ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ÓNUS DA PROVA
POSSE
USUCAPIÃO
FALSIDADE DAS DECLARAÇÕES
Sumário


I.A justificação notarial é, no dizer do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 40 603, de 18 de Maio de 1956, “(…) um processo anormal de titulação (…)”, sendo que a sua génese radica no princípio do trato sucessivo, possibilitando registos que, pela falta de título, não seriam possíveis, sem, contudo, facultar a aquisição de quaisquer direitos sujeitos a registo e a sua natureza jurídica é enquadrável na categoria doutrinal dos “quase negócios jurídicos”.
II. Esta forma de titulação presta-se ao uso fraudulento, já que se baseia em meras declarações dos interessados, corroboradas por três declarantes (sem que as mesmas sejam confrontadas com outra versão e sem que o notário averigue a sua razão de ciência), podendo, em suma, ser definida apenas “(...) um mero expediente técnico para registo, cuja autenticidade tem uma frágil base de apoio (...). Daí que a lei faculte a qualquer interessado o recurso à impugnação, mormente quando são invocados os pressupostos da usucapião.
III. A referida acção não está sujeita a prazo e é tida pacificamente como uma acção de simples apreciação negativa (visa-se a eliminação dos efeitos dos factos aquisitivos declarados na escritura de justificação notarial – cfr. n.º 1 e al. a) do n.º 3 do art.º 10.º do CPC), pelo que cabe ao R. justificante a prova dos factos em que baseia a invocação do direito real objecto da escritura de justificação (n.º 1 do art.º 343.º do Cod. Civil).
IV. No Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2008 fixou-se jurisprudência no sentido de que o R. não pode beneficiar da presunção do registo lavrado com base na escritura de justificação.
IV. A usucapião é, por certo, o efeito mais relevante da posse formal (art.º 1251.º do Cod. Civil), já que faculta ao possuidor a aquisição do direito real de gozo correspondente à própria posse, sancionando, desse modo, a inércia do proprietário.
V. A posse compreende dois elementos essenciais, quais sejam a actuação de facto sobre a coisa possuída – elemento comummente designado como “corpus” – e a vontade de possuir aquela coisa – elemento comummente designado como “animus” - como se fosse titular do direito real de gozo a cujo exercício corresponde essa posse (posse formal) ou como efectivo titular desse direito (posse causal). O “corpus” é um elemento primacial da posse e pressupõe a apreensão material da coisa, sendo apenas dois os casos em que se verifica a dispensa dessa apreensão (cfr. art.ºs 1255.º e 1264.º, ambos do Cod. Civil). O “animus” reconduz-se no elemento interior presente na conduta do possuidor e traduz-se na vontade de criar uma aparência de titularidade do direito a cujo exercício corresponde o poder de facto exercido sobre a coisa.
VI. Para efeitos de usucapião releva a posse pacífica e pública (cfr. art.ºs 1258.º, 1297.º e n.º 1 e al. a) do art.º 1293.º, todos do Cod. Civil), já que a posse violenta ou oculta apenas assume relevância quando se ponha termo à violência ou se dê publicidade à posse (o que evidencia o carácter sancionatório da inércia do instituto).
VII. A posse pacífica define-se como aquela que foi adquirida sem coacção física ou moral (cfr. art.º 1261.º do Cod. Civil), ao passo que a posse pública é definida pela lei como aquela que é exercida em termos tais que é passível de ser conhecida por todos quantos sejam, directa ou indirectamente, por ela afectados ou se ache registada (cfr. art.º 1262.º).
VIII. Por sua vez, o lapso de tempo durante o qual se deve manter o exercício da posse é definido pela lei em função de diversos factores, como seja a natureza do bem objecto da posse e a existência de título para a posse.
IX. Nos termos do n.º 1 do art.º 1260.º, a posse diz-se de boa-fé se o adquirente ignorava desculpavelmente que lesava direito alheio ao adquiri-la[18], presumindo-se de má fé quando não seja titulada.
X. Embora a doação esteja viciada por vício de forma – à data da doação, estava já em vigor o actual Código Civil, o qual prevê que a doação de bens imóveis seja feita por escritura pública (n.º 1 do art.º 947.º do Cod. Civil) – e, seja como tal, inapto para produzir o efeito translativo típico da doação (al. a) do art.º 954.º do mesmo diploma), o certo é que dele se pode extrair que a essa doação verbal esteve subjacente a intenção dos doadores de transferir a propriedade dessa faixa de terreno para os doadores.
XI. A invalidade formal, embora conduza à qualificação da posse como não titulada, não tem a virtualidade de descaracterizar o propósito claro dos doadores. Neste contexto, torna-se patente que os recorridos não podem ser havidos como meros detentores.
XII. É que o n.º 2 do art.º 1252.º do Cod. Civil, precavendo as dificuldades da prova do elemento psicológico em que se consubstancia o animus possidendi estatui que, em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, pessoalmente ou por intermédio de outrem, presunção essa, todavia, sempre susceptível de ser ilidida mediante prova em contrário (art.º 350.º, n.º 2, do Cod. Civil).
XIII. Em qualquer caso, não seria de declarar a nulidade da escritura de justificação notarial.
XIV. Entre as causas da nulidade de uma escritura não figura a falsidade das declarações (cfr. art.ºs 70.º e 71.º do Código do Notariado), pelo que, da eventual procedência do pedido principal do A., apenas se poderia extrair a consequência da ineficácia da referida escritura.

Texto Integral


ACORDAM NA 1.ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório
BB propôs contra CC e marido, DD a presente acção de simples apreciação negativa alegando o seguinte:
- EE, mãe da autora e da ré, faleceu em 9 de Janeiro de 2008 no estado de intestada e sem disposição de última vontade;
- da herança aberta por óbito daquela faz parte um prédio rústico sito em Loureiros, Caxarias, inscrito na matriz sob o artigo … da freguesia de Seiça e inscrito na Conservatória do Registo Predial a favor da autora e demais herdeiros de Júlia da Graça;
- com o consentimento dos pais, EE e FF, falecido antes daquela, os réus procederam à construção naquele prédio de uma casa de habitação;
- em 14 de Abril de 2011 o réu requereu no Serviço de Finanças de Ourém a inscrição como omisso do seguinte prédio: terra de semeadura sito na sede da freguesia de Caxarias, denominado por “Loureiros”, com a área de 460 m2, que confronta do Norte com Nuno …, Sul com herdeiros de EE, Nascente com Manuel … e Poente com Manuel …, ao qual foi atribuído o artigo matricial …/rústico da freguesia de Seiça;
- munidos deste artigo matricial os réu outorgaram, no Cartório Notarial de Ourém, uma escritura de justificação, na qual declararam terem adquirido por usucapião tal prédio rústico, tendo procedido à sua inscrição no registo predial em nome dos mesmos;
- este prédio constitui uma parte do prédio rústico sito em Loureiros, Caxarias, inscrito na matriz sob o artigo …;
- não é verdade que tal prédio tivesse sido verbalmente doado aos réus, tendo apenas existido autorização para construção de uma habitação;
- eram os pais da autora e da ré que amanhavam e cultivavam todo o prédio e recolhiam os respectivos frutos;
- os réus não praticaram quaisquer actos de posse na convicção de serem donos de parte do prédio;
- as declarações prestadas perante o Notário são falsas e provocam a nulidade da escritura e o cancelamento do registo feito a favor dos réus;
- o prédio inscrito na matriz sob o artigo … da freguesia de Seiça foi avaliado em € 45.000, pelo que a parcela cuja propriedade foi justificada tem o valor de € 11.500, sendo este o montante do enriquecimento dos réus à custa do património da herança;
- a autora mulher sente-se profundamente angustiada com a conduta dos réus, vendo-se na necessidade de demandar judicialmente a sua irmã, passando também a andar em Advogados e por repartições de finanças.
Com base nesta factualidade assim sumariamente descrita, pedem os autores que se declare nula a escritura de justificação da posse por falsidade das declarações nela prestadas, que se ordene o cancelamento do registo feito em benefício dos réus com base na mesma e que estes sejam condenados no pagamento de uma indemnização no valor de € 7.500 a título de danos morais.
Regular e pessoalmente citados, contestaram os réus invocando a excepção de ilegitimidade activa por preterição de litisconsórcio necessário, visto que esta acção exige a intervenção do marido da autora. Mais impugnaram os réus os factos alegados na petição inicial por entenderem que a escritura de justificação não contém qualquer falsidade, tendo antes sido lavrada de acordo com o que efectivamente se passou, ou seja, que o prédio lhes foi doado verbalmente pelos pais da ré e que têm vindo a exercer actos de posse sobre o mesmo há mais de vinte anos, pelo que adquiriram o direito de propriedade por usucapião.
Por despacho de fls. 243 foi admitida a intervenção do marido da autora para suprimento da excepção de ilegitimidade activa.
Teve lugar a audiência prévia na qual se fixou o objecto da causa e os temas da prova, não tendo sido apresentada qualquer reclamação.
Realizada a audiência final foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu os RR. do pedido
Os AA.. não se conformando com a sentença prolatada dela interpuseram recurso apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:
“a) A matéria de facto dado como provada deve ser alterada se do processo constarem
meios probatórios que impunham decisão diversa,
b) Resulta dos documentos juntos aos autos que da herança de FF apenas fazia parte ½ do prédio inscrito na matriz sob o artº …/ Seiça
c) Resulta dos documentos juntos aos autos que da herança de FF não fazia parte a totalidade do prédio inscrito na matriz sob o artigo …/ Seiça;
d) Os factos provados nº 3 e 4 são, logicamente, impossíveis;
e) Resulta dos documentos juntos aos autos que FF e EE não eram donos da totalidade do prédio inscrito na matriz sob o artº …/ Seiça;
f) Resulta dos documentos juntos aos autos que FF e EE só ficaram donos de todo o prédio em 11/03/2003, não tendo até esta data uma posse exclusiva;
g) Se não eram donos do prédio não podiam doar, sob pena se de tratar de doação de coisa alheia, com a consequente nulidade;
h) O facto de os pais autorizarem um filho a edificar em terreno deles, não configura “posse” susceptível de aquisição, por usucapião, do direito de propriedade;
i) Tal autorização exclui o” animus sibi habendi”
j) E, a mera detenção, dure por pouco ou muito tempo, não é susceptível de conduzir à usucapião, enquanto não ocorrer inversão do titulo, só desde então se contando o prazo;
l) A douta sentença interpretou e aplicou incorrectamente o disposto nos arºs 607/4 CPC, 1251 e 1287, ambos do C. C.
Razão porque deve a douta sentença ser revogada e substituída por outra que defira o peticionado pelos A. A., como é de JUSTIÇA”.
Os apelados responderam às alegações, pugnando pela confirmação da sentença sob censura.
Pela leitura das alegações de recurso a Mm.ª Juiza a quo verificou a existência de um lapso de escrito no ponto 4. do quadro fáctico provado, tendo procedido à sua rectificação.
Providenciados os vistos e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir
II. Objecto do Recurso
Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC),
Importa, pois, decidir se:
- A decisão da matéria de facto deve ser alterada, nos termos pretendidos pelos apelantes;
- Os recorridos exerceram uma posse apta a conduzir à aquisição por usucapião.
III. Fundamentação
1.De Facto
1.1. Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. FF e EE são pais da autora e da ré e foram casados um com o outro;
2. FF e EE já faleceram, ele em 6 de Agosto de 1998 e ela em 9 de Janeiro de 2008, e não deixaram testamento ou disposição de última vontade;
3. Da herança aberta por óbito de FF faz parte o seguinte bem: metade indivisa de uma terra de semeadura com oliveiras, pereiros, no sítio de Loureiros, limite de Caxarias, freguesia de Seiça, a confrontar de Norte com Maria … e outro, de Sul com Alfredo …, de Nascente com herdeiros de Manuel … e de Poente com herdeiros de Manuel …, descrito sob o art. …;
4. Da herança aberta por óbito de EE faz parte o seguinte bem: prédio rústico sito em Loureiros, limite de Caxarias, composto de terra de semeadura com oliveiras e pereiros, com a área de três mil quatrocentos e vinte e seis metros quadrados, a confrontar do Norte, herdeiros de Maria … e outros, do Sul com herdeiros de Alfredo …, de Nascente com herdeiros de Manuel … e de Poente com herdeiros de Maria …, inscrito na matriz sob o artigo …, da freguesia de Seiça;
5. Este prédio rústico está descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o n° …, da freguesia de Seiça e aí está inscrita a aquisição, por sucessão, a favor da autora e demais herdeiros da falecida EE;
6. Enquanto foram vivos, FF e EE procederam, por si próprios ou recorrendo a terceiros, ao amanho e cultivo do prédio referido em 3 e 4, dele retirando os respectivos frutos;
7. Os réus emigraram para França após o seu casamento;
8. Em data não concretamente apurada dos finais dos anos sessenta, mas após o casamento dos réus, ocorrido no ano de 1966, os pais da autora e da ré doaram verbalmente aos réus uma parcela do prédio identificado em 3 e 4 para que aí construíssem uma casa de habitação;
9. Os réus apresentaram na Câmara Municipal de Ourém um projecto de obras destinado à construção de uma casa de habitação;
10. Em 15 de Janeiro de 1971 foi emitido o alvará de licença n.º 40, através do qual foi concedida licença a DD, ora réu, para construir uma casa de habitação;
11. Após a emissão dessa licença os réus iniciaram a construção da casa de habitação, que ficou concluída, segundo declaração do réu marido feita perante a Direcção-Geral de Contribuições e Impostos e junta a fls. 76, em 26 de Julho de 1975;
12. Em 19 de Agosto de 1975, o réu procedeu, através da entrega do modelo 129 junto da então Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, à inscrição da casa de habitação, identificando-a deste modo: “casa alta de habitação com a frente voltada ao norte, com um portão e uma porta e quatro janelas no rés-do-chão que é amplo, com duas portas, sete janelas, seis divisões no 1.º andar, com a área de 80 m2 a confrontar de todos os lados com terreno de Albino …”;
13. A esta construção foi posteriormente atribuído o artigo …/urbano da freguesia de Caxarias;
14. Em 28 de Novembro de 1980 o réu marido requereu à Câmara Municipal de Ourém licença para realização de obras de ampliação e beneficiação daquela casa de habitação, tendo-lhe sido concedida por alvará n.º 1697-A de 1982;
15. Os réus pavimentaram o acesso à sua casa de habitação, construíram muros à sua volta e ocuparam uma parcela de terreno contíguo à casa de habitação, melhor identificada na fotografia de fls. 83, aí colocando algumas plantas;
16. A casa de habitação encontra-se actualmente descrita sob o artigo …/urbano da freguesia de Caxarias como casa de cave ampla destinada a arrecadação e rés-do-chão com cinco divisões destinada a habitação com a frente voltada a norte, com 138 m2 de área de implantação do edifício e de área bruta de construção;
17. Em 15 de Abril de 2011 o réu requereu no Serviço de Finanças de Ourém a inscrição como omisso do seguinte prédio: terra de semeadura sito na sede da freguesia de Caxarias, denominado por “Loureiros”, com a área de 460 m2, que confronta do Norte com Nuno …, Sul com herdeiros de EE, Nascente com Manuel … e Poente com Manuel …;
18. Na sequência deste requerimento foi atribuído a tal prédio o artigo matricial …/rústico da freguesia de Seiça;
19. Em 27 de Abril de 2011 os réus, munidos deste artigo matricial, outorgaram no Cartório Notarial de Ourém uma escritura de justificação, lavrada de fls. 122 a fls. 123-verso do livro de notas para escrituras diversas n.º 149, na qual declararam: “Que, são com exclusão de outrem, donos e legítimos possuidores do seguinte imóvel: prédio rústico, composto de terra de semeadura denominado “Loureiros”, com a área de quatrocentos e sessenta metros quadrados, sito no lugar e freguesia de Caxarias, concelho de Ourém, a confrontar do norte com Nuno …, do sul com herdeiros de EE, do nascente com Manuel … e do poente com Manuel …, inscrito na matriz sob o artigo … da freguesia de Seiça, com o valor patrimonial de € 100,0 e a que atribuem igual valor; Que o indicado prédio não se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém e veio à posse de ambos por doação verbal feita por FF e mulher EE, residentes que foram em Caxarias, Ourém, em mil novecentos e sessenta e oito, sem que dele ficassem a dispor de título que lhes permita fazer o respetivo registo; Que, possuem o indicado prédio em nome próprio, há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu início, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, com o conhecimento de toda a gente da freguesia de Caxarias e Seiça, lugares e freguesias vizinhas, traduzida em atos materiais de fruição, conservação e recolhendo os respetivos frutos, limpando-o de mato, pagando os respetivos impostos e contribuições, agindo sempre pela forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, sendo, por isso, uma posse pública, pacífica, contínua e de boa-fé, pelo que adquiriam o dito prédio por usucapião”;
20. Com a referida escritura de justificação os réus requereram o registo do imóvel na Conservatória do Registo Predial de Ourém, o qual foi efectuado sob o n° … da freguesia de Caxarias, constando da descrição o seguinte: “misto, situado em Loureiros, área total 460 m2, área coberta 138 m2, artigo … rústico e … urbano, casa de cave, rés do chão para habitação e terra de semeadura – Norte Nuno …; sul herdeiros de EE; Nascente, Manuel …; Poente, Manuel …”;
21. Após a conclusão da casa de habitação os réus, nas suas deslocações a Portugal, que ocorriam e ocorrem ainda essencialmente nos períodos de férias de Natal, Páscoa e Verão, passaram a habitar a mesma, aí comendo, dormindo e recebendo familiares e amigos;
22. Os réus têm procedido ao pagamento do imposto municipal sobre prédio inscrito na matriz sob o art. matricial …/rústico da freguesia de Seiça e sobre o prédio inscrito na matriz urbana sob o art. …, ambos da freguesia de Caxarias, a partir de 2010 e de 1990, respectivamente;
23. Desde a construção e ampliação da casa de habitação que os réus vêm ocupando uma parcela de terreno que actualmente tem a área de 460 m2, que corresponde ao prédio cuja posse os réus justificaram e que faz parte do prédio referido em 3 e 4;
24. Fizeram-no de forma contínua, sem oposição de ninguém e à vista de toda a gente pelo menos até à realização da escritura de justificação;
25. O prédio referido em 4 foi mandado avaliar para efeitos de partilha dos bens deixados por esta, tendo sido estimado o valor de €45.000,00, valor este calculado sem ter em atenção a casa de habitação construída em parte dele;
26. A conduta dos réus, vertida na realização da escritura de justificação e na invocação de um direito de propriedade sobre a parcela de terreno supra referida, é causa de divisão entre os irmãos e cunhados, provocando angústia e mal-estar na pessoa da autora mulher.
1.2. Foi julgada não provada a seguinte factualidade:
- que nos finais dos anos sessenta os réus manifestaram juntos dos seus pais da ré a sua intenção de construírem uma casa em Portugal;
– que os réus pagam o IMI desde 1975.
Da impugnação da matéria de facto
(…).
Pelo exposto a impugnação da decisão da matéria de facto requerida pelos recorrentes é totalmente improcedente.

2. Do mérito do recurso

Em suma e em primeira linha pretendem os recorrentes impugnar a escritura de justificação notarial transcrita no ponto n.º 19 do elenco dos factos provados.

Enquadremos juridicamente o pleito.

Dispõe o n.º 1 do art.º 116.º do Código do Registo Predial:

O adquirente que não disponha de documento para prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo.

Preceitua, por sua vez, o art.º 89.º do Código do Notariado:

1 - A justificação para efeitos do n.º 1 do artigo 116.º do Código do Registo Predial consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais.

2 - Quando for alegada a usucapião, baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.”.

Nos termos do n.º 1 do artigo 96.º do mesmo diploma as declarações do justificante deverão ser confirmadas por três pessoas, sendo passível de impugnação (art.º 101.º daquele diploma).

A justificação notarial é, no dizer do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 40 603, de 18 de Maio de 1956, “(…) um processo anormal de titulação (…)”, sendo que a sua génese radica no princípio do trato sucessivo, possibilitando registos que, pela falta de título, não seriam possíveis[1], sem, contudo, facultar a aquisição de quaisquer direitos sujeitos a registo[2].

A sua natureza jurídica é enquadrável na categoria doutrinal dos “quase negócios jurídicos”[3].

Contudo, esta forma de titulação presta-se ao uso fraudulento, já que se baseia em meras declarações dos interessados, corroboradas por três declarantes (sem que as mesmas sejam confrontadas com outra versão e sem que o notário averigue a sua razão de ciência), podendo, em suma, ser definida apenas “(...) um mero expediente técnico para registo, cuja autenticidade tem uma frágil base de apoio (...)[4].

Daí que a lei faculte a qualquer interessado o recurso à impugnação, mormente quando são invocados os pressupostos da usucapião.

A referida acção não está sujeita a prazo[5] e é tida pacificamente como uma acção de simples apreciação[6] negativa (visa-se a eliminação dos efeitos dos factos aquisitivos declarados na escritura de justificação notarial – cfr. n.º 1 e al. a) do n.º 3 do art.º 10.º do CPC), pelo que cabe ao R. justificante a prova dos factos em que baseia a invocação do direito real objecto da escritura de justificação (n.º 1 do art.º 343.º do Cod. Civil)[7].

No fundo, trata-se de uma provocação ao justificante para que ele demonstre a veracidade do que declarou na escritura de justificação, já que seria praticamente impossível que o A. lograsse demonstrar a inveracidade do aí declarado[8] e porque, como demonstra a experiência, quem se arroga um direito mune-se previamente dos respectivos meios de prova[9].

No Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2008 fixou-se jurisprudência no sentido de que o R. não pode beneficiar da presunção do registo lavrado com base na escritura de justificação.

Para tanto e em suma, aí se ponderou que o registo é lavrado com base em factos que foram objecto de impugnação (i.e. alega-se a sua inveracidade), pelo que tal “(…) não pode deixar de abalar a credibilidade do registo e a sua eficácia prevista no artigo 7.º do Código do Registo Predial, que é precisamente a presunção de que existe um direito cuja existência é posta em causa através da presente acção. Daí que, impugnada a escritura com base na qual foi lavrado o registo, por impugnado também se tem de haver esse mesmo registo, não podendo valer contra o impugnante a referida presunção, que a lei concede no pressuposto da existência do direito registado. (…)”[10].

Pela nossa parte e pese embora a pertinência dos motivos invocados nos votos de vencido, cremos que a solução que obteve vencimento é aquela que melhor se compagina com o uso fraudulento a que se presta aquele meio de titulação de direitos, pelo que a adoptamos[11].

Posto isto, cumpre fazer breve incursão pelo instituto da usucapião.

Como se sabe, a usucapião é, por certo, o efeito mais relevante da posse formal (art.º 1251.º do Cod. Civil), já que faculta ao possuidor a aquisição do direito real de gozo correspondente à própria posse, sancionando, desse modo, a inércia do proprietário.

As origens históricas do instituto da usucapião remontam ao direito romano que, por sua vez, buscou na “praescriptio longi temporis” helénica alguns elementos[12].

O art.º 1287.º do Cod. Civil define a usucapião como “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação (...)”, o que, aliás, representa uma emulação da definição clássica do jurisconsulto romano Modestino[13].

Conforme decorre da definição legal, a usucapião assenta em 2 pressupostos fundamentais, a saber:

- a posse (art.º 1290.º);

- mantida durante certo lapso de tempo.

Debrucemos a nossa atenção sobre o primeiro destes pressupostos.
Tal situação compreende dois elementos essenciais[14], quais sejam a actuação de facto sobre a coisa possuída – elemento comummente designado como “corpus” – e a vontade de possuir aquela coisa – elemento comummente designado como “animus” - como se fosse titular do direito real de gozo a cujo exercício corresponde essa posse (posse formal) ou como efectivo titular desse direito (posse causal).

O “corpus” é um elemento primacial da posse e pressupõe a apreensão material da coisa, sendo apenas dois os casos em que se verifica a dispensa dessa apreensão (cfr. art.ºs 1255.º e 1264.º, ambos do Cod. Civil).

O “animus” reconduz-se no elemento interior presente na conduta do possuidor e traduz-se na vontade de criar uma aparência de titularidade do direito a cujo exercício corresponde o poder de facto exercido sobre a coisa.

Para efeitos de usucapião releva a posse pacífica e pública (cfr. art.ºs 1258.º, 1297.º e n.º 1 e al. a) do art.º 1293.º, todos do Cod. Civil), já que a posse violenta ou oculta apenas assume relevância quando se ponha termo à violência ou se dê publicidade à posse (o que evidencia o carácter sancionatório da inércia do instituto).

A posse pacífica define-se como aquela que foi adquirida sem coacção física ou moral (cfr. art.º 1261.º do Cod. Civil), ao passo que a posse pública é definida pela lei como aquela que é exercida em termos tais que é passível de ser conhecida por todos quantos sejam, directa ou indirectamente, por ela afectados ou se ache registada (cfr. art.º 1262.º).

Por sua vez, o lapso de tempo durante o qual se deve manter o exercício da posse é definido pela lei em função de diversos factores, como seja a natureza do bem objecto da posse e a existência de título para a posse.

A este respeito e tendo em conta o circunstancialismo dos autos, cumpre referir que a posse titulada é aquela que se funda num modo legítimo de aquisição, independentemente da legitimidade do transmitente ou da validade substancial do negócio (n.º 1 do art.º 1258.º do Cod. Civil), ficando salvaguardada a validade formal do negócio[15].

Importa ainda considerar a definição de posse de má-fé.

Nos termos do n.º 1 do art.º 1260.º, a posse diz-se de boa-fé se o adquirente ignorava desculpavelmente que lesava direito alheio ao adquiri-la[16], presumindo-se de má fé quando não seja titulada.

Importa agora retornar ao caso dos autos.

Objectam primeiramente os recorrentes que FF e EE não poderiam ter dado à recorrida, sua filha, uma parcela de terreno em causa, já que apenas adquiriram a propriedade do espaço em que ela se insere em 11 de Março de 2003.
Os factos provados, porém, não conferem subsistência a essa alegação.
Vejamos.
Como sabemos, tal parcela de terreno integra-se no prédio rústico descrito nos pontos n.º 3 e 4 do elenco factual (ponto n.º 8 do elenco factual).
A metade indivisa desse prédio integra a herança deixada por FF ao passo que a herança de EE compreendia já a totalidade desse terreno (cfr. os mesmos pontos n.º 3 e 4 do elenco factual), o que é, porventura, explicável pelo facto de esta ter sucedido à sua irmã na titularidade da restante metade indivisa, como se aventa na réplica.
Demonstrou-se que, enquanto foram vivos, FF e EE procederam, por si próprios ou recorrendo a terceiros, ao amanho e cultivo do prédio em questão, dele retirando os respectivos frutos (ponto n.º 6 do elenco factual), não tendo, concomitantemente, sido alegada nem demonstrada a existência de quaisquer outras relações jurídicas que habilitassem aqueles a fazê-lo.
Para mais, não se alegou (em bom rigor, a alegação vertida na réplica é manifestamente inócua) nem demonstrou que a parcela em causa integrasse a metade indivisa desse mesmo prédio que pertenceu a Maria …, sendo certo que jamais se alegou ou demonstrou que esta se opôs à doação em questão.
Assim, a partir da valoração conjugada destes de factos, é viável concluir que, efectivamente, FF e EE eram os únicos proprietários da metade indivisa do prédio em causa de onde foi desanexada a parcela.
Inexiste, pois, fundamento fáctico para concitar a previsão do n.º 1 do art.º 956.º do Cod. Civil.
Ingressando agora na questão que mais directamente releva para a apreciação do mérito do recurso, há a considerar o seguinte.
Colocada em crise a factualidade narrada na escritura de justificação notarial como fundamento da aquisição por usucapião, caberia, pois, aos recorridos, justificantes, a demonstração da veracidade da mesma, sem que se pudessem socorrer da presunção de registo de que beneficiam (cfr. ponto n.º 20 do elenco dos factos provados).
Vejamos se o lograram.
Perscrutando a factualidade provada, temos que se apurou que, na sequência da falada doação para a construção de uma habitação (ponto n.º 8 do mesmo elenco) os réus apresentaram na Câmara Municipal de Ourém um projecto de obras para o efeito e, tendo obtido a licença em 15 de Janeiro de 1971, aqueles iniciaram a construção da casa de habitação, que ficou concluída, segundo declaração do réu marido feita perante a Direcção-Geral de Contribuições e Impostos e junta a fls. 76, em 26 de Julho de 1975 (pontos n.º 8 a 10 do elenco factual).
Tal casa foi inscrita junto da administração fiscal no mês seguinte (ponto n.º 12 do elenco factual), tendo os RR. procedido ao pagamento do imposto municipal sobre ela incidente (ponto n.º 22 do elenco factual).
Após a conclusão da casa de habitação os réus, nas suas deslocações a Portugal, que ocorriam e ocorrem ainda essencialmente nos períodos de férias de Natal, Páscoa e Verão, passaram a habitar a mesma, aí comendo, dormindo e recebendo familiares e amigos (ponto n.º 21 daquele elenco)
Mais se apurou que os réus pavimentaram o acesso à sua casa de habitação, construíram muros à sua volta e ocuparam uma parcela de terreno contíguo à casa de habitação, aí colocando algumas plantas (ponto n.º 15 do elenco factual).
Demonstrou-se ainda que desde a construção e ampliação da casa de habitação os réus vêm ocupando uma parcela de terreno que actualmente tem a área de 460 m2, que corresponde ao prédio cuja posse os réus justificaram e que faz parte do prédio que pertenceu aos pais da recorrida e da recorrente, tendo assim actuado de forma contínua, sem oposição de ninguém e à vista de toda a gente pelo menos até à realização da escritura de justificação (pontos n.º 23 e 24 do elenco factual).
Valorando a factualidade provada à luz daquelas considerações, cumpre concluir que os recorridos demonstraram que, desde a compleição da edificação da causa, exerceram o “corpus” sobre o terreno em discussão nestes autos, actuando como se fossem proprietários do mesmo e da casa que nele edificaram.
Importa ainda notar que existe uma grande margem de coincidência entre o que ficou provado e o que foi declarado na mencionada escritura de justificação notarial.
Por outro lado, cabe atentar que se provou que, efectivamente, FF e EE doaram aos recorridos a dita parcela de terreno. Equivale isto por dizer que não se limitaram a anuir na construção em terreno seu, tendo antes cedido aquela parcela aos recorridos para esse efeito.
Embora tal negócio jurídico esteja viciado por vício de forma – à data da doação, estava já em vigor o actual Código Civil, o qual prevê que a doação de bens imóveis seja feita por escritura pública (n.º 1 do art.º 947.º do Cod. Civil) – e, seja como tal, inapto para produzir o efeito translativo típico da doação (al. a) do art.º 954.º do mesmo diploma), o certo é que dele se pode extrair que a essa doação verbal esteve subjacente a intenção dos doadores de transferir a propriedade dessa faixa de terreno para os doadores.
A invalidade formal, embora conduza à qualificação da posse como não titulada, não tem a virtualidade de descaracterizar o propósito claro dos doadores.
Neste contexto, torna-se patente que os recorridos não podem ser havidos como meros detentores.
É que o n.º 2 do art.º 1252.º do Cod. Civil, precavendo as dificuldades da prova do elemento psicológico em que se consubstancia o animus possidendi estatui que, em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, pessoalmente ou por intermédio de outrem, presunção essa, todavia, sempre susceptível de ser ilidida mediante prova em contrário (art.º 350.º, n.º 2, do Cod. Civil).
Ora, tendo os recorridos alegado que possuíam em nome próprio e com a intenção de exercer o direito correspondente àqueles factos e não tendo os recorrentes, como lhes competia em virtude da aludida presunção, demonstrado que, apesar de deterem o bem imóvel em causa, aqueles eram meros detentores, há que concluir pela improcedência da invocação em apreço. É de notar, fundamentalmente, que a qualificação dependia da indemonstração de que FF e EE não haviam doado a dita parcela de terreno mas antes consentido na edificação da casa e no uso posterior dado a essa faixa, o que, como viemos de expor, não foi o caso.
Estão assim traçados os contornos que basearão a improcedência do recurso.
Importa ainda precisar que, em qualquer caso, não seria de declarar a nulidade da escritura de justificação notarial.
É que, entre as causas da nulidade de uma escritura não figura a falsidade das declarações (cfr. art.ºs 70.º e 71.º do Código do Notariado), pelo que, da eventual procedência do pedido principal do A., apenas se poderia extrair a consequência da ineficácia da referida escritura[17].
Resta ainda afirmar que não se divisa qualquer actuação ilícita dos recorridos, sendo assim óbvio que não se mostram reunidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (art.º 483.º do Cod. Civil).
Consequentemente, é de concluir pela improcedência da apelação e pela subsistência da sentença recorrida.
As custas serão suportadas, porque vencidas, pelos apelantes (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Sumário
I.A justificação notarial é, no dizer do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 40 603, de 18 de Maio de 1956, “(…) um processo anormal de titulação (…)”, sendo que a sua génese radica no princípio do trato sucessivo, possibilitando registos que, pela falta de título, não seriam possíveis, sem, contudo, facultar a aquisição de quaisquer direitos sujeitos a registo e a sua natureza jurídica é enquadrável na categoria doutrinal dos “quase negócios jurídicos”.
II. Esta forma de titulação presta-se ao uso fraudulento, já que se baseia em meras declarações dos interessados, corroboradas por três declarantes (sem que as mesmas sejam confrontadas com outra versão e sem que o notário averigue a sua razão de ciência), podendo, em suma, ser definida apenas “(...) um mero expediente técnico para registo, cuja autenticidade tem uma frágil base de apoio (...). Daí que a lei faculte a qualquer interessado o recurso à impugnação, mormente quando são invocados os pressupostos da usucapião.
III. A referida acção não está sujeita a prazo e é tida pacificamente como uma acção de simples apreciação negativa (visa-se a eliminação dos efeitos dos factos aquisitivos declarados na escritura de justificação notarial – cfr. n.º 1 e al. a) do n.º 3 do art.º 10.º do CPC), pelo que cabe ao R. justificante a prova dos factos em que baseia a invocação do direito real objecto da escritura de justificação (n.º 1 do art.º 343.º do Cod. Civil).
IV. No Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2008 fixou-se jurisprudência no sentido de que o R. não pode beneficiar da presunção do registo lavrado com base na escritura de justificação.
IV. A usucapião é, por certo, o efeito mais relevante da posse formal (art.º 1251.º do Cod. Civil), já que faculta ao possuidor a aquisição do direito real de gozo correspondente à própria posse, sancionando, desse modo, a inércia do proprietário.
V. A posse compreende dois elementos essenciais, quais sejam a actuação de facto sobre a coisa possuída – elemento comummente designado como “corpus” – e a vontade de possuir aquela coisa – elemento comummente designado como “animus” - como se fosse titular do direito real de gozo a cujo exercício corresponde essa posse (posse formal) ou como efectivo titular desse direito (posse causal). O “corpus” é um elemento primacial da posse e pressupõe a apreensão material da coisa, sendo apenas dois os casos em que se verifica a dispensa dessa apreensão (cfr. art.ºs 1255.º e 1264.º, ambos do Cod. Civil). O “animus” reconduz-se no elemento interior presente na conduta do possuidor e traduz-se na vontade de criar uma aparência de titularidade do direito a cujo exercício corresponde o poder de facto exercido sobre a coisa.
VI. Para efeitos de usucapião releva a posse pacífica e pública (cfr. art.ºs 1258.º, 1297.º e n.º 1 e al. a) do art.º 1293.º, todos do Cod. Civil), já que a posse violenta ou oculta apenas assume relevância quando se ponha termo à violência ou se dê publicidade à posse (o que evidencia o carácter sancionatório da inércia do instituto).
VII. A posse pacífica define-se como aquela que foi adquirida sem coacção física ou moral (cfr. art.º 1261.º do Cod. Civil), ao passo que a posse pública é definida pela lei como aquela que é exercida em termos tais que é passível de ser conhecida por todos quantos sejam, directa ou indirectamente, por ela afectados ou se ache registada (cfr. art.º 1262.º).
VIII. Por sua vez, o lapso de tempo durante o qual se deve manter o exercício da posse é definido pela lei em função de diversos factores, como seja a natureza do bem objecto da posse e a existência de título para a posse.
IX. Nos termos do n.º 1 do art.º 1260.º, a posse diz-se de boa-fé se o adquirente ignorava desculpavelmente que lesava direito alheio ao adquiri-la[18], presumindo-se de má fé quando não seja titulada.
X. Embora a doação esteja viciada por vício de forma – à data da doação, estava já em vigor o actual Código Civil, o qual prevê que a doação de bens imóveis seja feita por escritura pública (n.º 1 do art.º 947.º do Cod. Civil) – e, seja como tal, inapto para produzir o efeito translativo típico da doação (al. a) do art.º 954.º do mesmo diploma), o certo é que dele se pode extrair que a essa doação verbal esteve subjacente a intenção dos doadores de transferir a propriedade dessa faixa de terreno para os doadores.
XI. A invalidade formal, embora conduza à qualificação da posse como não titulada, não tem a virtualidade de descaracterizar o propósito claro dos doadores. Neste contexto, torna-se patente que os recorridos não podem ser havidos como meros detentores.
XII. É que o n.º 2 do art.º 1252.º do Cod. Civil, precavendo as dificuldades da prova do elemento psicológico em que se consubstancia o animus possidendi estatui que, em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, pessoalmente ou por intermédio de outrem, presunção essa, todavia, sempre susceptível de ser ilidida mediante prova em contrário (art.º 350.º, n.º 2, do Cod. Civil).
XIII. Em qualquer caso, não seria de declarar a nulidade da escritura de justificação notarial.
XIV. Entre as causas da nulidade de uma escritura não figura a falsidade das declarações (cfr. art.ºs 70.º e 71.º do Código do Notariado), pelo que, da eventual procedência do pedido principal do A., apenas se poderia extrair a consequência da ineficácia da referida escritura.
IV. Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação de Évora em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença apelada.
Custas pelos apelantes.
Registe.
Notifique.
*

Após trânsito, comunique ao Cartório Notarial de Ourém e à Conservatória do Registo Predial de Ourém.


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Évora, 8 de Março de 2018

Florbela Moreira Lança (Relatora)

Elisabete Valente (1.ª Adjunta)

Ana Margarida Leite (2.ª Adjunta)



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[1] A este respeito, vide o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2008, in D.R., Série I, de 31 de Março de 2008, pp. 1871 e ss e o Ac. da RP de 06.02.1995, CJ, I, pp. 215. Neste sentido, vide também BORGES DE ARAÚJO apud JOÃO GARRIDO in “Revista de Notariado e Registo Predial”, ano 36, n.º 4, pp. 52. Para uma panorâmica geral sobre a justificação notarial, vide ISABEL PEREIRA MENDES “Justificações Prediais para Registo Predial” in “Regestal”, ano VI, n.ºs 57 a 68, pp. 139 e s. e DIMITILDE GOMES “A escritura de justificação notarial”, in “Revista do Ministério Público”, ano 10.º, n.º 38, pp. 57 e ss.
[2] Neste sentido, vide o Ac. da RC de 22.02.1983, CJ,1983, I, pp. 50 e o Ac. da RL de 29.09. 2005, CJ, 2005, IV, pp. 112.
[3] Neste sentido, vide os Acs. da RC de 14.04.1993 e de 27.04.1999, publicados, respectivamente, na CJ, 1993, II, pp. 34 e na CJ, 1999, III, pp. 6.
[4] Cita-se ISABEL PEREIRA MENDES, op. cit., pp. 146.
[5] Neste sentido, o Ac. do STJ de 15.06.1994, CJ STJ, 1994, II, pp. 140.
[6] Sobre a natureza destas acções, vide TEIXEIRA DE SOUSA “Acções de simples apreciação(objecto; conceito; ónus da prova; legitimidade)” in R.D.E.S., Ano XXV, n.ºs 1-2, pp. 123 a 148.
[7] Neste sentido, vide o Ac. do STJ referido na nota n.º 1, bem como, inter alia, o Ac. do STJ de 03.03.1998, CJ STJ, 1998, I, pp. 114 e ss., o Ac. da RL de 23.11. 1997, CJ, 1997, V, pp. 113 e ss., o Ac. da RP de 17.06.1993, CJ, 1993, III, pp. 231, o Ac. da RC de 23.04.2002, CJ, 2002, II, pp. 33; no sentido de que o preenchimento do ónus da prova se contenta com prova da inveracidade dos factos alegados pelo A. vide TEIXEIRA DE SOUSA, op. cit., pp. 143 a 145, tendo-se por assente que quem demanda deve invocar uma causa de pedir - quanto mais não seja a inexistência do facto ou direito que o R. se arroga, como sustenta FERNANDO LUSO SOARES, “Direito Processual Civil”, Coimbra, pp. 269 -, sob pena de se regressar aos juízos de jactância.
[8] Sobre a inversão do ónus da prova nas acções de simples apreciação negativa,vide ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, “Código Civil Anotado”, I, 4ª ed., pp. 307.
[9] Neste sentido, vide VAZ SERRA, BMJ n.º 110, pp. 132 e ss..
[10] Cita-se, com a devida vénia, o texto do Ac. do STJ citado na nota n.º 1.
[11] No sentido daquela solução, vide os já citados Acs. do STJ de 15.06.1994 e de 03.03.1998 e o Ac. da RC de 23.04.2002, os Acs. da RC de 27.06. 2000 e 17.03.1998, publicados, respectivamente, na CJ 1998, II, pp. 22 e na CJ 2000, III, pp. 35. No sentido oposto, vide. os Acs. da RP de 02.04.1987 e de 16.03.2000, respectivamente publicados na CJ, 1987, II, pp. 227 e no BMJ n.º 495, pp. 363, o Ac. da RL de 15.05.1997, CJ, 1997, III, pp. 85 e o Ac. da RC de 25.11.1997, CJ, 1997, V, pp. 23. Para uma solução intermédia, vide o Ac. da RL de 04.10.2001, proferido no processo n.º 0081048 e acessível em www.dgsi.pt.
[12] Sobre este aspecto, vide PENHA GONÇALVES “Curso de Direitos Reais”, 2.ª ed., Univ. Lusíada, pp. 291.
[13] Citada por PENHA GONÇALVES, loc. cit. e aqui reproduzida: “Adjectio domini per continuationem possessionis temporis lege definiti”.
[14] Mais desenvolvidamente, vide PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA “Código Civil Anotado”, III, 2.ª ed., Reimpressão, Coimbra, pp. 5 e 6.
[15] Sobre este aspecto, vide PENHA GONÇALVES op. cit, pp. 264
[16] Sobre este aspecto, vide PENHA GONÇALVES op. cit, pp. 267 a 269.
[17] Neste sentido, vide o citado Acórdão de Uniformização de Jurisprudência e o Acordão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/2001, de 23 de Janeiro, publicado no Diário da República, 1.ª Série-A, de 9 de Fevereiro de 2001.
[18] Sobre este aspecto, vide PENHA GONÇALVES op. cit, pp. 267 a 269.