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REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
Sumário
I – Deve ser rejeitado o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente que na descrição dos factos constitutivos do crime que imputa ao arguido omite os referentes ao elemento subjectivo do ilícito típico.
Texto Integral
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
I. Relatório
No inquérito nº 362/16.8GCFAR, que correu termos no MP junto da Comarca de Faro, pelo MP foi proferido despacho final, determinando o respectivo arquivamento, nos termos do art. 277º nº 1 do CPP, em relação à totalidade da queixa apresentada por N contra CM.
Inconformado, N, constituído assistente nos autos, requereu a abertura de instrução, com a finalidade de que fosse pronunciado CM, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 143º do CP.
Para o efeito da apreciação do pedido de abertura de instrução, foram os autos distribuídos ao Juízo de Instrução Criminal de Faro, tendo a Exª Juiz deste Juízo proferido, em 9/5/17, um despacho com o seguinte teor:
«Requerimento de abertura de instrução do assistente N (fls. 117 e ss.):
Nos presentes autos N é assistente (cfr. despacho que antecede), está em tempo para requerer a abertura de instrução, mostra-se representado por advogada (fls. 123) e mostra-se paga a taxa de justiça (fls. 126 e 127).
Mostram-se, assim, reunidos os requisitos formais para admissão da instrução requerida pelo mesmo.
Vejamos, porém, se se mostram reunidos os requisitos materiais de que depende tal admissão.
*
Dispõe o art.º 286º, n.º1 do Código de Processo Penal que “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, sendo que a assistente a pode requerer, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (art.º 287º, n.º1, al. a) do Código de Processo Penal).
Nos termos do n.º2 do art. 287º do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, sendo-lhe ainda aplicáveis as alíneas b) e c) do n.º 3 do art. 283º.
No caso, tendo o Ministério Público ordenado o arquivamento do inquérito, terá o assistente, por força do disposto nas als. b) e c) do n.º3 do art. 283º daquele código, aplicável ex vi do nº 2, parte final, do art. 287º daquele diploma legal, que indicar, ainda que de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, bem como as disposições legais aplicáveis.
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva no Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 161, “O objecto do despacho de pronúncia há-de ser substancialmente o mesmo da acusação formal ou implícita no requerimento de instrução.”.
No mesmo sentido, Maia Gonçalves, no Código de Processo Penal Anotado, 9.ª edição, pág. 541, segundo o qual, “Em tal caso, de instrução requerida pelo assistente, o seu requerimento deverá, a par dos requisitos do n.º1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório e elaboração da decisão instrutória”.
Ou seja, regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e contraditório, resulta que o requerimento de abertura de instrução, quando requerida pelo Assistente, porque é consequência de um despacho de arquivamento, deve conter todos os elementos de uma acusação, com especial relevância para a matéria de facto que descreve o ilícito que é imputado ao arguido.
No que concerne ao princípio do acusatório, e assumindo este especial relevância, cumpre atender ao estatuído no n.º 5 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, que remete para o princípio do acusatório ao determinar que “o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do acusatório”.
Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada (3ª Edição, pág. 205-206) “O princípio do acusatório na sua essência significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também um órgão de acusação; b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Edição, pág. 205-206)”.
Assim, e tal como refere Germano Marques da Silva, em obra citada supra, pág. 144, “ o Juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal, ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objecto de acusação do MP. O requerimento para a abertura da instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação (alternativa ao arquivamento ou à acusação deduzida elo MP), que dada a divergência assumida pelo MP vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial”.
Daí que, tendo o requerimento de abertura de instrução por parte da Assistente de configurar uma acusação, é esta que condicionará a atividade de investigação do Juiz e a decisão instrutória, tal como flui, claramente, do disposto nos artigos 303º, n.º3 e 309º, n.º1 do Código de Processo Penal, sendo que a decisão instrutória que viesse a pronunciar o arguido por factos não constantes daquele requerimento, estaria ferida de nulidade.
Não se poderá olvidar que os tipos de ilícito são constituídos por elementos objetivos e subjetivos, pelo que a descrição fáctica constante de uma acusação tem que conter os elementos objetivos do tipo incriminador, constituídos, nomeadamente, pelo agente, pelo comportamento, pela conduta (ou comportamento humano voluntário) e pelo bem jurídico, este último como «sinónimo do valor objetivado que o tipo traz consigo, sinónimo do substrato concreto, do suporte objetivo imediato de um valor» (cfr. Figueiredo Dias, «Direito Penal», Sumários das Lições à 2ª turma do 2º ano da Faculdade de Direito, Coimbra, 1975, págs. 139/144).
Já ao nível do tipo subjetivo haverá que considerar e fazer traduzir na matéria de facto descrita na acusação (ou no seu equivalente, como é o caso do requerimento de abertura de instrução), que este constitui a representação da situação objetiva na mente do agente. Para se afirmar a verificação do tipo legal de crime, exige-se, pois, que o agente saiba e tenha consciência e conhecimento da situação objetiva, tal como ela se verifica.
Haverá que ter em consideração que nos crimes dolosos a verificação do tipo subjetivo de ilícito pressupõe o conhecimento e vontade de realização de um tipo legal de crime por parte do agente, ou seja, pressupõe que estejam presentes o elemento intelectual, o elemento volitivo e o chamado elemento emocional. Não se esgotando o dolo no conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo, é ainda necessário que àqueles acresça um elemento emocional na caracterização da atitude pessoal do agente, exigida pelo tipo-de-culpa doloso. Por outras palavras: à afirmação do dolo não basta o conhecimento e vontade de realização do tipo, sendo preciso, igualmente, que esteja presente o conhecimento e a consciência, por parte do agente, do carácter ilícito da sua conduta.
Assim, o elemento intelectual do dolo «só poderá ser afirmado quando o agente atue com todo o conhecimento indispensável para que a sua consciência ética se ponha e resolva corretamente o problema da ilicitude do seu comportamento», isto é, quando o agente atue com conhecimento da factualidade típica. Já o elemento volitivo traduz a «vontade do agente dirigida à realização do tipo» legal de crime. Finalmente, o elemento emocional representa o «conhecimento ou consciência do carácter ilícito» da conduta, estando ligado, pois, ao chamado tipo de culpa doloso.
Nestes termos “o dolo só existirá quando o agente atue com conhecimento e vontade de realização do tipo-de-ilícito e com conhecimento ou consciência da ilicitude da sua atuação, ou seja, «sempre que o ilícito típico seja fundamentado por uma censurável posição da consciência-ética do agente perante o desvalor do facto, pressuposto que aquela se encontrava correta e suficientemente orientada para esta” (cfr. Figueiredo Dias, op. cit., págs. 199/204, e «Pressupostos da Punição e Causas que Excluem a Ilicitude e a Culpa», in «Jornadas de Direito Criminal», «O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar», edição do Centro de Estudos Judiciários, págs. 72/73).
E atente-se no teor do Ac. do STJ de 22/10/2003 (in www.dgsi.pt) quando afirma que “No que concerne ao elemento subjetivo do crime, embora se possa controverter se o dolo é inerente à prática do facto, temos por certo que o mesmo devia ser expressamente invocado para poder ser relevado. A ideia de “dolus in re ipsa” que sem mais resultaria da simples materialidade da infração, é hoje indefensável no direito penal”, sendo que também Figueiredo Dias (in “O Ónus de Alegar e de Provar em Processo Penal”, RLJ, 105, n.º3473, 1972), afirma que o facto do dolo poder ser provado e, portanto, inferir-se, com recurso a presunções naturais ou com recurso às regras da experiência comum, não pode significar que fica dispensada a alegação dos pertinentes factos que o integram (neste sentido, também com relevância, cfr. Acórdãos do TRP de 11/5/2011 e de 11/10/06, do TRC de 6/06/2012, 23/05/2012 e de 2/10/2013, do TRG de 28/05/2013, bem como do TRE de 6/11/2012 e de 25/06/2013, todos disponíveis in www.dgsi.pt).
Por seu lado, o STJ fixou jurisprudência através do Acórdão nº 1/2015, publicado no DR de 27 de Janeiro de 2015, no seguinte sentido: “a falta de descrição na acusação dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do Código de Processo Penal”.
No seguimento desse Acórdão e a respeito da fase de instrução, refere-se no Acórdão do TRE, de 17/03/2015, que “a falta de descrição, no requerimento para abertura da instrução, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, constitui motivo de rejeição de tal requerimento para abertura da instrução. A doutrina fixada pelo S.T.J., no seu Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015 (publicado no DR, I Série, de 27-01-2015), deve ser aplicada, por identidade de razão, aos requerimentos para abertura da instrução apresentados por assistentes”.
In casu, findo o inquérito o Mº Pº proferiu despacho de arquivamento em relação ao crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do Código Penal que o assistente imputa ao arguido no RAI.
Verifica-se quanto ao crime imputado no RAI que o assistente descreve a atuação voluntária do agente (agiu de forma deliberada e pretendeu ofender a integridade física do mesmo – dolo direto – sabendo que uma cabeçada pode causar lesão grave), bem como factos atinentes à vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor (agiu de forma consciente, bem sabendo que o seu comportamento é proibido por lei).
Mas já não descreve a mesma os factos referentes à livre determinação do agente (habitualmente traduzido na fórmula “atuou de forma livre” ou “livremente”) e que se prende com a imputabilidade do agente, ou seja, saber se o mesmo tem capacidade de se determinar de acordo com a sua vontade e de avaliar a ilicitude da sua conduta e de se determinar de acordo com essa avaliação, elemento que de acordo com o supra referido Acórdão do STJ de fixação de Jurisprudência, tem que constar da acusação e, por maioria de razão, como vem decidindo a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, do RAI do assistente, o que se compreende na medida em que do juízo de imputabilidade do agente depende a aplicação ao mesmo de uma pena, sendo que no caso de inimputabilidade, ou seja, de atuação sem vontade livre (e que não se confunde com a atuação consciente, uma vez que o agente pode atuar ciente/avaliando a ilicitude da sua conduta, mas não conseguir determinar-se de acordo com essa avaliação) será aplicada ao mesmo uma medida de segurança, em caso de perigosidade e nenhuma medida de segurança na ausência de perigosidade (arts. 19º e 20º do Código Penal).
A responsabilidade criminal do agente depende, pois, da sua imputabilidade, facto que, por isso, tem de ser descrito.
Como já referimos supra, não é possível ao Juiz substituir-se ao assistente, colocando, por iniciativa própria, os factos em falta e que se revelam essenciais para a imputação do crime ao agente, sob pena de estarmos perante uma alteração substancial de factos, o que sucede quanto sejam omissos os factos objetivos e subjetivos integradores do tipo.
Tal como se decidiu no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/05/97 (in CJ, Vol. III, pág. 143) “não é ao juiz que compete compulsar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que poderão indiciar o cometimento pelo arguido de um crime, pois, então, estar-se-ia a transferir para aquele o exercício da acção penal contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor”.
Repetindo-nos, qualquer arguido só pode ser pronunciado pelos factos constantes do requerimento do/a Assistente, pois não há lugar a uma nova acusação, nem o Juiz se pode substituir ao assistente na tarefa de carrear factos para a pronúncia, pois a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento para abertura de instrução. Só assim se respeita, formal e materialmente, a acusatoriedade do processo, só assim o arguido sabe quais os factos que lhe são imputados, podendo exercer, com eficácia e segurança, o contraditório, e só desta forma se pode delimitar o objeto do processo e vincular-se tematicamente o tribunal, impedindo-se um alargamento arbitrário desse objeto.
Nos termos do n.º 3 do art. 287.º do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal.
No caso, entendemos que estamos perante uma situação de inadmissibilidade legal, quer atenta a nulidade plasmada no art.º 283º, n.º3 quer atenta a falta de objeto, sendo que esta causa de rejeição é de conhecimento oficioso (cfr., entre muitos outros, Ac. do STJ de 27/02/02 e 26/06/02, ambos publicados em www.dgsi.pt).
Na verdade, a realização da instrução constituiria um ato inútil, na medida em que, finda a mesma, atenta a ausência do elemento integrador do dolo, qualquer decisão que viesse a ser proferida e que considerasse factos não alegados na instrução seria nula, pois que sempre haveria falta de objeto do processo (neste sentido, cfr. Ac. Trib. da Rel. de Lisboa de 9/02/00, in CJ, T.I, pág.153; Ac. Trib. Rel. do Porto de 5/05/93, in CJ, T. III, pág. 243, e Ac. Trib. da Rel. de Évora de 14/04/95, in CJ, T.I, pág. 280).
Também e desde já que referimos que, perfilhamos do entendimento seguido pela jurisprudência maioritária, ou mesmo unânime, dos Tribunais superiores que não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento apresentado pelo Assistente (vide, neste sentido, Ac. de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005, in DR I Série-A, de 4/11/05 e também Ac. do Trib. da Rel. do Porto de 31/05/06 e de 1/03/06, publicados em texto integral em www.dgsi.pt), pois que, a existir, este convite colocaria em causa o carácter perentório do prazo referido no art.º 287, n.º1 do Código de Processo Penal e a apresentação de novo requerimento de abertura de instrução, por parte do assistente, para além daquele prazo, violaria as garantias de defesa do arguido (cfr. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 27/2001 de 31/01/01, DR 2ª série de 23/03/01 e Acórdão n.º358/04, de 19/05, publicado no DR 2ª série de 28/06/04), bem como da celeridade processual (vide, neste sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º636/2011, de 20/12/2011, acessível no site desse Tribunal).
Como o referiu o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º358/04 “ A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerente a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura de instrução. Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura de instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas no n.º3 do art.º 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre (…) de princípios fundamentais de processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória”.
Face a tudo supra exposto, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente N., por o mesmo ser legalmente inadmissível, atento o preceituado nos arts. 283º, nº 3, al. b) e 287º, nº 2 e n.º3 do Código de Processo Penal.
É devida taxa de justiça pelo assistente (art. 515º, nº 1, al. a) do C. P. P.), que se corrige para 2 UC, atento o estatuído no art.º 8º, n.º2 do Regulamento das Custas Processuais, devendo, por se tratar de uma correção, ser tida em consideração a já paga pela apresentação do requerimento.
Notifique».
Inconformado com o despacho proferido, o assistente N. interpôs dele recurso, devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões (numeração sequencial à da motivação):
58-No básico, há rejeição do RAI porque é entendido que “In casu, findo o inquérito o M.P. proferiu despacho de arquivamento em relação ao crime de ofensas à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do Código Penal que o assistente imputa ao arguido no RAI.”
59-“Verifica-se quanto ao crime imputado no RAI que o assistente descreve a atuação voluntária do agente (agiu de forma deliberada e pretendeu ofender a integridade física do mesmo-dolo direto- sabendo que uma cabeçada pode causar lesão grave), bem como factos atinentes à vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor (agiu de forma consciente, bem sabendo que o seu comportamento é proibido por lei)”
60-Contudo, e é aqui que reside o busílis da questão, entende o Tribunal que o Assistente “Mas já não descreve a mesma os factos referentes à livre determinação do agente (habitualmente traduzido na fórmula ”actuou de forma livre” ou “livremente”) e que se prende com a imputabilidade do agente, ou seja, saber se o mesmo tem capacidade de se determinar de acordo com a sua vontade e de avaliar a ilicitude da sua conduta e de se determinar de acordo com essa avaliação.” (…)
61- “A responsabilidade criminal do agente depende, pois, da sua imputabilidade, facto que, por isso, tem de ser descrito.”
62-Entendendo o Tribunal “(…) que estamos perante uma situação de inadmissibilidade legal, quer atenta a nulidade plasmada no art. 283º, nº3 quer atenta a falta de objecto, sendo que esta causa de rejeição é de conhecimento oficioso(…)”
63-Mais, entende ainda o Tribunal que “não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento apresentado pelo Assistente (…)”.
64-Entende o Assistente que nada há a reparar no conteúdo do seu RAI, sendo que o mesmo encontra-se dotado de todos os elementos integradores do tipo objectivo e subjectivo.
65-Não se pode compactuar com a existência de fórmulas estandardizadas.
66-O que o Assistente tem de fazer, e fê-lo, nos termos do Art. 283º nº3 alínea b )e c) do C.P.P. é na sua narrativa apresentar os elementos necessários à imputação do crime ao arguido, ainda que forma sintética, incluindo o lugar, o tempo, a motivação, o grau de participação do agente e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção a aplicar, bem como, as disposições legais aplicáveis.
67-Com o devido respeito, o Assistente no seu discurso descreve e preenche todos os elementos do tipo objectivo e subjectivo, quando lança mão na sua narrativa do seguinte texto:
68-“O arguido com a sua conduta agiu de forma consciente e deliberada bem sabendo que o seu comportamento é proibido por lei e ao cabecear o assistente pretendeu ofender a integridade física do mesmo, tanto assim é que no email dirigido ao assistente considera a sua conduta injustificada.
69-A conduta do arguido integra o tipo legal previsto no Art. 143º do C.P., ofensa à integridade física simples, quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa, ora o arguido ao dar uma cabeçada ao assistente e agora parafraseando ainda o supra citado acórdão e se (…)” Uma bofetada é uma agressão corpórea produzida com a mão. Como lapidarmente diz o Ministério Público: Uma bofetada significa uma pancada dada noutrem, com a mão aberta, normalmente na cara, distinguindo-se do soco, dado com a mão fechada (…), então uma cabeçada é uma agressão corpórea dada com a cabeça.
70-Assim, e face aos factos expostos, a cabeçada que o arguido desferiu no assistente foi dada com a intenção de agredir, atento às circunstâncias descritas e testemunhadas, pelo que encontra-se preenchido o tipo legal objetivo e subjetivo.”
71-A livre determinação do agente, está expressa no uso da expressão: “agiu de forma deliberada”.
72-Age de forma deliberada, determinada quem é livre na sua vontade.
73- Entender que não está preenchido o elemento subjectivo porque não se encontra redigida a expressão “livre” ou “livremente” é reduzir o Direito Penal a preciosismos e estereótipos.
74-Ora resulta que, o RAI, apresentado pelo Assistente, configura uma acusação, com a narração dos factos objectivos e subjectivos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis, tudo nos termos do Art. 287º nº 2, que remete expressamente para o 283º nº3 alíneas b) e c) do C.P.P.
75-Constam do RAI factos que a serem provados, fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, integrando mais concretamente o crime de ofensas A integridade física p. e p. nos termos do Art. 143º do C.P.
Vejamos:
76-“Sem que nada fizesse prever o arguido desferiu com a sua cabeça uma cabeçada na direção do nariz do assistente.”
77-“A cabeçada atingiu a face do assistente na zona do nariz.”
78-“O assistente conseguiu atenuar a intensidade da cabeçada só porque ao tentar desviar-se da agressão tornou o impacto menos agressivo para si.”
79-“A agressão só cessou, tal como resulta, do auto de inquirição da testemunha FF, porque “alguns alunos tentaram impedir mais agressões, no entanto quando estavam a chegar junto de ambos o suspeito abandonou o local.””
80-“O arguido cabeceou o assistente, e com tal ato o arguido causou dor e desconforto na saúde do assistente, encontrando-se preenchido o tipo legal objetivo, previsto no Art. 143º nº1 do C.P.”
81-“O arguido com a sua conduta agiu de forma consciente e deliberada bem sabendo que o seu comportamento é proibido por lei e ao cabecear o assistente pretendeu ofender a integridade física do mesmo, tanto assim é que no email dirigido ao assistente considera a sua conduta injustificada. “
82-“Aliás com o conhecimento científico do arguido, que frequenta o curso de medicina, não pode o mesmo ignorar o que é do conhecimento quotidiano, que uma cabeçada quer seja na zona frontal ou nasal ou entre os olhos pode causar lesão grave.”
83-“Mais, resulta dos autos que o arguido é uma pessoa instruída e letrada pelo que bem saberá que a integridade física é um bem jurídico acautelado constitucionalmente e que é proibido e errado dar uma cabeçada a outra pessoa, uma bofetada, bem como, um pontapé, e nesta esteira e indo beber um pouco ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ de 18.12.1991 (ac DR 33/92, Iª serie), (…)”há que recordar da República reconhece, sem quaisquer limitações ou graduações, o direito à integridade física (artigo 24.º, n.º 1) e considera-o inviolável, não fazendo sentido que o legislador penal, ao incriminar e fazer punir os actos violadores de tal direito, com vista a assegurar a sua defesa o fizesse por forma limitada e descriminadora.
Por outro lado, a lei contrapõe ou distingue entre ofensa no corpo e ofensa na saúde, pelo que se tem de aceitar, numa visão ético-social do conceito de ofensa no corpo, que esta se pode verificar independentemente da produção de qualquer lesão, dor ou incapacidade para o trabalho. “
84-“A conduta do arguido integra o tipo legal previsto no Art. 143º do C.P., ofensa à integridade física simples, quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa, ora o arguido ao dar uma cabeçada ao assistente e agora parafraseando ainda o supra citado acórdão e se (…)” Uma bofetada é uma agressão corpórea produzida com a mão. Como lapidarmente diz o Ministério Público: Uma bofetada significa uma pancada dada noutrem, com a mão aberta, normalmente na cara, distinguindo-se do soco, dado com a mão fechada (…), então uma cabeçada é uma agressão corpórea dada com a cabeça.”
85-“Assim, e face aos factos expostos, a cabeçada que o arguido desferiu no assistente foi dada com a intenção de agredir, atento às circunstâncias descritas e testemunhadas, pelo que encontra-se preenchido o tipo legal objetivo e subjetivo.”
86-É errado afirmar que o RAI do Assistente se encontra ferido de ilegalidade quando na redação se encontram preenchidos todos os elementos objectivos e subsjectivos.
Pelo exposto, o RAI não fere de ilegalidade.
Nestes termos e nos demais de Direito deverá presente Recurso ter provimento, devendo-se ordenar a substituição do despacho recorrido por outro que ordene o prosseguimento da Instrução, ordenando as diligências que se afigurem necessárias para realização do debate instrutório.
O recurso interposto foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
O MP respondeu à motivação do recorrente, formulando, por sua vez, as seguintes conclusões:
1 – Nos presentes autos, o MP, na fase de inquérito, determinou o seu arquivamento, nos termos do artigo 277º, nº 2, do Código de Processo Penal por entender inexistirem indícios suficientes da prática do crime imputado ao arguido;
2 – Não se conformando com este despacho, o Assistente requereu a instrução;
3 – Nesse requerimento, o Assistente imputou ao arguido a prática de um crime de ofensas à integridade física p. e p. pelo artigo 143º, do Código Penal, não indicando, contudo, factos integradores dos elementos subjectivos do crime, designadamente que o arguido actuou livremente;
4 – Motivo porque a requerida instrução foi rejeitada, tendo deste despacho de rejeição o Assistente interposto o presente recurso;
5 – Contudo, não lhe assiste razão;
6 – Na verdade têm ensinado a Doutrina e a Jurisprudência que, regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e contraditório, resulta que o requerimento de abertura de instrução requerida pelo assistente, porque é consequência de um despacho de arquivamento, deve conter todos os elementos de uma acusação com especial relevância para a matéria de facto que descreve o ilícito que é imputado ao arguido, tanto nos seus elementos objectivos como nos elementos subjectivos;
7 – Ora como o crime aqui em questão é doloso, deveriam ser alegados factos, pelo assistente, de onde se retirassem os elementos objectivos e subjectivos, nomeadamente que os arguidos actuaram livre, deliberada e conscientemente, conhecendo o carácter proibido da sua conduta;
8 – Contudo no seu requerimento de abertura de instrução o assistente não alegou factos pertinentes à totalidade dos elementos subjectivos, designadamente que o arguido actuou livremente;
9 – Não é possível ao Juiz substituir-se ao Assistente, colocando, por iniciativa própria, os factos em falta que se revelarem essenciais para a imputação dos crimes ao arguido, sob pena de estarmos perante uma alteração substancial dos factos;
10 – A doutrina e a Jurisprudência também têm entendido que nestas situações não há lugar ao convite de aperfeiçoamento do requerimento apresentado pelo Assistente, pois, a existir, tal convite colocaria em causa o carácter peremptório do prazo referido no artigo 287º, nº 1, do Código de Processo Penal, violando as garantias de defesa do arguido e a celeridade processual;
11- Assim sendo, bem andou a Exma. Juiz recorrida ao indeferir o aludido requerimento, nos termos do artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal por inadmissibilidade legal, quer atenta a nulidade prevista no artigo 283º, nº 3 do mencionado diploma, quer atenta a falta de objecto,
12 – pelo que deve ser mantido o douto despacho recorrido.
Mas V. Exas. Farão como sempre, JUSTIÇA!
O arguido CM respondeu igualmente à motivação do recurso, pugnando pela manutenção do decidido, mas sem formular conclusões.
A Digna Procuradora-Geral Adjunta em funções junto desta Relação emitiu parecer sobre o mérito do recurso, no sentido da sua improcedência.
O parecer emitido foi notificado aos sujeitos processuais, a fim de se pronunciarem, o que não fizeram.
Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência. II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.
A sindicância da decisão recorrida, que transparece das conclusões do recorrente, centra-se na reversão do indeferimento do requerimento sobre que recaiu o despacho impugnado, por entender não se encontrar verificada, ao arrepio do entendimento da Exª Juiz «a quo», qualquer hipótese legal de inadmissibilidade legal da instrução.
Sobre os pressupostos de admissibilidade do pedido de abertura da instrução dispõem os nºs 2 e 3 do art. 287º do CPP:
2 – O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º. Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.
3 - O requerimento só pode se rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
O nº 3 art. 283º do CPP estabelece os requisitos formais da acusação, sendo as respectivas als. b) e c) do seguinte teor:
b) A narração, ainda que sucinta, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis.
O indeferimento do requerimento de abertura de instrução (RAI) da assistente baseou-se na inadmissibilidade legal da pretensão formulada, decorrente do não preenchimento pela referida peça processual dos requisitos exigidos pelas alíneas b) e c) do nº 3 do art. 283º do CPP, concretamente, os factos referentes à livre determinação do agente, que prende com sua imputabilidade, ou seja, a capacidade de se determinar de acordo com a sua vontade, de avaliar a ilicitude da sua conduta e determinar-se segundo essa avaliação.
É hoje pacificamente aceite que o RAI, quando formulado pelo assistente, deve assumir o papel funcional de uma acusação, mais precisamente, aquela acusação que, no entender do requerente, o MP deveria ter deduzido e não deduziu.
Nesta ordem de ideias, o RAI do assistente terá de conter, ao nível da descrição dos factos, pelo menos aqueles que integram os elementos constitutivos objectivo e subjectivo do tipo de crime (no caso, ofensa à integridade física), pelo qual a assistente pretende que o arguido seja pronunciado, sendo certo que, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 7/2005 do Supremo Tribunal de Justiça (DR, I-A, nº 212, 4/11/05), a que decisão recorrida faz apelo, não há lugar ao convite aos assistentes para aperfeiçoar tal peça processual, quando esta for omissa sobre a descrição desses factos.
O identificado Acórdão nº 7/2005 do Supremo Tribunal de Justiça veio firmar a seguinte jurisprudência:
Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.
Com eventual interesse para a decisão a proferir, importa ter presente o Acórdão nº 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 20/11/14 e publicado em DR, I série, de 27/1/15, o qual uniformizou jurisprudência nos seguintes termos:
A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP.
Acerca da eficácia dos Acórdãos do Pleno das Secções Criminais do STJ, proferidos no âmbito de recursos para fixação de jurisprudência, fora dos processos em que tem lugar a respectiva prolação, dispõe o nº 3 do art. 445º do CPP:
A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada.
O regime contido na disposição legal agora transcrita procura estabelecer um ponto de equilíbrio entre a desejável uniformidade, segurança e previsibilidade do direito e o princípio da independência dos Tribunais e da sua vinculação exclusiva à lei, estatuído pelo art. 203º da CRP.
Ao contrário do antigo instituto dos Assentos, que se caracterizava pela sua obrigatoriedade para a generalidade dos Tribunais e cuja compatibilidade com o postulado constitucional da vinculação exclusiva destes à lei era, por isso, problemática, os actuais Acórdãos de fixação de jurisprudência revestem uma força vinculativa tendencial, ou seja, os Tribunais podem divergir da orientação neles consagrada, mas, fazendo-o, ficam sujeitos a um especial dever de justificar a divergência.
Neste contexto, somos de entender que, sob pena de se esvaziar de conteúdo útil o propósito unificador da instituição dos Acórdãos a que nos vimos referindo, os Tribunais só devem afastar-se da doutrina acolhida por essas decisões perante razões ponderosas, como seja, por exemplo, a convicção de que orientação jurisprudencial preferida pelo STJ é manifestamente incompatível com algum princípio jurídico basilar, geralmente aceite, ou violadora de normas constitucionais expressas.
Temos entendido que não se vislumbra, relativamente ao Acórdão do STJ nº 7/2005, a verificação de qualquer razão ponderosa comparável às hipóteses evocadas, pelo que temos dirimido as questões que nos tem competido apreciar, com observância da doutrina consagrada nesse aresto, quando se mostre relevante para o efeito, como sucede no caso em apreço.
Idêntico juízo vimos formulando acerca da jurisprudência firmada pelo Acórdão do STJ nº 1/2015, que temos considerado extensiva aos RAI apresentados por assistentes, conforme decidido, por exemplo, no Acórdão da Relação de Évora de 17/3/15, proferido no processo nº 1161/12.1GBLLE.E1 e subscrito por este Colectivo de Juízes (disponível em www.dgsi.pt).
No recurso em apreço, a assistente não questiona a aplicabilidade ao seu RAI dos requisitos do libelo acusatório exigidos pelas als. b) e c) do nº 3 do art. 283º do CPP, mas antes sustenta que o conteúdo da mesma peça processual se ajusta a tais exigências.
Da conjugação da jurisprudência firmada por cada um dos Acórdãos do STJ nº 7/2005 e nº 1/2015 resulta que os requisitos mínimos de admissibilidade de um RAI apresentado por assistente têm de incluir impreterivelmente, ao nível da matéria de facto, os factos integradores de todos os elementos constitutivos, objectivos e subjectivos, do tipo de crime ou dos tipos de crime, pelos quais o requerente entenda que o arguido deve ser pronunciado.
De acordo com o decidido no segundo dos identificados Arestos, a falta de alegação dos factos integradores da tipicidade objectiva ou subjectiva do crime ou crimes imputados não é suprível por via do procedimento previsto no art. 358º do CPP, pois tal equivaleria a transformar uma conduta não punível numa conduta punível, o que, segundo foi então ajuizado pelo nosso Mais Alto Tribunal, não é compatível com o princípio da estrutura acusatória do processo penal, que tem assento constitucional (art. 32º nº 5 da CRP).
Diferentemente, o formalismo do art. 358º do CPP já não seria de rejeitar, caso tivesse por objecto factos relevantes para configuração da responsabilidade criminal do arguido, mas não para o preenchimento da tipicidade do crime acusado, como sejam as circunstâncias de modo, tempo e lugar ou o concreto grau de participação do arguido, a menos que tenha por efeito a agravação qualificativa do crime.
O RAI apresentado pela assistente, sobre o qual o despacho recorrido recaiu, é do seguinte teor, excluindo a parte introdutória e o segmento final com a indicação de meios de prova:
Dos Factos:
«1º O assistente é médico a exercer funções no serviço de cardiologia no Hospital de Faro.
2° O assistente desempenha ainda funções de docente universitário na Universidade do Algarve, Campus das Gambelas, no Curso de Mestrado Integrado de Medicina (M.I.N.)
3° No dia 16 de junho de 2016 o assistente foi ministrar uma aula ao Campus das Gambela, aos alunos de M.I.N., agendada para as 9h.
4° Deu tolerância de 10 minutos, tal como resulta dos procedimentos da instituição.
5° Por volta das 9h10m, e após o decurso dos 10 minutos, o assistente fechou as portas informando quem estava na sala de aula que após o decurso da tolerância, não permitia a entrada de mais ninguém.
6° Entretanto algumas pessoas entraram na sala de aula e foram convidadas a sair pelo assistente tendo sido informadas que a hora marcada já tinha sido ultrapassada e devido ao atraso não poderiam assistir à aula.
7° As pessoas acataram e ausentaram-se da sala sem qualquer distúrbio.
8° O arguido perante a posição tomada pelo assistente levantou-se abruptamente da sua cadeira, onde se encontrava sentado, e dirigiu-se a uma das portas e desferiu um pontapé na mesma.
9° Ao mesmo tempo e em ato contínuo o arguido num tom de voz alterado e evidenciando descontrolo questionava a autoridade do assistente.
10° O assistente esclareceu ser ele a autoridade dentro da sala de aula e que fazia parte da direção do curso.
11 ° Enquanto trocavam estas palavras, o assistente de forma calma dirigiu-se à porta onde se encontrava o arguido exaltado, com o intuito de parar este comportamento inadequado e
11 ° Sem que nada fizesse prever o arguido desferiu com a sua cabeça uma cabeçada na direção do nariz do assistente.
12° A cabeçada atingiu a face do assistente na zona do nariz.
13° O assistente conseguiu atenuar a intensidade da cabeçada só porque ao tentar desviar-se da agressão tornou o impacto menos agressivo para si.
14° A agressão só cessou, tal como resulta, do auto de inquirição da testemunha FF, porque "alguns alunos tentaram impedir mais agressões, no entanto quando estavam a chegar junto de ambos o suspeito abandonou o local."
15° A conduta das demais pessoas na sala de aula dissuadiu o arguido na prossecução de mais algum ato lesivo da integridade física do assistente.
16° Após a agressão o arguido ausentou-se da sala.
17° Nos dias seguintes à agressão o assistente teve dores e tomou analgésicos e colocou gelo para o inchaço.
18° No dia seguinte à agressão, o assistente teve conhecimento que o arguido teceu comentários na rede social Facebook e que os enviou para os colegas de curso sobre a agressão e proferiu expressões como "Temos que nos impor e mostrar quem manda e colocar ordem, nem que seja à força!"
19° Das publicações eletrónicas que o arguido enviou para os colegas de curso, resulta que o mesmo não revelou qualquer censura no seu comportamento antes, pelo contrário, o seu comportamento foi o de estimular o recurso à força.
20° O arguido tenta desculpar o seu comportamento com o facto de o assistente não se ter identificado e, também, por não se encontrar bem de saúde.
21 ° Após a agressão de que o assistente foi vítima, o assistente foi informado pela direção do curso que o arguido era uma pessoa conflituosa e já tinha antecedentes da mesma natureza na Universidade com outro docente.
22° No dia 16 de junho de 2016 o arguido enviou um email com um suposto pedido de desculpas para o assistente, onde tenta desculpar o seu comportamento, contudo o relevante e importante no conteúdo deste email é que acaba por confessar que "Não que isso justifique algo." - junta-se email.
23° Esta expressão da autoria do arguido é denotadora da conscíêncía da ilicitude do seu comportamento e do excesso da sua atitude e que lesou a integridade física do assistente, ao contrário do que se conclui no arquivamento, que pugna pela não verificação do elemento subjetivo do tipo, erradamente.
24° Ora resulta ainda da prova que integra o Inquérito que até pelo menos ao dia 21 de junho de 2016, o assistente ainda se encontrava medicado com analgésicos, como resulta das queixas apresentadas aquando da deslocação para realização da perícia médico-legal, documento junto nos autos, denotando a existência de lesão corporal por parte do assistente, ao contrário do que se conclui no presente Inquérito.
25° Por outro lado, resulta do Inquérito que as declarações prestadas pelo arguido em sede de interrogatório, nomeadamente, nas frases e expressões que pretendeu colocar na boca do assistente, tais como "E tu ou está calado ou também vais lá para fora!", o tratamento por "tu" e ainda "Aqui não acabas o curso.", são falsas, nenhuma testemunha que presenciou aos factos descreve tal postura e conduta por parte do assistente.
Do Direito:
Resulta do despacho de arquivamento que "No decurso do inquérito, comprovou-se tal palmada na cabeça defronte do filho de ambos, a qual não feriu corporalmente o queixoso.", não integra o tipo legal previsto e punido no Art. 143° do C.P., bem como, resulta do despacho de arquivamento que (•••r a agressão foi de parca monta e totalmente desprovida de gravidade, uma vez que não deixou mazela no queixoso, nem este careceu de qualquer tipo de tratamento. "
Ainda resulta do despacho de arquivamento que ( .. .)" Subjetivamente, é necessário que o agente aja com vontade e consciência de que, com a sua conduta, ofende corporalmente a vítima."
Concluindo, que "Pelo exposto, podemos apenas concluir pela existência de uma insignificante agressão corporal que não prejudicou sequer o bem estar físico do queixoso, não preenchendo assim o tipo legal do ilícito em causa. "
Ora, o assistente discorda dos fundamentos apresentados que concluem pelo arquivamento dos presentes autos, e pugna pela acusação pública do arguido porque indicia a prova dos autos que:
o arguido cabeceou o assistente, e com tal ato o arguido causou dor e desconforto na saúde do assistente, encontrando-se preenchido o tipo legal objetivo, previsto no Art. 413° nº 1 do C.P.
O arguido com a sua conduta agiu de forma consciente e deliberada bem sabendo que o seu comportamento é proibido por lei e ao cabecear o assistente pretendeu ofender a integridade física do mesmo, tanto assim é que no email dirigido ao assistente considera a sua conduta injustificada.
Aliás com o conhecimento científico do arguido, que frequenta o curso de medicina, não pode o mesmo ignorar o que é do conhecimento quotidiano, que uma cabeçada quer seja na zona frontal ou nasalou entre os olhos pode causar lesão grave.
Mais, resulta dos autos que o arguido é uma pessoa instruída e letrada pelo que bem saberá que a integridade física é um bem jurídico acautelado constitucionalmente e que é proibido e errado dar uma cabeçada a outra pessoa, uma bofetada, bem como, um pontapé, e nesta esteira e indo beber um pouco ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ de 18.12.1991 (ac DR 33/92, Ia serie), ( .. .)"há que recordar da República reconhece, sem quaisquer limitações ou graduações, o direito à integridade física (artigo 24.°, n. o 1) e considera-o inviolável, não fazendo sentido que o legislador penal, ao incriminar e fazer punir os actos violadores de tal direito, com vista a assegurar a sua defesa o fizesse por forma limitada e discriminadora. Por outro lado, a lei contrapõe ou distingue entre ofensa no corpo e ofensa na saúde, pelo que se tem de aceitar, numa visão ético-social do conceito de ofensa no corpo, que esta se pode verificar independentemente da produção de qualquer lesão, dor ou incapacidade para o trabalho.
A conduta do arguido integra o tipo legal previsto no Art. 143º do C.P., ofensa à integridade física simples, quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até trés anos ou com pena de multa, ora o arguido ao dar uma cabeçada ao assistente e agora parafraseando ainda o supra citado acórdão e se ( ... )" Uma bofetada é uma agressão corpórea produzida com a mão. Como lapidarmente diz o Ministério Público: Uma bofetada significa uma pancada dada noutrem, com a mão aberta, normalmente na cara, distinguindo-se do soco, dado com a mão fechada (...), então uma cabeçada é uma agressão corpórea dada com a cabeça.
Esclarece ainda o mesmo diploma, que ( ..)"A questão da dor, sua existência e intensidade, como a questão das lesões ou da incapacidade para o trabalho, não são questões de tipicidade( ... )"
Assim, e face aos factos expostos, a cabeçada que o arguido desferiu no assistente foi dada com a intenção de agredir, atento às circunstâncias descritas e testemunhadas, pelo que encontra-se preenchido o tipo legal objetivo e subjetivo.
Nestes termos e nos demais de direito e pelo exposto deverá ser proferido despacho de pronúncia contra o arguido e seguir o processo os demais termos de Direito».
O crime de ofensa à integridade física simples, na modalidade cujo preenchimento a assistente imputa ao arguido, é tipificado pelo nº 1 do art. 143º do CP:
Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
Na sua vertente subjectiva, o crime tipificado pela norma transcrita é punível a título de dolo, estando as diferentes modalidades deste previstas no art. 14º do CP:
1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.
2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.
3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.
A conduta do arguido narrada nos pontos 11º e 12º da primeira parte do RAI é adequada a preencher a tipicidade objectiva do crime pelo qual o assistente pretende que ele seja pronunciado.
O crime em referência é susceptível de ser cometido em qualquer das modalidades do dolo, previstas no art. 14º do CP.
É sabido que o dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo.
Assim, para as distintas modalidades do dolo, o nexo de imputação subjectiva do crime de ofensa à integridade física teria de concretizar-se nas seguintes hipóteses factuais, referenciadas ao desferimento pelo arguido de cabeçada no nariz do assistente:
a) O arguido sabia que a sua conduta era idónea a lesar corporalmente o assistente e quis causar esse resultado (dolo directo);
b) O arguido sabia que a sua conduta era idónea a lesar corporalmente o assistente e não obstante causou esse resultado (dolo necessário);
c) O arguido representou-se a possibilidade de a sua conduta lesar corporalmente o assistente, conformando-se com essa possibilidade (dolo eventual).
Ora, confrontada descrição factual dos pontos 1º a 25º do RAI do assistente, sob a epígrafe «Dos Factos», impõe-se verificar que a mesma não contém qualquer formulação idónea a preencher, em qualquer das variantes possíveis, a tipicidade subjectiva do crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo art. 143º do CP.
Na segunda parte do RAI, que se desenvolve sob a epígrafe «Do Direito», além de considerações propriamente jurídicas e outras referências de vária ordem, o assistente fez incluir a menção de alguma factualidade subjectiva reportada à conduta objectiva típica descrita na primeira parte da peça processual em análise, mormente, que o arguido agiu de forma consciente e deliberada, sabia que o seu comportamento era proibido por lei e pretendeu ofender a integridade física do assistente.
Nesta parte, o teor do RAI do assistente é claramente revelador do propósito da parte dele em incluir na matéria de direito a evocada factualidade subjectiva, incorrendo numa confusão, que frequentemente é cometida, entre o que são considerações jurídicas e aquilo que é matéria de facto, ainda que do foro interior dos agentes.
A rigorosa separação entre matéria de facto e matéria e direito, na acusação ou na peça processual que preencha o seu papel funcional, é indispensável ao adequado exercício pelo arguido dos seus direitos de defesa, porquanto os factos têm de ser objecto de prova, mesmo que sobre o arguido não impenda qualquer ónus probatório, e o Tribunal é livre na aplicação e interpretação das normas jurídicas, graças ao princípio «jus novit curia».
A parte do RAI em apreço, que surge minimamente vocacionada para o desempenho das funções de um libelo acusatório resume-se aos pontos 1º a 25º, devendo ter-se por irrelevantes as considerações posteriores.
Temos entendido que é exigível às acusações particulares e aos RAI apresentados por assistentes o mesmo grau de apuro técnico que é de esperar de uma acusação formulada pelo MP, já que é obrigatória a representação daqueles sujeitos processuais por advogado, por força do disposto no nº 1 do art. 70º do CP, estando aberto o benefício do patrocínio judiciário a quem não tiver capacidade económica a fazer frente às despesas inerentes à constituição de mandatário.
Nesta conformidade, o RAI da assistente não reúne os requisitos mínimos, em termos de alegações factuais, para servir de base a uma instrução, pelos factos relativamente aos quais o MP determinou o arquivamento do inquérito.
Consequentemente, a Exª Juiz «a quo» decidiu correctamente ao indeferir tal pedido de abertura de instrução, tendo o recurso de improceder.
III - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e manter o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça.
Notifique.