ABUSO DE CONFIANÇA AGRAVADO
APROPRIAÇÃO ILÍCITA
Sumário

– O crime de abuso de confiança p.p. pelo art.º 205ºCP, consuma-se quando o agente, que recebe a coisa móvel por título não translativo de propriedade para lhe dar determinado destino, dela se apropria, passando a agir “animo domini”, devendo entender-se que a inversão do título de posse carece de ser demonstrada por actos objectivos, reveladores de que o agente já está a dispor da coisa como se sua fosse.

– Constituindo a apropriação um dos elementos típicos do crime de abuso de confiança, fundamental será a demonstração da prática de actos objectivamente idóneos e concludentes que conduzam à conclusão de que o agente inverteu a posse e passou a comportar-se perante a coisa como se “proprietário” fosse, revestindo estes actos especial relevância nos casos em que o agente não entrega a coisa e subjacente está uma situação de incumprimento obrigacional.

– Essa disposição do agente, de se apropriar da coisa que recebeu por título não translativo da propriedade, pode ser revelada por um conduta externa incompatível com a vontade de restituir ou de dar o destino certo à coisa, tal como a colocação à venda, a doação, o tentar registar a propriedade do veículo em seu nome ou ter procedido à alteração dos elementos do veículo (matrícula ou número do quadro do motor), ter forjado ou viciado vários documentos, a ocultação ou a recusa de devolver a coisa a quem de direito depois de interpelado para o efeito.

– Para integrar o elemento apropriação do tipo objectivo de crime não basta o recurso à mera utilização da palavra apropriar contida na lei, já que o único facto objectivo que descrevem para integração do dito elemento típico é o do arguido não ter procedido à entrega/devolução do veículo dentro do prazo contratado, não se podendo inferir de modo conclusivo que o arguido se apropriou e fez seu o veículo automóvel, como se da simples não entrega se retirasse, sem mais, a disposição de consumar o crime, apropriando-se o agente da coisa.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–Relatório:


1.–No processo comum com intervenção do tribunal singular n.º 1251/15.9SKLSB, o arguido E., melhor identificado nos autos, foi acusado e julgado pela imputada prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.° n.º 1 e 4, alínea a) e b) do Código Penal.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:

«Pelo exposto o Tribunal decide:
1.– Condenar o arguido E. pela prática de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205.º n.º 1 e 4 alínea b) do Código Penal na pena de 2 anos e 4 meses de prisão.
2.– Suspender a pena na sua execução pelo período de 2 anos e 4 meses.
(…)»

2.– O arguido recorreu desta sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
a)- O ponto 4 da matéria de fato dada por provada é claramente uma conclusão e um juízo, não sendo um fato,
b)- Sem prejuízo da alínea a) a matéria dada por provada não é suficiente para a prática do crime de abuso de confiança p. p 205.º.
c)- Impugna-se os pontos 4, 7 e 8 porquanto as declarações da testemunha e do arguido contradizem essa matéria, tendo o douto Tribunal a quo julgado diferentemente do que aí consta;
d)- Mesmo que se concluísse pela prática do crime de abuso de confiança, o que só se coloca por hipótese, ainda assim não se poderia condenar o recorrente por abuso de confiança agravado;
e)- O arguido deve assim, ser absolvido,
f)- A ser condenado será pela prática do crime de abuso de confiança simples e atendendo ás exigências de prevenção com uma pena de multa.

3.– O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta, concluindo do seguinte modo (transcrição das conclusões):
1.º
O crime de Abuso de Confiança protege a propriedade do bem, pelo que, o Tribunal ao considerar o valor do veículo automóvel, tendo por referência a pesquisa realizada quanto à cotação daquele, fez uma correcta qualificação jurídica dos factos cometidos pelo arguido.
2.°
 Ao minuto 06: 13, o arguido declarou que emprestou o veículo ao seu irmão, bem sabendo que a viatura não lhe pertencia, actuando como se tratasse do seu verdadeiro dono.
3.°
Ao minuto 10:55, o arguido, ao ser questionado da razão pela qual não procedeu à entrega da carrinha, declarou que era sua intenção coloca-la na oficina a arranjar, visto se ter despistado com a mesma.
4.°
Infere-se de tais circunstâncias - comodato da viatura e proceder à reparação da mesma sem o consentimento e conhecimento do seu proprietário - que está para além da simples não entrega do veículo à sua proprietária, que o arguido agiu como aquela coisa móvel lhe pertencesse.
5.°

E nesta medida, considera o Ministério Público, que para além dos factos considerados provados pelo Tribunal a quo, deve constar o seguinte:
1.º- Em data não concretamente apurada, mas anterior a 21 de Janeiro de 2016, o arguido emprestou o veículo identificado em 1.0 (dos factos provados) ao seu irmão, P.;
2.º- Em data não concretamente apurada, mas anterior a 21 de Janeiro de 2016, o arguido conduzia o veículo referido em 1.0 (dos factos provados), quando sofreu despiste e partiu as grelhas, sendo sua intenção, antes de a devolver ao seu proprietário, aqui denunciante, providenciar pelo seu arranjo, numa oficina por si escolhida.

6.°
Na situação em análise, o arguido agiu sempre como se tratasse do dono do veículo automóvel.
7.°
Em consequência, entendemos que a sentença recorrida deverá ser mantida, aditados os factos provados donde se infere a intenção do arguido e o presente recurso ser declarado improcedente.

4.– Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), teve vista dos autos e declarou subscrever a posição do Ministério Público junto da 1.ª instância.

5.– Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do C.P.P. e colhidos os vistos, foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

II–Fundamentação.
1.– Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, as questões submetidas ao conhecimento deste tribunal são:
- Do erro de julgamento da matéria de facto.
- Do não preenchimento pelos factos provados dos elementos do tipo de crime por que o recorrente foi condenado.
- Determinação da pena.

2.– Da sentença recorrida
2.1.– O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1.– No dia 09 de novembro de 2015, no aeroporto de Lisboa, nas instalações da A., na Alameda …, esta celebrou com o arguido um contrato com o n.º 2592018 de aluguer de veículo automóvel ligeiro de passageiros matrícula … de maio de 2015, 23.013 quilómetros, com início nessa mesma data e términus a 12 de novembro de 2015.
2.– A sociedade A. entregou o veículo ao arguido que o recebeu.
3.– O arguido não efetuou a entrega voluntária da viatura, nem o respectivo pagamento.
4.– Apropriou-se do veículo fazendo-o coisa sua.
5.– O veículo foi recuperado pela PSP no dia 21 de janeiro de 2016, pelas 10H30m.
6.– O veículo apresentava estragos na parte dianteira e no capôt, nos guarda-lamas e para-choques.
7.– O arguido sabia que o veículo não lhe pertencia e que não podia do mesmo dispor por qualquer forma para além da prevista no contrato.
8.– Sabia que estava obrigado a proceder à sua entrega no final do contrato
9.– Agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, podia determinar-se em sentido contrário e, ainda assim, não se absteve de a praticar.
10.– O arguido foi condenado por decisão proferida em 14 de abril de 2015, transitada em julgado no dia 06 de julho de 2015, pela prática em 09 de agosto de 2014 de um crime de condução sem habilitação legal na pena de 80 dias de multa à taxa diária de 5,00€, extinta pelo cumprimento em 24 de abril de 2017.
Mais se provou:
11.– O veículo à data tinha valor comercial de venda ao público superior a 20.400,00

Mais se provou:
12.– O arguido é titular de carta de condução que o habilita a conduzir veículos ligeiros de passageiros desde dezembro de 2016
13.– O pai do arguido é detentor de veículo automóvel ligeiro de passageiros marca volvo.
14.– O irmão do arguido é titular de veículo automóvel ligeiro de passageiros marca Citroen.
15.– O arguido é vendedor ambulante e reside com a companheira com quem é unido de facto.
16.– O arguido tem 2 filhos de 2 e 4 anos. 

2.2.– Quanto a factos não provados ficou consignado na sentença recorrida (transcrição):
Inexistem.

2.3.– O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
O tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente no depoimento da testemunha A.C. que confirmou a existência do contrato. Não conhecendo o arguido pessoalmente, atestou que aquando da assinatura do contrato, são solicitados os documentos pessoais ao outorgante, para efeitos de preenchimento do contrato, designadamente a carta de condução e o cartão de cidadão, que atestam a identidade do arguido. Por outro lado, resultando do auto de apreensão de que o veículo foi apreendido a um irmão do arguido, afasta a possibilidade do veículo ter sido furtado ou ter ocorrido qualquer outra causa que pudesse em abstrato justificar a não entrega do veículo no termos do contrato. O arguido invocou não pretender fazer seu o carro, contudo, instado pelo tribunal não soube indicar quando é que pretendia entregar o veículo, justificando a não entrega no prazo contratado com o facto de ter de alimentar os filhos. Filhos que já teriam nascido aquando do aluguer do veículo. Se o arguido sabia que o veículo não era seu, mas decidiu atribuir a si próprio o poder determinar se, e quando, devolveria o veículo, o tribunal não teve outra possibilidade que não fosse a de julgar provado que o arguido fez seu o veículo automóvel em causa. Os danos provocados na viatura foram dados como provados com base nas fotografias existentes nos autos a fls. 35 a 38 e orçamento a fls. 45. O tribunal formou a convicção na prova do antecedente criminal do arguido com base no certificado de registo criminal constante a fls. 200 e 201. O tribunal formou a prova do facto descrito em 11 com base na consulta do sítio www.standvirtual.pt para veículo marca Wolkswagen, modelo Variant com menos de 1 ano e menos de 35.000 quilómetros. Os veículos com seis meses, como tinha à data o veículo dos autos e com menos de 25.000 quilómetros, têm todos valores muito superiores a 20.400,00€, pelo que o tribunal julgou provado que o valor não seria inferior a esse.
***

3.–Apreciando
           
3.1.– O recorrente, no corpo da motivação, alega que os factos provados, em especial os pontos 4, 7 e 8, não permitem o preenchimento do tipo de crime de abuso de confiança por que foi condenado, alegação que tem o seu reflexo nas alíneas a) e b) das conclusões, o que nos remete para uma questão de direito.
Porém, alega o recorrente, simultaneamente, que houve erro de julgamento quanto aos referidos pontos de facto provados, “porquanto as declarações da testemunha e do arguido contradizem essa matéria” [cfr. alínea c) das conclusões].

Vejamos.

No que concerne à modificabilidade da decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, preceitua o artigo 431.º, do C.P.P., que tal decisão pode ser modificada, sem prejuízo do disposto no artigo 410.º: a) se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º3 do artigo 412.º; ou c) se tiver havido renovação da prova.

A situação prevista na alínea a), do artigo 431.º, do C.P.P. está excluída quando a decisão recorrida se fundamenta, não só em prova documental, pericial ou outra que consta dos autos, mas ainda em prova produzida oralmente em audiência de julgamento.

Também a possibilidade de modificação da decisão da 1.ª instância ao abrigo da al. c) do artigo 431.º, do C.P.P., está afastada quando não se realizou audiência para renovação da prova neste Tribunal da Relação, tendo em vista o suprimento dos vícios do artigo 410.º, n.º 2 do C.P.P.

No que concerne à impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, a reapreciação da prova faz-se dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de tríplice especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do C.P. Penal.

No caso em apreço, temos como manifesto que o cerne do recurso está na circunstância de o recorrente entender que a matéria de facto provada não permite o preenchimento do tipo de crime imputado, uma vez que o ponto de facto provado n.º4, segundo o recorrente, é uma conclusão e não um facto (e escrevemos “facto”, pois antes e depois do acordo ortográfico é assim que que se escreve em português de Portugal, e não “fato”, como erradamente parece pressupor o recorrente).

A designada “impugnação da matéria de facto”, visando matéria que o recorrente alega ser conclusiva e não preencher o tipo de crime em causa, surge sem que, no corpo da motivação ou nas conclusões, o recorrente mencione, minimamente, o conteúdo específico de qualquer meio de prova pessoal, seja por referência ao consignado na acta, seja através da transcrição de qualquer segmento de declarações e depoimentos. Limita-se a dizer, em sede conclusiva, que “as declarações da testemunha e do arguido contradizem essa matéria” e, em sede de corpo da motivação, que “nem da prova testemunhal, nem das declarações do arguido resulta que o mesmo tivesse querido apropriar-se do veículo”.

Não tendo o recorrente observado (nas conclusões ou sequer na motivação) o ónus de impugnação especificada - mesmo que se adopte um entendimento menos rigoroso e exigente quanto ao modo de cumprimento desse tríplice ónus -, não pode este Tribunal da Relação proceder à reapreciação da prova gravada, como também não lhe cabia fazer convite ao aperfeiçoamento, pois trata-se não de uma insuficiência das conclusões, mas antes de uma insuficiência do recurso, equivalente a uma falta de motivação na plenitude dos seus fundamentos, obstativa de correcção (sobre a inteira conformidade constitucional deste entendimento, Acórdãos do T.C. n.º 259/2002, 140/2004, 488/2004, 342/2006, Decisões Sumárias do T.C. 58/2005, 274/2006 e 88/2008, www.tribunalconstitucional.pt. Ver, também, Acórdãos do S.T.J., de 31.10.2007, processo 07P3218, e de 19.05.2010, processo 696/05.7TAVCD.S1, disponíveis em www.dgsi.pt).

Porém, o cerne da questão, na lógica do recurso, reside na questão de direito atinente à subsunção jurídico-penal dos factos provados: saber se integram ou não a tipicidade do crime de abuso de confiança imputado ao recorrente.

3.2.– Estabelece o artigo 205.º, nºs 1 e 4, alínea b), do Código Penal:
“1- Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido (…).”
4- Se a coisa referida no n.º1 for:
a)- (…);
B)– De valor consideravelmente elevado, o agente é punido (…. ”
Elemento essencial deste crime é a ilegítima apropriação.
Como refere Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 103), no crime de abuso de confiança, diferentemente do crime de furto, a apropriação intervém na sua veste de elemento do tipo objectivo de ilícito. Acrescentando ainda o mesmo autor, citando Eduardo Correia, que a apropriação no abuso de confiança “não pode ser (…) um puro fenómeno interior – até porque cogitationis paenam nemo patitur–mas exige que o animusque lhe corresponde se exteriorize, através de um comportamento, que o revele e execute.”

Num primeiro momento o agente recebe validamente a coisa, sendo a sua posse, a título precário ou temporário, lícita e válida. Só posteriormente, se verifica uma inversão do título de posse, deixando o agente de possuir em nome alheio, como mero detentor, fazendo entrar a coisa no seu próprio património ou dispõe dela como se fosse sua, isto é, “com o propósito de não a restituir, ou de não lhe dar o destino a que estava ligada, ou sabendo que não mais o poderia fazer”(cf. Leal Henriques e Simas Santos, in “Código Penal Anotado”, 2.º volume, 3.ª ed., pág. 686).

É indispensável que a entrega tenha sido feita por título não translativo da propriedade: “que lhe tenham sido entregues por depósito, locação, mandato, comissão, administração, comodato, ou que haja recebido para trabalho, ou emprego determinado, ou por qualquer outro título que produza a obrigação de restituir ou apresentar a mesma coisa recebida ou um valor equivalente” (Figueiredo Dias, ob. cit., 102).

O crime consuma-se quando o agente, que recebe a coisa móvel por título não translativo de propriedade para lhe dar determinado destino, dela se apropria, passando a agir “animo domini”, devendo entender-se que a inversão do título de posse carece de ser demonstrada por actos objectivos, reveladores de que o agente já está a dispor da coisa como se sua fosse. Isto não significa, porém, que a acção tenha necessariamente que traduzir-se em condutas positivas, pois a mera omissão pode em certos casos consubstanciar já o necessário para a consumação (J. António Barreiros, in “Crimes Contra o Património, 111, e Prof. Cavaleiro Ferreira, aí citado).

Constituindo a apropriação um dos elementos típicos do crime de abuso de confiança, fundamental será a demonstração da prática de actos objectivamente idóneos e concludentes que conduzam à conclusão de que o agente inverteu a posse e passou a comportar-se perante a coisa como se “proprietário” fosse, revestindo estes actos especial relevância nos casos em que o agente não entrega a coisa e subjacente está uma situação de incumprimento obrigacional.

Essa disposição do agente se apropriar da coisa que recebeu por título não translativo da propriedade pode ser revelada por um conduta externa incompatível com a vontade de restituir ou de dar o destino certo à coisa, tal como a colocação à venda, a doação, o tentar registar a propriedade do veículo em seu nome ou ter procedido à alteração dos elementos do veículo (matrícula ou número do quadro do motor), ter forjado ou viciado vários documentos, a ocultação ou a recusa de devolver a coisa a quem de direito depois de interpelado para o efeito.

Retomando a factualidade dada como provada na sentença recorrida, importa verificar se os factos objectivos provados nos permitem extrair a ilação de que o arguido teve intenção de se apropriar de coisa alheia e efectivamente se apropriou.

Esses factos objectivos que se provaram foram os seguintes: o arguido alugou um veículo automóvel em 9 de Novembro de 2015, com inicio nessa data e termo a 12 de Novembro de 2015, não o entregou nesse dia, nem posteriormente, tendo sido o veículo recuperado pela PSP no dia 21 de Janeiro de 2016.

Perante isto, diz o ponto de facto provado 4, referindo-se ao arguido: “Apropriou-se do veículo fazendo-o coisa sua”.
Essa era a fórmula que já constava da acusação, onde se dizia que “o arguido não procedeu até à data designada à entrega do veículo” e que “ao invés de proceder à entrega do veículo como lhe competia, o arguido apropriou-se do mesmo, fazendo-o coisa sua.”
Quer isto dizer que a acusação e a sentença recorrida pretendem integrar o elemento apropriação do tipo objectivo de crime com recurso à mera utilização da palavra apropriar contida na lei, já que o único facto objectivo que descrevem para integração do dito elemento típico é o do arguido não ter procedido à entrega/devolução do veículo dentro do prazo contratado.

Ora, do mero facto de o arguido utilizar o veículo para além do período acordado não se pode concluir, sem mais, que usou e fruiu do mesmo comportando-se “uti dominus”. A sentença o que deu como provado é que o arguido, que recebera o veículo automóvel em causa por título não translativo da propriedade, o não entregou na data aprazada e, desse facto, na linha do que já acontecia com a acusação, inferiu, mas de forma incorrecta e meramente conclusiva, que o arguido se apropriou e fez seu o veículo automóvel, como se da simples não entrega se retirasse, sem mais, a disposição de consumar o crime, apropriando-se o agente da coisa.

Acusação e sentença recorrem, pois, a uma fórmula conclusiva, faltando a indicação de factos objectivos e concludentes demonstrativos da inversão do título de posse, em ordem a integrar a apropriação.

O Ministério Público, na resposta ao recurso, ensaia uma forma de resolver a questão: o aditamento de novos factos provados através do recurso à prova gravada.

Temos como evidente que tal pretensão é desprovida de qualquer fundamento: o momento da resposta a um recurso não habilita o sujeito processual afectado pela interposição a suscitar, na sua resposta, a impugnação da decisão de facto com base na reapreciação da prova gravada, com a finalidade de serem aditados novos factos à factualidade provada e assim suprir as deficiências da acusação.

Não se podendo concluir que o arguido se apropriou do veículo em causa, em função dos termos conclusivos em que se mostra formulada a sentença recorrida e que já caracterizavam a acusação, falta a demonstração de um dos elementos típicos do crime imputado, pelo que o arguido tem, por isso, de ser absolvido da acusação.
***

III–Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto por E., revogando a sentença recorrida e absolvendo o arguido/recorrente da acusação contra si deduzida nos autos.

Sem tributação.



Lisboa, 20 de Março de 2018

                   

(Jorge Gonçalves) – (o presente acórdão, integrado por dez páginas com os versos em branco, foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)
                              
(Maria José Machado)