PRESCRIÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITOS LABORAIS
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
Sumário


I - O crédito reclamado pela entidade patronal, deduzido em acção emergente de contrato de trabalho, que provenha de pretensa prática de ilícito criminal por parte do trabalhador, consistente na elaboração de faturas falsas tendo em vista a apropriação da diferença de preço que resultava das diferentes condições negociais que a ré praticava em relação a clientes com diferentes características, está sujeito ao regime prescricional geral previsto no artigo 498º, nº 3, do Código Civil;

Texto Integral


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães.

RP, LIMITADA”, instaurou contra RUI, a presente ação com processo comum.

Invocou que o réu foi seu trabalhador até final de outubro de 2015, como distribuidor, data em que denunciou o contrato. O réu iniciou funções noutra entidade, continuando a visitar os seus clientes, referindo que o gás era o mesmo ou que a empresa tinha cessado atividade. Do universo de clientes faziam parte consumidores finais, revendedores, e outros clientes, com preços diferentes. A ré veio a descobrir que o réu faturou ficticiamente aos clientes com preços mais baixos, ocultando vendas a consumidores finais, fazendo sua a diferença de preço. Viu-se obrigada a emitir por cada fatura fictícia uma nota de crédito. A conduta do réu violou de forma grosseira e reiterada o disposto na alínea f), nº 1 do artigo 128º do Cód. Trabalho.

Conclui formulando pedido de condenação do réu na quantia de € 7.880, 51 mais juros, de danos.
O réu contestou invocando a exceção de prescrição e por impugnação.
A autora respondeu à exceção referindo que regime especial de prescrição dos créditos emergentes da violação de um contrato de trabalho, estabelecido nas leis laborais, só é aplicável aos créditos típicos da relação laboral.
- No despacho saneador conhecendo da exceção invocada foi decidido verificar-se a prescrição, absolvendo-se o réu do pedido.

Inconformada a autora interpôs recurso apresentando as seguintes conclusões:

A) O artigo 337º do Código do Trabalho deve ser interpretado restritivamente, com o alcance de apenas contemplar os créditos típicos da relação laboral, desse âmbito se excluindo os emergentes de uma relação delitual de responsabilidade civil;
B) A autora, ora recorrente, alegou na sua petição factualidade que integra conduta delitual, nomeadamente ao fazer suas importâncias que não lhe pertenciam, através da ocultação das vendas verdadeiras, conforme se alcança do alegado nos articulados 11º a 13º da p.i.;
C) Não cobraria qualquer sentido se um trabalhador praticasse um acto criminalmente punível, mas que, simultaneamente infringisse qualquer dos deveres impostos pelo Código do Trabalho, o pedido da respectiva indemnização prescrevesse, não segundo a regra do Código Civil combinado com a do Código Penal, mas de acordo com o prescrito no artigo 337º do C.T.;
D) A interpretação que se defende é a única que não colide com a unidade do sistema jurídico, valendo independentemente do órgão jurisdicional ou da via processual perante o qual se pretende exercer o direito;
E) A douta sentença recorrida fez errada interpretação do artigo 337º do C.T., face à factualidade alegada pela recorrente.

Em contra-alegações sustenta-se o julgado.

O Exmº PGA deu parecer no sentido da improcedência.
A factualidade é a que resulta do precedente relatório.

Importa ainda:

- A ação deu entrada a 15/9/2017.
Na petição inicial consta designadamente:


O réu após cessar as suas funções profissionais ao serviço da autora iniciou imediatamente a mesma atividade ao serviço da empresa ... cujo objeto social consiste no comércio a retalho de combustíveis para uso doméstico, em estabelecimentos especializados.


O réu já ao serviço da nova entidade patronal continuou a visitar os clientes da sua ex-entidade patronal, ora autora, dizendo a uns que o gás era o mesmo e a outros que a empresa tinha cessado a sua atividade comercial.


O réu para aliciar e captar os clientes da sua ex-entidade patronal chegou ao ponto de trocar garrafas, por si fornecidas anteriormente, meio cheias por garrafas de gás totalmente cheias, estas propriedade da nova entidade patronal.

11º
Após o réu ter cessado as suas funções profissionais ao serviço da autora esta veio a descobrir que aquele faturou ficticiamente aos clientes que beneficiavam de preços mais baixos – revendedores e titulares de estabelecimentos similares de hotelaria – diversos produtos que não lhes forneceu.

12º
Com este artifício doloso o réu teve como único objetivo ocultar as entregas/vendas que efectivamente fez a consumidores finais imputando-os aos clientes que beneficiavam de preços mais baixos, fazendo sua a diferença de preços.


22º
Em face de tal circunstância a autora viu-se obrigada a emitir por cada uma dessas faturas fictícias a respetiva nota de crédito, conforme consta do articulado 17º desta p.i.

23º
Factualidade que junto do Serviço de Finanças respetivo criou reservas e dúvidas a tão estranha situação.


34º
Os factos imputados ao réu foram uns praticados na vigência do contrato de trabalho e outros imediatamente após a cessação do mesmo, encontrando-se todos eles relacionados diretamente com o referido contrato de trabalho.

35º
A conduta do réu violou de forma grosseira e reiterada o disposto na alínea f), nº 1 do artigo 128º do Cód. Trabalho.

***

Conhecendo do recurso:

Nos termos dos artigos 635º e 639º do CPC, o âmbito do recurso encontra-se balizado pelas conclusões do recorrente.

Importa saber se ocorreu a prescrição dos créditos invocados pela autora, empregadora.

A autora defende que o prazo prescricional aplicável não é o do artigo 337º do Código do Trabalho, devendo este ser interpretado no sentido de abranger apenas os créditos típicos da relação laboral, desse âmbito se excluindo os emergentes de uma relação delitual de responsabilidade civil. Tratando-se de atos criminalmente punidos, como a invocada apropriação de importâncias, deve ser aplicado o prazo prescricional do CC combinado com o CP.
O recurso parece atacar apenas a parte da responsabilidade imputada ao trabalhador pelos comportamentos alegadamente tidos durante a execução do contrato e relativos à faturação fictícia com aproveitamento e apropriação de dinheiros.

Quanto à questão do aliciamento de clientes nada se refere. Sempre nesta parte soçobraria a alegação, já que nem sequer se baliza no tempo aos atos imputados, resultando apenas que tal ocorreu logo após a desvinculação e admissão noutra entidade patronal. Quanto a esta responsabilidade é aplicável o prazo prescricional especial do artigo 337º do CT, ancorado como foi, pela autora, na al. f) do nº 1 do artigo 128º do CT. Entendendo ser aplicável tal prazo numa situação com alguma semelhança, embora baseada em contrato, para os pactos de não concorrência, embora não diretamente, veja-se Ac. RP de 19/10/2009, processo nº 444/08.0TTMAI.P1, disponível na net e Sofia Silva e Sousa, Obrigação de Não Concorrência Com Efeitos Post Contractum, pag. 142 ss, UCE, 2012, referenciando-se o modo de contagem (início) do prazo.
- Vejamos quanto ao comportamento ilícito imputado, praticado durante a vigência da relação laboral.

Invoca a recorrente o acórdão do STJ de 03/02/2011, no âmbito do processo nº 1228/07.8TBAGH.L1.S1. Defende o acórdão que o regime especial de prescrição dos créditos laborais só é aplicável aos créditos típicos desta relação, excluindo-se do seu âmbito os emergentes de uma relação de responsabilidade civil extracontratual, nomeadamente quando esteja em causa uma responsabilidade delitual conexa com a criminal.

Consta do acórdão:

“… Aderindo-se inteiramente à orientação jurisprudencial que considera inaplicável o prazo especial de prescrição dos créditos emergentes de uma violação da relação laboral quando o comportamento do agente preencha simultaneamente um tipo penal – passando, consequentemente, o crédito de indemnização da contraparte a fundar-se, não apenas no incumprimento de deveres laborais, mas prioritariamente no instituto da responsabilidade civil extracontratual, conexa com a responsabilidade criminal imputada ao agente.
Como se afirma no acórdão deste Supremo de 28/6/06, proferido no p. 05S3917:

A especialidade da norma, em relação às normas gerais atinentes à extinção de direitos por prescrição, tem a sua razão de ser na especificidade da relação laboral…

Mas, porque se trata "de uma regra especial, a sua aplicação só se justifica em relação aos créditos fundados no contrato de trabalho, pois é quanto a eles que poderão funcionar os condicionamentos, sob o ponto vista de temporal, quanto à efectivação dos direitos por via judicial, que terão constituído a ratio legis", ou seja "aos créditos derivados directamente das relações essenciais do trabalho", da "violação de estritos deveres laborais e na parte a eles respeitantes".

Face à razão de ser de tal norma especial, esta não pode ter o sentido de reduzir o prazo geral de prescrição a que as normas conjugadas do Código Civil e do Código Penal sujeitam os créditos emergentes de responsabilidade civil pela prática de ilícito criminal, nem o sentido de incluir tais créditos no regime de imprescritibilidade relativa - até à cessação do contrato - atribuído aos créditos emergentes da simples violação dos típicos deveres que constituem o núcleo essencial da relação jurídica laboral.

De resto, "nem faria sentido que, se um trabalhador ou a entidade patronal praticasse um acto criminalmente punível, mas que infringisse simultaneamente qualquer dos deveres impostos pelo citado Regime Jurídico [do Contrato Individual de Trabalho], o pedido da respectiva indemnização prescrevesse, não segundo a regra do Código Civil combinada com a do Código Penal, mas de harmonia com os prescrito no n.º 1 do referido artigo 38.º" 10).

Esta interpretação, que não excede o significado das palavras da norma especial e tem em conta a sua razão de ser, é, salvo o devido respeito por diferente opinião, a única que não afronta a unidade do sistema jurídico valendo independentemente do órgão jurisdicional - ou da via processual - perante o qual se pretende exercer o direito.

a aplicabilidade do regime ampliativo de duração da prescrição, contido no nº3 do art. 498º do CC, aos actos que, estando embora conexionados com o incumprimento de uma relação laboral, revestem natureza penal decorre, desde logo, da circunstância de o bem jurídico tutelado não ser obviamente, neste caso, a mera relação laboral «qua tale», mas bens ou valores jurídicos fundamentais à vida comunitária, cuja relevância em muito transcende o plano dos direitos e obrigações do trabalhador e da entidade patronal, vinculados por um contrato de trabalho subordinado: não pode, pois, manifestamente, nesta particular situação, pretender-se que a causa da indemnização radica na violação do contrato de trabalho por uma das partes, por o ilícito praticado se conexionar, desde logo e em primeira linha, com a lesão dos bens jurídicos tutelados pela norma incriminadora…”

No Ac. STJ de 13/5/2004, processo nº 03S3688, defende-se igual entendimento. Refere este.

“… Como se anotou, o réu, ora recorrente, deduziu um pedido reconvencional pretendendo obter o reembolso de importâncias de que o autor se terá apropriado ilicitamente enquanto prestava a sua actividade laboral…

Quanto a este ponto, a jurisprudência do STJ começou por entender que o prazo de um ano previsto no artigo 38º, nº 1, da LCT respeita aos créditos derivados directamente das relações essenciais do trabalho (entre os quais se poderão considerar, a título de exemplo, os aspectos retributivos), ao passo que os derivados de factos ilícitos de natureza criminal, que em muito transcendem a simples violação de deveres laborais, são regulados pela lei geral que, no caso, é a prevista no artigo 498º, nº 3, do Código Civil, e que remete para o disposto no artigo 118º do Código Penal (acórdão de 24 de Outubro de 1980, BMJ nº 300, pág. 319).

Mais recentemente, porém, o STJ tem vindo a sustentar posição diversa, aplicando o regime definido no nº 1 do artigo 38º da LCT a todo o tipo de créditos que possam resultar da relação laboral, partindo da ideia de que o preceito em causa integra uma norma especial que afasta a aplicação das regras gerais (acórdãos de 14 de Março de 2000, no processo nº 247/99, e de 19 de Dezembro de 2002, no processo nº 383/02).

O réu poderia deduzir o pedido de indemnização civil no âmbito do processo penal respectivo, à luz do princípio da adesão previsto no artigo 71º do Código de Processo Penal, ou em acção separada, perante o tribunal cível, caso se verificasse alguma das circunstâncias descritas no artigo 72º do mesmo diploma. E se o réu tivesse optado por qualquer destas soluções, sem dúvida que se aplicaria o regime prescricional previsto no nº 3 do artigo 498º do Código Civil, ficando a prescrição do direito indemnizatório sujeita ao prazo mais longo que se encontre previsto na lei penal para o tipo de crime em causa.

A declaração jurisdicional de prescrição do direito invocado pelo réu, em reconvenção, implicaria a improcedência do pedido, correspondendo a uma decisão de mérito que teria o valor de sentença e era susceptível de constituir caso julgado material (cfr. artigos 510º, nº 3, segunda parte e 691º, nº 2, do Código de Processo Civil). Isso significa que, caso se aplicasse ao crédito do réu o regime menos favorável decorrente do artigo 38º, nº 1, da LCT, com consequente reconhecimento da existência da prescrição, este ficaria definitivamente impossibilitado, logo que transitasse em julgado essa decisão, de reclamar o mesmo crédito na jurisdição cível ou penal.

A solução jurídica do caso seria, por isso, inteiramente diversa consoante a opção que interessado tivesse efectuado quanto ao tribunal ou meio processual a utilizar para exercer o seu direito, não obstante a lei lhe conceder a faculdade de, dentro de certo condicionalismo, recorrer ao processo penal, ao processo cível ou ainda ao processo laboral para obter a reparação do dano que invoca.


Ora, os direitos indemnizatórios que derivam para o empregador de ilícito penal cometido pelo trabalhador durante a actividade profissional e aproveitando o exercício dessa actividade - como sucede quando o trabalhador se apropria de bens que pertencem à entidade patronal, desviando o valor de vendas de produtos existentes em estabelecimento comercial - não constituem, em rigor, um crédito resultante à relação laboral, mas antes um crédito atinente a uma relação jurídica delitual de responsabilidade civil, que, sendo inteiramente distinta daquela, apenas mantém, no plano dos factos, uma conexão espácio-temporal com a prestação do trabalho…”

Já no acórdão do STJ de 13/1/2010, processo nº 1321/06.4TTLSB.L1.S1, se defende, no quadro do artigo 372º, 2, relativo à prescrição da infracção disciplinar, que o alargamento do prazo de prescrição não depende do efetivo exercício da ação penal, nem do exercício do direito de queixa-crime, quando o exercício daquela esteja dependente desta.

A situação referenciada, elaboração de faturas falsas tendo em vista a apropriação da diferença de preço que resultava das diferentes condições negocias que a ré praticava em relação a clientes com diferentes caraterísticas (revendedores e determinados clientes com melhores preços), diferença essa que considerando o verdadeiro adquirente do bem pertencia à autora, constitui em abstrato ilícito criminal. Valem assim as considerações expendidas nos acórdãos referenciados, pelo que e considerando o prazo que resulta da aplicação do nº 3 do artigo 498º do CC., no caso 5 anos – artigo 118º, 1 c) do CP.

Assim procede a apelação, devendo os autos prosseguir relativamente aos factos ocorridos durante a vigência do contrato.

DECISÃO:

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão na parte em que declarou a prescrição relativamente ao pedido relativo aos factos ocorridos na pendência da relação contratual.
Custas nesta instância pela recorrida, sendo as de primeira instância na parte em que se mantém a absolvição da instância, e atenta a fase processual, da responsabilidade da autora.
19/04/2018

Antero Veiga
Alda Martins
Eduardo Azevedo