamentos peticionados no recurso interposto pelas recorrentes para a Relação, cujo conhecimento ficou prejudicado pela revogação da decisão proferida em 1a instância, conforme resulta do § 4° da pag. 40 do acórdão de que se recorre.
XVI – Atento, porém o disposto no art. 679° do C.P.C que exclui a aplicação remissiva de todo o preceituado no art. 665° do mesmo diploma, deverão os autos ser remetidos ao Douto Tribunal da Relação de … para que nesta Instância sejam apreciadas as questões omitidas.
Contra-alegaram os réus a defender a manutenção do acórdão recorrido.
Por despacho da relatora, as partes foram convidadas, nos termos do art. 3º, nº 3 do CPC, a pronunciarem-se sobre a questão de saber se envolve uma aplicação retroativa do art. 1068º do C. Civil a comunicabilidade do arrendamento afirmada no acórdão sob impugnação, o que não será consentido pelas disposições dos arts. 59º do NRAU (Lei nº 6/2006) e 12º do CC.
Vieram as recorrentes pronunciar-se nos termos que constam a fls. 381 e segs., nada tendo dito os recorridos.
Colhidos os vistos cumpre decidir, sendo questões submetidas à nossa apreciação as enunciadas pelas recorrentes nas suas conclusões, ou seja, as de saber se:
- FF foi transmissária do arrendamento por morte de seu marido EE[1] ou se para ela se comunicou o mesmo arrendamento;
- a ter havido comunicação do arrendamento à mesma FF, o seu filho DD não estava dispensado de comunicar o óbito desta e se lhe cabia também demonstrar a verificação dos requisitos legais para a transmissão do arrendamento, o que não fez;
- foi provada a verificação de incapacidade superior a 60% à data do óbito da FF;
- por morte desta o arrendamento caducou, sem que o DD disponha de qualquer título de ocupação do imóvel.
- concluindo-se que o réu DD não dispõe de título de ocupação do imóvel, saber se deve proceder o pedido de indemnização formulado pelas autoras contra os réus.
II - A matéria de facto dada como provada pela Relação, após apreciação e decisão da impugnação deduzida pelos apelantes, é a seguinte:
1.- As AA. – heranças ilíquidas e indivisas – por si e ante possuidores que legalmente representam são donas e legitimas proprietárias, pública, pacifica, continuadamente, de boa fé, em nome próprio e com justo título, há mais de 50 anos do prédio urbano, localizado nas …, atualmente caminho …, 1…8-A, Entrada …, …, freguesia de São Gonçalo, concelho do Funchal, inscrito na matriz predial sob o art. 1829º, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal, sob o nº3041, da freguesia de São Gonçalo, a favor do identificado Autor da herança, AA.
2.- O prédio supra identificado foi construído pelos autores das heranças, AA e BB, numa parcela de terreno, adquirida pelos mesmos, no ano de 1951, através escritura de compra e venda, celebrada em 12/09/1951, fls. 99 a 100, do L.º 301-A, na extinta secretaria notarial, a cargo do notário II e desde então o prédio pertence e faz parte do seu património.
3.- AA e BB, autores das heranças ilíquidas e indivisas, ora autoras, faleceram sem testamento ou qualquer disposição de última vontade quanto aos seus bens, nos dias 31/12/1982 e 14/09/2011 respetivamente.
4.- Sucederam-lhe as suas filhas, JJ; KK; LL; MM; NN e OO, que são as suas únicas e universais herdeiras e representantes, juntamente com as netas, PP e QQ, filhas de MM e RR, filha e genro, falecido em 03/01/2000, na ….
5.- Nos anos 60 AA deu de arrendamento o prédio acima identificado em 1., a EE, pai dos RR., pelo prazo de um ano, para sua habitação e da sua família, pela renda mensal então de Esc. 450$00.
6.- EE faleceu a 17-12-1980, no estado de casado com FF.
7.- FF faleceu a 24-01-2014, no estado de viúva de EE.
8.- O réu CC nasceu a 14-09-1958 e é filho de EE e FF.
9.- O réu DD nasceu a 22-12-1972 e é filho de EE e FF.
10.- Por cartas datadas de 27/01/2014, JJ, cabeça de casal nas supra referidas heranças, notificou o arrendatário, EE e a sua esposa FF, da transição do contrato de arrendamento para o NRAU e da atualização da renda, ao abrigo e nos termos do art. 30º da lei nº 31/2012 de 14 de Agosto, conforme cópias juntas aos autos a fls. 14 e 18, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
11.- Propondo que o valor mensal da renda passasse a ser de € 300,00 (trezentos euros) – contra os atuais €18,59 - e a duração do contrato de dois anos.
12.- Em 07/03/2014 a identificada JJ rececionou uma carta, conforme cópia junta aos autos a fls. 19 e 20, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, datada de 05/03/2014 e subscrita pela Exma. Sra. Dra. SS, Advogada, cujo assunto epigrafou de “resposta às V/cartas de 27 de Janeiro de 2014. (….)”.
13.- A Advogada subscritora atua em representação, na qualidade de Advogada nomeada do requerente do apoio judiciário, o Sr. CC.
14.- A Exma. Sra. Advogada, alegando que o beneficiário do apoio judiciário CC e o seu irmão DD, são os arrendatários do prédio acima identificado em 1, alega que o arrendatário DD padece de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%” e ainda que “os arrendatários CC e DD invocam cumulativamente que o RABC do seu agregado familiar, constituído pelos dois, é inferior a 5 RMNA. Mais alegou que os arrendatários CC e DD, não aceitam nem o valor da renda nem o novo prazo.
15.- Após a receção da carta referida em 12., através da qual as AA. ficaram a saber do óbito do arrendatário e da sua esposa - EE e FF -, a cabeça de casal, JJ, enviou carta ao 1º R., CC, conforme cópia junta a fls. 21v e 22, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, onde, em síntese, pedia a entrega do imóvel acima identificado em 1., até ao dia 23/07/14, em virtude da caducidade do arrendamento operada pelo falecimento do arrendatário.
16.- Entretanto, JJ voltou a receber nova carta, datada de 11/04/2014, subscrita pela Exma. Sra. Advogada/patrona, SS, conforme cópia junta a fls. 23, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, a qual comunica que, os aqui RR., CC e DD, não irão proceder à entrega do imóvel, por entenderem que são eles arrendatários do imóvel acima identificado em 1., por transmissão por morte.
17.- A cabeça de casal, invocando as razões pelas quais o arrendamento não se transmitiu, requereu uma vez mais a entrega do imóvel em causa, por carta datada de 29-04-2014, cuja cópia se mostra junta a fls. 26 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
18.- A Exma. Sra. Advogada/patrona, SS, comunicou por carta datada de 16/05/2014, conforme cópia junta a fls. 27v e 28, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, e pela última vez, conforme frisou, que os RR. não irão proceder à entrega do imóvel por falta de fundamento legal, entendendo que o contrato de arrendamento é perfeitamente válido e eficaz.
19.- Até ao momento os RR. não procederam à entrega do imóvel e recusam-se a fazê-lo.
20.- Em 2007, o valor locativo do imóvel, atendendo à tipologia de T2 e à localização do prédio, caso se encontrasse em boas condições de conservação era de valor nunca inferior a € 500,00 mensais.
21.- O agregado familiar do arrendatário, pai dos ora réus, era composto pelo casal, EE e consorte FF, e pelos filhos do casal, na altura todos menores.
22.- O réu CC vive no referido imóvel desde que o mesmo foi arrendado pelo seu pai EE.
23.- O réu DD sempre viveu no referido imóvel, desde que nasceu.
24.- Em 28-03-2014 o réu DD tinha uma incapacidade permanente global de 61%.
25.- Após a morte de FF, com quem sempre viveram em economia comum, os réus continuaram a habitar no prédio acima descrito em 1., procedendo ao depósito da renda.
26.- Nunca o senhorio AA ou os representantes das heranças aqui autoras fizeram quaisquer obras ou benfeitorias no prédio acima descrito em 1.
27.- Foi EE e depois do óbito deste, a cônjuge sobrevida FF, com a ajuda dos aqui réus, quem promoveu e pagou as obras que se foram fazendo no imóvel, mantendo o prédio em bom estado de conservação e melhorando-o.
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29.- Em 2012 e 2013 foram efetuados serviços de construção civil, nomeadamente, pintura interior e exterior do imóvel referido em 1., substituição do pavimento exterior e interior do imóvel, substituição de louças, azulejos e mosaicos de todo o imóvel, colocação de teto de madeira em todo imóvel, reparação total do telhado do imóvel; foram efetuados serviços de carpintaria; foram efetuados serviços de substituição de canalização geral de águas, esgotos e gás e foram efetuados serviços de substituição de toda parte elétrica do imóvel.
30.- Com a aquisição dos materiais de construção civil, carpintaria, canalização e eletricidade que foram aplicados nas obras realizadas em 2012 e 2013, o réu CC pagou o montante global de 6.507,49€, despendendo ainda diversas quantias, em montante não apurado, com a mão-de-obra.
31.- Algum tempo após o falecimento da mãe e depois de ter recebido as cartas acima referidas em 10. o réu CC dirigiu-se à casa de JJ, na qualidade de cabeça de casal e senhoria, solicitando que esta aceitasse a transmissão do arrendamento para os réus.
32 – EE casou catolicamente com FF em 27 de Dezembro de 1952.
E julgaram-se como não provados os seguintes factos:
a) Se o óbito de EE foi comunicado verbalmente ao senhorio, o qual aceitou a informação e a transmissão do arrendamento para FF.
b) Se as autoras aceitaram a transmissão do arrendamento para os réus.
c) Se, relativamente à mão-de-obra usada nas obras realizadas no prédio referido em 1., foi despendido um total de €15.500,00
d) Se as obras referidas em 27. foram executadas com o conhecimento e autorização do senhorio AA e posteriormente pela cabeça de casal JJ.
III – Abordemos, então, as questões de que nos cabe conhecer.
Na 1ª instância seguiu-se linha de raciocínio que podemos sintetizar do seguinte modo:
- com o falecimento do primitivo arrendatário EE em 17.02.80, o arrendamento não caducou por se haver transmitido para o cônjuge sobrevivo, FF;
- ocorrido em 24.01.2014 o óbito desta última, nos termos do então vigente art. 57º do NRAU – Lei nº 6/2006, de 27/2, na redação introduzida pela Lei nº 31/2012, de 14/8 –, não pode dar-se uma segunda transmissão do contrato, pelo que o arrendamento caducou.
- assim, os réus, filhos do primitivo arrendatário, não têm título que legitime a ocupação da casa que vêm fazendo.
Mas o acórdão recorrido inverteu este juízo.
A partir do regime constante do art. 1068º do CC, na redação que lhe foi dada pela citada Lei nº 6/2006, segundo o qual: “O direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente”, desenvolveu argumentação com as seguintes linhas essenciais:
- tratando-se de norma de aplicação imediata, por ela são abrangidos os contratos já em execução;
- isto determina a comunicação da posição de arrendatário à referida FF, já que eram casados em regime de comunhão de bens;
- daí que, sendo esta FF arrendatária por virtude de comunicação do direito ao arrendamento, o falecimento do arrendatário não gerou uma transmissão do arrendamento em seu favor, visto já deter também a qualidade de arrendatária;
- e, neste contexto, do citado art. 57º resulta – “ex vi” al. e) do seu nº 1 – a transmissão do arrendamento, até então na titularidade da primitiva arrendatária, para seu filho DD, que, sendo maior e portador de deficiência com grau de incapacidade superior a 60%, vivia com ela há mais de um ano.
São dois os planos em que as recorrentes criticam esta decisão.
Por um lado, entendem que o direito ao arrendamento se não comunicou à mãe dos réus antes se tendo transmitido para esta em 17.12.80, o que obsta a que, por sua morte, haja uma segunda transmissão a favor dos seus filhos.
Por outro, defendem também que, mesmo a ter havido comunicação do direito ao arrendamento em favor da mãe dos réus, não estão preenchidos os requisitos para uma transmissão do arrendamento para o seu filho DD, designadamente por se não ter provado que no momento da morte de sua mãe sofresse já de incapacidade superior a 60%.
Há, pois, que começar por analisar a questão de saber se FF foi, como considerou a Relação, arrendatária por comunicação do direito do arrendatário EE – impondo-se determinar, em caso afirmativo, se se verificam, ou não, os requisitos da transmissão em favor do seu filho DD – ou se, como entendeu a 1ª instância, essa qualidade lhe adveio por transmissão do direito ao arrendamento que cabia ao mesmo EE – o que, nos termos do art. 57º da Lei nº 6/2006, excluiria de vez uma segunda transmissão para aquele seu filho.
Da transmissão ou da comunicação do arrendamento à falecida FF :
A Lei nº 6/2006, de 27/2, com as alterações introduzidas pela Lei nº 31/2012, de 14/8, aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) e introduziu normas aplicáveis a arrendamentos anteriores.
No seu art. 59º, definindo o regime de aplicação deste diploma no tempo, consignou-se a aplicação do NRAU – Título I do diploma, com a epígrafe “Novo Regime do Arrendamento Urbano” – aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor e às relações contratuais constituídas que subsistissem nessa data, sem prejuízo do estabelecido nas normas transitórias.
As normas transitórias, por sua vez, constam do seu Título II, estando divididas em dois capítulos – o Capítulo I, destinado aos “Contratos habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano e contratos não habitacionais celebrados depois do Decreto-Lei nº 257/95, de 30 de Setembro”, e o Capítulo II, destinado aos “Contratos habitacionais celebrados antes da vigência do Regime do Arrendamento Urbano e contratos não habitacionais celebrados antes do Decreto-Lei nº 257/95, de 30 de Setembro”.
O contrato de arrendamento em discussão foi celebrado nos anos 60, como consta do facto provado, descrito sob o nº 5, estando, por isso, sujeito às normas transitórias que integram o regime estabelecido no Capítulo II do Título II – arts. 27º e segs. – e, também, ao NRAU na parte não abrangida por aquelas.
No campo das ditas normas transitórias, importa considerar as constantes da Secção I – “Disposições gerais”, arts. 27º a 29º –, as da Secção II – “Arrendamento para habitação”, arts. 30º a 49º – e as da Secção IV, comum a arrendamentos habitacionais e não habitacionais – “Transmissão”, arts. 57º e 58º.
Nenhuma, de entre este conjunto de normas, rege especificamente a questão da comunicabilidade do direito ao arrendamento ou exclui a aplicação do art. 1068º do CC.
Por isso, impõe-se, em princípio, concluir pela aplicabilidade desta norma aos contratos coevos do aqui contemplado e ponderar a sua aplicação ao caso dos autos, questão que, embora sem ter sido suscitada pelas partes, foi resolvida pela afirmativa no acórdão sob recurso, em termos e com efeitos determinantes para a solução adotada que inverteu o sentido do julgamento da acção feito pela 1ª instância.
A tradição jurídica quanto a esta matéria é, no Direito português, contrária ao regime actualmente consagrado neste art. 1068º[2].
Na verdade, no art. 44º da Lei nº 2030, de 22.06.48, estabeleceu-se que, fora de hipóteses excecionais, e qualquer que fosse o regime matrimonial de bens, o direito ao arrendamento não se comunicava ao cônjuge do arrendatário e caducava por morte deste.
Os trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966 continuaram nesta linha, culminando, à data da publicação deste código, no texto consagrado no nº 1 do art. 1110º, assim redigido: “Seja qual for o regime matrimonial, a posição do arrendatário não se comunica ao cônjuge e caduca por sua morte, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.”[3]
Este nº 1 do art. 1110º vigorou, sem alterações, até à publicação do RAU – aprovado pelo DL nº 321-B/90, de 15.10 –, que manteve no art. 83º a regra da incomunicabilidade e regulou nos arts. 84º e 85º a transmissão do arrendamento em caso de divórcio e por morte, respetivamente.
Esta opção assentava no vínculo pessoal de confiança que marcaria profundamente a relação locatícia, como se salientava no Parecer da Câmara Corporativa emitido por ocasião dos trabalhos preparatórios daquela Lei.
Mas, na doutrina, não era unânime o apoio a este regime, considerado por Pires de Lima e Antunes Varela como “(…) bastante discutível, atenta a profunda identidade de interesses existente entre os cônjuges nos regimes de comunhão e, especialmente, numa variante do arrendamento como o destinado à habitação”[4].
Na mesma linha, afirmava Pereira Coelho[5]: “Desde logo, não se vê que o facto de um dos cônjuges (e quase sempre será o marido) ter outorgado no contrato como arrendatário deva ser determinante no sentido de o direito ao arrendamento ficar a pertencer exclusivamente a esse cônjuge. Sendo adquirido a título oneroso na constância do matrimónio, o direito ao arrendamento deveria ser comum, de acordo com as regras gerais, pelo menos quando o regime de bens do casamento fosse de comunhão (…)”.
A reviravolta desta orientação legislativa ocorreu em 2006, com a publicação da Lei nº 6/2006, que aditou ao Código Civil[6] o art. 1068º[7], instituindo a regra da comunicabilidade para todos os arrendamentos de prédios urbanos, dada a sua inserção nas disposições gerais e comuns [8], e que ainda assim se mantém, já que não foi alterado pela reforma operada pela Lei nº 31/2012, de 14.08.
Já acima fizemos menção ao art. 59º do NRAU que estatui a aplicação deste Regime, não só aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, mas também às relações contratuais já constituídas que nesse momento subsistissem.
Deste comando resulta, pois, a nosso ver – e como acima adiantámos já -, a aplicação do art. 1068º a contratos anteriores, e não apenas aos constituídos após a sua entrada em vigor [9],[10].
Todavia, para tal será, nomeadamente, necessário que exista um casamento atual do arrendatário, pois se não concebe que, de outra maneira, este possa comunicar ao cônjuge o seu direito ao arrendamento.
Note-se que não se trata de uma aplicação retroativa, antes sendo uma aplicação imediata da lei nos termos previstos no art. 12º, nº 1 e 2, 2ª parte do CC, pressupondo a vigência da relação jurídica em causa.
Aliás, como bem salienta Rita Lobo Xavier[11] “A aplicação da lei nova aos contratos de arrendamento já em curso está em conformidade com o princípio formulado no art. 12º, nº 2. Na verdade, as disposições do NRAU constituem manifestamente normas que versam o conteúdo das relações jurídicas, abstraindo do facto que lhe deu origem e, por isso, na falta de disposição em contrário, sempre se aplicariam aos contratos de arrendamento já existentes.”
Ou no dizer claro de Maria Olinda Garcia[12] “(…) a aplicação do art. 1068º não introduz efeitos retroativos na relação de arrendamento, pois todos os efeitos inerentes à qualidade de arrendatário singular produzidos antes da entrada em vigor desta norma não são alteráveis.”
Em face disto, importa relembrar que o primitivo arrendatário EE faleceu em 17.12.80, estando já decorridos mais de vinte anos sobre esse decesso, quando, por via da nova redação do art. 1068º, se instituiu a inovadora regra da comunicabilidade do arrendamento.
Vigorando, à data da morte do primitivo arrendatário, os arts. 1110º, nº 1 e 1111º, nºs 1 e 2, al. a) do CC[13], o direito ao arrendamento era um bem próprio seu - pois que se não havia comunicado ao seu cônjuge - e transmitiu-se nessa data para FF, seu cônjuge; esta passou, por via da transmissão operada, a ser arrendatária – mas não primitiva arrendatária.
Daí que, salvo o devido respeito, com a entrada em vigor do NRAU e do referido art. 1068º, não possa ter ocorrido a comunicação do direito ao arrendamento, por duas razões diferentes, qualquer delas bastante para sustentar esta afirmação.
Por um lado, FF era já, enquanto transmissária, titular desse direito, não podendo comunicar-se-lhe o que já detinha.
Por outro lado, só aquilo que existe é passível de ser comunicado ou partilhado.
Ou seja, para que, com a entrada em vigor desta alteração legislativa, o direito ao arrendamento pudesse, por aplicação do art. 1068º, ter-se comunicado ao cônjuge de EE, necessário seria que, então, o casamento entre ambos se mantivesse e o direito ao arrendamento persistisse na esfera jurídica daquele.
Era circunstancialismo indispensável para que pudesse ter ocorrido a comunicação em causa, que implica, como bem explicita Rute Pedro[14], “a conversão de um contrato de arrendamento que, quanto ao arrendatário, era singular num contrato de arrendamento plural. A posição jurídica de arrendatário passa a ser titulada por duas pessoas e não apenas por uma, obedecendo às regras da comunhão matrimonial”.
Nada disto ocorreu.
Aquando da entrada em vigor do preceito, o casamento mostrava-se há longos anos dissolvido pela morte de EE, ocorrida em 17.12.80, óbito que igualmente fizera cessar a titularidade do seu direito ao arrendamento, enquanto bem próprio.
Impossível se tornou, com essa morte, a verificação da cotitularidade por dois sujeitos (os cônjuges) do mesmo direito ao arrendamento que a comunicação em causa determinaria.
Dito de outro modo, tendo cessado em 17.12.80 a titularidade do direito ao arrendamento por parte de EE, tal direito – a partir daí inexistente -, não pode, salvo melhor opinião, vir a comunicar-se, mais de vinte anos depois, à sua viúva; pela natureza das coisas, tal comunicação pressuporia a existência de dois sujeitos: de um lado, o comunicante, titular inicial do direito, de outro, o beneficiário dela que passaria a ser, com o primeiro, cotitular do direito comunicado.
Só uma aplicação retroativa da lei poderia, eventualmente, produzir tal efeito jurídico que se não mostra possível por a irretroatividade ser o princípio básico nesta matéria – cfr. art. 12º, nº 1 do CC – e o legislador não ter estatuído a aplicação retroativa da Lei nº 6/2006.
E, ainda que esta aplicação retroativa tivesse sido determinada, aquele efeito jurídico – a comunicação ao cônjuge – seria, no caso, impedido pela presunção de ressalva dos efeitos já produzidos constante da segunda parte do citado nº 1 do art. 12º; isto é, sendo já FF, enquanto transmissária, a única titular do arrendamento, não poderia ficar sem efeito esta transmissão para se fazer operar a favor dela, em seu lugar, a comunicação de direito, até então próprio, do falecido cônjuge.
Sempre haveria que assegurar a inalterabilidade dos “efeitos inerentes à qualidade de arrendatário singular produzidos antes da entrada em vigor desta norma (art. 1068º)” de que fala Maria Olinda Garcia.[15]
Concluímos, pois, pela não aplicação do art. 1068º ao contrato dos autos, pois que, à data da entrada em vigor desta norma, o casamento do primitivo arrendatário já se havia dissolvido por morte deste, não se tendo, pois, verificado a comunicação do arrendamento a favor da FF que o acórdão recorrido afirmou.
Diversamente, e como ficou assinalado, esta, há muito se constituíra já arrendatária com a morte de seu marido, primitivo arrendatário.
Da transmissão do arrendamento por morte de FF :
Aqui chegados, importa concluir pela inexistência de transmissão do arrendamento para DD, filho de EE e FF, visto o que dispõe o art. 57º do NRAU, vigente à data da morte desta última.
Não interessa, por se tratar de questão cuja apreciação ficou prejudicada pela conclusão a que chegámos, saber se, como sustentam as apelantes, não se verificam os demais requisitos para a transmissão a favor do mesmo DD, nomeadamente por não se ter provado que, à data da morte de sua mãe, sofresse de incapacidade superior a 60%.
O contrato de arrendamento caducou por morte de FF – art. 1051º, alínea d) do Código Civil.
Do pedido de indemnização pela ocupação do imóvel pelos réus:
Em face da conclusão, acima exposta, no sentido de que os réus não têm título que legitime a ocupação que vêm fazendo do imóvel, há que apreciar o pedido de indemnização formulado pelas autoras para ressarcimento dos danos sofridos com essa detenção ilícita.
Como vimos, tal pretensão, inteiramente acolhida na primeira instância, como resulta do segmento decisório da sentença supra referido sob a alínea c), veio a ser julgada improcedente na Relação por ter considerado como titulado o uso e fruição que os réus vêm fazendo do imóvel reivindicado.
A este propósito, sustentam as recorrentes, como se vê da sua conclusão 15ª, que deve ser repristinada a decisão de 1ª instância, não tendo os recorridos feito referência à matéria nas contra-alegações que apresentaram, sendo que, em sede de apelação, haviam pugnado pela improcedência desta pretensão.
Vejamos.
Na sentença, a este propósito, escreveu-se o seguinte:
“Sendo certo que as RR. ocupam o prédio dos AA. , sem qualquer título que legitime essa conduta, praticando um facto ilícito e violando dessa forma o direito de propriedade das autoras, estão obrigados a indemnizá-las pelos danos resultantes dessa violação, nos termos do art.° 483° do Código Civil.
Ora, resulta dos factos provados (cfr. 2.1.20) que, ao serem privados do uso do seu imóvel, as autoras têm sofrido um prejuízo, uma vez que o imóvel tem um valor locativo mensal de € 300,00.
Em face do exposto, terão os RR. que indemnizar as AA. pelos danos que lhes estão a causar com a ocupação indevida do prédio, sendo o valor da indemnização fixado dentro dos limites do peticionado, ou seja, € 132,00 mensais, desde o mês de Julho de 2014 até efectiva entrega do imóvel.”
O facto descrito na sentença sob o aludido ponto 2.1.20 com o seguinte teor: “Ao não procederem à entrega do imóvel os RR. causam prejuízos às AA., impedindo desde logo as mesmas de usarem e fruírem do seu prédio, bem como de retirarem do mesmo rendimento compatível com os valores atuais de mercado, cuja renda mensal, atendendo à tipologia e localização do prédio, será de valor nunca inferior a €300,00 (trezentos Euros) mensais.”, na sequência de alteração da decisão sobre ele proferida, introduzida pelo Tribunal da Relação em sede de impugnação que contra ela os réus haviam deduzido, passou a ter o conteúdo agora descrito sob o nº 20, ou seja, “Em 2007, o valor locativo do imóvel, atendendo à tipologia de T2 e à localização do prédio, caso se encontrasse em boas condições de conservação era de valor nunca inferior a € 500,00 mensais.”
Não sofre dúvidas de que, como se entendeu na sentença, os réus, ao ocuparem, sem título, o imóvel de que as autoras são donas, privando-as, deste modo, dos direitos de uso e fruição que são conteúdo do seu direito de propriedade – art. 1305º -, incorrem na prática de facto ilícito e culposo que será gerador da obrigação de indemnizar se pudermos concluir pela verificação cumulativa dos demais pressupostos da responsabilidade civil - arts. 483º e 562º ambos do Código Civil -, a saber, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Acerca da ressarcibilidade da “privação de uso” não tem havido unanimidade na jurisprudência deste STJ.
Restringindo a nossa análise aos casos em que, como no presente, a privação de uso respeita a bem imóvel, podem agrupar-se em três, as linhas de entendimento que vêm sendo adotadas, cujos traços essenciais podem ser resumidos do seguinte modo:
- A simples privação de uso do imóvel consubstancia, em si, um dano concreto, estando o proprietário ofendido dispensado de alegar e provar o fim a que se propunha afetá-lo ou que virtualidade de uso pretendia extrair dele[16].
- Sendo um facto ilícito, a privação de uso de bem imóvel configurará também um dano indemnizável se puder concluir-se que o titular do respetivo direito se propunha aproveitar e tirar partido das vantagens ou utilidades que lhe são inerentes, só o não fazendo por disso estar impedido em virtude do facto ilícito; para tanto, bastará, todavia, que os factos adquiridos para o processo mostrem que o lesado usaria normalmente a coisa.[17]
- A obrigação de indemnizar neste campo pressupõe, para além da privação de uso – facto ilícito –, a demonstração dos demais pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente, a verificação de um concerto e específico dano patrimonial.[18]
Ponderando isto e sem esquecer que uma solução justa implica a ponderação das especificidades do caso concreto que o distinguem e lhe conferem uma identidade própria, importa considerar, de entre os factos apurados, os que relevam para a caraterização dessa responsabilidade e, bem assim, as conclusões que deles se podem extrair com segurança.
Sabemos então que:
- Os réus ocupam o imóvel contra a vontade das autoras e sem título, assim as privando do uso e da fruição de bem que lhes pertence desde 24.01.2014[19], sendo que a sua entrega lhes foi solicitada pelas autoras em 23.07.2014;
- “em 2007, o valor locativo do imóvel, atendendo à tipologia de T2 e à localização do prédio, caso se encontrasse em boas condições de conservação era de valor nunca inferior a € 500,00 mensais.”
- As autoras e seus antecessores, anteriores donos do imóvel, vêm-no fruindo por via da sua afetação ao mercado do arrendamento, o que sucede desde 1960, ano em que foi locado ao pai dos ora réus, depois da sua edificação em parcela de terreno adquirida em 1951 - factos 2 a 5 –, a evidenciar conclusão segura no sentido de que praticamente desde sempre exploraram a sua capacidade e utilidade locativa.
- É manifesta igualmente a sua intenção de prosseguir na afetação do bem a esse fim lucrativo, quando, desconhecendo a sua morte, em Janeiro de 2014, enviaram ao que fora arrendatário, EE e a sua mulher, FF, a comunicação referida no facto nº 10, onde propunham a transição do contrato de arrendamento para o NRAU e a atualização da respetiva mensal de €18,59 para € 300,00 – cfr. ainda os facto nºs 15 e 16.
- A capacidade locativa do imóvel mantém-se, como resulta do facto provado nº 20 e ainda da circunstância, conhecida e já referida, de os pais dos réus, por arrendamento, dele terem feito a sua habitação desde 1960 e até à morte – ocorrida, respetivamente, em 17.12.80 e 24.01.2014 -, gozo em que os réus persistem, mas agora sem título.
Ora, perante a demonstração da utilidade económica do imóvel e, bem assim, do aproveitamento que dela vêm fazendo, há cerca de 58 anos, as autoras e os seus antecessores, afetando o bem ao mercado de arrendamento, modo de rentabilização que as autoras se propunham prosseguir, pelo menos, poucos meses antes da propositura da ação, e de que agora estão impedidas por virtude da conduta ilícita dos réus, cremos ser legitimo concluir que a privação de uso em causa envolve dano indemnizável, correspondente ao valor locativo não auferido – contrapartida do valor do uso de que as autoras vêm sendo privadas.
É conclusão a que se chega, quer se adote o primeiro, quer o segundo dos entendimentos seguidos neste STJ.
E ainda que se adotasse como mais correta a terceira das referidas teses, concluindo, dada a falta de demonstração de um prejuízo efetivo, pela inexistência da obrigação de indemnizar com base na responsabilidade civil, sempre seria de lançar mão do instituto do enriquecimento sem causa – art. 473º do CC.
Foi o que esclarecidamente se entendeu nos acórdãos deste STJ de 3.10.2013[20] e de 22.01.2013[21], neste último se podendo ler sobre a matéria seguinte:
“(…) entendemos que tem ampla justificação a concessão duma indemnização ao autor baseada no facto de sem o seu consentimento os réus terem ocupado ilicitamente dois imóveis pertencentes às heranças que enquanto cabeça de casal lhe compete administrar. É inquestionável que, enquanto a posse intitulada subsistir, os direitos plenos de uso, fruição e disposição de que o proprietário goza, nos termos do art° 1305° CC, ficam fortemente limitados, não podendo ser exercidos na sua plenitude; e estando demonstrado que os réus tinham plena consciência de que o gozo dos imóveis tinha um determinado valor (…), afigura-se justo e razoável quantificar o correspondente dano da privação do uso no valor locativo dos imóveis que o autor logrou provar. Se a lei expressamente reconhece ao senhorio o direito a indemnização pelo atraso na restituição da coisa, findo o contrato, mesmo que em concreto nenhum dano se comprove – art.º 1045° CC - indemnização essa que tem por base o valor da renda estipulada, nenhuma razão se vislumbra para que num caso essencialmente análogo como é o presente não se proceda de igual modo; efectivamente o “atraso na restituição da coisa” é aqui a “ocupação ilícita”, conduta cuja antijuridicidade se apresenta tão ou mais evidente do que naquela disposição legal.
De qualquer modo, ainda que se entenda não haver lugar à aplicação do regime da responsabilidade civil - art°s 483° e sgs CC - por não existir, em concreto, um dano reparável inerente à privação do uso, justifica-se o apelo ao instituto do enriquecimento sem causa. E isto porque a situação ajuizada configura claramente uma hipótese de enriquecimento por intervenção, mais precisamente de intromissão em bens e direitos alheios, na qual o intrometido obteve uma vantagem patrimonial à custa do respectivo titular, que deve restituir porque não tem causa justificativa (art° 473° CC). Como ensina Antunes Varela