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ROUBO
TENTATIVA IMPOSSÍVEL
DROGA
Sumário
I – O bem jurídico tutelado pelo crime de roubo assume uma dupla vertente: por um lado, os bens jurídicos patrimoniais (direito de propriedade e de detenção de coisas móveis); por outro, os bens jurídicos pessoais (a liberdade individual de decisão e acção e a integridade física ou, ainda, a vida), sendo certo que a ofensa aos bens pessoais surge como meio de lesão dos bens patrimoniais; II – Não pode ser condenado pelo referido crime, o arguido que com a acção criminosa levada a cabo visava a obtenção junto dos ofendidos de produto estupefaciente (haxixe) que estes teriam na sua posse e decorre dos autos que nenhum dos ofendidos detinha o almejado produto estupefaciente; III – E também não pode ser condenado pelo referido crime, ao nível da tentativa, por se estar perante uma situação de tentativa impossível, por inexistência de objecto essencial à consumação do crime (produto estupefaciente), de acordo com o disposto no n.º 3, parte final, do art.º 23.º, do CP.
Texto Integral
Recurso n.º 97/16.1 GFLLE.
Acordam, em Conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.
Nos Autos de Processo Comum Colectivo, com o n.º 97/16.1 GFLLE, a correrem termos pela Comarca de Faro – Instância Central Criminal -, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido:
· BB, filho de (…);
Imputando-lhe factos suscetíveis de integrarem a prática, em autoria material e em concurso efetivo, de um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158.º, n.º 1, do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, dois crimes de roubo agravado na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 210.º, n.ºs 1 e 2, al.ª b), por referência ao artigo 204.º, n.º 2, al.ª f), do Código Penal, dois crimes de ofensa à integridade física, previstos e punidos pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, e um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 143.º e 155.º, n.º 1, al.ª a) do Código Penal.
CC e DD constituíram-se assistentes nos presentes autos.
Não foram deduzidos pedidos de indemnização civil.
O arguido não apresentou contestação nem arrolou testemunhas.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância dos formalismos legais, vindo-se, em seu seguimento, a ser prolatado pertinente Acórdão, onde se veio Decidir: a) Absolver o arguido BB do crime de sequestroagravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 158.º,n.º 1 do Código Penal e 86.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro; b) Condenar o arguido BB pela prática de um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158.º, n.º 1 do Código Penal na pena de 1 (um) ano de prisão; c) Absolver o arguido BB de dois crimes de roubo agravado na forma tentada, previstos e punidos pelos artigos 210.º, n.º 1 e 2, al.ª b), por referência ao artigo 204.º, n.º2, al.ª f), do Código Penal, mas, qualificando as condutas do arguido como suscetíveis de integrarem a prática de dois crimes de ofensa à integridade física, previstos e punidos pelo artigo 143.º, do Código Penal (na pessoa do DD e EE); d) Condenar o arguido BB pela prática de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º, do Código Penal (relativamente ao DD no dia 24.2.2016), na pena de 8 (oito) meses de prisão; e) Homologar a desistência de queixa apresentada por EE e, consequentemente, declarar extinto o procedimento criminal contra o arguido BB, pelos factos suscetíveis de integrarem a prática de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º, do Código Penal (relativamente ao EE); f) Condenar o arguido EE pela prática de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º, do Código Penal (relativamente a CC), na pena de 3 (três) meses de prisão; g) Condenar o arguido BB pela prática de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º, do Código Penal (relativamente ao DD no dia 26.2.2016), na pena de 6 (seis) meses de prisão; h) Condenar o arguido BB pela prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 153.º e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão; i) Procedendo ao cúmulo jurídico das penas em concreto aplicadas, nos termos do artigo 77.º, do Código Penal, condenar o arguido BB na pena única de 2 (dois) anos de prisão; j) Nos termos do artigo 109.º, do Código Penal, declarar perdida a favor do Estado a faca apreendida. k) Condenar o arguido no pagamento das custas criminais, fixando-se em 4 UC, a taxa de justiça, acrescida dos encargos a que a sua atividade do mesmo houver dado lugar, sem prejuízo da eventual concessão de apoio judiciário.
Inconformado com o assim decidido traz o Magistrado do Ministério Público o presente recurso, onde formula as seguintes conclusões:
1. Na esteira do decidido no Acórdão do STJ de 1996.10.16, o haxixe que tanto DD como EE poderiam ter e que o arguido pretendia retirar-lhes pela força constituía uma utilidade para os seus detentores, uma coisa móvel alheia para efeitos do artigo 203º do Código Penal, ou no caso presente do artigo 210º do Código Penal, embora seja coisa fora do comércio, insuscetível de ser objeto de relações jurídicas.
Sendo uma coisa móvel alheia pode constituir objeto de apropriação ilícita.
2. O haxixe não é um «produto ilícito», é um produto de detenção ilícita para as pessoas em geral, e sê-lo-ia para os eventuais detentores DD e EE. Em caso de ser apreendido a particulares o haxixe é declarado perdido para o Estado nos termos do n.º 2 do artigo 35º do DL 15/93, de 22 de janeiro.
Não haveria dúvidas em reconhecer que se o haxixe apreendido fosse retirado através de violência ao OPC que o tivesse apreendido se estaria em presença de um crime do artigo 210º do Código Penal, apesar de se manter uma coisa «fora do comércio». Sendo assim o facto de um determinado objeto se encontrar fora do comércio jurídico não contende com o facto de a sua apropriação por meio violento constituir o crime de roubo.
3. Na realidade tendo o Estado o direito de apreender haxixe que se encontre na mão de privados e de o declarar seu, o detentor ilícito do haxixe é um detentor precário.
No crime do artigo 210º do Código Penal a violência não tem necessariamente de ser exercida sobre o proprietário da coisa ou mesmo sobre o detentor. A violência pode até ser exercida contra pessoas que não tenham nenhuma dessas posições.
O haxixe não é res nullius. O seu proprietário será sempre o Estado e por isso a lei prevê a declaração de perdimento. O detentor ilícito é um detentor precário. Se for exercida violência sobre este para apropriação do haxixe por outra pessoa que também seria um detentor ilícito a propriedade do haxixe não é elemento essencial para que esteja preenchido o ilícito do crime de roubo.
4. O argumento de que o «nosso sistema penal não protege as posições jurídicas de pessoas que se encontrem em violação da própria lei penal» não pode colher aceitação. A noção de Estado de Direito, subordinado a regras de Direito, não é compaginável com este tipo de asserções, com a colocação de pessoas «fora da lei».
E desde logo o Direito Positivo desmente esta asserção. O artigo 33º do Código Penal que estabelece regras sobre o excesso da legítima defesa e que visa precisamente proteger a posição jurídica da pessoa que se encontra em violação da própria lei penal constitui um exemplo claro da invalidade desse argumento.
Precisamente porque a Lei não permite que se possa colocar pessoas fora da sua proteção, fora da Lei.
Não parece incongruente a atitude de o Estado perseguir criminalmente uma pessoa por deter ilicitamente haxixe e perseguir criminalmente quem por meio de violência o desapossar para se apropriar dele. Trata-se de dois comandos distintos e não antagónicos. Incongruente seria que o Estado restituísse o haxixe subtraído ao detentor mas essa não é a questão que se coloca.
5. Entende-se assim que a aliás douta decisão recorrida violou o disposto no artigo 210.º do Código Penal ao absolver o arguido da prática de crimes de roubo sob a forma tentada e que deve, nessa parte, ser revogada condenando-se o arguido BB por essa prática, com o que se fará Justiça, Não teve lugar qualquer resposta ao recurso.
Nesta Instância, o Sr. Procurador Geral-Adjunto é de entendimento que o recurso deve improceder.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
Em sede de decisão recorrida foram considerados os seguintes Factos:
Factos Provados:
1. No dia 24 de Fevereiro de 2016, entre as 9h00 e as 9h30, o arguido BB telefonou a DD, solicitando que se encontrassem no estabelecimento …, em ….
2. Quando o DD chegou ao local, o arguido, acompanhado de outro indivíduo cuja identidade não se apurou, exibiu-lhe uma faca com cabo de plástico e lâmina de 9 cm, e ordenou-lhe que entrasse no seu automóvel e que os conduzisse até sua casa para lhe dar haxixe.
3. Receoso pela sua vida e pela sua integridade física, o DD entrou no seu automóvel, acompanhado pelo arguido e pelo terceiro indivíduo, e transportou-os até sua casa, sita na Rua…, em …, onde vivia com a mãe.
4. Durante o trajeto, o arguido encostou a aludida faca ao pescoço do DD e disse que se parasse junto ao posto da GNR o matava.
5. Já no interior da habitação do ofendido, enquanto o outro indivíduo segurava a faca, o arguido BB agrediu o DD com murros no rosto e com pontapés, dizendo-lhe para lhe entregar o haxixe.
6. A mãe do DD, CC, apercebendo-se do barulho, dirigiu-se à sala, onde se encontrava o seu filho, o arguido, e o terceiro indivíduo não identificado.
7. Nesse momento e porque a referida CC interveio, o indivíduo não identificado desferiu-lhe um empurrão no peito e o arguido BB deu-lhe um empurrão na zona lombar.
8. De seguida, o DD sugeriu que fossem a casa do EE, o qual poderia ter haxixe.
9. O que fizeram, novamente no veículo do DD.
10. Durante o percurso, o arguido empunhou novamente a faca na direção do DD e, juntamente com o outro indivíduo que o acompanhava tiraram ao DD um fio e um anel em ouro que trazia, no valor de aproximadamente € 170,00 e € 120,00 respetivamente.
11. Chegados à habitação de EE, o DD telefonou-lhe, solicitando-lhe que viesse à porta.
12. Quando EE saiu à rua, o arguido BB, perguntou-lhe de imediato onde se encontrava o haxixe, tendo aquele dito que não tinha droga e que não sabia do que estava a falar.
13. De seguida, para que confirmassem que não tinha haxixe, o EE levou o arguido, que mantinha a faca na mão, o DD e o terceiro indivíduo até sua casa e conduziu-os ao seu quarto.
14. Como o arguido BB perguntava insistentemente pela droga e o EE respondia que não possuía qualquer droga, o arguido BB deu uma chapada na cara do EE
15. Como não encontraram haxixe, saíram os quatro novamente para a rua.
16. Chegados ao exterior, o DD pôs-se em fuga e o EE acabou por ir para casa.
17. De seguida, DD dirigiu-se ao Posto Territorial de… para denunciar os factos.
18. Quando aí se encontrava, o arguido telefonou-lhe, e, apercebendo-se de que o DD tinha posto o telefone em alta voz para que os militares da GNR ouvissem o teor da conversação, disse-lhe “Estás …! Estás em alta voz com a bófia? Eu mato-te! Tens a cabeça a prémio em …”.
19. Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, o DD sofreu, para além de dores físicas, uma equimose na pálpebra superior e duas escoriações no pescoço, que demandaram seis dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho e sem consequências permanentes.
20. Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, o EE sofreu, para além de dores físicas, uma equimose na pálpebra superior que demandou oito dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho e sem consequências permanentes.
21. Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, a CC sofreu dores físicas, que não provocaram lesões ou afetação da capacidade de trabalho.
22. Posteriormente, no dia 26 de Fevereiro de 2016, pelas 15:30h, junto à residência do DD, o arguido arremessou uma pedra de calçada na direção deste, atingindo-o na região do queixo.
23. Em consequência direta e necessária dessa conduta do arguido, o DD sofreu além de dores físicas, uma escoriação na região mentoniana, que demandou seis dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho e sem consequências permanentes.
24. Nas circunstâncias referidas nos pontos 2 e 3, o arguido, usando para o efeito uma faca com 9 cm de lâmina, atuou com o propósito concretizado de privar o DD da sua liberdade, forçando-o a deslocar-se consigo contra a sua vontade.
25. Nas circunstâncias referidas nos pontos 5 e 14, o arguido BB, sabendo que com a sua conduta causava lesões no corpo do DD e do EE e que lhes causava medo com a detenção da faca, atuou com o propósito de os constranger a entregarem-lhe o produto estupefaciente que detivessem, o que não logrou conseguir.
26. Nas circunstâncias referidas nos pontos 6 e 7, o arguido, ao empurrar a CC na zona lombar, atuou com o propósito de a atingir no seu corpo e na sua saúde, o que conseguiu.
27. Nas circunstâncias referidas no ponto 18, o arguido, ao proferir as expressões aí descritas, atuou com o propósito de provocar medo, inquietação e receio DD, o que conseguiu.
28. Nas circunstâncias referidas no ponto 22, o arguido, ao arremessar uma pedra na direção do queixo DD, atuou com o propósito de o atingir no seu corpo e na sua saúde, o que conseguiu.
29. Em tudo o arguido agiu livre, voluntária, e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
(…)
Factos não Provados:
Não se provou:
(…).
5. Que o arguido tenha alegado que o EE tinha produto estupefaciente.
(…)
Em sede de fundamentação da decisão de facto consignou-se o seguinte:
(…)
Como consabido, são as conclusões retiradas pelo recorrente da sua motivação que definem o objecto do recurso e bem assim os poderes de cognição do Tribunal ad quem.
Como bem decorre das conclusões formuladas pelo aqui impetrante, vemos que circunscreveu o recurso ao reexame da matéria de direito e dentro de tal âmbito de conhecimento à discussão acerca do cometimento, ou não, pelo arguido dos dois crimes de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º, n.ºs 1 e 2, al.ª b), por referência ao art.º 204.º, n.º2, al.ª f), ambos do Cód. Pen., pelos quais vinha acusado (cfr art.º 403.º, do Cód. Proc. Pen.).
Como flui do Acórdão revidendo, foi o arguido BB absolvido da prática dos preditos crimes de roubo, tendo-se no Acórdão revidendo discorrido, como segue: Nos autos resultou provado que no interior da habitação do DD, enquanto o outro indivíduo segurava a faca, o arguido BB agrediu o DD com murros no rosto e com pontapés, dizendo-lhe para lhe entregar o haxixe, sendo que não encontrou haxixe na residência; e que no interior da casa do EE, como o arguido BB perguntava insistentemente pela droga e o EE respondia que não possuía qualquer droga, o arguido Gerson deu uma chapada na cara do EE; como não encontraram haxixe, saíram os quatro novamente para a rua; nas referidas circunstâncias, o arguido Gerson, sabendo que com a sua conduta causava lesões no corpo do DD e do EE e que lhes causava medo com a detenção da faca, atuou com o propósito de os constranger a entregarem-lhe o produto estupefaciente que detivessem, o que não logrou conseguir. Ora, é manifesto o uso da violência física e o uso da faca. Todavia, a questão prende com a verificação da ofensa ao bem jurídico patrimonial. Ou seja, com a coisa móvel alheia que é tutelada também no crime de roubo, uma vez que no caso, essa coisa trata-se de estupefaciente – no caso haxixe – e por conseguinte, um objeto não lícito. Com efeito, a detenção e venda de estupefacientes constitui a prática de um crime, previsto e punível pelo artigo 21.º e seguintes, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01. Segundo Paulo Pinto de Albuquerque - in Comentário do Código Penal (…) anotação 14 ao artigo 1.º, página 43 -, não é tolerável que o sistema penal proteja quem detém e vende produtos ilícitos. Nas palavras do referido autor, cujo entendimento subscrevemos, “o nosso sistema penal não protege as posições jurídicas de pessoas que se encontrem em violação da própria lei penal. Se o fizesse estaria a promover a sua própria violação, o que constituiria um travestimento contranatura da proteção penal de bens jurídicos em frontal violação do princípio da proporcionalidade e da natureza mínima da intervenção estadual penal. Esta visão das coisas corresponde, aliás, à própria, compreensão moral e ética socialmente reinante, que cobre as opções do legislador penal (…)”. Deste modo, mesmo que o arguido tivesse logrado apoderar-se dos produtos estupefacientes, por cuja localização perguntou ao DD e ao EE, não cometeria, em relação a tais produtos um crime de roubo. E, consequentemente, a sua conduta não integra igualmente o crime de roubo, ainda que na forma tentada. É verdade que da acusação constava que o arguido teria dito ao DD, no interior da casa deste e enquanto o agredia fisicamente que “era melhor entregar-lhe tudo o que tinha”. Não obstante, tal não resultou provado, pois quer o assistente quer o arguido referiram que o mesmo apenas pretendia que lhe fosse entregue haxixe. Também é verdade que resultou provado que durante o percurso para casa do EE, o arguido empunhou novamente a faca na direção do DD e, juntamente com o outro indivíduo que o acompanhava tiraram ao DD um fio e um anel em ouro que trazia, no valor de aproximadamente € 170,00 e € 120,00 respetivamente. Não obstante, o que já constava da acusação no que concerne ao elemento subjetivo e que resultou provado, é que o arguido sabia que causava medo ao DD e ao EE com a detenção da faca e atuou com o propósito de os constranger a entregarem-lhe o produto estupefaciente que detivessem, o que não logrou conseguir. O dolo comporta um elemento intelectual que implica o conhecimento (previsão ou representação) por banda do agente, de todos os elementos que integram o facto ilícito, ou seja o tipo objetivo de ilícito; um elemento volitivo que consiste na vontade, por banda do agente, de realizar o facto típico depois de ter representado as circunstâncias ou elementos do tipo objetivo do ilícito. Em função da diversidade de atitude nascem as diversas espécies do dolo: direto (intenção de realizar o facto) necessário (previsão do facto como consequência necessária da conduta) eventual (conformação da realização do facto como consequência possível da conduta). Tudo isto, que tradicionalmente se engloba nos elementos subjetivos do crime, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre (isto é, podendo ter agido de outro modo, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude). Não obstante tal fórmula constar da acusação, a verdade é que o conhecimento e vontade imputado ao arguido na acusação se refere à apropriação de produto estupefaciente e não de coisas móveis alheias pertencentes ao DD ou ao EE. A valorar tais factos estaríamos a alterar o objeto da acusação, quer na parte objetiva quer na parte subjetiva, o que se mostra vedado pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015 de 27.01.2015, no qual se decidiu que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artº 358º do Código de Processo Penal". Donde, o tribunal não poderá tirar qualquer consequência dos factos supra- mencionados (quanto ao fio e ao anel subtraídos a Andrei Cazan).
Desde logo, importa esclarecer que, como decorre do ponto 10, dos factos provados, tudo inculcaria a ideia de se estar perante um novo crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º, n.ºs 1 e 2, al.ª b), por referência ao art.º 204.º, n.º2, al.ª f), ambos do Cód. Pen.
Mas como bem o refere o Tribunal a quo, o elemento subjectivo do tipo legal de crime de roubo apenas se mostra referido relativamente à pretensa apropriação de produto estupefaciente – haxixe.
Ao referir que não obstante tal fórmula constar da acusação, a verdade é que o conhecimento e vontade imputado ao arguido na acusação se refere à apropriação de produto estupefaciente e não de coisas móveis alheias pertencentes ao DD ou ao EE.
Pelo que, inútil qualquer pronunciamento sobre tal tema, por ausência de elemento subjectivo do tipo de crime de roubo, no seguimento do AFJ, nº 1/2015, de 27.01.2015 (cfr. ponto 25, dos factos dados como provados).
Na óptica do recorrente o arguido deve ser condenado pela prática de dois crimes de roubo, na forma tentada, p. e p. pelo art.º 210.º, do Cód. Pen., cfr conclusão 5.
Porquanto, e sempre no entender do recorrente, o haxixe que tanto DD como EE poderiam deter e que o arguido pretendia retirar-lhes, pela força, constituía uma utilidade para os seus detentores.
E sendo uma coisa móvel alheia podia constituir objecto de apropriação ilícita.
Vejamos, pois, se ao arguido pode, ou não, vir a ser condenado pela prática de dois crimes de roubo, nos moldes tecidos pelo aqui impetrante.
Como consabido, o crime de roubo mostra-se compaginado no âmbito do Código Penal no Livro II, do Título II, que versa sobre os crimes contra o património, Capítulo II, que trata dos crimes contra a propriedade.
O que faz com que, prima facie, se tenha de ter o crime de roubo como se tratando de crime contra a propriedade.
Não obstante tal, como se vem entendendo, o crime de roubo deve ser tido como um crime complexo que ofende, quer bens jurídicos patrimoniais - como é o direito de propriedade -, quer bens jurídicos pessoais - a liberdade individual de decisão e acção (em certos casos a própria liberdade de movimentos) e a integridade física, sendo em certas hipóteses de roubo agravado, posto ainda em causa, o bem jurídico vida.
Sendo crime distinto do crime de furto, porquanto além de se lesar o bem jurídico da propriedade, também se violam bens jurídicos pessoais.
Como refere a Prof.ª Tereza Beleza, o crime de roubo não deve ser visto como um crime de furto especial (agravado), mas como um crime autónomo, sui generis, complexo, de cujo tipo fazem parte o tipo do furto e o tipo da coacção, podendo preencher-se também o tipo das ofensas corporais.[1]
No entendimento de Maia Gonçalves, a distinção do roubo relativamente ao furto é que no roubo há violência ou a colocação da vítima na impossibilidade de resistir e que o roubo é, estruturalmente, um furto qualificado (pela violência, pelas ameaças ou pela colocação da vítima na impossibilidade de resistir).[2]
Para José António Barreiros, a particularidade que distingue o roubo e o furto, mesmo quando ambos são cometidos por subtracção, e no que ao modo de acção respeita, é o uso naquele da violência, da ameaça ou de na situação a que não é possível resistir.[3]
Apresentando-se, desta feita, o crime de roubo como um crime complexo na medida em que comporta, aglutinados no mesmo tipo penal, o vector apropriação como génese, e o vector efectivação dessa mesma apropriação como fim, pressupondo como requisito essencial que sejam violentos ou constrangedores os meios que realizam o desiderato criminoso.
Pelo que o bem jurídico tutelado pelo crime de roubo assume uma dupla vertente: por um lado, os bens jurídicos patrimoniais (direito de propriedade e de detenção de coisas móveis); por outro, os bens jurídicos pessoais (a liberdade individual de decisão e acção e a integridade física ou, ainda, a vida), sendo certo que «a ofensa aos bens pessoais surge como meio de lesão dos bens patrimoniais.[4]
Como referido, a acção criminosa levada a cabo pelo arguido visava a obtenção junto de DD e de EE de produto estupefaciente que estes teriam na sua posse.
Como dos autos decorre, nem um, nem outro dos mencionados indivíduos detinha o almejado produto estupefaciente, assim lemos o teor dos pontos 8 e 9 dos factos provados, por um lado e o teor dos pontos 12, 13, 14, 15 e 16, dos factos provados, por outro.
Igual leitura faz o Magistrado recorrente ao dar nota no ponto 4.1 da sua motivação de recurso que (…) o haxixe que tanto DD como EE poderiam ter (…) e (…) tanto o haxixe que DD como o que EE hipoteticamente teriam podia ser objeto de roubo (…).
O que quer significar que o arguido nunca poderia vir a ser condenado pela prática dos aludidos crimes de roubo, na forma consumada, por faltar um elemento do tipo de crime: a existência de coisa móvel alheia passível de apropriação, violenta, por parte do arguido.
Como não poderia sobrevir a sua condenação, mesmo ao nível da tentativa, por se estar perante uma situação de tentativa impossível, por inexistência de objecto essencial à consumação do crime, de acordo com o disposto no n.º 3, parte final, do art.º 23.º, do Cód. Pen.
O que quer significar que bem se andou em absolver o arguido da prática dos aludidos crimes de roubo, naufragando, desta feita, a pretensão recursiva formulada pelo Magistrado do M.P.
Termos são em que Acordam em negar provimento ao recurso, embora por distintos fundamentos, confirmando-se, no seu todo, o Acórdão recorrido.
Sem custas, por não devidas.
(texto elaborado e revisto pelo relator).
Évora, 10 de Abril de 2018
José Proença da Costa (relator)
António Clemente Lima
__________________________________________________
[1] Ver, Tereza Beleza e Frederico da Costa, in A tutela penal do património após a revisão do Código Penal de 1995.Lisboa: AAFDL, págs. 79.
[2] Ver, Código Penal Português Anotado, págs.664-665.
[3] Ver, Crimes contra o Património, pág. 85.
[4] Ver, Conceição Ferreira da Cunha, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Vol. II, págs. 160.