Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
FRAUDE À LEI
REQUISITOS
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
PRESSUPOSTOS
Sumário
I – Para haver fraude á lei é indispensável um nexo entre o acto ou actos em si lícitos e o resultado proibido, podendo esse nexo ser subjectivo ou objectivo; II – A má fé, para efeitos de impugnação pauliana, pode revelar-se sob a forma dolosa (directa, necessária ou eventual) ou sob a forma de culpa consciente mas não na modalidade de culpa inconsciente.
Texto Integral
Processo n.º 2590/04.0TBGDM.P1
*
Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró
Acordam no Tribunal da Relação do Porto - 2.ª Secção:
I. Relatório
B…, depois substituído[1] pela cessionária C…, residente na Rua …, n.º …., …, Paredes, instaurou, em 10/8/2004, no Tribunal Judicial da Comarca de Gondomar, onde foi distribuída ao 3.º Juízo Cível, acção declarativa com processo comum e forma ordinária contra D… e mulher E…, e filho de ambos F…, residentes na Rua …, n.ºs …/…, ..º andar, …, aquele entretanto falecido, em 24/2/2011, tendo sido habilitados como seus sucessores estes demandados[2], deduzindo os seguintes pedidos depois de ter sido convidado a sintetizar os vinte e quatro inicialmente formulados (cfr. fls. 230 e 231 e 234 a 239):
- Seja “reconhecida e declarada a anulação do contrato promessa de compra e venda” (sic.), datado de 5 de Janeiro de 1999, pelo qual os Réus D… e E… prometeram vender e o Autor prometeu comprar o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º 6720, a fls. 155 do Livro B-30;
- Sejam os Réus D… e E… condenados a pagarem ao Autor a quantia de 104.748,60 €, acrescida de juros legais vencidos, no montante de 26.140,46 €, e vincendos até integral e efectivo pagamento, bem como a quantia de 339.85,95 €;
- Sejam os Réus D… e E… condenados a pagarem ao Autor a quantia de 4.988,03 €, a título de danos não patrimoniais.
Subsidiariamente, pede que:
- Seja reconhecida e declarada a resolução do mesmo contrato, por impossibilidade definitiva e culposa do seu cumprimento por parte dos Réus D… e E…, com a consequente condenação destes a pagarem ao Autor a quantia de 209.497,21 €, correspondente ao dobro do sinal que lhes foi entregue.
Em qualquer dos casos, pretende que:
- Seja reconhecida a irrelevância ou ineficácia, por fraude à lei (art.º 21.º do Código Civil), das compras, pelo Réu F…, da fracção autónoma identificada pela letra B do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º 6430 / …, e da fracção autónoma identificada pela letra C do prédio descrito na mesma Conservatória sob o n.º 0960 / …;
- Seja reconhecido e declarado que as referidas fracções e respectivos recheios, embora adquiridos em nome do Réu F…, o foram, verdadeiramente, pelos Réus D… e E…;
- Seja determinado o cancelamento dos registos das aquisições a favor do Réu F….
Ainda subsidiariamente, para o caso das referidas pretensões não procederem, a entender-se que as fracções foram adquiridas pelo Réu F… com dinheiro doado pelos Réus D… e E…, pretende que seja reconhecido e declarado que tais doações foram levadas a efeito de má fé, com o propósito de impedirem a satisfação do direito do Autor, “futuro” (sic.) credor dos Réus D… e E… e que dessas doações resultou para o Autor a impossibilidade de satisfazer o seu crédito.
Como tal, pede que:
- Seja reconhecida e declarada a ineficácia de tais doações relativamente ao Autor, com a consequente condenação do Réu F... a restituir o montante das importâncias doadas (104.748,60 €), acrescido de juros legais a contar da citação ou, na hipótese de o montante ter sido despendido na aquisição das fracções, a condenação do mesmo Réu a restituir as fracções e os respectivos recheios, transferindo-se a favor do Autor e por sentença a titularidade dos mesmos.
Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte:
Em 5 de Janeiro de 1999, os Réus D… e E… prometeram vender-lhe o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º 6720, a fls. 155 do Livro B-30, pelo preço de 26.000.000$00.
A título de sinal, entregou-lhes a quantia de 5.000.000$00, que reforçou depois, em quatro ocasiões, até perfazer o montante total de 21.000.000$00.
Mais tarde, veio a descobrir que havia erro na identificação do prédio prometido vender, já que o prédio descrito sob o n.º 6720 nunca pertenceu aos réus D… e E… e o prédio que foi objecto do contrato tem o n.º 1579, o qual se encontrava arrestado e penhorado, sendo este o único que pretendeu adquirir.
Independentemente desse erro, verifica-se a impossibilidade de cumprimento do contrato-promessa, por facto imputável aos réus D… e E…, o que lhe permite proceder à sua “revogação” (sic.) e lhe confere o direito de exigir a restituição do dobro do sinal.
Entretanto, através de escrituras celebradas em 23 de Março e em 14 de Novembro de 2000, o réu F… adquiriu a fracção autónoma identificada pela letra B do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º 6430 / …, e a fracção autónoma identificada pela letra C do prédio descrito na mesma Conservatória sob o n.º 0960 / ….
Apesar de nelas constar que tais fracções foram adquiridas pelo réu F…, quem as adquiriu foram os réus D… e E…, que utilizaram para tanto os 21.000.000$00 que o autor lhes entregou a título de sinal, pretendendo desta forma defraudar a lei e impedir a restituição daquela quantia.
De qualquer modo, a admitir-se que as fracções foram efectivamente adquiridas pelo réu F…, sempre se deve considerar que tal aconteceu com dinheiro que a este foi doado pelos réus D… e E…, que assim procederam com o objectivo de impedir o autor de obter a restituição da referida quantia de 21.000.000$00, e, nessa medida, considerar essa doação impugnada nos termos do art.º 612.º do Código Civil, com a consequente condenação do Réu F… no cumprimento da obrigação de restituição ou compelindo-o a transmitir para o Autor a propriedade das fracções, em substituição do dinheiro doado, por força do disposto no art.º 794.º do mesmo Código.
Pretendia construir um lote de moradias no prédio que foi objecto do contrato-promessa e com a venda delas contava obter um lucro de, pelo menos, 68.000.000$00, sofrendo assim um dano, na modalidade de lucro cessante, pelo qual os réus D… e E… devem ser responsabilizados.
Para aquele efeito, elaborou um projecto de construção, apresentou-o na Câmara Municipal … e fez um desaterro, despendendo em tudo a quantia de 4.600.000$00, que também deve ser imputada na esfera jurídica dos réus D… e E….
A não concretização do contrato prometido colocou-o numa grave situação financeira, que foi causa de um estado de ansiedade e depressão, o que configura dano não patrimonial que deve ser compensado com a quantia de 5.000,00 €.
Os réus contestaram, excepcionando a ineptidão da petição inicial e por impugnação, e deduziram reconvenção.
Negaram a existência de qualquer erro na identificação do prédio prometido vender.
Alegaram que o contrato prometido devia ter sido celebrado até ao final do mês de Agosto de 2000, não o tendo sido porque o autor se recusou, com o argumento de que estava a aguardar pelo deferimento de um pedido de financiamento bancário.
O arresto e a penhora foram registados no ano de 2001 e não fizeram com que o Autor perdesse interesse no negócio.
As compras efectuadas pelo réu F… nada tiveram a ver com o negócio celebrado com o autor.
Os réus D… e E… limitaram-se a emprestar-lhe dinheiro para tais aquisições, ainda que utilizando aquele que haviam recebido do autor.
Imputam o incumprimento do contrato-promessa ao autor, defendendo que têm o direito de fazer suas as quantias dele recebidas.
Concluíram pela improcedência da acção e pela procedência da reconvenção, ainda que sem formular, quanto a esta, qualquer pedido.
Na réplica, o autor manteve o alegado na petição inicial, concluindo pela improcedência das excepções e da reconvenção.
Comprovado o registo da acção, foi proferido despacho a convidar os réus a indicarem o pedido reconvencional, o que não fizeram.
Dispensada a audiência preliminar, foi lavrado despacho saneador, em que foi julgada improcedente a excepção deduzida pelos réus e onde o autor foi absolvido da instância reconvencional, por ineptidão desta, dado não ter sido formulado qualquer pedido.
Seguiu-se a condensação, com selecção da matéria de facto assente e organização da base instrutória, de que não houve reclamações.
A cessionária C… deduziu articulado superveniente, alegando que o prédio prometido vender já havia sido adquirido pela G…, por compra judicial de 29/10/2009, na sequência da penhora que sobre ele incidia.
Instruído o processo, prosseguiu para julgamento, ao qual se procedeu, após algumas requeridas suspensões da instância, findo o qual foi decidida a matéria da base instrutória nos termos constantes do despacho de fls. 662 a 670, que não foi objecto de qualquer reclamação.
E, em 8/11/2010, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou os réus D… e E… a pagarem à actual autora C… a quantia de 209.495,12 €, absolvendo-os dos demais pedidos formulados, bem como absolveu de todos os pedidos o réu F….
Inconformada com o assim decidido, a autora/cessionária interpôs recurso de apelação e apresentou a sua alegação com conclusões complexas que foram mandadas sintetizar, tendo sido apresentadas, depois de corrigidas, as conclusões que aqui se transcrevem: “I - A Recorrente considera incorrectamente julgados os pontos de facto constantes dos itens 30, 31, 32 e 33 da douta B. I. II- Os concernentes meios probatórios que, conjugadamente, impunham uma decisão diversa da ocorrida são os seguintes: 1º os depoimentos de parte prestados pelo 1º Recorrido, D… e pelo 3º Recorrido F… na audiência de julgamento de 29 de Setembro de 2010 (cf. a respectiva Acta); 2° os depoimentos prestados, na mesma audiência de julgamento (e referenciados na mesma Acta) pelas testemunhas H… e B… gravados ambos em suporte áudio, no cd nº 241, no Sistema Habilus Media Studio, o primeiro com início às 11:09:13 e termo às 11:29:35 e o segundo com início às 11:39:36 e termo às 12:30:29; 3º as respostas dadas aos itens 13, 15, 16, 18, 19, 35 e 20, 21, 22, 23, 34, 36 e 37 (com referência estes, ora sublinhados, aos ofícios de fls. 411 a 416); 4° os factos dados como assentes nas alíneas F, G, H e o documento nº 6 junto com a P.I. (certidão a que se reporta a alínea F supra) e 5º os termos dos itens 64, 65 e "maxime" os itens 70 e 72 da Contestação oferecida pelos Recorridos. III - Salvo o devido respeito e melhor opinião, as respostas aos indicados quesitos, deveriam ser, face ao exposto, as seguintes: Item 30: "Os 1º e 2ª Réus entregaram dinheiro ao 3º Réu, sem qualquer contrapartida ou retribuição e com a finalidade única de, através da compra do estabelecimento, impossibilitar a A. de obter a satisfação integral do seu crédito". Item 31: "Os 1º e 2ª Réus estavam bem cientes do prejuízo que daí resultaria para a A." Item 32: "Impossibilidade de satisfação do seu crédito resultante de todo o atrás exposto e do facto dos 1º e 2ª Réus nada terem de seu ou em seu nome que pudesse satisfazer o crédito da A." e Item 33: "O prédio (estabelecimento comercial) constante da alínea "J" dos Factos Assentes, foi verdadeiramente, adquirido pelos 1º e 2ª Réus, com dinheiro recebido da A.: os 9.000. 000$ 00 referidos no item 28". Em face do que, A - Da Fraude à Lei: IV - conjugando as respostas que, em nosso entender, deveriam ter sido dadas aos aludidos quesitos e, ainda, os factos dados como provados na douta sentença proferida (designadamente sob os nºs 12, 23 e 27 a 33 da mesma) manifesto é que, a compra do estabelecimento em nome do 3º Recorrido (filho dos ora 1º e 2ª Recorridos) não visou outra coisa senão, através desse artifício, pôr aquele bem a coberto de quaisquer futuras penhoras promovidas pela ora Recorrente em resultado da condenação futura, dos 1º e 2ª Recorridos, de devolução em dobro, do sinal recebido. V - Como sucedeu. VI - A compra do estabelecimento em nome do 3º Recorrido constituiu pois uma fraude à lei, nos termos conjugados do disposto nos artºs 21 e 601 do código Civil. Sem prescindir, B - Da Impugnação Pauliana: VII - a compra do estabelecimento em nome do filho (3º Recorrido) constituiria sempre, um acto ineficaz relativamente à ora Recorrente (podendo, como tal, esse bem ser executado no património do 3º Recorrido) porquanto, se observaram, relativamente a esse acta, todos os pressupostos do vencimento da solicitada impugnação pauliana: a) ocorreu uma diminuição da garantia patrimonial do crédito da Recorrente - face à entrega pelos 1º e 2ª Recorridos, ao filho, 3º Recorrido, de 9.000.000$00 para a compra do bem (conforme, claramente, confessou o 1º Recorrido no seu depoimento de parte); b) o acto foi realizado, dolosamente, com o fim de impedir a satisfação do direito da Recorrente - Recorrente que os 1º e 2º Recorridos bem sabiam que seria futuramente (como é!) uma sua credora dado terem-lhe prometido vender, em 5/1/99, um prédio que à data estava já prometido vender a um terceiro (I…), com contrato promessa registado que só caducaria em 7/1/99 (cf. alínea f) dos Factos Assentes e doc. 6, junto com a P .I.); c) A Recorrente, mercê desse acto, ficou impossibilitada de satisfazer o seu crédito ou, pelo menos, viu agravada essa impossibilidade; d) A Recorrente provou esse crédito; e) Os Recorridos não provaram possuir bens penhoráveis de igual ou maior valor que os 9.000.000$00 em causa e f) esse acto (entrega de 9.000.000$00) pelos 1º e 2ª Recorridos ao 3º Recorrido) foi um acto gratuito (artº 610 e seguintes do C. Civil). Por fim, C - sem prescindir e ainda da Impugnação Pauliana VIII - sempre esta deveria ter sido considerada como ocorrendo, ainda que só com os factos dados como provados na douta sentença, porquanto, mesmo assim, teria sempre ocorrido a) uma diminuição da garantia patrimonial da Recorrente; b) o seu crédito, decorrente do contrato promessa celebrado em 5/1/1999, seria anterior ao acto em causa (a entrega do dinheiro para a compra do estabelecimento, ocorrida em 14/11/2000; c) resultaria do acto, para a Recorrente, a impossibilidade de satisfazer integralmente o seu crédito ou agravamento dessa impossibilidade; d) a Recorrente provou o montante do seu crédito; e) os 1º e 2ª Recorridos e 3º Recorrido, não teriam provado que os 1ºs Recorridos possuíam bens penhoráveis de igual ou maior valor que os 9.000.000$00 em questão e f) o acto havia sido gratuito. Termos em que e nos melhores de Direito que Vs. Exas. muito doutamente suprirão - deve o presente Recurso ser julgado totalmente provado e procedente e, como tal, considerados incorrectamente julgados os pontos de facto dos itens 30, 31, 32 e 33 da douta B. I. (cujas respostas deveriam ter sido as atrás indicadas, de acordo com os meios probatórios mencionados neste Recurso). Em conformidade - para além da condenação já constante da douta sentença - deve ser reconhecida e declarada a) a nulidade, por fraude à lei, da compra do estabelecimento (alínea J dos Factos Assentes) em nome do 3º Recorrido, dado o mesmo ter sido, verdadeiramente, adquirido pelos 1º e 2ª Recorridos. Subsidiariamente, se assim se não entender, b) deve ser reconhecida e declarada a ineficácia, quanto à Recorrente, da alienação gratuita, dos 1º e 2ª Recorridos ao 3º Recorrido, de 9.000.000$00 para a compra, pelo e em nome do 3º Recorrido, do referido estabelecimento. Entretanto c) independentemente da resposta a dar aos citados itens 30, 31, 32 e 33 da douta B.I. - e mesmo, somente, com a matéria de facto dada como provada pelo Mº Sr. Juiz "a quo" - dever-se-ia, à mesma, reconhecer e declarar essa ineficácia, nos termos atrás referidos (item VIII). Assim não o considerando violou o Mº Sr. Juiz "a quo" o disposto nos artºs 21 e 601 do C. Civil e ainda os artºs 397, 410, 442, nº 2, 610, 611 e 612 do C. Civil, disposições estas que devidamente interpretadas e aplicadas, deveriam ter levado à consideração de que a compra do estabelecimento em nome do 3º Recorrido constituiu uma fraude à lei (artºs 21 e 601 do C. Civil) ou, subsidiariamente, constituiu um acto ineficaz relativamente à ora Recorrente (artºs 397, 410, 442, nº 2, 610, 611 e 612 do C. Civil).”
Os réus contra-alegaram defendendo a confirmação da sentença recorrida.
Remetidos os autos a este Tribunal e colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir o recurso interposto.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões da recorrente (cfr. art.ºs 684.º, n.º 3, e 690.º, n.º 1, ambos do CPC, na redacção anterior à dada pelo DL n.º 303/2007, de 24/8, a qual é aqui aplicável, visto que a acção foi instaurada antes da entrada em vigor deste diploma, que ocorreu em 1/1/2008, e porque o mesmo não se aplica às acções pendentes - cfr. seus art.ºs 11.º, n.º 1 e 12.º, n.º 1), importando conhecer as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. art.º 660.º, n.º 2 do mesmo Código), as questões a dirimir consistem em saber:
1. Se deve ser alterada a matéria de facto;
2. Se ocorre nulidade da compra do estabelecimento, por fraude à lei;
3. E se deve ser declarada a ineficácia da compra do mesmo estabelecimento, por impugnação pauliana.
II. Fundamentação
1. De facto
Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1. Por documento particular intitulado “contrato promessa de compra e venda” celebrado em 5 de Janeiro de 1999, os primeiros Réus declararam prometer vender ao B… uma “parcela de terreno destinada a edificação, registada na competente Conservatória do Registo Predial de Gondomar, sob o n.º 6720, a fls. 155 do livro B-30, correspondente na matriz a parte o rústico sob o artigo 469”, conforme cláusula 2.ª do documento junto à petição inicial como documento n.º 1 e aqui se dá como reproduzido e integrado [alínea A) dos factos assentes].
2. Essa parcela de terreno de que os primeiros Réus se intitulavam proprietários (cf. cláusula 1.ª) “destinava-se a edificação” e situava-se “no …, na freguesia de …, em Gondomar” [alínea B) dos factos assentes].
3. Mais concretamente – e segundo indicação dos 1.ºs Réus – a parcela de terreno em questão situava-se na Rua … [alínea C) dos factos assentes].
4. Na cláusula 3.ª do supra referido contrato promessa refere que “como sinal e princípio de pagamento do preço ajustado os Primeiros Outorgantes recebem do Segundo a quantia de 5.000.000$00 (cinco milhões de escudos), da qual os Primeiros Outorgantes darão a respectiva quitação após boa cobrança” [alínea M) dos factos assentes].
5. Na clausula 4.ª diz-se que “A quantia em dívida no montante de 21.000.000$00 (vinte e um milhões de escudos) será paga pelo Segundo aos Primeiros Outorgantes no acto da escritura definitiva de compra e venda, que será celebrada logo que as partes estejam na posse de todos os documentos necessários à sua realização. A escritura de compra e venda do imóvel aqui prometido será celebrada até ao mês de Agosto de 2000, comprometendo-se os Segundos Outorgantes a proceder à sua marcação, em cartório notarial em dia e hora a indicar aos Primeiros Outorgantes, mediante carta registada com a antecedência mínima de dez dias” [alínea N) dos factos assentes].
6. Na cláusula 5.ª consta: “Os Primeiros Outorgantes comprometem-se desde já a fornecer toda a documentação necessária à celebração da escritura de compra e venda, nomeadamente registos, inscrições e averbamentos de propriedade, com a devida prontidão de modo a cumprir os prazos pré estabelecidos” [alínea O) dos factos assentes].
7. Na cláusula 6.ª, está consignado que “O objecto deste contrato promessa de compra e venda será vendida livre de quaisquer ónus ou encargos e devoluto de pessoas e de bens, devidamente registados a favor do Promitente Vendedor” [alínea P) dos factos assentes].
8. Contem a cláusula 7.ª o seguinte: “Os Primeiros Outorgantes desde já autorizam o Segundo a ceder a sua posição contratual a terceira pessoa, singular ou colectiva, ou ainda a instituição bancária, comprometendo-se em caso de cessão, a outorgar escritura com quem o Segundo lhe indicar” [alínea Q) dos factos assentes].
9. Durante o último mês do ano de 1998, houve vários e demorados contactos entre o B… e os Réus e só depois de acertados todos os termos do negócio é que o contrato foi celebrado [alínea R) dos factos assentes].
10. Os Réus, na data da outorga do contrato promessa, ainda se dedicavam à exploração de um pequeno comércio de café e mercearia que estava instalado na construção que estava edificada no terreno aqui em causa [alínea S) dos factos assentes].
11. Logo depois de ter assinado o contrato promessa, de imediato o B… tomou posse do terreno e nele efectuou várias obras [alínea T) dos factos assentes].
12. No âmbito do aludido contrato promessa, o B… entregou aos 1.ºs Réus, as seguintes importâncias: a) em 5.01.1999 (na assinatura do contrato), 5.000.000$00; b) em 29.09.2000, 5.000.000$00; c) em 27.10.2000, 4.000.000$00; d) em 6.03.2001, 1.000.000$00; em 11.05.2001, 6.000.000$00, no total de 21.000.000$00 [alínea D) dos factos assentes].
13. Por causa do alargamento da via, foi atribuído ao … a designação toponímica de Rua … [alínea U) dos factos assentes].
14. Da certidão registral correspondente à descrição n.º 01579/210995 de … – Gondomar – consta que a mesma se situa no …; foi desanexada do n.º 15210, fls. 151 do B-42 (3.ª secção – Porto); por ap. de de 21.09.95 o prédio descrito como urbano, com área coberta de 233 m2 e descoberta de 1167 m2, omisso à matriz; por ap. De 29.05.98, como inscrito na matriz predial urbana sob o art. 4109; consta que dela foram desanexados 340 m2 para a ficha 2779; e a partir de 04.04.2001 consta corresponder ao artigo matricial n.º 5158, descrito como terreno para construção com 1060m2, a confrontar de nascente com a Rua …; este imóvel mostra-se registado a favor dos primeiros Réus, por compra; sobre ele esteve inscrita provisoriamente uma promessa de venda a favor de I…, que caducou, bem como um arresto a favor da G…, que caducou; mais se mostram inscritos um arresto a favor da G…, inscrito em 23.11.2001, decretado em 02.04.2001, convertido em penhora em 16.08.2002, e um arresto a favor de I…, por inscrição de 4.09.2002 [alínea F) dos factos assentes].
15. O registo da promessa de venda a favor de I…, referido no ponto anterior, foi feito através da apresentação n.º 87, de 29.05.1998, tendo sido lavrado como “provisório por natureza (g) n.º 1) e dúvidas”.
16. A caducidade desse registo foi anotada no dia 7.01.1999.
17. O registo do arresto a favor da G… que caducou, referido no ponto 14, foi realizado com base na apresentação n.º 11, de 4 de Abril de 2001, como “provisório por natureza (n) do n.º 1 do art.º 92) e dúvidas”.
18. A caducidade desse registo foi anotada no dia 8 de Julho de 2002, cf. documento de fls. 34 a 36 cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido.
19. Da certidão registral correspondente à descrição n.º 6720, …, a fls. 155 do livro B-30, consta ser a mesma um prazo foreiro composto de duas glebas; a gleba 1.ª consta, pela ap. n.º 2 de 10.10.1970, estar inscrita na matriz predial rústica sob os artigos 457 e 469; pela ap. 3 de 13.04.1973 consta ter sido desanexada a gleba 1ª, que vai ser descrita sob o n.º 15210 a fls. 151 v.º do B-42 [alínea G) dos factos assentes].
20. A descrição n.º 6720 nunca esteve inscrita a favor dos primeiros réus, constando como pertencente desde 1983 a J… (a raiz ou nua propriedade) e a K… (o usufruto) [alínea H) dos factos assentes].
21. O registo matricial da descrição n.º 01579 passou a ser o artigo 5158 e a designação do local, como sendo a Rua …, sendo esta última alteração matricial e registral consequência da demolição que realizou o B… [alínea V) dos factos assentes].
22. Em 23 de Março de 2000, um dos filhos dos 1.ºs Réus que consigo vive, F…, ora 2º Réu, declarou por escritura de compra e venda celebrada no Cartório Notarial de Gondomar e pelo preço de 13.000.000$00, aceitar a venda da fracção autónoma designada pela letra “B” correspondente a uma habitação do 1.º andar do prédio sito na Rua …, n.º …/…, da freguesia …, concelho de Gondomar, descrito na CRP de Gondomar, com o n.º 6430, a fls. 74 v.º do livro B-23, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 2781-B [alínea I) dos factos assentes].
23. Em 14 de Novembro de 2000, o mesmo filho, por escritura pública, declarou aceitar a venda, pelo preço de 7.000.000$00, de um estabelecimento comercial, com entrada pelo n.º .. da Rua …, descrito na CRP de Gondomar com o n.º 00960/C e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 5168-C, aí já, de resto, celebrada em seu nome [alínea J) dos factos assentes].
24. Sobre o imóvel da descrição n.º 6430-B mostra-se inscrita uma hipoteca voluntária a favor do M…, por inscrição de 06.03.2000, para garantia de mútuo de capital de 13.000.000$00, sendo o sujeito passivo o 2º Réu [alínea K) dos factos assentes].
25. É no andar correspondente à supra referida fracção B que todos os Réus passaram a viver desde a sua compra [alínea Z) dos factos assentes].
26. A fracção B acima referida constitui uma habitação do tipo T3, situada numa das ruas mais movimentadas de …, de nível de construção acima da média, pelo que o seu valor real situava-se entre os 18.000.000$00 e os 20.000.000$00 (resposta ao quesito 11.º da base instrutória).
27. O estabelecimento, pela sua localização, método construtivo e área, tinha, em 2000, um valor de 9.000.000$00 (resposta ao quesito 12.º da base instrutória).
28. O estabelecimento foi comprado sem recurso a qualquer empréstimo por parte da banca ou qualquer outra entidade para tal vocacionada (resposta ao quesito 13.º da base instrutória).
29. O filho F…, 2.º Réu, trabalha desde 1999 numa oficina de metalurgia, sita na Rua …, n.º .., em …, Gondomar, pertencente à sociedade L…, Lda. (resposta ao quesito 15.º da base instrutória).
30. De 1999 até 2003, inclusive, os seus vencimentos anuais foram os seguintes: 1999, € 3000,00; 2000, € 5000,00; 2001, € 5800,00; 2002, € 6000,00; 2003, € 6280,00 (resposta ao quesito 16.º da base instrutória).
31. O Réu F… não tem outros rendimentos que não os atrás indicados (resposta ao quesito 35.º da base instrutória).
32. O Réu F… nunca foi contemplado com qualquer prémio de lotaria, totobola ou totoloto (resposta ao quesito 18.º da base instrutória).
33. O preço pago pelo estabelecimento comercial foi suportado pelo Réus D… e E… (resposta ao quesito 19.º da base instrutória).
34. Nos anos de 1997 a 2003, o Réu D… recebeu uma pensão paga pelo ISS, IP, que foi no valor mensal de € 324,22, no ano de 1997; € 334,94, no ano de 1998; € 346,02, no ano de 1999; € 357,44, no ano de 2000; € 369,96, no ano de 2001; € 382,92, no ano de 2002; e € 390,58, no ano de 2003 (resposta ao quesito 20.º da base instrutória).
35. Até 2000, a Ré E… explorou uma mercearia, do que retirou rendimentos (resposta ao quesito 21.º da base instrutória).
36. Depois do encerramento dessa mercearia, o casal passou a viver apenas da pensão auferida pelo Réu D… (resposta aos quesitos 22.º e 34.º da base instrutória).
37. Na compra da fracção autónoma identificada na alínea J) dos factos assentes, foram utilizados os 9.000.000$00 que o B… tinha entregue aos Réus D… e E… nos dias 29 de Setembro e 27 de Outubro de 2000 (resposta ao quesito 28.º da base instrutória).
38. Em inícios de Outubro de 2000, o 1.º Réu marido abordou o B… no sentido deste lhe adiantar os 4.000.000$00 acima referidos, justamente para a escritura de compra do estabelecimento que, segundo disse, ficava pelos tais 9.000.000$00 (resposta ao quesito 29.º da base instrutória).
39. Em 24 de Janeiro de 2001, os réus escreveram ao B… a carta junta à contestação como documento n.º 4, do seguinte teor: “No contrato promessa entre nós celebrado, ficou convencionado, como é do conhecimento de V. Ex.ª que a escritura pública de compra e venda seria realizada até ao mês de Agosto de 2000. Também ficou acordado que a escritura de compra e venda seria celebrada logo que as partes estivessem na posse de todos os documentos necessários à realização do acto notarial. Como também é do seu total conhecimento, pois teve intervenção no processo de licenciamento da construção, está tudo concluído na Câmara Municipal …, já há vários meses. A licença está pronta e só falta pedir a passagem da certidão, necessária para instruir a escritura. Todos os outros documentos estão em ordem. Só falta mesmo que V. Exa. nos pague o resto do preço e trate da marcação da escritura. Não compreendemos a atitude de V. Exa. a adiar sucessivamente o contrato que firmámos. O prazo já está há muito ultrapassado, V. Exa. não marca a escritura como se comprometeu a fazer e continua a arranjar desculpas sem razão. Não estamos dispostos a esperar mais tempo, dado que temos muitos compromissos a cumprir e o dinheiro está a demorar muito mais que o previsto; se demorar mais, perderemos o interesse no negócio, pois teremos de resolver a nossa vida de outra maneira. Vamos esperar até ao dia 31 de Janeiro que V. Exa. nos comunique a data e o Cartório da celebração da escritura, a qual terá de ter lugar, impreterivelmente até ao dia 10 de Fevereiro de 2001. Se assim não acontecer, daremos por acabado o contrato, nos termos da Lei. Poderemos, legalmente, fazer a retenção do dinheiro entregue a título de sinal, pois é V. Exa. quem está a não cumprir o contrato” [alínea W) dos factos assentes].
40. Essa carta foi recebida pelo B… no dia 8 de Fevereiro de 2001 (documento de fls. 146).
41. O B… respondeu da forma que consta do documento junto à contestação como documento n.º 5, alegando que o negócio ficou dependente da aprovação da licença e do financiamento bancário [alínea X) dos factos assentes].
42. Em Agosto de 2003, o B… contactou os primeiros Réus no sentido de celebrarem a escritura de compra e venda do aludido prédio contra o pagamento da quantia então em falta, no montante de 5.000.000$00 [alínea E) dos factos assentes].
43. Aquando do contacto do B… aos 1.ºs Réus, em Agosto de 2003, estes responderam-lhe que a escritura não se podia fazer de imediato em virtude do prédio estar onerado com uma penhora e um arresto, promovidos, respectivamente, pela G… e por um tal I… (resposta ao quesitos 1.º da base instrutória).
44. Os Réus disseram a B… que estavam a tratar de resolver a questão, pedindo que aguardasse mais dois ou três meses (resposta aos quesitos 2.º e 3.º da base instrutória).
45. Como o tempo entretanto fosse passando e a situação não se resolvesse, o B… começou, em inícios do ano de 2004, a pressionar os 1.ºs Réus em ordem ao levantamento das tais penhora e arresto ou, em alternativa, à revogação, por mútuo acordo, do contrato promessa, contra a devolução das quantias recebidas (resposta aos quesitos 4.º e 5.º da base instrutória).
46. O B…, depois de se aconselhar, entendeu apresentar um pedido de licenciamento de construção de seis moradias unifamiliares [alínea L) dos factos assentes].
47. O B… é industrial de construção civil há mais de 20 anos [alínea AA) dos factos assentes].
48. O B… promoveu um projecto de licenciamento em nome dos Réus (Proc. 1832/00) e aprovado pela Câmara Municipal … em Julho de 2002 [alínea BB) dos factos assentes].
49. Por via de regra, as economias do B… e o produto dos seus negócios são empregues na aquisição de terrenos, onde depois edifica prédios em propriedade horizontal cujas fracções vende a terceiros, o que tudo em regra lhe propicia um lucro de cerca de 25% sobre o total do capital investido (resposta aos quesitos 38.º e 39.º da base instrutória).
50. O dinheiro entregue pelo B… aos Réus visava a actividade acabada de referir (resposta ao quesito 40.º da base instrutória).
51. Sendo intenção do B… edificar no terreno que verdadeiramente e de facto lhe fora prometido vender sete moradias (resposta ao quesito 41.º da base instrutória).
52. Com o projecto e na expectativa de construção das moradias o B… despendeu as seguintes verbas: a) gabinete de arquitectura, 1.200.000$00; b) levantamento da licença de construção, 2.400.000$00; c) desaterro que chegou a iniciar em 2001 no terreno que de facto lhe fora prometido vender, em vista à futura construção das moradias, 1.000.000$00, num total de 4.600.000$00 (resposta ao quesito 42.º da base instrutória).
53. Para a construção das moradias, o B… pediu financiamento a instituições de crédito, no montante de 127.000.000$00 (resposta ao quesito 43.º da base instrutória).
54. A preços correntes actualmente no mercado imobiliário, o empreendimento de construção de moradias iria custar: preço do terreno, 26.000.000$00; construção, 127.000.000$00; juros previsíveis, 10.000.000$00; diversos, 10.000.000$00; promoção de venda e comissões, 7.200.000$00, num total de 180.200.000$00 (resposta ao quesito 44.º da base instrutória).
55. O projecto das moradias em questão previa – e prevê – moradias do Tipo T3, sendo duas de três frentes e cinco de duas frentes, compostas de cave, r/c e andar, todas com garagem e entrada próprias, de construção acima da média (resposta ao quesito 45.º da base instrutória).
56. As moradias iriam ser vendidas a 35.000.000$00 cada uma das de duas frentes, a 36.000.000$00 a de três frentes do lado norte e a 38.000.000$00 a de 3 frentes do lado Sul, de maiores dimensões e exposição solar (resposta ao quesito 46.º da base instrutória).
57. Os preços indicados são os preços correntes no mercado para moradias com as características referidas e no local em causa (resposta ao quesito 47.º da base instrutória).
58. Pelo que o B… alimentou desde sempre a expectativa de obter, por via de todo o exposto um lucro de, pelo menos, 68.000.000$00 com a construção das mesmas (resposta ao quesito 48.º da base instrutória).
59. As licenças para construção das moradias estavam a pagamento desde 4 de Julho de 2002 e foram então levantadas pelo B…, pelo que, não fora todo o atrás referido, a sua construção podia ter-se iniciado já em Agosto de 2003 (resposta ao quesito 49.º da base instrutória).
60. Face às despesas efectuadas, as expectativas de lucro que saíram goradas e ainda, ao facto de sem os tais 21.000.000$00, o B… conheceu uma grave situação financeira (resposta ao quesito 50.º da base instrutória).
61. O que tudo lhe causou momentos de grande ansiedade e depressão, noites sem dormir, e estados ora de irritabilidade, ora de depressão (resposta ao quesito 52.º da base instrutória).
62. A que o B… sempre fora estranho, dado ser, de seu natural, um pessoa calma e bem disposta (resposta ao quesito 53.º da base instrutória).
63. Mesmo no seio da família, a situação criada gerou grandes tensões entre o B… e a sua mulher, em virtude desta o culpar de ter disposto de tanto dinheiro sem previamente se acautelar devidamente, tendo a crise ido ao ponto de se aventar o divórcio do casal (resposta ao quesito 54.º da base instrutória).
64. Actualmente, o B…, é uma pessoa abatida, desesperada e a viver à custa de calmantes e anti-depressivos (resposta ao quesito 55.º da base instrutória).
65. Pela apresentação n.º 4412, de 29.10.2009, foi inscrita, na CRP de Gondomar, a aquisição a favor da G…, por compra judicial, do prédio descrito sob o 1579 / 19950921 [alínea CC) dos factos assentes].
2. De direito
Aplicando o direito aos factos tendo em vista a resolução das supramencionadas questões, importa começar, como é óbvio e lógico, pela apreciação da matéria de facto.
2.1. Da alteração da matéria de facto
A Relação pode alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto dentro dos limites previstos no art.º 712.º, n.º 1 do CPC, na redacção dada pelo DL n.º 375-A/99, de 20/9, aqui aplicável, que contempla as seguintes situações: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida; b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; e c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
No caso em análise, porque houve gravação dos depoimentos prestados em audiência, estamos perante a hipótese prevista na última parte da al. a) do n.º 1 do citado art.º 712.º, o qual deve ser conjugado com o art.º 690.º-A do mesmo diploma legal, na redacção aqui aplicável (dada pelo DL n.º 183/00, de 10/8, em vigor desde 1/1/2001).
Este artigo prescreve o seguinte: 1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º-C.
Por sua vez, este normativo preceitua que “quando haja lugar a registo áudio ou vídeo, devem ser assinalados na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento”.
No presente caso, a recorrente especificou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e indicou os meios probatórios que entende fundamentarem tal erro, bem como assinalou a localização dos depoimentos em que fundamenta a sua discordância, tendo transcrito, nas alegações, excertos dos mesmos.
Por isso, consideramos cumprido tal ónus, pelo que iremos conhecer do recurso, procedendo à reapreciação da prova quanto à matéria de facto contida nos quesitos cuja alteração pretende.
Para este efeito, tal como nos outros recursos que já decidimos (e foram muitos), seguiremos uma tese mais ampla, formada há algum tempo, a qual, reconhecendo embora que a gravação dos depoimentos áudio ou vídeo não consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal «a quo», designadamente o modo como as declarações são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória e que existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia, argumentos utilizados pela tese restritiva até há pouco dominante, entende, ainda assim, que na reapreciação da prova as Relações têm “a mesma amplitude de poderes que tem a 1.ª instância, devendo proceder à audição dos depoimentos ou fazer incidir as regras da experiência, como efectiva garantia de um segundo grau de jurisdição”. E quando um Tribunal de 2.ª instância, ao reapreciar a prova ali produzida, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção (a que também está sujeito), “conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, fazendo «jus» ao reforço dos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição” (cfr. Abrantes Geraldes, em “Reforma dos Recursos em Processo Civil”, Revista Julgar, n.º 4, Janeiro-Abril/2008, págs. 69 a 76; idem, mesmo Autor em “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, 2008, págs. 279 a 286, Amâncio Ferreira, em “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 2008, pág. 228, e Acs. do STJ de 01/07/2008 - processo 08A191, de 25/11/2008 - processo 08A3334, de 12/03/2009 - processo 08B3684 e de 28/05/2009 - processo 4303/05.0TBTVD.S1, e desta Relação de 17/11/2009 – processo 140/08.8TBMDR.P1, todos em www.dgsi.pt).
É sabido que a prova deve ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas no seu meio social, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, já que tudo isto contribui, afinal, para a formação de raciocínios e juízos que conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão de cada facto.
O Prof. Alberto dos Reis já ensinava que “prova livre quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei” (cfr. Código de Processo Civil anotado, vol. IV, pág. 570).
A essas regras de apreciação está sujeita a prova testemunhal, como expressamente dispõe o art.º 396.º do Código Civil.
Dada a sua reconhecida falibilidade, impõe-se uma especial avaliação crítica com vista a uma valoração conscienciosa e prudente do conteúdo dos depoimentos e da sua força probatória, devendo sempre ter-se em consideração a razão de ciência do depoente e as suas relações pessoais ou funcionais com as partes.
Há, ainda, que apreciar a prova no seu conjunto, conjugando todos os elementos produzidos no processo e atendíveis, independentemente da sua proveniência, em face do princípio da aquisição processual (cfr. art.º 515.º do CPC).
E, nessa apreciação global, o julgador poderá lançar mão de presunções naturais, de facto ou judiciais, isto é, no seu prudente arbítrio, poderá deduzir de certo facto conhecido um facto desconhecido (art.ºs 349.º e 351.º, ambos do C. Civil).
Como corolário da sujeição das provas à regra da livre apreciação do julgador, consagrada no art.º 655.º, n.º 1 do CPC, impõe-se-lhe indicar “os fundamentos suficientes para que através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348 e Ac. da RC de 3/10/2000, CJ, ano XXV, tomo IV, pág. 27).
Enunciados os princípios e as regras de direito probatório, vejamos se as respostas impugnadas se mostram proferidas em conformidade com eles, sendo que a apreciação que importa agora efectuar deve obedecer às mesmas regras e princípios.
Para tanto, procedeu-se à audição integral dos depoimentos indicados pela recorrente e aos demais elementos constantes dos autos.
A apelante impugna as respostas dadas pelo Tribunal recorrido aos quesitos 30.º, 31.º, 32.º e 33.º.
Estes quesitos têm a seguinte formulação: Quesito 30.º: “Os 1ºs Réus doaram dinheiro ao 2º Réu com a finalidade única de, através da compra do andar e do estabelecimento, impossibilitar o A. de obter a satisfação integral do seu crédito?” Quesito 31.º: “Quer os 1ºs Réus quer o 2º Réu estavam bem cientes do prejuízo que daí resultaria para o A.?” Quesito 32.º: “Impossibilidade de satisfação do seu crédito resultante de todo o atrás exposto e do facto dos 1ºs Réus nada terem de seu ou em seu nome que pudesse satisfazer o crédito do A.?” Quesito 33.º: “Qualquer dos prédios foi verdadeiramente adquirido pelos 1ºs Réus, com dinheiro obtido ao A. (então 14.000.000$00 no total) e com recurso à Banca?”
Todos estes quesitos obtiveram a resposta de “não provado”.
Para fundamentar esta resposta, o Ex.mo Juiz que presidiu à audiência (e depois proferiu a sentença) escreveu o seguinte: “… Quanto aos números 25 a 33, há a acrescentar ao que já foi dito que, da conversa relatada pelas testemunhas B… e H…, único elemento apto a suportar o juízo segundo o qual o Réu F… foi um mero testa de ferro dos seus pais, resulta, na melhor das hipóteses, que o Réu D… expressou o seu alívio por ter evitado o arresto das duas fracções autónomas por parte de um seu credor – o mencionado I…. Daí até se concluir que o Réu D… actuou sempre com a intenção de se eximir ao cumprimento das suas obrigações para com o Autor vai uma grande distância, designadamente se considerarmos que não havia, no momento da outorga do contrato-promessa, o registo de qualquer arresto ou penhora sobre o prédio prometido vender, como também não havia na data convencionada para a celebração da escritura definitiva nem mesmo quando as partes trocaram a correspondência de fls. 141 a 148, na qual os Réus D… e E… imputaram ao Autor (rectius, à testemunha B…) a responsabilidade no atraso no cumprimento do contrato-promessa, instando-o a comunicar o cartório para a outorga da escritura de compra e venda até ao dia 10 de Fevereiro de 2001, o que tudo indica que, se tiveram vontade de ocultar os actos de aquisição do património, não o fizeram com a intenção de prejudicar o B…, mas eventualmente aqueles que eram, em 2000, os seus credores, desde logo o I…. [Diga-se, aliás, que se desconhece a causa e o momento da constituição do crédito deste I…, pois tal não foi alegado.] Ficamos, assim, circunscritos à aquisição da fracção autónoma identificada na alínea J) dos factos assentes, sendo que, quanto ao pagamento do preço, há um elemento que corrobora a afirmação do B… no sentido de que para tal foi utilizado dinheiro proveniente do sinal: a admissão feita pelo Réu D…. Mas a partir daqui nenhuma outra conclusão pode ser extraída até porque, como salientamos, não existe nada que permita concluir que os Réus D… e E… tinham, em Novembro de 2000, dívidas, designadamente para com o I… ou a G…. Assim sendo, não se vislumbrando, com suficiente segurança, que tivessem razões para ocultar um acto de aquisição de património, ficamos apenas com o facto de o preço da fracção identificada na alínea J) ter sido pago com dinheiro que os Réus D… e E… receberam do B…. E assim sendo, não é seguro presumir a razão pela qual tal facto ocorreu. É que, em abstracto, muitas razões são plausíveis. Diga-se, ainda a este propósito, que a alegação, constante da petição inicial e transposta para o n.º 30 da base instrutória, no sentido de os Réus D… e E… terem doado o dinheiro ao Réu F… para que este adquirisse asfracções, está em contradição com toda a restante alegação. É que das duas uma: ou os Réus D… e E… quiseram adquirir as fracções para eles mesmos, utilizando o Réu F… como uma mera fachada, para ocultar dos seus credores um acto de aquisição de património e, nesse caso, não doaram o dinheiro; ou os Réus D… e E… doaram o dinheiro, consistindo essa doação ela mesma no acto de dissipação do património…”
E, antes, relativamente ao estatuto do B…, ainda no mesmo despacho, escreveu: “… Desde logo, não podemos esquecer que a presente acção foi intentada pelo referido B…, que perdeu a qualidade de Autor na sequência da decisão do incidente que constitui o apenso C, nos termos da qual a sua filha foi habilitada a prosseguir na lide, por se ter considerado que adquiriu, nos termos do contrato escrito junto a fls. 6, “o direito litigioso (…) reivindicado e em causa” nos presentes autos. Esta invulgar modificação subjectiva da instância abriu portas à admissibilidade do depoimento do B… como testemunha. Contudo, do facto de o B… poder depor como testemunha não resulta que o seu depoimento deva ser valorado positivamente de forma automática, designadamente no que tange aos factos que são favoráveis à pretensão que deduziu. Sujeito embora à livre apreciação, o seu depoimento deve ser objecto de especiais reservas, pelo interesse directo que teve na causa e pelo interesse indirecto que nela mantém…”.
A recorrente pretende que a tais quesitos sejam dadas as respostas que indica no ponto III das conclusões aperfeiçoadas, acima transcritas e que nos dispensamos de reproduzir aqui.
Para este efeito, invoca os depoimentos de parte dos réus D… e F… e das testemunhas H… e B…, bem como as respostas dadas aos quesitos 13.º, 19.º, 28.º e 29.º, os factos dados como assentes nas alíneas F), G) e H) e o doc. n.º 6, junto com a petição inicial, e, ainda, a materialidade alegada nos artigos 64.º, 65.º, 70.º e 72.º da contestação.
Como é sabido, e resulta claramente da lei, o depoimento de parte destina-se a obter a confissão judicial provocada, a qual é obtida em juízo e consiste no reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (cfr. art.ºs 352.º e 356.º, n.º 2, ambos do Código Civil).
Lebre de Freitas adverte que o depoimento de parte “não constitui, no nosso direito, um testemunho da parte, livremente valorável em todo o seu conteúdo, favorável ou desfavorável ao depoente … mas um meio de provocar a confissão” (cfr. Código de Processo Civil anotado, volume 2.º, 2.ª ed., pág. 497).
O depoimento só pode ter por objecto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento, não sendo admissível sobre factos criminosos ou torpes (cfr. art.º 554.º do CPC), e a confissão por ele visada não faz prova contra o confitente nos casos previstos no art.º 354.º do Código Civil, ou seja, quando for declarada insuficiente por lei ou recair sobre facto cujo reconhecimento ou investigação a lei proíba [al. a)], recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis [al. b)] e o facto confessado for impossível ou notoriamente inexistente [al. c)].
Nos termos do art.º 563.º do CPC o depoimento prestado é sempre reduzido a escrito, na parte em que houver confissão do depoente, ou em que este narre factos ou circunstâncias que impliquem indivisibilidade da declaração confessória (n.º 1), incumbindo a sua redacção ao juiz e podendo as partes ou seus advogados fazer as reclamações que entendam (n.º 2), e, concluída a assentada, é lida ao depoente, que a confirmará ou fará as rectificações necessárias (n.º 3).
A confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente, segundo o preceituado no n.º 1 do art.º 358.º do Código Civil.
E, de acordo com o art.º 360.º do mesmo Código, quando a declaração confessória for acompanhada da narração de factos ou circunstâncias impeditivos, modificativos ou extintivos dos efeitos do facto confessado, a parte que dela quiser aproveitar-se como prova plena terá de aceitar como verdadeiros esses factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexactidão.
Explica o mesmo Professor Lebre de Freitas, na pág. 516 da obra citada, que se trata da “indivisibilidade, não da declaração confessória, mas duma declaração complexa de factos favoráveis e factos desfavoráveis, perante a qual é facultado à parte contrária tomar uma de quatro atitudes: prescindir da confissão, que fica sujeita à livre apreciação do julgador (art. 361 CC); aceitar como verdadeiros os factos e circunstâncias que lhe são desfavoráveis, fazendo assim uma segunda confissão, que tem, como a do autor da declaração complexa, a eficácia de prova plena própria do acto da confissão; declarar que se quer aproveitar da confissão, mas se reserva o direito de provar a inexactidão dos factos ou circunstâncias que lhe são desfavoráveis, caso em que a confissão vale plenamente como tal, mas a realidade desses factos ou circunstâncias só fica plenamente provada até que seja estabelecida a prova do contrário, a cargo da contraparte do confitente (art. 347 CC); omitir qualquer declaração, como que o regime será o mesmo do da reserva expressa”.
No caso dos autos, os depoimentos de parte dos réus D… e F… foram prestados em audiência de discussão e julgamento e, findo cada um deles, foi lavrada a correspondente assentada, conforme consta da respectiva acta de fls. 656 a 661, sem que tivesse sido feita qualquer outra declaração ou rectificação.
Nessa acta consta que os mesmos responderam à matéria dos quesitos nela indicados – 21.º a 24.º, 28.º e 34.º, o primeiro, e 13.º, 15.º, 17.º, 18.º e 35.º, o segundo - e declararam o que se fez constar das correspondentes assentadas.
Da sua leitura resulta, claramente, que não confessaram os factos impugnados em sede de recurso, agora em apreciação.
A audição dos seus depoimentos nem sequer permite colocar a hipótese de alguma omissão, muito menos concluir pela confissão de tais factos.
Os depoimentos das testemunhas inquiridas também não comprovam esses factos.
A H…, apesar de ter referido que, numa altura em que seguia num veículo automóvel com o primitivo autor para casa deste, num dia chuvoso de Março de 2004, e depois de aquele ter oferecido boleia ao réu D…, que aguardava por transporte público, ao que parece para provocar uma pretensa confissão, assistiu a uma conversa entre ambos, nos termos da qual o demandado terá dito que “se não tivesse posto os bens em nome do filho, o I… levava tudo”, nada convence. Para além de se estranhar a presença naquele dia e local da referida testemunha, que não deixou de justificar com a ida à feira de Gondomar, com a visita a casa do primitivo autor e sua mulher, por quem nutria grande amizade, e com um aniversário, não podemos olvidar que já haviam decorrido, desde então até ao dia do julgamento, mais de seis anos, o que não deixaria de obnubilar a sua memória, por muito boa que ela seja, apesar dos seus 71 anos de idade, tanto mais que, segundo afirmou, se deslocava ali várias vezes e é do conhecimento geral que todos os anos há aniversários. Ao longo do seu depoimento, por diversas vezes e despropositadamente, repetiu que “estava a falar verdade” e foi notória a sua parcialidade, preocupando-se em realçar as dificuldades económicas dos amigos B…, mulher e filha, actual autora.
O depoimento do B… nada vale, já que é um depoimento invulgar, prestado em causa própria, independentemente de saber a verdadeira razão subjacente à habilitação da cessionária, a sua filha C….
O documento n.º 6, junto com a petição inicial, que constitui as fls. 33 a 36 dos autos, é uma fotocópia de uma certidão da Conservatória do Registo Predial de Gondomar, referente à descrição n.º 1579/210995, especificada na alínea F) dos factos assentes, transcrita no n.º 14 dos factos provados e com o restante conteúdo relevante referido nos subsequentes n.ºs 15 a 18, a qual nada adianta quanto aos factos aqui impugnados.
Os factos dados como provados, quer na matéria de facto assente quer depois do julgamento, nada relevam para este efeito, já que não são meios de prova. Pelo mesmo motivo e por maioria razão, menos relevam os factos alegados e não provados.
A “prova” indicada pela apelante não permite a alteração das respostas aos quesitos impugnados, no sentido por ela pretendido.
Da reapreciação efectuada por este Tribunal, considerada a prova em causa no seu conjunto, não há razões para nos afastarmos do entendimento tido na 1.ª instância, pois que não se vislumbra qualquer desconformidade notória entre a dita prova e a respectiva decisão, em violação dos princípios supra referenciados.
A fundamentação constante do despacho de fls. 662 a 670 mostra-se criteriosa e tem suporte razoável na gravação da prova e nos demais elementos constantes dos autos. Dela resulta que foi feita uma correcta análise do valor probatório de todos os elementos, designadamente dos depoimentos prestados, especialmente dos invocados pela recorrente, e dos documentos juntos.
Não pode, pois, alterar-se a matéria de facto no sentido pretendido pela apelante, pelo que se mantêm as respostas dadas pelo Tribunal a quo aos quesitos impugnados.
Improcedem, por conseguinte, as correspondentes conclusões.
2.2. Da fraude à lei
A figura da fraude à lei pressupõe uma ilicitude indirecta e tem sido pouco tratada na doutrina e na jurisprudência, inexistindo mesmo uma previsão geral na lei civil portuguesa, quer no actual Código Civil de 1966, quer no de 1867.
No domínio deste Código, escreveram sobre a matéria agora em análise os Professores Beleza dos Santos e Manuel de Andrade, defendendo ambos a não autonomização do instituto.
Beleza dos Santos, depois de expor sinteticamente os termos e a evolução do problema, resumiu-o à questão da interpretação dos factos, afirmando que nada ficava para o âmbito autónomo da figura, não podendo por isso contrapor-se os actos de fraude à lei aos actos contra a lei, na medida em que os primeiros ofendem a letra do texto legal e os segundos o seu espírito e uns e outros violam a lei, porque letra e espírito são elementos essenciais e inseparáveis da norma legal (cfr. A Simulação, 1.º volume, págs. 101 a 107, citado pelo Prof. Menezes Cordeiro, no seu Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, pág. 494).
Manuel de Andrade retomou o assunto, fazendo algumas precisões e definindo os negócios em fraude à lei como “… aqueles que procuram contornar ou circunvir uma proibição legal, tentando chegar ao mesmo resultado por caminhos diversos dos que a lei designadamente previu e proibiu – aqueles que por essa forma pretendem burlar a lei” (in Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, pág. 337).
Na página seguinte, expõe as teorias subjectiva e objectiva, acabando por aderir à segunda.
Segundo ele, “Para a concepção subjectiva é essencial e bastante a intenção fraudatária, o propósito doloso, o intuito de chegar, por caminhos furtivos e escusos, ao resultado legalmente proibido. Sem este requisito não haverá fraude à lei; e havê-la-á logo que ele esteja presente, pouco importando que não resulte frustrado o escopo da lei. Numa variante mais atenuada …, a teoria subjectiva limita-se a reputar essencial o animus fraudandi.
Para a concepção objectiva nada releva a intenção das partes. Só interessa a situação ou o resultado prático que o negócio tende a criar. É necessário e suficiente para haver fraude à lei que tal situação ou resultado esteja em contraste com a finalidade legal”.
Justificando a sua opção, na página subsequente, não deixou de pôr em crise a autonomia da fraude, reconduzindo-a à interpretação, nos seguintes termos:
“Se bem pensamos, todo o problema se reconduz ao da exacta interpretação da norma proibitiva, segundo a sua finalidade e alcance substancial. Isto posto, haverá fraude relevante caso se mostre que o intuito da lei foi proibir não apenas os negócios que especificamente visou, mas quaisquer outros tendentes a produzir o mesmo resultado, só não os mencionando por não ter previsto a sua possibilidade, ou ter tido deliberadamente mero propósito exemplificativo. Fala-se neste caso em normas materiais. Não haverá fraude relevante caso se averigúe que a lei especificou uns tantos negócios por só ter querido combater certos meios (esses mesmos negócios) de atingir um dado fim ou resultado, em razão de os julgar particularmente graves e perigosos”.
E acrescenta:
“Entendida assim, a fraude à lei não será mais do que uma forma oculta da violação da lei e a respectiva teoria nada mais fará do que propor-nos uma directriz interpretativa quanto às leis proibitórias de negócios jurídicos – tudo em flagrante semelhança com o modo como se passam as coisas quanto ao abuso do direito e à respectiva doutrina”.
Esta posição acabou por ser seguida pela generalidade da doutrina na vigência do Código Civil de 1966, ainda que com diversas precisões (v.g. Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral, 3.ª edição, págs. 550 e 551, João de Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II -1979-, págs. 332-334 e Menezes Cordeiro, Teoria Geral, 2.ª edição, 2.º vol. págs. 123 e 124), tendo sido opção do legislador não inserir naquele diploma um preceito específico sobre o tema (cfr. Prof. Rui de Alarcão – “Breve motivação do anteprojecto sobre o negócio jurídico na parte relativa ao erro, dolo, coacção, representação, condição e objecto negocial”, BMJ n.º 138º, pág. 121).
Limitou-se a fazer-lhe referência em sede de direito internacional privado e no âmbito da aplicação das normas de conflitos no art.º 21.º, dispondo que “Na aplicação das normas de conflitos são irrelevantes as situações de facto ou de direito criadas com o intuito fraudulento de evitar a aplicabilidade da lei que, noutras circunstâncias, seria competente”.
Segundo o Prof. Castro Mendes, para haver fraude à lei é necessário haver um nexo entre o acto ou actos em si lícitos e o resultado proibido, nexo esse que pode resultar:
- subjectivamente, da intenção de todos os agentes, ou,
- objectivamente, da constituição de uma situação jurídica tal que, pelo seu desenvolvimento normal, conduza ao resultado proibido.
Assim, sem uma ligação entre o acto em si lícito e o resultado proibido, o primeiro não pode ser tratado como fraudulento (cfr. obra e local citados).
O Prof. Menezes Cordeiro, no seu Tratado, já citado, na pág. 496, acaba por concluir que “a denominada fraude à lei é uma forma de ilicitude que envolve, por si, a nulidade do negócio.
A sua particularidade residirá, quando muito, no facto de as partes terem tentado, através de artifícios formais mais ou menos assumidos, conferir ao negócio uma feição inócua.
No fundo, a fraude à lei apenas exige uma interpretação melhorada dos preceitos vigentes:
- se se proíbe o resultado, também se proíbem os meios indirectos para lá chegar;
- se se proíbe apenas um meio – sem dúvida por se apresentar perigoso ou insidioso - fica em aberto a possibilidade de percorrer outras vias que a lei não proíba”.
A jurisprudência também começou por acolher este entendimento, como se pode ver no acórdão do STJ de 9/5/1985, no BMJ n.º 347º, págs. 404 a 408, onde se afirmou: “em suma e na realidade, o negócio em fraude à lei é sempre um negócio contrário a ela”.
O mesmo Alto Tribunal no seu acórdão de 25/1/2005, proferido no processo n.º 04A3915, disponível em www.dgsi.pt, adoptou a concepção objectivista, entendendo que o que é “decisivo para afirmar a ilicitude e consequente nulidade do negócio em fraude à lei é o resultado com ele obtido e não a intenção das partes” e que “não há fraude juridicamente relevante se o resultado não coincidir com aquele a que a norma imperativa contornada pretende obstar”.
E, no acórdão de 20/10/2009, exarado no processo n.º 115/09.0TBPTL.S1, acessível no mesmo sítio, aderiu-se expressamente à tese do Prof. Castro Mendes, afirmando que “não há fraude sem nexo, ou seja, sem que o acto lícito em si não esteja ligado ao resultado proibido” e que é de aceitar esta conceptualização “pondo a tónica da prescindibilidade do elemento subjectivo – “animus fraudandi” – por valer um conceito ético e objectivo de boa fé, como o que, quanto ao abuso de direito, enuncia o artigo 334.º do Código Civil”.
Também nós aderimos, com a devida vénia, a este entendimento.
Assim, para haver fraude à lei é indispensável um nexo entre o acto ou actos em si lícitos e o resultado proibido, podendo esse nexo ser subjectivo (intenção dos agentes) ou objectivo (criação de uma situação jurídica tal que, pelo seu desenvolvimento normal, leve ao resultado proibido).
No caso dos autos, nada nos permite concluir pela existência de fraude à lei.
Vem questionada, no recurso, unicamente a validade da compra do estabelecimento comercial por parte do réu F…, melhor identificado na alínea J) dos factos assentes, supra transcrita no n.º 23 dos factos provados, invocando a recorrente o disposto nos art.ºs 21.º e 601.º, ambos do Código Civil.
O primeiro normativo não tem aqui aplicação, visto respeitar ao direito internacional privado e ao âmbito da aplicação das normas de conflitos, o que não ocorre, manifestamente, no presente caso.
O segundo preceito invocado consagra o princípio geral da garantia geral das obrigações nos seguintes termos: “Pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios”.
Aqui, prevê-se, como regra, que todos os bens do devedor respondem pelo cumprimento da obrigação. Tais bens são aqueles que constituem o seu património, à data da constituição da obrigação e os que futuramente lhe venham a pertencer. Esta garantia geral apenas se torna efectiva por meio da execução (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 3.ª edição, pág. 585).
A garantia geral das obrigações não confere ao credor um direito potestativo que se traduza num direito ao património do devedor.
É que, como ensina o Prof. Menezes Cordeiro, “qualquer direito subjectivo pressupõe, para além de adequada permissão normativa, a existência de um bem afecto, pela norma em causa, ao titular. A garantia geral das obrigações, como garantia em si, nunca propicia, ao credor, o aproveitamento de bens diferentes das prestações. Assim, quer na execução pecuniária, quer na execução específica, o credor apenas vai realizar, coactivamente, as prestações que lhe eram devidas. A estas, tão-só se reporta o seu direito. O património do devedor surge, apenas, como meio de efectivação das aludidas prestações…
O património do devedor, no prisma da garantia geral, é apenas o meio de realização de direitos que implicam o aproveitamento de bens que com ele não se identificam - as prestações.
Mas, mesmo instrumentalmente, o património do devedor, pela sua eminente indeterminação e variabilidade – que pode ir até à sua inexistência – é insusceptível de consubstanciar o substrato necessário à existência de um direito subjectivo, tal como o entendemos.
Por tudo isto, resta-nos concluir que a garantia geral das obrigações tem a simples natureza de uma permissão normativa genérica de actuação das regras de responsabilidade patrimonial. A sua natureza de garantia advém, como foi dito, do facto de tal permissão surgir com a existência de qualquer obrigação” (in Tratado, já citado, II – Direito das Obrigações – tomo IV, pág. 507).
Assim sendo, parece-nos evidente que aquele normativo não contém qualquer proibição. Muito menos a proibição de aquisição de um bem por parte de pessoa diferente do devedor. Tanto mais que não ficou provado qualquer intuito fraudulento.
Acresce que inexiste qualquer nexo entre a referida aquisição e o pretenso resultado proibido. Para além de não existir nexo subjectivo, já que não ficou demonstrada a intenção dos agentes, inexiste nexo objectivo, na medida em que a situação criada, pelo seu desenvolvimento normal, não conduz àquele resultado.
E, ainda que aquele propósito existisse, ou seja, ainda que se tivesse provado que a compra do estabelecimento tinha sido feita em nome do réu F… para prejudicar o primitivo autor, sempre faltaria um elemento objectivo indispensável à caracterização da figura que vimos tratando, que consiste na idoneidade desse negócio para alcançar um resultado proibido pela lei, o qual jamais seria obtido pelas razões que se deixaram ditas.
Com também já se referiu, no negócio em fraude à lei o que releva, o que é decisivo, para se poder afirmar a respectiva ilicitude e consequente nulidade é, mais do que a intenção dos contraentes, o resultado obtido, de tal modo que, se este não coincidir com aquele a que a norma imperativa pretende obstar, não há fraude juridicamente relevante.
E, no presente caso, torna-se objectivamente impossível, pelas razões acima expostas, afirmar que o invocado negócio atingiu um direito subjectivo do antecessor da recorrente, por inexistência de norma imperativa defraudada.
Resulta do exposto que inexiste fraude à lei, pelo que improcedem as correspondentes conclusões do recurso.
2.3. Da impugnação pauliana
Com é sabido, a acção ou impugnação pauliana constitui um meio de conservação da garantia patrimonial, colocado à disposição do credor pelo ordenamento jurídico, que visa permitir-lhe reagir contra actos que ponham em perigo a garantia geral dos seus créditos, praticados pelo devedor, mediante a redução do activo ou o aumento do passivo (cfr. Menezes Cordeiro, última obra citada, pág. 523, Mário Júlio Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5.ª edição, pág. 717, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 4.ª edição, pág. 434 e acórdão do STJ de 20/3/2012, processo n.º 29/03.7TBVPA.P2.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Os requisitos ou pressupostos da sua aplicação resultam do disposto nos art.ºs 610.º e 612.º, ambos do Código Civil, e são os seguintes:
- a existência de um crédito;
- a prática, pelo devedor, de um acto que não seja de natureza pessoal;
- esse acto provoque ao credor a impossibilidade de satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade;
- a anterioridade do crédito relativamente ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto dolosamente praticado com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
- o acto seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé[3].
Tal como resulta do citado art.º 612.º, n.º 1, este requisito da má fé só é requerido quando o acto tenha natureza onerosa, já que os actos gratuitos são sempre impugnáveis desde que se verifiquem os restantes requisitos.
O n.º 2 do mesmo artigo define a má fé como “… a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor”.
Sabendo-se que a boa fé subjectiva nada mais é do que a projecção, na esfera das pessoas, das regras objectivas da boa fé, existe má fé quando o devedor e o terceiro tenham procedido em “desacordo com a cláusula geral da boa fé, mormente com o fito de prejudicar o credor. Verifica-se, pois, que a má fé acaba por ser uma característica do próprio acto a impugnar, derivando do facto de devedor e terceiro, na sua celebração, terem como fim o prejuízo do credor. Ou, se se quiser, o acto que cai na previsão pauliana é um acto finalisticamente destinado a prejudicar o credor (cfr. Menezes Cordeiro, obra citada, pág. 525).
Confrontando o preceito acabado de citar com a alínea a) do art.º 610.º, este Professor, na página seguinte, concluiu que o seu alcance é bem menor do que aquilo que poderia parecer, justificando do seguinte modo:
“Efectivamente, resulta do art.º 612.º que o acto oneroso só está sujeito à impugnação quando devedor e terceiro estejam de má fé. Sendo esta a consciência do prejuízo causado ao credor, verifica-se que há, seguramente, sempre dolo, directo ou, pelo menos, necessário. Concluímos daqui que, em relação a actos onerosos, a pauliana procederia sempre, verificado o condicionalismo requerido, independentemente da anterioridade ou posterioridade do acto em relação ao crédito prejudicado.
O artigo 610.º[4], a) tem, por isso, a sua utilidade circunscrita aos actos gratuitos. Quando estes sejam posteriores ao crédito prejudicado, a pauliana procede sempre, independentemente da boa ou má fé dos seus intervenientes – e, logo, com dolo ou sem ele. Mas se o acto gratuito for anterior ao crédito, então, pelo artigo 610.º, a), ele só procede quando tenha sido dolosamente praticado para prejudicar o credor”.
Por força deste último preceito, nos actos gratuitos anteriores à constituição do crédito, é sempre exigível o dolo na pessoa do devedor (cfr. Ac. do STJ de 3/6/1992, BMJ n.º 418, pág. 737 e Cura Mariano, obra citada, pág. 163).
A mais recente jurisprudência do STJ sustenta que a má fé para efeitos do n.º 2 do citado art.º 612.º, enquanto “consciência do prejuízo” ali referido, pode revelar-se sob a forma dolosa, em qualquer das suas formas (directa, necessária ou eventual), ou sob a forma de culpa consciente, mas não na modalidade de culpa inconsciente (cfr. acórdãos de 12/3/2009, proferido no processo n.º 09B0264, e de 13/10/2011, processo n.º 116/09.8T2AVR-Q.C1.S1, e demais neste citados, disponíveis em www.dgsi.pt).
Assim, no dolo directo, o agente, representando a conduta que pretende tomar, age com intenção de atingir o efeito ilícito, que é o de prejudicar o credor.
No dolo necessário, o agente, embora represente a conduta que pretende tomar, não tem propriamente a intenção de prejudicar o credor, mas sabe que, com a prática do acto ilícito que previu e quer, o prejuízo ocorrerá, impossibilitando-o de obter a satisfação integral do seu crédito ou agravando essa impossibilidade.
No dolo eventual, o agente prevê a possibilidade de o acto que pretende praticar ir prejudicar o credor, nalguma daquelas formas, mas, não obstante, age indiferente ao resultado.
Na negligência consciente, o agente, embora admita como possível que o acto afecte os interesses do credor, acredita, ainda assim, sincera mas levianamente, que a consequência prevista não se irá verificar.
Nesta situação, ao intervir no acto, o agente assume uma opção intelectual e axiológica, pelo que ainda prefigurou a consciência do prejuízo, adoptando uma conduta eticamente censurável.
Adere-se a este entendimento jurisprudencial, pelas razões referidas no último acórdão citado, isto é, “por se considerar que a teleologia subjacente ao instituto da impugnação pauliana não é compatibilizável com uma excessiva ampliação dos seus requisitos fundamentais, de modo a dispensar a efectiva representação pelas partes – por ambas as partes, assente a exigência de bilateralidade da má fé - no negócio oneroso impugnado da sua nocividade para a garantia geral dos credores – substituindo tal consciência ou efectiva percepção do prejuízo por uma mera cognoscibilidade deste, assente no estabelecimento de deveres acessórios de indagação de circunstâncias e motivações subjectivas subjacentes ao acto impugnado, em muitos casos de duvidosa praticabilidade. O sistema em que assenta este instituto funda-se numa ponderação ou balanceamento dos interesses contrapostos – de credores e adquirentes dos bens – que confere relevo substancial e acrescido ao valor da segurança do comércio jurídico, no que respeita a actos onerosos - obstando a que determinado negócio jurídico oneroso possa ser procedentemente impugnado quando alguma das partes não tiver representado, face às circunstâncias que lhe foi possível apreender e de que teve efectivo conhecimento, a sua possível nocividade para a garantia geral dos credores.”
Importa ainda dizer que, no que concerne ao ónus da prova, cabe ao credor provar o montante do crédito que tem contra o devedor e da anterioridade dele em relação ao acto impugnado, enquanto ao devedor ou ao terceiro adquirente compete demonstrar a existência de bens penhoráveis de valor igual ou superior na titularidade do obrigado (art.º 611.º do Código Civil).
E que “o critério para a fixação da data do nascimento, para o efeito de se verificar a anterioridade do crédito relativamente ao acto que se pretende impugnar, varia em consonância com a sua origem e natureza”[5].
Na sentença recorrida, foi reconhecido, e bem, que se constituiu um crédito na esfera jurídica do primitivo autor, B…, que depois foi transmitido para a actual autora/apelante, sobre os réus D… e E….
Esse crédito consiste na indemnização resultante do incumprimento, por parte destes réus, do contrato-promessa de compra e venda, celebrado em 5/1/1999, mas que apenas surgiu com o incumprimento definitivo verificado em 2009, com a venda judicial à G….
Surgindo tal crédito em data posterior à aquisição do estabelecimento pelo réu F… e não tendo ficado provado que aqueles réus agiram com o intuito de impedir a satisfação do futuro crédito do B…, nem que essa intenção fosse comum àquele demandado, concluiu-se ali não estar preenchido o requisito do art.º 610.º, a).
Insurgindo-se contra este entendimento, a apelante pugna pela verificação de todos os pressupostos da impugnação pauliana, aceitando que o incumprimento definitivo do contrato ocorreu em 2009, mas defendendo que o crédito já existia desde a sua celebração e que se venceu naquela ocasião.
Que dizer?
A anterioridade do crédito, em relação ao acto que se pretende impugnar, afere-se pela data da sua constituição e não pela data do vencimento. É o que resulta, desde logo, do art.º 614.º, n.º 1 do Código Civil, ao dispor que “não obsta ao exercício da impugnação o facto de o direito do credor não ser ainda exigível”, pelo que a impugnação pauliana é admissível para garantia de créditos ainda não vencidos, desde que constituídos anteriormente ao acto a impugnar (cfr., neste sentido, o acórdão do STJ de 12/12/2002, lavrado no processo n.º 02B3936, disponível em www.dgsi.pt).
Também já dissemos que o critério para a fixação da data do nascimento do crédito varia em consonância com a sua origem e natureza.
O crédito invocado nestes autos baseia-se num contrato-promessa.
Como é sabido, o contrato-promessa é a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato, a que são aplicáveis as disposições legais que regulam o contrato prometido, exceptuadas as que, pela sua própria razão de ser, não se devam considerar extensivas àquele contrato (art.º 410.º, n.º 1, do Código Civil).
Do contrato-promessa emerge como prestação devida a emissão de uma declaração negocial destinada a celebrar o contrato prometido, ou seja, a obrigação de os seus outorgantes realizarem uma prestação de facto que consiste na outorga do contrato que prometeram celebrar.
Assim, da celebração do contrato-promessa não nasce qualquer obrigação pecuniária, mas apenas uma prestação de facto que é a celebração do contrato prometido.
Só com as situações de incumprimento imputável é que surge, como sanção do promitente faltoso, a atribuição ao promitente lesado de um crédito indemnizatório, cujo conteúdo é, desde logo, condicionado pelo clausulado negocial, nomeadamente a existência ou não de sinal, a verificação ou não de traditio (cfr. art.º 442.º do Código Civil).
No presente caso, foi reconhecido que o crédito só surgiu com o incumprimento definitivo do contrato-promessa, verificado na pendência da acção, quando ocorreu a transmissão, em processo executivo, do direito de propriedade sobre o prédio prometido vender da esfera jurídica dos réus D… e E… para a da G…, facto este trazido aos autos, em termos de integrar a causa de pedir, por via do articulado superveniente.
A referida venda executiva ocorreu em 29/10/2009, como consta do n.º 65 dos factos provados, supra descritos.
Com ela, os promitentes-vendedores deixaram, em definitivo, de poder vender tal coisa ao promitente-comprador, ficando impossibilitados de cumprir o contrato-promessa, por culpa sua, como se presume (cfr. art.º 799.º, n.º 1, do Código Civil).
Daí a constatação de uma situação de impossibilidade definitiva de cumprimento do contrato-promessa imputável aos promitentes-vendedores.
Por isso mesmo, foi reconhecido ao promitente-comprador o direito de receber o dobro do sinal que havia prestado, o qual foi atribuído à autora/recorrente, por aquela lho ter transmitido.
Com este entendimento se conformou a recorrente, não o pondo em causa no recurso e aceitando expressamente que o incumprimento definitivo do contrato-promessa ocorreu com a aludida venda executiva.
Vir defender, para efeitos de impugnação pauliana, que o crédito nasceu logo com a celebração do contrato-promessa é, com o devido respeito, para além de errado, pouco coerente.
O crédito resultou do incumprimento definitivo do contrato-promessa e não da sua celebração, sendo manifestamente irrelevantes a promessa antes feita a terceiro e os registos provisórios entretanto caducados (cfr. factos provados sob os n.ºs 16 a 18).
Ele apenas surgiu com o incumprimento do contrato-promessa, que se verificou com a impossibilidade do seu cumprimento, em face da transmissão do prédio prometido vender para a G…, e no momento em que esta ocorreu, assim originando o direito à restituição do sinal em dobro, nos termos do art.º 442.º, n.º 2, do Código Civil.
Assente que o crédito surgiu em 29/10/2009 e porque o acto a impugnar data de 14/11/2000 (cfr. n.º 23 da factualidade provada), é evidente que aquele crédito é posterior a este acto, pelo que só seria relevante caso o acto tivesse sido realizado “dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor”, como preceitua a segunda parte da alínea a) do art.º 610.º.
Acontece, porém, que a autora não provou, como lhe competia, que os réus D… e E… tivessem praticado o acto que pretende impugnar com o intuito de impedir a satisfação do futuro crédito do B….
Relativamente a este, apenas se provou que o F… adquiriu o estabelecimento comercial, em 14/11/2000, pelo preço de 9.000.000$00, com dinheiro proveniente do sinal pago pelo B… aos réus D… e E… em 29 de Setembro e 27 de Outubro de 2000 (cfr. factos provados sob os n.ºs 23, 27, 33 e 37).
Desconhece-se a que título foi feito esse pagamento com dinheiro que havia sido entregue aos réus D… e E….
Ainda que se trate de doação daquele dinheiro ao réu F…, não deixa de ser um acto gratuito anterior ao nascimento do crédito do B… ou da ora autora.
E, tratando-se de acto gratuito anterior à constituição do crédito, a impugnação só poderia proceder se, verificados os demais requisitos, o mesmo tivesse sido dolosamente praticado para prejudicar o credor.
Nestes casos, exige-se sempre dolo na pessoa do devedor, o qual nada tem a ver com o requisito da má fé, previsto no art.º 612.º.
Aquele releva para efeito de verificação do requisito exigido pela segunda parte da alínea a) do citado art.º 610.º.
Inexistindo o dolo exigido por este normativo, falta o requisito nele previsto.
Acresce que também se nos afigura que não se verifica o requisito da alínea b) do mesmo artigo, visto que os factos provados não permitem concluir que do acto praticado tenha resultado a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade.
É que, tendo o acto sido praticado em data anterior à da constituição do crédito, como foi, “não pode provocar um empobrecimento do património que garantiu a satisfação da obrigação assumida, uma vez que os bens afectados por esse acto já não o integravam. O credor não pode contar com bens que já não se encontravam no património do devedor quando este se obrigou perante aquele” (cfr. Cura Mariano, obra citada, pág. 157) ou, acrescentamos nós, no momento em que tornou impossível o cumprimento do contrato que originou o seu crédito.
Indemonstrados os factos necessários à verificação cumulativa dos requisitos da impugnação pauliana, é evidente que jamais poderia proceder a pretensão com base nela deduzida, independentemente da correcção dos seus efeitos a que haveria lugar nos termos do art.º 664.º do CPC e do acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 3/2001 do STJ de 23/1/2001, publicado no DR n.º 34, I Série - A, de 9/2/2001, caso procedesse, o que fica prejudicado em face da sua improcedência.
Improcedem, deste modo, as restantes conclusões.
A sentença, aliás muito bem elaborada, não merece qualquer censura, pelo que deve ser mantida.
III. Decisão
Por tudo o exposto, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a sentença recorrida.
*
Custas pela apelante.
*
Porto, 18 de Setembro de 2012
Fernando Augusto Samões
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
_______________
[1] Por despacho de 6/12/2008, proferido a fls. 10 – 12 do apenso C, que a julgou habilitada como cessionária do direito de que o B… se arroga nestes autos.
[2] Por decisão de 11/1/2012, proferida a fls. 11 e 12 do apenso D.
[3] Cfr., entre outros, Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 5.ª edição, pág. 16; Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2.ª edição, páginas 155-209; Almeida Costa, obra citada, págs. 722-728; Menezes Cordeiro, obra citada, pág. 524).
[4] Escreveu-se “612.º”, certamente por lapso.
[5] Cura Mariano, obra citada, pág. 164.