I.A justificação notarial é, no dizer do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 40 603, de 18 de Maio de 1956, “(…) um processo anormal de titulação (…)”, sendo que a sua génese radica no princípio do trato sucessivo, possibilitando registos que, pela falta de título, não seriam possíveis, sem, contudo, facultar a aquisição de quaisquer direitos sujeitos a registo e a sua natureza jurídica é enquadrável na categoria doutrinal dos “quase negócios jurídicos”.
II. Esta forma de titulação presta-se ao uso fraudulento, já que se baseia em meras declarações dos interessados, corroboradas por três declarantes (sem que as mesmas sejam confrontadas com outra versão e sem que o notário averigue a sua razão de ciência), podendo, em suma, ser definida apenas “(...) um mero expediente técnico para registo, cuja autenticidade tem uma frágil base de apoio (...). Daí que a lei faculte a qualquer interessado o recurso à impugnação, mormente quando são invocados os pressupostos da usucapião.
III. A referida acção não está sujeita a prazo e é tida pacificamente como uma acção de simples apreciação negativa (visa-se a eliminação dos efeitos dos factos aquisitivos declarados na escritura de justificação notarial – cfr. n.º 1 e al. a) do n.º 3 do art.º 10.º do CPC), pelo que cabe ao R. justificante a prova dos factos em que baseia a invocação do direito real objecto da escritura de justificação (n.º 1 do art.º 343.º do Cod. Civil).
IV. No Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2008 fixou-se jurisprudência no sentido de que o R. não pode beneficiar da presunção do registo lavrado com base na escritura de justificação.
IV. A usucapião é, por certo, o efeito mais relevante da posse formal (art.º 1251.º do Cod. Civil), já que faculta ao possuidor a aquisição do direito real de gozo correspondente à própria posse, sancionando, desse modo, a inércia do proprietário.
V. A posse compreende dois elementos essenciais, quais sejam a actuação de facto sobre a coisa possuída – elemento comummente designado como “corpus” – e a vontade de possuir aquela coisa – elemento comummente designado como “animus” - como se fosse titular do direito real de gozo a cujo exercício corresponde essa posse (posse formal) ou como efectivo titular desse direito (posse causal). O “corpus” é um elemento primacial da posse e pressupõe a apreensão material da coisa, sendo apenas dois os casos em que se verifica a dispensa dessa apreensão (cfr. art.ºs 1255.º e 1264.º, ambos do Cod. Civil). O “animus” reconduz-se no elemento interior presente na conduta do possuidor e traduz-se na vontade de criar uma aparência de titularidade do direito a cujo exercício corresponde o poder de facto exercido sobre a coisa.
VI. Para efeitos de usucapião releva a posse pacífica e pública (cfr. art.ºs 1258.º, 1297.º e n.º 1 e al. a) do art.º 1293.º, todos do Cod. Civil), já que a posse violenta ou oculta apenas assume relevância quando se ponha termo à violência ou se dê publicidade à posse (o que evidencia o carácter sancionatório da inércia do instituto).
VII. A posse pacífica define-se como aquela que foi adquirida sem coacção física ou moral (cfr. art.º 1261.º do Cod. Civil), ao passo que a posse pública é definida pela lei como aquela que é exercida em termos tais que é passível de ser conhecida por todos quantos sejam, directa ou indirectamente, por ela afectados ou se ache registada (cfr. art.º 1262.º).
VIII. Por sua vez, o lapso de tempo durante o qual se deve manter o exercício da posse é definido pela lei em função de diversos factores, como seja a natureza do bem objecto da posse e a existência de título para a posse.
IX. Nos termos do n.º 1 do art.º 1260.º, a posse diz-se de boa-fé se o adquirente ignorava desculpavelmente que lesava direito alheio ao adquiri-la[18], presumindo-se de má fé quando não seja titulada.
X. Embora a doação esteja viciada por vício de forma – à data da doação, estava já em vigor o actual Código Civil, o qual prevê que a doação de bens imóveis seja feita por escritura pública (n.º 1 do art.º 947.º do Cod. Civil) – e, seja como tal, inapto para produzir o efeito translativo típico da doação (al. a) do art.º 954.º do mesmo diploma), o certo é que dele se pode extrair que a essa doação verbal esteve subjacente a intenção dos doadores de transferir a propriedade dessa faixa de terreno para os doadores.
XI. A invalidade formal, embora conduza à qualificação da posse como não titulada, não tem a virtualidade de descaracterizar o propósito claro dos doadores. Neste contexto, torna-se patente que os recorridos não podem ser havidos como meros detentores.
XII. É que o n.º 2 do art.º 1252.º do Cod. Civil, precavendo as dificuldades da prova do elemento psicológico em que se consubstancia o animus possidendi estatui que, em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, pessoalmente ou por intermédio de outrem, presunção essa, todavia, sempre susceptível de ser ilidida mediante prova em contrário (art.º 350.º, n.º 2, do Cod. Civil).
XIII. Em qualquer caso, não seria de declarar a nulidade da escritura de justificação notarial.
XIV. Entre as causas da nulidade de uma escritura não figura a falsidade das declarações (cfr. art.ºs 70.º e 71.º do Código do Notariado), pelo que, da eventual procedência do pedido principal do A., apenas se poderia extrair a consequência da ineficácia da referida escritura.
2. Do mérito do recurso
Em suma e em primeira linha pretendem os recorrentes impugnar a escritura de justificação notarial transcrita no ponto n.º 19 do elenco dos factos provados.
Enquadremos juridicamente o pleito.
Dispõe o n.º 1 do art.º 116.º do Código do Registo Predial:
“O adquirente que não disponha de documento para prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo.”
Preceitua, por sua vez, o art.º 89.º do Código do Notariado:
“1 - A justificação para efeitos do n.º 1 do artigo 116.º do Código do Registo Predial consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais.
2 - Quando for alegada a usucapião, baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.”.
Nos termos do n.º 1 do artigo 96.º do mesmo diploma as declarações do justificante deverão ser confirmadas por três pessoas, sendo passível de impugnação (art.º 101.º daquele diploma).
A justificação notarial é, no dizer do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 40 603, de 18 de Maio de 1956, “(…) um processo anormal de titulação (…)”, sendo que a sua génese radica no princípio do trato sucessivo, possibilitando registos que, pela falta de título, não seriam possíveis[1], sem, contudo, facultar a aquisição de quaisquer direitos sujeitos a registo[2].
A sua natureza jurídica é enquadrável na categoria doutrinal dos “quase negócios jurídicos”[3].
Contudo, esta forma de titulação presta-se ao uso fraudulento, já que se baseia em meras declarações dos interessados, corroboradas por três declarantes (sem que as mesmas sejam confrontadas com outra versão e sem que o notário averigue a sua razão de ciência), podendo, em suma, ser definida apenas “(...) um mero expediente técnico para registo, cuja autenticidade tem uma frágil base de apoio (...)[4].
Daí que a lei faculte a qualquer interessado o recurso à impugnação, mormente quando são invocados os pressupostos da usucapião.
A referida acção não está sujeita a prazo[5] e é tida pacificamente como uma acção de simples apreciação[6] negativa (visa-se a eliminação dos efeitos dos factos aquisitivos declarados na escritura de justificação notarial – cfr. n.º 1 e al. a) do n.º 3 do art.º 10.º do CPC), pelo que cabe ao R. justificante a prova dos factos em que baseia a invocação do direito real objecto da escritura de justificação (n.º 1 do art.º 343.º do Cod. Civil)[7].
No fundo, trata-se de uma provocação ao justificante para que ele demonstre a veracidade do que declarou na escritura de justificação, já que seria praticamente impossível que o A. lograsse demonstrar a inveracidade do aí declarado[8] e porque, como demonstra a experiência, quem se arroga um direito mune-se previamente dos respectivos meios de prova[9].
No Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2008 fixou-se jurisprudência no sentido de que o R. não pode beneficiar da presunção do registo lavrado com base na escritura de justificação.
Para tanto e em suma, aí se ponderou que o registo é lavrado com base em factos que foram objecto de impugnação (i.e. alega-se a sua inveracidade), pelo que tal “(…) não pode deixar de abalar a credibilidade do registo e a sua eficácia prevista no artigo 7.º do Código do Registo Predial, que é precisamente a presunção de que existe um direito cuja existência é posta em causa através da presente acção. Daí que, impugnada a escritura com base na qual foi lavrado o registo, por impugnado também se tem de haver esse mesmo registo, não podendo valer contra o impugnante a referida presunção, que a lei concede no pressuposto da existência do direito registado. (…)”[10].
Pela nossa parte e pese embora a pertinência dos motivos invocados nos votos de vencido, cremos que a solução que obteve vencimento é aquela que melhor se compagina com o uso fraudulento a que se presta aquele meio de titulação de direitos, pelo que a adoptamos[11].
Posto isto, cumpre fazer breve incursão pelo instituto da usucapião.
Como se sabe, a usucapião é, por certo, o efeito mais relevante da posse formal (art.º 1251.º do Cod. Civil), já que faculta ao possuidor a aquisição do direito real de gozo correspondente à própria posse, sancionando, desse modo, a inércia do proprietário.
As origens históricas do instituto da usucapião remontam ao direito romano que, por sua vez, buscou na “praescriptio longi temporis” helénica alguns elementos[12].
O art.º 1287.º do Cod. Civil define a usucapião como “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação (...)”, o que, aliás, representa uma emulação da definição clássica do jurisconsulto romano Modestino[13].
Conforme decorre da definição legal, a usucapião assenta em 2 pressupostos fundamentais, a saber:
- a posse (art.º 1290.º);
- mantida durante certo lapso de tempo.
Debrucemos a nossa atenção sobre o primeiro destes pressupostos.
Tal situação compreende dois elementos essenciais[14], quais sejam a actuação de facto sobre a coisa possuída – elemento comummente designado como “corpus” – e a vontade de possuir aquela coisa – elemento comummente designado como “animus” - como se fosse titular do direito real de gozo a cujo exercício corresponde essa posse (posse formal) ou como efectivo titular desse direito (posse causal).
O “corpus” é um elemento primacial da posse e pressupõe a apreensão material da coisa, sendo apenas dois os casos em que se verifica a dispensa dessa apreensão (cfr. art.ºs 1255.º e 1264.º, ambos do Cod. Civil).
O “animus” reconduz-se no elemento interior presente na conduta do possuidor e traduz-se na vontade de criar uma aparência de titularidade do direito a cujo exercício corresponde o poder de facto exercido sobre a coisa.
Para efeitos de usucapião releva a posse pacífica e pública (cfr. art.ºs 1258.º, 1297.º e n.º 1 e al. a) do art.º 1293.º, todos do Cod. Civil), já que a posse violenta ou oculta apenas assume relevância quando se ponha termo à violência ou se dê publicidade à posse (o que evidencia o carácter sancionatório da inércia do instituto).
A posse pacífica define-se como aquela que foi adquirida sem coacção física ou moral (cfr. art.º 1261.º do Cod. Civil), ao passo que a posse pública é definida pela lei como aquela que é exercida em termos tais que é passível de ser conhecida por todos quantos sejam, directa ou indirectamente, por ela afectados ou se ache registada (cfr. art.º 1262.º).
Por sua vez, o lapso de tempo durante o qual se deve manter o exercício da posse é definido pela lei em função de diversos factores, como seja a natureza do bem objecto da posse e a existência de título para a posse.
A este respeito e tendo em conta o circunstancialismo dos autos, cumpre referir que a posse titulada é aquela que se funda num modo legítimo de aquisição, independentemente da legitimidade do transmitente ou da validade substancial do negócio (n.º 1 do art.º 1258.º do Cod. Civil), ficando salvaguardada a validade formal do negócio[15].
Importa ainda considerar a definição de posse de má-fé.
Nos termos do n.º 1 do art.º 1260.º, a posse diz-se de boa-fé se o adquirente ignorava desculpavelmente que lesava direito alheio ao adquiri-la[16], presumindo-se de má fé quando não seja titulada.
Importa agora retornar ao caso dos autos.
Objectam primeiramente os recorrentes que FF e EE não poderiam ter dado à recorrida, sua filha, uma parcela de terreno em causa, já que apenas adquiriram a propriedade do espaço em que ela se insere em 11 de Março de 2003.
Os factos provados, porém, não conferem subsistência a essa alegação.
Vejamos.
Como sabemos, tal parcela de terreno integra-se no prédio rústico descrito nos pontos n.º 3 e 4 do elenco factual (ponto n.º 8 do elenco factual).
A metade indivisa desse prédio integra a herança deixada por FF ao passo que a herança de EE compreendia já a totalidade desse terreno (cfr. os mesmos pontos n.º 3 e 4 do elenco factual), o que é, porventura, explicável pelo facto de esta ter sucedido à sua irmã na titularidade da restante metade indivisa, como se aventa na réplica.
Demonstrou-se que, enquanto foram vivos, FF e EE procederam, por si próprios ou recorrendo a terceiros, ao amanho e cultivo do prédio em questão, dele retirando os respectivos frutos (ponto n.º 6 do elenco factual), não tendo, concomitantemente, sido alegada nem demonstrada a existência de quaisquer outras relações jurídicas que habilitassem aqueles a fazê-lo.
Para mais, não se alegou (em bom rigor, a alegação vertida na réplica é manifestamente inócua) nem demonstrou que a parcela em causa integrasse a metade indivisa desse mesmo prédio que pertenceu a Maria …, sendo certo que jamais se alegou ou demonstrou que esta se opôs à doação em questão.
Assim, a partir da valoração conjugada destes de factos, é viável concluir que, efectivamente, FF e EE eram os únicos proprietários da metade indivisa do prédio em causa de onde foi desanexada a parcela.
Inexiste, pois, fundamento fáctico para concitar a previsão do n.º 1 do art.º 956.º do Cod. Civil.
Ingressando agora na questão que mais directamente releva para a apreciação do mérito do recurso, há a considerar o seguinte.
Colocada em crise a factualidade narrada na escritura de justificação notarial como fundamento da aquisição por usucapião, caberia, pois, aos recorridos, justificantes, a demonstração da veracidade da mesma, sem que se pudessem socorrer da presunção de registo de que beneficiam (cfr. ponto n.º 20 do elenco dos factos provados).
Vejamos se o lograram.
Perscrutando a factualidade provada, temos que se apurou que, na sequência da falada doação para a construção de uma habitação (ponto n.º 8 do mesmo elenco) os réus apresentaram na Câmara Municipal de Ourém um projecto de obras para o efeito e, tendo obtido a licença em 15 de Janeiro de 1971, aqueles iniciaram a construção da casa de habitação, que ficou concluída, segundo declaração do réu marido feita perante a Direcção-Geral de Contribuições e Impostos e junta a fls. 76, em 26 de Julho de 1975 (pontos n.º 8 a 10 do elenco factual).
Tal casa foi inscrita junto da administração fiscal no mês seguinte (ponto n.º 12 do elenco factual), tendo os RR. procedido ao pagamento do imposto municipal sobre ela incidente (ponto n.º 22 do elenco factual).
Após a conclusão da casa de habitação os réus, nas suas deslocações a Portugal, que ocorriam e ocorrem ainda essencialmente nos períodos de férias de Natal, Páscoa e Verão, passaram a habitar a mesma, aí comendo, dormindo e recebendo familiares e amigos (ponto n.º 21 daquele elenco)
Mais se apurou que os réus pavimentaram o acesso à sua casa de habitação, construíram muros à sua volta e ocuparam uma parcela de terreno contíguo à casa de habitação, aí colocando algumas plantas (ponto n.º 15 do elenco factual).
Demonstrou-se ainda que desde a construção e ampliação da casa de habitação os réus vêm ocupando uma parcela de terreno que actualmente tem a área de 460 m2, que corresponde ao prédio cuja posse os réus justificaram e que faz parte do prédio que pertenceu aos pais da recorrida e da recorrente, tendo assim actuado de forma contínua, sem oposição de ninguém e à vista de toda a gente pelo menos até à realização da escritura de justificação (pontos n.º 23 e 24 do elenco factual).
Valorando a factualidade provada à luz daquelas considerações, cumpre concluir que os recorridos demonstraram que, desde a compleição da edificação da causa, exerceram o “corpus” sobre o terreno em discussão nestes autos, actuando como se fossem proprietários do mesmo e da casa que nele edificaram.
Importa ainda notar que existe uma grande margem de coincidência entre o que ficou provado e o que foi declarado na mencionada escritura de justificação notarial.
Por outro lado, cabe atentar que se provou que, efectivamente, FF e EE doaram aos recorridos a dita parcela de terreno. Equivale isto por dizer que não se limitaram a anuir na construção em terreno seu, tendo antes cedido aquela parcela aos recorridos para esse efeito.
Embora tal negócio jurídico esteja viciado por vício de forma – à data da doação, estava já em vigor o actual Código Civil, o qual prevê que a doação de bens imóveis seja feita por escritura pública (n.º 1 do art.º 947.º do Cod. Civil) – e, seja como tal, inapto para produzir o efeito translativo típico da doação (al. a) do art.º 954.º do mesmo diploma), o certo é que dele se pode extrair que a essa doação verbal esteve subjacente a intenção dos doadores de transferir a propriedade dessa faixa de terreno para os doadores.
A invalidade formal, embora conduza à qualificação da posse como não titulada, não tem a virtualidade de descaracterizar o propósito claro dos doadores.
Neste contexto, torna-se patente que os recorridos não podem ser havidos como meros detentores.
É que o n.º 2 do art.º 1252.º do Cod. Civil, precavendo as dificuldades da prova do elemento psicológico em que se consubstancia o animus possidendi estatui que, em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, pessoalmente ou por intermédio de outrem, presunção essa, todavia, sempre susceptível de ser ilidida mediante prova em contrário (art.º 350.º, n.º 2, do Cod. Civil).
Ora, tendo os recorridos alegado que possuíam em nome próprio e com a intenção de exercer o direito correspondente àqueles factos e não tendo os recorrentes, como lhes competia em virtude da aludida presunção, demonstrado que, apesar de deterem o bem imóvel em causa, aqueles eram meros detentores, há que concluir pela improcedência da invocação em apreço. É de notar, fundamentalmente, que a qualificação dependia da indemonstração de que FF e EE não haviam doado a dita parcela de terreno mas antes consentido na edificação da casa e no uso posterior dado a essa faixa, o que, como viemos de expor, não foi o caso.
Estão assim traçados os contornos que basearão a improcedência do recurso.
Importa ainda precisar que, em qualquer caso, não seria de declarar a nulidade da escritura de justificação notarial.
É que, entre as causas da nulidade de uma escritura não figura a falsidade das declarações (cfr. art.ºs 70.º e 71.º do Código do Notariado), pelo que, da eventual procedência do pedido principal do A., apenas se poderia extrair a consequência da ineficácia da referida escritura[17].
Resta ainda afirmar que não se divisa qualquer actuação ilícita dos recorridos, sendo assim óbvio que não se mostram reunidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (art.º 483.º do Cod. Civil).
Consequentemente, é de concluir pela improcedência da apelação e pela subsistência da sentença recorrida.
As custas serão suportadas, porque vencidas, pelos apelantes (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Sumário
I.A justificação notarial é, no dizer do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 40 603, de 18 de Maio de 1956, “(…) um processo anormal de titulação (…)”, sendo que a sua génese radica no princípio do trato sucessivo, possibilitando registos que, pela falta de título, não seriam possíveis, sem, contudo, facultar a aquisição de quaisquer direitos sujeitos a registo e a sua natureza jurídica é enquadrável na categoria doutrinal dos “quase negócios jurídicos”.
II. Esta forma de titulação presta-se ao uso fraudulento, já que se baseia em meras declarações dos interessados, corroboradas por três declarantes (sem que as mesmas sejam confrontadas com outra versão e sem que o notário averigue a sua razão de ciência), podendo, em suma, ser definida apenas “(...) um mero expediente técnico para registo, cuja autenticidade tem uma frágil base de apoio (...). Daí que a lei faculte a qualquer interessado o recurso à impugnação, mormente quando são invocados os pressupostos da usucapião.
III. A referida acção não está sujeita a prazo e é tida pacificamente como uma acção de simples apreciação negativa (visa-se a eliminação dos efeitos dos factos aquisitivos declarados na escritura de justificação notarial – cfr. n.º 1 e al. a) do n.º 3 do art.º 10.º do CPC), pelo que cabe ao R. justificante a prova dos factos em que baseia a invocação do direito real objecto da escritura de justificação (n.º 1 do art.º 343.º do Cod. Civil).
IV. No Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2008 fixou-se jurisprudência no sentido de que o R. não pode beneficiar da presunção do registo lavrado com base na escritura de justificação.
IV. A usucapião é, por certo, o efeito mais relevante da posse formal (art.º 1251.º do Cod. Civil), já que faculta ao possuidor a aquisição do direito real de gozo correspondente à própria posse, sancionando, desse modo, a inércia do proprietário.
V. A posse compreende dois elementos essenciais, quais sejam a actuação de facto sobre a coisa possuída – elemento comummente designado como “corpus” – e a vontade de possuir aquela coisa – elemento comummente designado como “animus” - como se fosse titular do direito real de gozo a cujo exercício corresponde essa posse (posse formal) ou como efectivo titular desse direito (posse causal). O “corpus” é um elemento primacial da posse e pressupõe a apreensão material da coisa, sendo apenas dois os casos em que se verifica a dispensa dessa apreensão (cfr. art.ºs 1255.º e 1264.º, ambos do Cod. Civil). O “animus” reconduz-se no elemento interior presente na conduta do possuidor e traduz-se na vontade de criar uma aparência de titularidade do direito a cujo exercício corresponde o poder de facto exercido sobre a coisa.
VI. Para efeitos de usucapião releva a posse pacífica e pública (cfr. art.ºs 1258.º, 1297.º e n.º 1 e al. a) do art.º 1293.º, todos do Cod. Civil), já que a posse violenta ou oculta apenas assume relevância quando se ponha termo à violência ou se dê publicidade à posse (o que evidencia o carácter sancionatório da inércia do instituto).
VII. A posse pacífica define-se como aquela que foi adquirida sem coacção física ou moral (cfr. art.º 1261.º do Cod. Civil), ao passo que a posse pública é definida pela lei como aquela que é exercida em termos tais que é passível de ser conhecida por todos quantos sejam, directa ou indirectamente, por ela afectados ou se ache registada (cfr. art.º 1262.º).
VIII. Por sua vez, o lapso de tempo durante o qual se deve manter o exercício da posse é definido pela lei em função de diversos factores, como seja a natureza do bem objecto da posse e a existência de título para a posse.
IX. Nos termos do n.º 1 do art.º 1260.º, a posse diz-se de boa-fé se o adquirente ignorava desculpavelmente que lesava direito alheio ao adquiri-la[18], presumindo-se de má fé quando não seja titulada.
X. Embora a doação esteja viciada por vício de forma – à data da doação, estava já em vigor o actual Código Civil, o qual prevê que a doação de bens imóveis seja feita por escritura pública (n.º 1 do art.º 947.º do Cod. Civil) – e, seja como tal, inapto para produzir o efeito translativo típico da doação (al. a) do art.º 954.º do mesmo diploma), o certo é que dele se pode extrair que a essa doação verbal esteve subjacente a intenção dos doadores de transferir a propriedade dessa faixa de terreno para os doadores.
XI. A invalidade formal, embora conduza à qualificação da posse como não titulada, não tem a virtualidade de descaracterizar o propósito claro dos doadores. Neste contexto, torna-se patente que os recorridos não podem ser havidos como meros detentores.
XII. É que o n.º 2 do art.º 1252.º do Cod. Civil, precavendo as dificuldades da prova do elemento psicológico em que se consubstancia o animus possidendi estatui que, em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, pessoalmente ou por intermédio de outrem, presunção essa, todavia, sempre susceptível de ser ilidida mediante prova em contrário (art.º 350.º, n.º 2, do Cod. Civil).
XIII. Em qualquer caso, não seria de declarar a nulidade da escritura de justificação notarial.
XIV. Entre as causas da nulidade de uma escritura não figura a falsidade das declarações (cfr. art.ºs 70.º e 71.º do Código do Notariado), pelo que, da eventual procedência do pedido principal do A., apenas se poderia extrair a consequência da ineficácia da referida escritura.
IV. Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação de Évora em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença apelada.
Custas pelos apelantes.
Registe.
Notifique.
*
Após trânsito, comunique ao Cartório Notarial de Ourém e à Conservatória do Registo Predial de Ourém.
Florbela Moreira Lança (Relatora)
Elisabete Valente (1.ª Adjunta)
Ana Margarida Leite (2.ª Adjunta)
_______________________________________________
[1] A este respeito, vide o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2008, in D.R., Série I, de 31 de Março de 2008, pp. 1871 e ss e o Ac. da RP de 06.02.1995, CJ, I, pp. 215. Neste sentido, vide também BORGES DE ARAÚJO apud JOÃO GARRIDO in “Revista de Notariado e Registo Predial”, ano 36, n.º 4, pp. 52. Para uma panorâmica geral sobre a justificação notarial, vide ISABEL PEREIRA MENDES “Justificações Prediais para Registo Predial” in “Regestal”, ano VI, n.ºs 57 a 68, pp. 139 e s. e DIMITILDE GOMES “A escritura de justificação notarial”, in “Revista do Ministério Público”, ano 10.º, n.º 38, pp. 57 e ss.
[2] Neste sentido, vide o Ac. da RC de 22.02.1983, CJ,1983, I, pp. 50 e o Ac. da RL de 29.09. 2005, CJ, 2005, IV, pp. 112.
[3] Neste sentido, vide os Acs. da RC de 14.04.1993 e de 27.04.1999, publicados, respectivamente, na CJ, 1993, II, pp. 34 e na CJ, 1999, III, pp. 6.
[4] Cita-se ISABEL PEREIRA MENDES, op. cit., pp. 146.
[5] Neste sentido, o Ac. do STJ de 15.06.1994, CJ STJ, 1994, II, pp. 140.
[6] Sobre a natureza destas acções, vide TEIXEIRA DE SOUSA “Acções de simples apreciação(objecto; conceito; ónus da prova; legitimidade)” in R.D.E.S., Ano XXV, n.ºs 1-2, pp. 123 a 148.
[7] Neste sentido, vide o Ac. do STJ referido na nota n.º 1, bem como, inter alia, o Ac. do STJ de 03.03.1998, CJ STJ, 1998, I, pp. 114 e ss., o Ac. da RL de 23.11. 1997, CJ, 1997, V, pp. 113 e ss., o Ac. da RP de 17.06.1993, CJ, 1993, III, pp. 231, o Ac. da RC de 23.04.2002, CJ, 2002, II, pp. 33; no sentido de que o preenchimento do ónus da prova se contenta com prova da inveracidade dos factos alegados pelo A. vide TEIXEIRA DE SOUSA, op. cit., pp. 143 a 145, tendo-se por assente que quem demanda deve invocar uma causa de pedir - quanto mais não seja a inexistência do facto ou direito que o R. se arroga, como sustenta FERNANDO LUSO SOARES, “Direito Processual Civil”, Coimbra, pp. 269 -, sob pena de se regressar aos juízos de jactância.
[8] Sobre a inversão do ónus da prova nas acções de simples apreciação negativa,vide ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, “Código Civil Anotado”, I, 4ª ed., pp. 307.
[9] Neste sentido, vide VAZ SERRA, BMJ n.º 110, pp. 132 e ss..
[10] Cita-se, com a devida vénia, o texto do Ac. do STJ citado na nota n.º 1.
[11] No sentido daquela solução, vide os já citados Acs. do STJ de 15.06.1994 e de 03.03.1998 e o Ac. da RC de 23.04.2002, os Acs. da RC de 27.06. 2000 e 17.03.1998, publicados, respectivamente, na CJ 1998, II, pp. 22 e na CJ 2000, III, pp. 35. No sentido oposto, vide. os Acs. da RP de 02.04.1987 e de 16.03.2000, respectivamente publicados na CJ, 1987, II, pp. 227 e no BMJ n.º 495, pp. 363, o Ac. da RL de 15.05.1997, CJ, 1997, III, pp. 85 e o Ac. da RC de 25.11.1997, CJ, 1997, V, pp. 23. Para uma solução intermédia, vide o Ac. da RL de 04.10.2001, proferido no processo n.º 0081048 e acessível em www.dgsi.pt.
[12] Sobre este aspecto, vide PENHA GONÇALVES “Curso de Direitos Reais”, 2.ª ed., Univ. Lusíada, pp. 291.
[13] Citada por PENHA GONÇALVES, loc. cit. e aqui reproduzida: “Adjectio domini per continuationem possessionis temporis lege definiti”.
[14] Mais desenvolvidamente, vide PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA “Código Civil Anotado”, III, 2.ª ed., Reimpressão, Coimbra, pp. 5 e 6.
[15] Sobre este aspecto, vide PENHA GONÇALVES op. cit, pp. 264
[16] Sobre este aspecto, vide PENHA GONÇALVES op. cit, pp. 267 a 269.
[17] Neste sentido, vide o citado Acórdão de Uniformização de Jurisprudência e o Acordão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/2001, de 23 de Janeiro, publicado no Diário da República, 1.ª Série-A, de 9 de Fevereiro de 2001.
[18] Sobre este aspecto, vide PENHA GONÇALVES op. cit, pp. 267 a 269.