AUDIÊNCIA PRÉVIA
NULIDADE PROCESSUAL
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
TEMPESTIVIDADE
Sumário


1. O regime regra é o de que a audiência prévia tem sempre lugar, como se prevê no art.º 591.º, do CPC, salvo nas situações previstas no art.º 592.º, em que não se realiza, ou nas hipóteses expressamente contempladas no art.º 593.º/1, em que se atribui ao juiz a faculdade de a dispensar.
2. Sempre que o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa, deve realizar-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento, como decorre dos arts. 591.º, n.º1, als. b) e d) e 595.º, n.º1, al. b) do CPC.
3. Sendo obrigatória a convocação da audiência prévia, a omissão desse ato processual constitui nulidade processual inominada sujeita ao regime dos artigos 195.º do CPC e seguintes.
4. A violação do princípio do contraditório inclui-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constantes do art.º 195.º e sujeita a este regime.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I- Relatório.
Os executados AA, BB, CC e DD, vieram, por apenso à execução que lhes move o Banco EE, S.A., deduzir a presente oposição mediante embargos, alegando, em síntese, o preenchimento abusivo das livranças dadas à ação e consequente inexigibilidade da obrigação avalizada, a falta de liquidez da quantia exequenda, o exequente não calculou corretamente os juros, desconhecendo-se o montante de 148.735,00 euros, pedindo que os embargos sejam julgados procedentes por violação do pacto de preenchimento das livranças, bem como a da falta de liquidez da obrigação exequenda e, consequentemente, a extinção da execução, ou, caso assim não se entenda, serem julgados procedentes os embargos na parte correspondente à diferença de juros peticionados e os calculados efetuados pelos embargantes, bem como na quantia de 17.782,70 euros.
Respondeu o exequente, impugnando os factos alegados pelos embargantes, e concluindo pela improcedência da oposição.
Foi notificado o exequente para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos documento contendo o cálculo aritmético da quantia exequenda, com indicação do modo de determinação das importâncias inscritas nas livranças, o qual respondeu por requerimento, tendo os embargantes respondido.
Após foi proferido saneador sentença que julgou parcialmente procedentes os embargos de executado e decidiu reduzir a dívida exequenda em 17.782,70 euros, no mais improcedendo os embargos.
Desta sentença vieram os opoentes/executados interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
A) Conforme resulta da sentença ora sob recurso, o Tribunal a quo entendeu (implicitamente) dispensar qualquer diligência findo os articulados, limitando-se a enunciar factos provados e não provados, bem como a proferir a sentença, pasme-se, sem justificar, sequer, a não realização da audiência prévia ou a dispensa da audiência prévia. Não existe, qualquer referência, na sentença ora sob recurso, quanto à dispensa da audiência prévia, ou à motivação da sua não realização!
B) Ora, conforme resulta das peças processuais em questão, muitos factos se encontram convertidos, cuja discussão se torna essencial para a boa decisão da causa.
C) O Tribunal limitou-se a dar como provados determinados factos (factos provados), não tendo feito qualquer referência à inúmera matéria que foi alegada pelos ora Recorrentes e contestada pelo Banco Exequente, nomeadamente no que se refere ao preenchimento abusivo da Livrança em questão, bem como da falta da liquidez da quantia exequenda.
D) Não se aceita que tenha sido dado como provada a taxa Euribor a 7%; tão pouco se aceita que o Tribunal tenha dado como não provado que o spread era de 5%. Não se aceita, pois, a quantia peticionada a título de juros de mora. Trata-se, pois, de matéria controvertida, a que o Tribunal não poderia sobrepor-se, não podendo, em caso algum, ter proferido sentença.
E) O Tribunal a quo não podia ter decidido sem antes promover a audiência prévia, ou então a dispensá-la nos termos previstos no artigo 593.º, n.º 1, por referência à alínea f) do artigo 591.º n.º 1 do CPC. Ao fazê-lo proferiu uma decisão surpresa, tendo violado o disposto no artigo 3.º n.º 3 do CPC, atentando contra o artigo 20.º da CRP.
F) O Tribunal a quo cometeu, assim, uma nulidade processual em conformidade com o disposto no artigo 195.º do CPC.
G) Ainda que o Tribunal a quo considerasse estar em condições de proferir sentença (no que não se concede, como se referiu, já que subsiste matéria controvertida), jamais poderia não haver lugar à audiência prévia.
Na verdade,
H) Nas ações de valor superior a metade da alçada da Relação (como é o caso destes autos) a realização de audiência prévia é a regra (vide artigos 597.º e 591.º do CPC). As suas finalidades principais, cumulativas ou alternativas, são a tentativa de conciliação das partes, discussão sobre as exceções dilatórias, discussão de mérito, discussão para delimitação dos termos do litígio, completamento dos articulados deficientes, prolação do despacho saneador, determinação da adequação formal, da simplificação ou da agilização processual, despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova e a programação da audiência final (art.º 591.º do CPC).
I) A lei permite a não realização da audiência prévia nas ações não contestadas em que a revelia seja operante (al. a) do n.º 1 do artigo 529.º) e quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta tenha sido debatida nos articulados (alínea b) do mesmo preceito), o que não se aplica ao caso sub judice.
J) Já quanto à dispensa da audiência prévia, dita o artigo 593.º n.º 1 do CPC que a mesma só pode ser dispensada nos casos em que, embora o processo deva prosseguir, a audiência prévia teria como finalidade a prolação de despacho saneador (em que não se decida pelo fim do processo), a determinação da adequação formal, da simplificação ou da agilização processual e/ou a prolação de despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova.
L) Destas normas resulta que se, em ação contestada, de valor superior a metade da alçada da Relação, (como é o caso dos autos) o juiz entende, finda a fase dos articulados e do pré-saneador, que o processo deverá findar imediatamente com prolação de decisão de mérito (no que nãos e concede) deverá convocar audiência prévia, a fim de proporcionar às partes prévia discussão de facto e de direito (neste sentido, vide Lebre de Freitas, “A ação declarativa comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 172; Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, 2014, Almedina, pág. 292 e pág. 293, nota 673).
M) No caso dos presentes autos o Tribunal quo impediu às partes a discussão de facto do preenchimento abusivo do título dado à execução, bem como do cálculo de juros.
N) Sendo certo, ainda, que a imediata prolação de saneador-sentença, com dispensa de audiência prévia, não foi legitimada, pelo senhor Juiz a quo. Tão pouco justificada!
O) Assim, findo os articulados, ao Juiz a quo só restavam estas soluções: ou convocava a audiência prévia para o fim previsto no artigo 591.º n.º 1 alínea b) (no que não se concede); ou convocava a audiência prévia para os fins previstos na alínea c) do mesmo artigo (que se pugna), ou proferia despacho a dispensar a audiência prévia nos termos do artigo 593.º n.º 1, com referência, no caso, à alínea f) do número 1 do artigo 591.º do CPC.
P) Proferir uma sentença surpresa é que é absolutamente inadmissível, ilegal e violadora dos mais elementares direitos de defesa das partes constitucionalmente garantidos.
Q) Foi, pois, cometida uma nulidade, traduzida na prolação de decisão final de mérito com dispensa de uma prévia diligência que era imposta por lei, suscetível de influenciar o exame e a decisão da causa.
R) Ora, a omissão de convocação da audiência prévia, ou a sua dispensa devidamente fundamentada nos termos do artigo 593.º n.º 1, por referência à alínea f) do n.º 1 do artigo 591.º. obrigatória neste caso, configura uma nulidade processual inominada sujeita ao regime do artigo 195.º e seguintes do CPC, o que desde já se invoca para todos os efeitos legais.
S) Nulidade essa que impõe a anulação do saneador-sentença, devendo, antes, o Tribunal a quo proferir despacho que convoque a audiência prévia para os fins da alínea b) do artigo 591.º do CPC (no que não se concede), ou para os fins da alínea f) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC, ou então deve ser proferido despacho que dispense a audiência prévia nos termos do artigo 593.º n.º 1 do CPC, por referência à alínea f) do artigo 591.º do mesmo diploma legal.
Só assim se faz JUSTIÇA!
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Contra alegou o exequente/embargado, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do decidido.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II – Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil em vigor, constata-se que a questão essencial a decidir consiste em saber se a sentença deve ser anulada por omissão da realização de audiência prévia.
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III – Fundamentação fáctico-jurídica.
1. Matéria de facto.
1.1. A matéria de facto considerada pela 1.ª instância é a seguinte:
1. Os embargantes são avalistas das livranças dadas à execução, que foram emitidas em branco, bem como são subscritores dos pactos de preenchimento;
2. As quais foram subscritas pelos embargantes para garantir o cumprimento do contrato junto ao processo cujo teor aqui se dá por reproduzido;
3. Os embargantes AA, BB, CC e DD são sócios gerentes FF, Empreiteiros, Lda., empresa avalizada;
4. O banco exequente, embargado, é o beneficiário originário das livranças dadas à execução;
5. Teor das cartas doc. 5 a 16 que se dá aqui por integralmente reproduzido;
6. Em 10.05.2012., a FF, Empreiteiros, Lda., foi declarada insolvente nos termos do processo que correu no Tribunal de Comércio de Lisboa, 2º Juízo, sob o nº 576/12.0tylsb;
7. Veio a ser aprovado um Plano de Insolvência no âmbito do qual estava previsto o pagamento do valor da dívida que o embargante tinha sobre a FF, Empreiteiros, Lda.;
8. O exequente/embargante respeitou tal;
9. A FF, Lda. apresentou-se a Processo Especial de Revitalização, no Tribunal de Comércio de Setúbal, sob o nº 2915/15.2T8stb, J1;
10. No âmbito desse processo foi aprovado um Plano de Recuperação da FF, Empreiteiros, Lda., tendo sido proferida sentença de homologação de aprovação do PER em 10.09.2015., transitada em julgado em 28 de setembro de 2015;
11. Nesse Plano o pagamento do crédito que o embargado tem sobre a FF, Empreiteiros, Lda., ficou suspenso por 6 (seis) meses e está previsto o pagamento da 1ª prestação de juros em 28.03.2016. e da primeira prestação de capital em 28.09.2016;
12. A execução foi instaurada em dezembro de 2015;
13. Após o embargado/exequente ter preenchido as livranças em novembro de 2015 pelo valor total de 498.735,48 euros;
14. O embargante/exequente a título de juros e outros encargos peticiona o montante de 148.735,00 euros;
15. A taxa Euribor aplicável ao contrato é de 7%;
16. No extrato de 01.07.2013., emitido pelo exequente/embargado, foi creditado o valor 17.782,70 euros, tendo, de imediato, o próprio banco transferido tal valor para o departamento de recuperação;
17. Teor dos docs. 2 e 4 juntos com o requerimento inicial que aqui se dá por integralmente reproduzido.
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2. Omissão de audiência prévia.
Os recorrentes fundamentam o recurso na prolação do saneador-sentença, sem ter tido lugar a realização de audiência prévia e sem que esta tenha sido dispensada, que, em seu entender, não era legalmente possível no presente caso em que o Tribunal resolveu decidir do mérito, sendo violadas as normas contidas nos artigos 593.º n.º 1, por referência à alínea f) do n.º 1 do artigo 591.º, obrigatória neste caso, configurando uma nulidade processual inominada sujeita ao regime do artigo 195.º e seguintes do CPC.
E peticionaram que seja declarada a anulação do saneador-sentença, devendo o Tribunal a quo proferir despacho que convoque a audiência prévia para os fins da alínea b) do artigo 591.º do CPC (no que não se concede), ou para os fins da alínea f) do n.º 1 do artigo 591.º do CPC, ou então deve ser proferido despacho que dispense a audiência prévia nos termos do artigo 593.º n.º 1 do CPC.
Assim, será esta a única questão a decidir, pois como é sabido as conclusões definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, sendo que importa conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam.
Vejamos, pois, se têm razão.
No caso concreto, o saneador sentença foi proferido após os articulados e conheceu do mérito dos embargos.
Porém, não nos parece a decisão mais acertada, porquanto essa diligência foi indevidamente omitida ou dispensada, como se irá tentar demonstrar, e como este coletivo já teve oportunidade de se pronunciar em acórdãos de 22/02/2018, proferido no processo n.º 1123/16.0T8FAR.E1, e de 26/04/2018, proferido no processo n.º 17937/16.8T8LSB.E1, cujos argumentos iremos manter.
Na verdade, como flui do art.º 591.º do C. P. Civil, concluídas as diligências mencionadas no n.º2 do artigo anterior ou findos os articulados, é convocada audiência prévia destinada a algum ou alguns dos fins seguintes:
a) realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.º;
b) facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;
c) discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate;
d) proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º;
e) determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º;
f) proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes;
g) programar, após audição dos mandatários, os atos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respetivas datas.
Por sua vez, no seu art.º 592.º prevê-se os casos em que a audiência prévia não tem lugar, a saber:
a) Nas ações não contestadas que tenham prosseguido em obediência ao disposto nas alíneas b) a d) do artigo 568.º;
b) Quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados.
E acrescenta-se no art.º 593.º os casos em que o juiz pode dispensar a audiência prévia, apenas o admitindo para as ações que devam prosseguir e desde que a diligência tenha por finalidades as indicadas nas alíneas d), e) e f) do n.º1 do art.º 591.º.
Assim, da conjugação destas disposições legais decorre, sem margem para qualquer dúvida, que o regime regra é o de que a audiência prévia tem sempre lugar, como se prevê no art.º 591.º, salvo nas situações previstas no art.º 592.º, em que não se realiza, ou nas hipóteses expressamente contempladas no art.º 593.º/1, em que se atribui ao juiz a faculdade de a dispensar.
Significa que não se tratando de situação em que o juiz a possa dispensar, nos termos do art.º 593.º/1, nem dos casos excluídos no art.º 592.º, a audiência prévia terá de ser realizada, sendo ilegal a sua dispensa (salvo na situação particular do art.º 597.º, o que não é manifestamente o caso dos autos).
Assim, em todas as situações que a lei adjetiva prevê a realização de audiência prévia esta não pode ser dispensada ou omitida, sob pena de nulidade processual.
Nesse sentido, concorda-se com a interpretação seguida no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 29/09/2017, proferido no processo n.º 136/16.6T8MAI-A.P1, disponível em dgsi.pt, quando refere:
“A forma expressa e taxativa como estas disposições estão redigidas permite concluir com segurança que quando a ação houver de prosseguir (isto é, não deva findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados) e o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa (ou apreciar exceção dilatória que não tenha sido debatida nos articulados ou que vá julgar improcedente) deve realizar-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento.
É o que resulta claro da não inclusão da alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º no elenco das situações para que remete o n.º 1 do artigo 593.º e da relação necessária entre o artigo 592.º e o artigo 593.º.
Nessa medida, o despacho proferido nos autos após a realização de diligências ordenadas ao abrigo do n.º 2 do artigo 590.º do Código de Processo Civil e imediatamente antes da sentença, no qual a Mma. Juíza a quo dispensou a realização da audiência prévia é afinal um despacho ilegal por não estar verificada nenhuma das situações em que lhe era legalmente permitido dispensar a realização desse ato processual”.
Acresce não poder invocar-se o disposto nos artigos 6.º e 547.º do C. P. Civil, que confere um poder discricionário ao juiz na dispensa de realização da audiência prévia, já que o poder/dever de gestão processual na dimensão do poder de simplificação e agilização processual, admitido em termos gerais nessas disposições, não permite, nem autoriza, dispensar o cumprimento obrigatório de atos processuais expressamente previstos, como a audiência prévia, sempre que se pretenda conhecer, após os articulados, do mérito da causa, como se impõe no art.º 591.º/1, alíneas b) e d), e 595.º/1 alíneas a) e b) do C. P. Civil.
Como se escreveu no citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, “estamos perante uma situação em que o legislador regulou de forma pensada e pormenorizada a tramitação processual, estabelecendo diferenças entre os atos a praticar consoante a situação verificada e sopesando de forma expressa o caso de o passo que se segue ser apenas o do conhecimento do mérito. Acresce que a solução legal de impor a realização da audiência possui, como vimos já, serve o objetivo coerente e justificado de levar às últimas consequências o princípio do contraditório, explorando as virtualidades da discussão oral entre os intervenientes dos argumentos pelos quais a decisão deve ser uma ou outra, sendo difícil de conceber um processo equitativo que prescinda dessa discussão oral sem, ao menos, a substituir pela possibilidade de apresentação de alegações escritas”.
E continuando a usar as emprestadas palavras deste aresto, a propósito de questão com idênticos contornos, e no qual é identificada vária jurisprudência e doutrina neste sentido, aí se refere:
“Isto mesmo foi decidido no Acórdão desta secção da Relação do Porto de 24-09-2015, em que interviemos como 1.º Adjunto, proferido no processo n.º 128/14.0T8PVZ.P1, in www.dgsi.pt, e do qual passamos a respigar a seguinte fundamentação complementar:
«Da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII pode extrair-se: “A audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas ações não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas ações que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma exceção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados.
No que respeita aos seus fins, a audiência prévia tem como objeto: (i) a tentativa de conciliação das partes; (ii) o exercício de contraditório, sob o primado da oralidade, relativamente às matérias a decidir no despacho saneador que as partes não tenham tido a oportunidade de discutir nos articulados; (iii) o debate oral, destinado a suprir eventuais insuficiências ou imprecisões na factualidade alegada e que hajam passado o crivo do despacho pré-saneador; (iv) a prolação de despacho saneador, apreciando exceções dilatórias e conhecendo imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa; (v) a prolação, após debate, de despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova”.
Entende Abílio Neto [.] que “a realização da audiência prévia é tendencialmente obrigatória, porquanto, por um lado, só em casos contados a lei permite que ela não se realize (art. 592.º) e, por outro, só nas hipóteses contempladas no art. 593.º fica ao critério do juiz dispensar a sua realização”.
[…] Ora, como destaca o acórdão da Relação de Lisboa de 05.05.2015[4], “não se verificando nenhuma das situações previstas no art. 592º, e se a ação não houver de prosseguir, nomeadamente por se ir conhecer no despacho saneador do mérito da ação, deve ser convocada audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito (art. 591º, nº 1, al. b))”.
Idêntica orientação foi seguida no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13/11/2014, Proc. n.º 673/03.2 TYLSB.L1, disponível dgsi.pt, no qual o ora relator interveio como 1.º adjunto, aí expressando:
Não se vê que assim possa entender-se, uma vez que a dispensa de audiência prévia prevista no artigo 593.º, n.º 1, ao remeter para as alíneas d), e) e f) do artigo 591.º, n.º 1, excluindo da remissão a alínea b), em que se prevê a realização de audiência prévia quando haja de conhecer-se de exceções dilatórias ou do mérito, tem de ser interpretada no sentido de a dispensa não poder ocorrer em caso de conhecimento imediato de mérito.
Por isso que a alínea d), do artigo 591.º, n.º 1, tenha de sofrer interpretação restritiva considerando que o despacho saneador a que se refere é apenas aquele que tem o conteúdo previsto na alínea a), do n.º 1, do artigo 595.º, estando o conteúdo previsto na alínea b) desta norma integrado na alínea b), do n.º 1, do artigo 591.º, e, por isso, excluído da possibilidade de dispensa a que alude o artigo 593.º, n.º 1.
Ou seja, concluímos que a dispensa de audiência prévia não era legalmente possível no caso dos autos[1].
Está é, também, a posição da doutrina, em particular do Prof.º Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 2.º, 3.ª Edição, págs. 650/651, sublinhando que fora dos casos expressamente previstos no art.º 593.º “o juiz não pode dispensar a audiência prévia, nomeadamente quando se verifiquem os requisitos da alínea b) ou da 2.ª parte da alínea c) do art.º 591.º” [2].
E acrescentam “ser bastante duvidosa” a interpretação que permite a dispensa de audiência prévia com fundamento em que a matéria da causa já fora suficientemente debatida nos articulados.
Resumindo, “A convocação da audiência prévia é um ato processual obrigatório. A sua omissão constitui nulidade processual inominada sujeita ao regime dos artigos 195.º e seguintes” – Cfr. Prof.º Rui Pinto, in “ Notas Ao Código de Processo Civil”, 1.ª edição, 2014, Coimbra Editora, pág. 369.
Assim também se pronunciam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit. pág. 650, “ a omissão da convocação constituía nulidade processual, desde que pudesse influir no exame ou na decisão da causa, nos termos do atual art.º 195.º”.
Conclui-se, pois, no caso dos autos, a omissão simples ou a eventual dispensa de realização de audiência prévia, porque não consentida pelo art.º 593.º do C. P. Civil, constitui irregularidade processual, nos termos do seu art.º 195.º, podendo conduzir à nulidade, desde que a omissão desse ato possa influir no exame ou na decisão da causa.
Com efeito, como decorre do art.º 195.º/1, do C. P. Civil, “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem a nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
E é ponto assente que não estamos perante uma nulidade da sentença, cujos pressupostos estão taxativamente elencados no art.º 615.º do C. P. Civil.
Trata-se, sim, de uma nulidade processual sujeita ao regime dos art.ºs 195.º e 199.º do C. P. Civil, podendo e devendo ser conhecida, quando arguida, no prazo legal de 10 dias após o seu conhecimento.
Ora, considerando que os recorrentes foram efetivamente notificados da decisão recorrida por carta expedida em 11 de dezembro de 2017, consideram-se notificados no dia 14 desse mês e ano, data em que tiveram conhecimento da nulidade processual mencionada (parte final do n.º1 do art.º 199.º do C. P. Civil), tinham 10 dias para a invocar perante o tribunal a quo (só a podendo invocar no tribunal ad quem nos termos do n.º3 do art.º 199.º do C. P. Civil, o que não é manifestamente o caso), cujo termo ocorreu em 8 de janeiro de 2018.
E sendo arguida a irregularidade em 29 de janeiro de 2018, nas alegações de recurso, urge concluir que o fizeram fora do prazo legal de 10 dias, razão pela qual se mostra sanada – art.º 199.º/1.
E sendo assim, torna-se inútil saber se a irregularidade influiu na decisão em causa, com a consequente anulação da decisão recorrida.
Sustentam ainda os recorrentes que estamos em presença de uma decisão surpresa, tendo sido violado o disposto no artigo 3.º n.º 3 do CPC, atentando contra o artigo 20.º da CRP.
Porém, sem razão.
Prescreve o n.º1 do art.º3.º, do CPC: “O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição”.
E o seu n.º 3 impõe ao juiz o dever de observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo em caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de facto ou de direito sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Como é sabido, o princípio do contraditório traduz-se na imposição de que as decisões judiciais sejam consequência de um processo justo e equitativo – artigos 20.º [3], da CRP, e 3.º, n.º 3 [4], do C. P. Civil, e consubstancia-se na igualdade das partes na apresentação de argumentos a respeito dos pontos determinantes para a decisão a proferir e a da possibilidade de as partes “influenciarem” a decisão judicial argumentando quanto ao sentido que a mesma deve ter.
Como ensina o Professor Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, pág. 48, “ o art.º 3.º, n.º3, 1.ª parte, “impõe ao juiz, de modo programático, o dever de observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório”, princípio que é corolário do princípio da igualdade das partes estabelecido no art.º 3.º-A.
E acrescenta que a violação deste princípio inclui-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constantes do art.º 201.º/1 do C. P. Civil (atual art.º 195.º), e que dada a sua importância é indiscutível que a sua inobservância pelo tribunal é suscetível de influir no exame ou decisão da causa.
No caso dos autos os recorrentes apresentaram a oposição à execução, onde expuseram os seus fundamentos e responderam à contestação e requerimentos apresentados sobre a liquidação dos juros e taxa aplicável, pelo que exerceram o direito ao contraditório, tomaram posição sobre os argumentos apresentados, podendo, por essa via, “influenciar a decisão.
Mas ainda que assim não fosse, trata-se, também, de uma nulidade processual sujeita ao regime do art.º 195.º e 199.º do C. P. Civil, podendo e devendo ser conhecida, quando arguida no prazo legal de 10 dias após o seu conhecimento.
E não o tendo sido, sanada ficou.
No que respeita à insuficiência de factos para a decisão de mérito, em particular da violação do pacto de preenchimento, por banda do exequente, para além de não identificarem quais os factos em concreto, controvertidos, que importava apurar e relevantes para a decisão da causa, essa questão não constitui objeto do presente recurso.
Em todo o caso, lendo e relendo o articulado de oposição, não se vislumbram quais os factos reais, concretos e objetivos em causa, e que permitiriam concluir pela violação do pacto de preenchimento, para além dos relativos à situação de insolvência e Plano de Recuperação aprovado da “FF, Lda.”, no âmbito do PER.
O contrato de preenchimento mais não é do que o acordar os termos da relação cambiária, a fixação do seu montante, o tempo de vencimento, e a estipulação dos juros, além de outros elementos, o que o avalista só pode questionar se, ao subscrevê-lo, tiver condicionado a esses termos a prestação da sua garantia – cf. Ac. do S. T. J., de 22/2/2011, relatado pelo Exm.º Conselheiro Sebastião Póvoas, Proc. n.º 31/05 – 4TBVVD – B.G1.S1.
No contrato de preenchimento, as partes estabelecem os termos em que a letra de câmbio deve ser completada, nomeadamente o seu montante, a data de vencimento e juros devidos, visto que, como sucede, em regra, no momento da sua subscrição a dívida não se mostra apurada ou vencida. Vencida e não cumprida a obrigação causal é preenchida a letra, a qual deverá ser paga na data do vencimento. Mas sendo a letra entregue em branco ao beneficiário e com as assinaturas dos seus subscritores (sacador, sacado, avalista) para em momento posterior a preencher, fica com a obrigação de o fazer nos precisos termos acordados, ou seja, estabelecer a quantia efetivamente em dívida e o respetivo prazo de pagamento.
E compete ao avalista, no âmbito das relações imediatas, o ónus da prova quanto ao preenchimento abusivo da livrança, por se tratar de um facto impeditivo do direito de crédito invocado pelo exequente, nos termos do n.º2 do art.º 342.º do C. Civil.
Assim, competia aos recorrentes/avalistas o ónus da alegação e prova dos factos constitutivos dessa exceção, nos termos do disposto no art.º 342.º, n.º 2, do Código Civil, ou seja, quais os factos concretos e objetivos ou elementos que foram completados nas livranças em violação do acordado, nomeadamente quanto ao seu montante, à data de vencimento, dos juros devidos etc.
Improcede, pois, a apelação.
Vencidos no recurso, os recorrentes suportarão as respetivas custas – Art.º 527.º/1 e 2 do C. P. Civil.
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IV. Sumariando, nos termos do art.º 663.º/7 do C. P. C.
1. O regime regra é o de que a audiência prévia tem sempre lugar, como se prevê no art.º 591.º, do CPC, salvo nas situações previstas no art.º 592.º, em que não se realiza, ou nas hipóteses expressamente contempladas no art.º 593.º/1, em que se atribui ao juiz a faculdade de a dispensar.
2. Sempre que o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa, deve realizar-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento, como decorre dos arts. 591.º, n.º1, als. b) e d) e 595.º, n.º1, al. b) do CPC.
3. Sendo obrigatória a convocação da audiência prévia, a omissão desse ato processual constitui nulidade processual inominada sujeita ao regime dos artigos 195.º do CPC e seguintes.
4. A violação do princípio do contraditório inclui-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constantes do art.º 195.º e sujeita a este regime.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida.
Custas da apelação pelos recorrentes.

Évora, 2018/05/24
Tomé Ramião
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro

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[1] ) Daí se divergir, com o devido respeito, com a orientação seguida no Acórdão desta Relação, de 12/02/2015, proc. n.º 1279/13.3TBLGS-D.E1 (Rui Moura), dgsi.pt, ao afirmar: “Porém, como se prevê expressamente no art. 593º nºs 1 e 2 alínea a) Cód. Proc. Civil, quando a “audiência prévia” se destine a que seja proferido o despacho saneador, nos termos do art. 595º nº 1 do mesmo diploma, isto é, quando seja de proferir simplesmente despacho saneador ou despacho saneador/sentença (v. cit. art. 595º nº 1 alínea b) Cód. Proc. Civil), essa audiência pode ser dispensada”.
[2] ) Posição reafirmada pelo Prof.º Lebre de Freitas, in “ A Ação Declarativa Comum”, à Luz do CPC de 2013, 3.ª Edição, pág. 172.
[3] É o seguinte o teor da norma: «todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo».
[4] É o seguinte o teor da norma: «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo casos de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».