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LEGÍTIMA DEFESA
OFENSAS À INTEGRIDADE FÍSICA
Sumário
I – Para efeito de legítima defesa, a agressão é atual quando está em execução ou quando está iminente, sendo que a iminência da ação estará presente nas situações que se saiba antecipadamente, com certeza ou elevado grau de probabilidade, que terá lugar; II – Resultando da factualidade que o ofendido, na sequência do desentendimento e discussão verbal mantida com o arguido, levantou a mão em direção deste, sendo que, e na iminência e com receio de ser agredido, o arguido com o seu braço sustou o movimento efetuado pelo ofendido, com tal ato atuou com o propósito de se defender, impedindo assim, ser atingido; III – Porém, cessou aí a iminente agressão, pelo que tendo, logo após, em ato contínuo, o arguido desferido um soco na face do ofendido, tal ato não poderá ser entendido como animus defendendi, ou seja, com o propósito de se defender, mas antes com o propósito de agredir o ofendido, como agrediu.
Texto Integral
Proc. n.º 167/16.6GDLLE.E1
Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Loulé, J1, correu termos o Proc. Comum Singular n.º 167/16.6GDLLE, no qual foi julgado o arguido BB, filho de …, pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143 n.º 1 do Código Penal, tendo - a final - sido condenado, pela prática do mencionado crime (um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143 n.º 1 do Código Penal), na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), o que perfaz o montante global de 300,00€ (trezentos euros).
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2. Recorreu o arguido dessa sentença, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1 - Discorda o arguido de condenação e da pena que lhe foi aplicada na douta sentença, onde deveria ter sido absolvido, atendendo aos factos provados e às declarações das testemunhas que corroboraram as do mesmo.
2 - Deveria o tribunal a quo ter considerado como verdadeiros e credíveis os depoimentos das testemunhas de defesa, gente simples e humilde, que não tem qualquer tipo de engenho nem maldade para vir mentir a um tribunal.
3 - Deste modo, o tribunal a quo violou a norma do artigo 143 n.º 1 do Código Penal e o vertido na norma do art.° 31 do Código Penal, pelo que deve o arguido ser absolvido do crime de que vem acusado, de ofensas à integridade física simples, p. e p. no artigo 143 n.º 1 do Código Penal.
4 - O arguido agiu em legítima defesa, porque se defendeu da agressão do queixoso, vindo este de braço no ar com intuitos de agredi-lo, como consta nos factos provados da própria sentença.
5 - Nestes termos, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogada a douta decisão recorrida, absolvendo o arguido do crime de que foi condenado.
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3. Respondeu o Ministério Público ao recurso interposto, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:
1 - O tribunal fez um correto apuramento e valoração da matéria de facto e fundamentou com suficiência e rigor de critério, fáctica e juridicamente, a sua decisão.
2 - A convicção do tribunal alicerçou-se no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, com apreciação crítica das provas documental e testemunhal, e de acordo com as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador.
3 - A matéria de facto dada como provada não deixa quaisquer dúvidas quanto à qualificação jurídico-penal dos factos dados como provados pelo tribunal.
4 - Não se verifica a existência dos requisitos da legítima defesa.
5 - Por tudo o exposto, deve a sentença recorrida ser confirmada e, em consequência, negar-se provimento ao recurso.
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4. O Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso (fol.ªs 238).
5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª c) do CPP).
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6. Foram dados como provados, na decisão recorrida, os seguintes factos:
1. No dia 10 de março de 2016, pelas 13h25m, junto à Escola …, sita em …, o arguido BB desentendeu-se com o ofendido CC.
2. Na sequência desse desentendimento e no decurso do mesmo, CC ergueu a mão em direção ao arguido, tendo este sustado aquele movimento colocando o seu braço esquerdo na frente.
3. Ato contínuo, o arguido, com a mão fechada, desferiu um soco na face do ofendido.
4. Em consequência da agressão referida em 3, o ofendido CC sofreu escoriação no ângulo esquerdo, com crosta com 1x0,2cm, na face interna do lábio inferior à esquerda, que lhe causou 8 (oito) dias de doença.
5. O arguido agiu com o propósito de ofender o corpo e a saúde de CC, o que logrou.
6. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
7. Em data não concretamente apurada, após a prática dos factos, o arguido dirigiu-se, acompanhado da progenitora, ao restaurante dos pais do ofendido, tendo apresentado um pedido de desculpas aos mesmos pelo sucedido.
8. O arguido trabalha em part-time, num bar, auferindo uma média mensal de 200,00€ (duzentos euros), reside com a mãe e com um irmão, em casa arrendada, pagando a renda mensal de 350,00€ (trezentos e cinquenta euros).
9. A mãe trabalha num restaurante, auferindo o vencimento mensal de 700,00€ (setecentos euros), e o irmão trabalha na construção civil.
10. Tem como habilitações literárias o 9.° ano de escolaridade e não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
7. E não resultou provado que o arguido desferiu três socos em CC e que, aquando do referido em 3, o arguido tinha um objecto idêntico a uma soqueira.
8. O tribunal formou a sua convicção (…)
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9. A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido (art.º 412 do Código de Processo Penal).
Tais conclusões destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer das pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, seja no plano de facto, seja no plano de direito.
Elas devem conter, por isso, um resumo claro e preciso das razões do pedido, sendo estas que delimitam o âmbito do recurso (ver art.ºs 412 n.ºs 1 e 2 e 410 n.ºs 1 a 3, ambos do CPP, e, entre outros, o acórdão do STJ de 19.06.96, in BMJ, 458, 98).
Feitas estas considerações, e atentas as conclusões da motivação do recurso, assim consideradas, uma única questão vem colocada pelo recorrente à apreciação deste tribunal: é a de saber se deveria o tribunal a quo ter considerado como verdadeiras e credíveis as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas de defesa e, consequentemente, absolver o arguido do crime de que vem acusado ou considerar-se que o arguido agiu em legítima defesa, porque se defendeu da agressão do queixoso, vindo este de braço no ar com intuitos de agredi-lo.
Esta é, pois, a questão a decidir.
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Em primeiro lugar, convém deixar aqui claro que o recurso em matéria de facto não visa a obtenção de um segundo julgamento sobre aquela matéria, sendo antes e apenas uma oportunidade para remediar eventuais males ou erros cometidos pelo tribunal recorrido.
Depois, quando impugne a matéria de facto deve o recorrente especificar as “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida” - sim, impõem, como expressamente se dispõe no art.º 412 n.º 3 al.ª b) do CPP - com referência às concretas passagens dos depoimentos produzidos em audiência em que se funda a impugnação (n.º 4 do mencionado preceito), ou seja, ao conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, donde se conclua - em suma - que a convicção que o tribunal formou, relativamente a essa matéria em concreto, está errada, seja porque não tem suporte nas provas produzidas, seja porque tais provas não foram apreciadas de acordo com as regras da experiência comum, da lógica e os critérios a normalidade do acontecer.
No caso em apreço o tribunal disse claramente, por um lado, quais as provas em que se baseou para formar a sua convicção no sentido em que a formou - provas que acima se enunciaram - por outro, porque razão tais provas convenceram o tribunal de que os factos assim se passaram, convicção que se mostra lógica, coerente e racionalmente suportada numa análise criteriosa das provas produzidas em audiência.
Por outro lado, o recorrente, para além de não especificar que factos concretos que entende terem sido incorretamente julgados, não concretiza as provas que impõem decisão diversa da recorrida, ou seja, donde se conclua que o tribunal errou na análise que fez das provas produzias em julgamento, que a convicção do tribunal se formou em desrespeito pelo princípio da livre apreciação da prova a que se encontra vinculado, ex vi art.º 127 do CPP.
Relativamente à legítima defesa, o tribunal apreciou tal questão, em termos que bem evidenciam a correção de raciocínio que o levou a concluir que não se verifica uma situação de legítima defessa.
“… São pressupostos da legítima defesa: a atuação em defesa de uma agressão e o elemento subjetivo a que a doutrina dá o nome de animus defendendi. A necessidade de defesa há-de apurar-se segundo a totalidade das circunstâncias em que ocorre a agressão em particular com base na intensidade daquela, da perigosidade do agressor e da sua forma de agir. Deve ajuizar-se ex-ante na perspetiva de um terceiro prudente colocado na situação do arguido. Essencial à legítima defesa é mesmo o animus defendendi (veja-se ac. STJ de 18.12.1996). Para efeito de legítima defesa a agressão é atual quando está em execução ou quando está iminente, sendo que a iminência da ação estará presente nas situações que se saiba antecipadamente, com certeza ou elevado grau de probabilidade, que terá lugar. Perante uma agressão atual e antijurídica pode ter lugar a defesa necessária. E, a legítima defesa, como defesa necessária, pressupõe uma vontade de defesa (o referido animus defendendi). Por seu turno, a exigência de necessidade que qualifica os meios de defesa admissíveis traduz-se na escolha do meio menos gravoso para o agressor, de acordo com o juízo do momento, mas com a natureza ex-ante, avaliando objetivamente toda a dinâmica do acontecimento. Citando o douto ac. STJ de 27.10.2010, Proc. 971/09.lJAPRT, www.dgsi.pt, “(…) A avaliação da necessidade depende do conjunto de circunstâncias nas quais ocorre a agressão e a reação, especialmente a intensidade do concreto meio ofensivo e da ofensa, as características pessoais do agressor em contraposição com as características do defendente, bem como os meios disponíveis para a defesa, e deve valorar-se sob uma perspectiva objetiva, isto é, tal como o homem médio colocado na posição do agredido teria valorado as circunstâncias da agressão.
A necessidade da ação defensiva supõe que esta não deve passar além do que seja adequado para afastar e repelir eficazmente a agressão - princípio da menor lesão para o agressor, avaliada segundo critérios objectivos (…)”. Atendendo à factualidade que ficou provada, resulta que CC, na sequência do desentendimento e discussão verbal mantida com o arguido, levantou a mão em direção daquele, sendo que, e na iminência e com receio de ser agredido, o arguido com o seu braço sustou o movimento efetuado pelo CC, impedindo assim, ser atingido. Ou seja, cessou a iminente agressão. Contudo, logo após, ato contínuo, desferiu um soco na face de CC. Ora, atendendo à dinâmica dos factos, resulta que o arguido, não obstante ter feito cessar a iminente agressão, desferiu um soco na face de CC. Ou seja, a agressão perpetrada pelo arguido não foi um meio necessário e adequado para repelir a tentativa de agressão que havia sido alvo, porque essa já havia sido repelida e, sim, com um meio adequado: colocando o seu braço na frente da mão do ofendido. Assim, e não obstante, ao decidir desferir o soco o arguido não agiu com animus defendendi, mas sim com intenção de agredir e lesar o corpo de CC, como efectivamente fez…”.
E não vale a pena complicar o que não é complicado.
Como bem se evidencia na decisão recorrida, a agressão do arguido não constituiu um meio necessário para parar a tentativa de agressão por parte do ofendido, pois que esta havia já cessado pela interposição, por parte do arguido, do seu braço esquerdo na frente daquele, ou seja, quando o arguido agride o ofendido - desferindo-lhe um soco na face - já não estava iminente qualquer agressão por parte do ofendido que carecesse de ser evitada, por outro lado, e também por isso, se já não estava iminente qualquer agressão por parte do ofendido - que não estava - não faz qualquer sentido pretender que o arguido agiu com animus defendendi, ou seja, com o propósito de se defender, mas antes com o propósito de agredir o ofendido, como agrediu, o que fez de modo livre e voluntário.
Por outras palavras, a agressão do arguido, face às circunstâncias concretas do caso, depois de suster a tentativa de agressão por parte do ofendido, não se apresentava como necessária/indispensável para a salvaguarda da sua integridade física, que - perante tais circunstâncias - já não estava em perigo.
Improcede, por isso, o recurso.
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10. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, em confirmar a sentença recorrida, que nenhuma censura nos merece.
Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC`s (art.ºs 513 e 514 do CPP e 8 n.º 9 e tabela III anexa do RCP).
(Este texto foi por mim, relator, integralmente revisto antes de assinado)
Évora, 10/04/2018
Alberto João Borges (relator)
Maria Fernanda Pereira Palma