Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ARRENDAMENTO
DIREITO DE PREFERÊNCIA
Sumário
O arrendatário de parte não autónoma de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal não tem direito de preferência na venda da totalidade do prédio.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Texto Integral
Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa.
RELATÓRIO:
Em 04.02.2016 Pedro intentou ação declarativa com processo comum (ação de preferência) contra Maria e contra Imobiliária, Lda.
O A. alegou, em síntese, ser o único arrendatário do 2.º andar lado esquerdo de um prédio urbano situado na Rua Augusta, em Lisboa, que identificou. O referido 2.º esquerdo fora dado de arrendamento em 1941, para o exercício de profissão liberal ou de comércio ou indústria. A 1.ª R. tornou-se única proprietária do edifício em que se situa o locado, em 1988. Por carta recebida em 07.12.2015 a 1.ª R. comunicou ao A. que iria vender o prédio à ora 2.ª R., pelo preço de € 3 450 000,00, estando a escritura marcada para o dia 18.12.2015, em escritório notarial que identificou. Uma vez que o A. tinha direito de preferência nos termos do art.º 1901.º do Código Civil, comunicava-lhe os termos do negócio. Ora, o A. escreveu à 1.ª R., por carta de 14.12.2015, exercendo o direito de preferência. Sucede que no dia e local aprazado para a realização da escritura a 1.ª R., através do seu procurador, se recusou a reconhecer o direito do A., tendo celebrado a escritura de compra e venda com a ora 2.ª R.. Em virtude dessa atuação o A. sofreu um prejuízo de € 3 577,84, correspondente a 80% dos honorários da senhora notária pela elaboração da escritura não concretizada e emissão de certificado de não outorga da escritura.
O A. terminou formulando o seguinte petitório:
a)- Que se reconheça ao A. o direito de preferência sobre o prédio sito na Rua Augusta, números (…), freguesia de Santa Maria Maior, concelho de Lisboa, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº (…) da freguesia de São Nicolau, substituindo-se à 2ª R. na escritura de compra e venda, mencionada no artigo 13º da P.I.;
b)- Que sejam as RR. condenadas a entregar o referido prédio ao A., livre e desocupado, tal qual resulta da escritura pública supra mencionada ou seja, sem prejuízo dos contratos de arrendamento eventualmente existentes e em vigor à data;
c)- Que seja ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos que a 1ª ou 2ª R., vendedora e compradora respectivamente, hajam feito a seu favor ou a favor de terceiros, nomeadamente pela 2ª R. em consequência da compra do supra referido prédio, designadamente o constante da apresentação nº 2818, de 18/12/2015 bem como, quaisquer outros que esta ou terceiros venham a fazer, sempre com todas as demais consequências que ao caso couberem;
d)- Que seja a 1ª R. condenada a liquidar ao A. o montante de € 3.577,84, correspondente às despesas em que aquele incorreu pelo incumprimento da mesma, e que correspondem a 80% dos honorários devidos à Notária pela não celebração do acto de compra e venda, e ainda pela obtenção do certificado de não outorga da escritura, ao qual deverá acrescer os juros de mora à taxa legal aplicável desde a data da citação da 1ª R. até integral e efectivo pagamento.
Em 15.02.2016 o A. juntou aos autos comprovativo do depósito, a favor do Estado, da quantia de € 3 450 000,00, efetuado por S, S.A. e O, S.A..
As RR. contestaram a ação, separadamente, mas em termos idênticos, negando o direito de preferência reclamado pelo A. e arguindo, a título de exceção, a caducidade decorrente de não ter sido ele, mas outrem, a depositar o preço e bem assim a omissão do pagamento de IMI e imposto de selo, além de agir em abuso de direito, atenta a desproporção existente entre o valor da divisão arrendada e a totalidade do prédio.
As RR. concluíram pela improcedência da ação e consequente absolvição do pedido.
A convite do tribunal o A. respondeu às exceções, pugnando pela sua improcedência.
Realizou-se audiência prévia e em 08.02.2017 foi proferido saneador-sentença, no qual se julgou a ação improcedente e em consequência se absolveu as RR. dos pedidos.
O A. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou 95 conclusões, que aqui se sintetizam:
Face aos factos provados e à lei em vigor, interpretada de acordo com os elementos gramatical, histórico, sistemático e teleológico, o A., arrendatário de parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal, tem direito legal de preferência na venda da totalidade do prédio, direito que a 1.ª R. primeiramente lhe reconheceu e que o A. exerceu validamente. Ainda que assim não se entendesse, a 1.ª R. agiu e age em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o que acarreta a invalidade do contrato de compra e venda celebrado entre as recorridas.
O apelante terminou pedindo que a decisão recorrida fosse revogada.
Juntamente com a alegação o apelante juntou um parecer do Prof. Dr. A. Barreto Menezes Cordeiro.
A 2.ª R. contra-alegou, pugnando pela total improcedência do recurso, com as legais consequências.
Com a contra-alegação a 2.ª R. juntou um parecer, da autoria do Prof. Dr. Pedro Romano Martinez.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO.
As questões que se suscitam neste recurso são as seguintes: direito de preferência do A.; abuso de direito da 1.ª R.; direito de indemnização do A.. Primeira questão (direito de preferência do A.)
O tribunal a quo deu como provada, sem questionamento pelas partes, e esta Relação aceita (embora corrigindo erro na numeração dos factos), a seguinte.
Matéria de facto
1.– Por escritura pública outorgada em 11.11.1941, lavrada no Cartório de F... T... C..., a folhas 66 verso do livro de notas nº 296-C, Maria e seu marido, Carlo deram de arrendamento a Acácio, Serafim, e António, o 2º andar, lado esquerdo, do prédio urbano sito na Rua Augusta, número (…), concelho de Lisboa, freguesia de Santa Maria Maior (anteriormente S. Nicolau), inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art. (…) (anteriormente x).
2.– Ficou estipulado que o arrendamento teria o prazo de oito meses, a contar de 01.01.1941, supondo-se sucessivamente renovado por períodos de seis meses, nos termos da legislação então em vigor (Cláusula 1ª do contrato cuja cópia se encontra junta a fls. 12 a 25 dos autos e se dá por reproduzido).
3.– Foi ainda contratualmente fixado que a renda mensal seria de €3,49 (anteriormente 700$00 – setecentos escudos), devendo ser paga sempre antecipadamente, ao primeiro dia útil do mês anterior aquele a que dissesse respeito (Cláusula 2ª do contrato).
4.– O uso do locado em causa seria para escritório de qualquer profissão liberal ou de qualquer comércio ou indústria (Cláusula 3ª do contrato).
5.– O A. por via da renúncia à respectiva posição contratual de Acácio e António, e por ter sucedido na posição contratual de Serafim, é o actual e único arrendatário do sobredito local arrendado.
6.– Encontra-se registada a propriedade da 1ª R., em virtude da partilha registada sob a Ap. 1 de 15.05.1978, ¼ do prédio sito na Rua Augusta, número (…), do concelho de Lisboa, freguesia de Santa Maria Maior (anteriormente S. Nicolau), inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art. (…) (anteriormente x ) – cf. certidão junta a fls. 26 a 28.
7.– Encontra-se registada pelas Ap. 4 e 7, a aquisição pela 1ª dos ¼ e ½ restante do referido imóvel, em 29/7/1986 e 26/07/1988, respectivamente, imóvel que não se encontra constituído em regime de propriedade horizontal e é composto por lojas, 5 andares e sótão, com lados direito e esquerdo.
8.– Por carta de 07.12.2015, recepcionada nessa mesma data, enviada pela 1ª ré ao autor a mesma informou o A. da intenção de vender à 2ª R., o prédio urbano sito na Rua Augusta, nº (…) de polícia, supra descrito, nos termos constantes do documento de fls. 29 a 31 cujo teor se reproduz.
9.– Nessa mesma comunicação, o Mandatário da A. [queria dizer-se “R.”] deu a conhecer que:(…) As condições de venda são as seguintes: I. O preço da venda é de € 3.450.000,00 (três milhões quatrocentos e cinquenta mil euros) a pagar no acto de celebração do contrato definitivo de compra e venda. II. O prédio será vendido livre de ónus ou encargos. III. As despesas com IMT, escritura e registo de transmissão a favor do comprador ficam a cargo deste. IV. Encontram-se actualmente desocupados os seguintes andares: 2º direito, 3º esquerdo, 4º esquerdo, 5º esquerdo e mansardas. V. O prédio é vendido no estado de conservação em que se encontra.VI. Fica anexa à presente notificação a seguinte documentação: (….) A escritura será celebrada no dia 18 de Dezembro de 2015, às 12:00 horas, no Cartório Notarial da Notária Rosa Correia, sito em Lisboa, na Av. Praia da Vitória, nº 73, 1º esquerdo. Na medida em que, nos termos do art. 1091º do Código Civil, V. Exa. Enquanto inquilino, tem direito de preferência relativamente à venda acima referida, venho pela presente comunicar os termos do projectado negócio.”.
10.– Na mesma carta constam identificados no ponto VI os arrendamentos existentes no prédio, em número de nove, além do A..
11.– O A. por carta datada de 14.12.2015, cuja cópia se encontra junta a fls. 32 e 33 e se dá por reproduzida, o A. veio exercer o seu direito de preferência, tendo assim reportado, além do mais, que: «(…) No que concerne à comunicação para o exercício do direito de preferência na alienação do prédio propriedade da sua constituinte D. Maria, sito na Rua Augusta, números (…), freguesia de Santa Maria Maior, concelho de Lisboa, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº (…) da freguesia de São Nicolau, de cujo 2º esquerdo sou arrendatário, sou pela presente missiva a informar que pretendo exercer o direito de preferência na aquisição do referido imóvel. Exercido que está o direito de preferência e obedecendo a compra e venda aos tempos, preço, prazos e condições referidas na vossa missiva de 07 de Dezembro de 2015, solicito o envio no máximo até ao dia 17 de Dezembro de 2015, dos seguintes documentos: Certidão do registo predial; · Caderneta predial urbana; · Certificado energético; · Licença de utilização ou comprovativo da sua dispensa por se tratar de prédio com construção anterior a 07 de Agosto de 1951; · Cópia dos últimos recibos de renda e das últimas cartas de actualização de renda; Face ao exposto, aguardamos o envio dos documentos solicitados, dentro do prazo definido para o efeito, sendo que no dia 18 de Dezembro de 2015 às 12h estarei no Cartório Notarial de R... C... para a outorga da escritura pública de compra e venda. Mais solicito, que, para efeitos de liquidação de IMT e de IS me remetam a seguinte informação: -Identificação da proprietária, onde se inclui o NIF; - Estado Civil; - Se casada o regime de casamento e o NIF do cônjuge; Uma vez que a escritura é já dia 18 de Dezembro de 2015, solicito que o envio dos documentos supra referidos seja feito para o seguinte endereço de e-mail: advpedrogarcia@gmail.com.».
12.– A 1ª Ré não respondeu à comunicação do A. de 14.12.2015.
13.– Por escritura pública de compra e venda de 18.12.2015, exarada no Cartório da notária Rosa Correia, a fls. 115 a 117 verso, do livro de notas nº 100, a aqui 1ª R. representada por procuradora substabelecida, vendeu à 2ª R., pelo preço de € 3.450.000,00 (três milhões, quatrocentos e cinquenta mil euros), o prédio urbano supra identificado (Cfr. doc. de fls. 39 a 46 ).
14.– Na mesma data e hora agendadas para a escritura supra referida, o aqui A. encontrava-se no Cartório Notarial da Notária Rosa Correia, com vista a celebrar a escritura de compra e venda com a 1ª R., tendo esta recusado celebrar a escritura de compra e venda com o A. – cf. doc. de fls. 45 e 46.
15.– O A. pagou de honorários devidos à Notária pela não celebração do acto de compra e venda, e ainda pela obtenção do certificado de não outorga da escritura, o valor total de € 3.577,84 (três mil quinhentos e setenta e sete euros e oitenta e quatro cêntimos) – cf. doc. de fls. 47.
16.– O A., com data de 15 de Fevereiro de 2016, juntou aos autos cópia de um documento único de cobrança do IGFEJ no valor de 3.450.000,00€, tendo o pagamento de tal quantia sido feito pelo “BPI Net Empresas”, a 12/02/2016, efectuado por “S, S.A.”, empresa “O S.A.” e cuja autorização figura como tendo sido de “Acácio” – cfr. doc. de fls. 59 e 60 cujo teor se reproduz.
17.– A 1ª ré enviou carta idêntica à referida em 8. aos seguintes inquilinos: “M, Lda”, “I Lda”, “M Portugal, Lda”, “L, Lda”, Clara, Natércia - cf. fls. 201 a 212 cujo teor se reproduz.
O Direito.
Está provado que o A. é o arrendatário do 2.º andar esquerdo de um prédio não constituído em propriedade horizontal, sendo o único titular de um contrato de arrendamento celebrado em 1944, tendo por objeto o exercício de profissão liberal ou de comércio ou indústria. Em 18.12.2015 a 1.ª R., senhoria e proprietária do prédio, vendeu o mesmo à 2.ª R.. O A. pretende, ao abrigo do disposto no art.º 1410.º n.º 1 do Código Civil, haver para si o aludido prédio, ocupando o lugar da 2.ª R. na aludida venda. Para tal invoca o direito de preferência concedido ao arrendatário de prédio urbano pelo art.º 1091.º n.º 1 alínea a) do Código Civil, na redação introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27.02, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU). Porém, as RR. negam-lhe tal direito, por entenderem que a preferência só é concedida ao inquilino cujo arrendamento incida sobre a totalidade do imóvel transmitido e não apenas sobre uma sua parte, juridicamente não autónoma.
Pese embora o arrendamento em causa tenha tido o seu início em 1944, dúvidas não há de que ao litígio sub judice se aplica o regime jurídico aprovado pelo NRAU. De facto, foi já durante a sua vigência que ocorreram os factos relevantes para a constituição do direito que o ora A. pretende exercer, maxime a venda em que pretende preferir (no sentido de que a lei aplicável à regulamentação do direito de preferência do arrendatário será a lei que vigorava aquando da alienação do locado, cfr., v.g., acórdão do STJ, de 12.11.2009, processo 1842/04.3TVPRT.S1; acórdão do STJ, de 21.01.2016, processo 9065/12.1TCLRS.L1.S1; acórdão do STJ, de 14.7.2016, processo 695/05.9TBLLE.E1.S1, todos acessíveis na base de dados do IGFEJ).
Está em causa a interpretação do art.º 1091.º do Código Civil, introduzido pelo NRAU, o qual tem a seguinte redação:
“Regra geral 1–O arrendatário tem direito de preferência: a)- Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos; b)- Na celebração de novo contrato de arrendamento, em caso de caducidade do seu contrato por ter cessado o direito ou terem findado os poderes legais de administração com base nos quais o contrato fora celebrado. 2–O direito previsto na alínea b) existe enquanto não for exigível a restituição do prédio, nos termos do artigo 1053º 3–O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo artigo 1535º 4–É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416º a 418º e 1410º.”
As RR. entendem que a lei, ao estipular que o arrendatário tem direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado, arreda a preferência nos casos em que o objeto do arrendamento e o da compra e venda ou dação em cumprimento não coincidem, nomeadamente nos casos em que o arrendamento incide sobre parte juridicamente não autonomizada do prédio. Com efeito, nessas situações o local arrendado não é transmitido, mas sim o imóvel do qual faz parte.
Pelo contrário, o A./apelante defende que “local arrendado” é sinónimo de prédio ou imóvel arrendado, abrangendo as transmissões de prédios que contenham partes arrendadas juridicamente não autónomas.
Ambas as teses esgrimem argumentos atinentes à história do preceito, sua teleologia e inserção sistemática, relevando ou não a formulação utilizada pelo legislador na redação do preceito.
Vejamos.
O legislador fez questão de incluir no Código Civil um preceito regulador da tarefa de interpretação das leis. Assim, o art.º 9.º dispõe o seguinte:
“Interpretação da lei 1.-A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2.-Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3.-Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
A formulação legal contempla os elementos tradicionalmente apontados como os fatores a considerar na interpretação da lei (cfr. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 17.ª reimpressão, 2008, pp. 181-185) : o elemento gramatical (a “letra da lei”) e o elemento lógico (o “espírito da lei”), onde se integram o elemento racional ou teleológico (ratio legis, o fim visado pelo legislador ao elaborar a norma), o elemento sistemático (consideração das outras disposições que integram o instituto em que se insere a norma interpretanda e bem assim as disposições que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins, pressupondo-se que o conjunto normativo compõe um todo coerente) e o elemento histórico (a história evolutiva do instituto, os textos legais e doutrinais, nomeadamente estrangeiros, que inspiraram a norma interpretanda, os trabalhos preparatórios).
Analisemos a evolução histórica do direito de preferência dos arrendatários na transação do locado e a sua razão de ser.
Como é sabido, na sua origem o direito de preferência era reconhecido a certos titulares de direitos reais. No direito romano, era reconhecido aos co-herdeiros, visando preservar a propriedade da família contra a interferência de estranhos (vide Agostinho Cardoso Guedes, O exercício do direito de preferência, Porto, 2006, Publicações Universidade Católica, pp. 38 e 39) e veio a ser atribuído também a todos os comproprietários de prédios indivisos (Agostinho Guedes, ob. cit., p. 39). Também o enfiteuta deveria conceder ao proprietário preferência na transmissão do seu direito (Agostinho Guedes, ob. cit., pp. 38 e 40). No direito português, as Ordenações Afonsinas reconheciam o direito de avoenga, a faculdade de os familiares mais próximos de quem adquirira bens por herança os haverem para si, “tanto por tanto” (Agostinho Cardoso Guedes, ob. cit., pp. 41-45). Tal direito foi abolido a partir das Ordenações Manuelinas (Agostinho Guedes, pp. 45 e 46). As Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas também reconheciam direito de preferência (direito de “opção”) ao senhorio na alienação do domínio útil (Agostinho Guedes, ob. cit., pp. 46-49). O Código de Seabra manteve este direito, a par da criação de outros, como o direito do comproprietário na alienação a estranhos da quota sobre a coisa indivisível, o direito do proprietário de prédio serviente ou de prédio encravado na venda dos correspetivos prédios e ainda na transmissão de outros direitos reais menores (Agostinho Guedes, ob. cit., pp. 49 e 50).
Foi a Lei n.º 1662, de 04.9.1924, que pela primeira vez atribuiu ao inquilino direito de preferência (de “opção”) na venda do locado pelo senhorio – isto no âmbito do arrendamento comercial ou industrial.
O texto legal era o seguinte:
“O principal locatário, comercial ou industrial, de prédio urbano pode usar do direito de opção, nos termos da legislação geral, quando o senhorio vender o prédio. § único. Se o principal locatário não puder ou não quiser usar desse direito poderá usá-lo qualquer dos outros locatários, pela ordem decrescente das rendas.”
Numa época em que não existia propriedade horizontal, o aludido regime não deixava dúvidas de que a preferência era concedida mesmo ao arrendatário parcial, na venda da totalidade do prédio.
Na síntese avançada por José Pinto Loureiro em 1944 (Manual dos direitos de preferência, Coimbra, volume I, pp. 6 e 7) os direitos de preferência visam, nas modalidades supra referidas, tornar singular a propriedade comum, perfeita a propriedade imperfeita, livre a propriedade onerada, aqui se incluindo a libertação “não já propriamente de ónus no sentido técnico-jurídico, mas de situações embaraçosas, desvalorizadoras das coisas e geradoras de demandas, como as resultantes de arrendamentos comerciais e industriais” (autor e ob. cit., p. 7).
“Com isso”, acrescenta Pinto Loureiro, “não só a propriedade produzirá melhor e mais completamente desempenhará a função social que lhe compete, mas se evitarão litígios e desavenças” (ob. cit., p. 7).
Pesem embora as ponderosas razões que podem justificar a consagração legal de direitos de preferência, a doutrina não deixou, bem cedo, de criticar a prodigalidade do legislador nessa matéria. Veja-se as palavras de Pinto Loureiro, focando-se no período que sucedeu à parcimónia das Ordenações e do próprio Código Civil (de Seabra):
“A exuberância de preferências de que adiante se fará registo veio mais tarde, na corrente da legislação atrabiliária, que teve o seu início em 1895, nela se enxertando, algumas vezes com razão e outras sem ela,direitos que nasceram e vivem parasitariamente do favor legislativo, sem corresponderem à satisfação de qualquer necessidade séria. Sôbre muitos deles se teem cumulado intérminas discussões que nem a intervenção legislativa nem a actuação jurisprudencial e doutrinal teem logrado apaziguar, tão certo é que nunca o privilegiado deixará de lutar para que o seu privilégio lhe seja mais proveitoso, nem o que lhe suporta o pêso deixará de esforçar-se para o anular ou reduzir, numa luta eterna pela igualdade de direitos” (ob. cit., p. 22).
Da contraposição de interesses nesta matéria se fazem eco os trabalhos preparatórios da Lei n.º 2030, de 22.6.1948, que reiterou a atribuição do direito de preferência aos arrendatários para comércio e indústria, alargando-o às dações em pagamento do prédio arrendado e também aos arrendamentos para o exercício de profissão liberal.
Referindo-se ao projeto, da autoria de J. Gualberto de Sá Carneiro, que alargava o direito de preferência mesmo ao arrendamento para habitação, Pires de Lima, no seu Parecer elaborado na Câmara Corporativa, notava que “o direito de preferência, quando direito real de aquisição, implica uma séria restrição ao direito de propriedade e, além disso, embaraça gravemente o comércio jurídico. Por isso esse direito tem carácter muito excepcional em todos os sistemas legislativos, sendo admitido apenas naqueles casos em que, acima de um interesse privado a satisfazer, há o interesse público em pôr termo a uma situação inconveniente sob o ponto de vista económico ou social. É deste modo que em geral as legislações se servem para reagir contra os condomínios e as figuras chamadas entre nós propriedades imperfeitas ou contra certos ónus ou restrições que prejudicam o livre ou melhor aproveitamento das coisas”(transcrição colhida em “Para uma leitura restritiva da norma (artigo 1091.º do Código Civil) relativamente ao direito de preferência do arrendatário”, de José Carlos Brandão Proença, in Estudos em honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, volume II, Almedina, 2008, pp. 941 e 942). E, referindo-se ao previsto direito de preferência no âmbito do arrendamento comercial ou industrial, Pires de Lima escrevia, no seu Parecer: “
A situação do prédio arrendado para um estabelecimento comercial ou industrial é muito semelhante à de uma propriedade imperfeita. Claro que, no rigor dos princípios, não há fracionamento do domínio, pois o prédio pertence exclusivamente ao senhorio, sendo meros direitos de crédito os direitos de uso e fruição atribuídos ao arrendatário. Mas, de facto, desde que o legislador impõe àquele a renovação do contrato, desde que não se extingue o vínculo nem por morte de um nem por morte do outro, e sobretudo desde que é admitido livremente o trespasse e se reconhecem em certos casos ao inquilino direitos sobre a mais valia do prédio, tudo parece, afinal, como se existisse um fraccionamento perpétuo do direito de propriedade.” (estudo citado, p. 942).
Posto o Projeto a debate na Assembleia Nacional, “para lá da recusa na aceitação do direito de preferência do arrendatário habitacional, deputados como Bustorff da Silva, Proença Duarte e Pinto Coelho foram críticos relativamente à consagração da preferência dos outros arrendatários ao relevarem a sua repercussão negativa no “valor da transacção” e no próprio valor dos imóveis” (Brandão Proença, estudo citado, p. 943).
O direito de preferência do arrendatário comercial, industrial e liberal foi previsto, na Lei n.º 2030, pelo seguinte modo:
“Art. 66.º 1.–Na venda ou dação em pagamento de prédios arrendados para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, os arrendatários têm direito de preferência, graduado em último lugar, sucessivamente e por ordem decrescente das rendas. Não tem esse direito o arrendatário que não exercer no prédio, há mais de um ano, comércio, indústria ou profissão liberal. 2.–Na regulamentação da propriedade horizontal, prever-se-á a preferência no andar ocupado por cada arrendatário nas condições do número anterior. 3.–É extensivo às preferências prescritas neste artigo, na parte aplicável, o disposto no artigo 2309.º,§§ 4.º e 5.º, do Código Civil.”
O arrendatário parcial teria direito de preferência na alienação da totalidade do prédio, prevendo a lei o modo de determinação do preferente prevalecente, no caso de pluralidade de arrendatários.
Não seria assim em caso de propriedade horizontal, situação essa em que a preferência incidiria tão só sobre o andar ocupado pelo inquilino.
O Código Civil de 1966 manteve a atribuição de direito de preferência ao arrendatário comercial e industrial (e liberal, por remissão – art.º 1119.º).
Tal direito estava assim regulado, no art.º 1117.º:
“Direito de preferência 1.–Na venda, dação em cumprimento ou aforamento do prédio arrendado, os arrendatários que nele exerçam o comércio ou indústria há mais de um ano têm direito de preferência, sucessivamente e por ordem decrescente das rendas. 2.–É aplicável, neste caso, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416º a 418º e 1410.º 3.–O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima dos direitos de preferência conferidos ao senhorio directo e ao proprietário do solo na alínea c) do artigo 1499.º e no artigo 1535.º. 4.–Sendo dois ou mais os preferentes, abrir-se-á entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante.”
Continuava a reconhecer-se direito de preferência ao arrendatário de parte não autonomizada do prédio, na venda da totalidade do mesmo, regulando-se a concorrência de direitos de preferência, no caso de pluralidade de arrendatários.
A Lei n.º 63/77, de 25.8, consagrou o direito de preferência do arrendatário habitacional na venda e dação em pagamento do imóvel arrendado.
No preâmbulo do diploma justificava-se tal medida como um contributo, ainda que em grau reduzido, para uma política de acesso à habitação própria, cometida ao Estado pelo art.º 65.º n.º 2 da CRP.
Tal direito foi regulado em três artigos, que aqui se transcrevem: Art.º 1.º
“1.–O locatário habitacional de imóvel urbano tem o direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do mesmo. 2.–O locatário habitacional de fracção autónoma de imóvel urbano também goza do direito de preferência na compra e venda ou daçãoem cumprimento da respectiva fracção.” Art.º 2.º
“1.–Quando mais de um locatário habitacional exercer o direito de preferência, abrir-se-á entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante. 2.–Quando num imóvel urbano existirem um ou mais locatários habitacionais e um ou outros de diferente natureza, também com direito de preferência, proceder-se-á nos termos do número anterior.” Art.º 3.º
“Ao direito de preferência previsto nesta lei é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º do Código Civil.”
No caso de arrendamento parcial em prédio não constituído em propriedade horizontal, o direito de preferência do arrendatário abrangia a alienação da totalidade do prédio. Também se regulava a determinação do arrendatário prevalecente, em caso de pluralidade de arrendatários.
Tanto o art.º 1117.º do Código Civil, como a Lei n.º 63/77, foram revogados pelo Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 321-B/90, de 15.10.
O direito de preferência dos arrendatários de prédios urbanos passou a ser uniformemente regulado nos artigos 47.º a 49.º do RAU: Art.º 47.º
“Direito de preferência 1 - O arrendatário de prédio urbano ou de sua fracção autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano. 2 - Sendo dois ou mais os preferentes, abre-se entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante.” Art.º 48.º
“Graduação O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo artigo 1535º do Código Civil. Art.º 49.º
“Regime Ao direito de preferência do arrendatário é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416º a 418º e 1410º do Código Civil.”
No art.º 47.º do RAU o legislador reporta, pela primeira vez, o exercício da preferência à alienação do “local arrendado”.
Tal alteração da terminologia legal levou Oliveira Ascensão a defender que o legislador quisera consagrar a regra da coincidência entre o objeto do arrendamento e o da preferência. Assim, se o imóvel transacionado não estivesse constituído em propriedade horizontal, o arrendatário que apenas tivesse arrendado parte do prédio não poderia exercer a preferência na alienação do prédio, na medida em que esta não tinha por objeto o local arrendado, mas algo diverso, o prédio onde o local arrendado se continha, que constituía realidade diversa do arrendado (cfr. “Subarrendamento e direitos de preferência no novo regime do arrendamento urbano”, in ROA, n.º 51, vol. I, Abril 1991, pp. 66-69). O princípio da coincidência do objeto do direito que funda a preferência com o objeto da preferência manifestar-se-ia também no art.º 417.º n.º 1 do Código Civil, onde se estabelece que se o obrigado à preferência quiser vender a coisa juntamente com outra ou outras, por um preço global, a preferência pode ser exercida sobre a coisa vinculada, mas o obrigado pode exigir que ela abranja todas as restantes. Ou seja, em princípio a preferência incide tão só sobre a coisa objeto do direito base da preferência; só se alargará às outras coisas se tal for do interesse do obrigado à preferência. Segundo Oliveira Ascensão, obtém-se assim uma solução mais racional: “a preferência do arrendatário de um local não pode ser transformado em cana de pesca para a aquisição de todo o prédio” (cfr. “Direito de preferência do arrendatário”, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, III volume, Almedina, 2002, p. 255). “A preferência não é um imperativo inderrogável: é um instituto que funciona dentro das possibilidades, numa conjugação óptima dos interesses em presença. Doutra maneira a preferência seria muito menos um meio de defesa da posição do arrendatário do que um direito de aquisição de novas coisas, onerando ainda mais gravemente a situação do senhorio” (Oliveira Ascensão, estudo citado, p. 255).
Tal tese teve a adesão de M. Januário da Costa Gomes (Arrendamentos comerciais, 2.ª edição, 1991, Almedina, pp. 203 e 204).
Porém, a grande maioria da doutrina e da jurisprudência não alinhou com esta interpretação restritiva, considerando que nesta parte o legislador não inovara. Conforme decorre do texto da lei (“O arrendatário de prédio urbano ou de sua fracção autónoma tem o direito de preferência”), o legislador atribui o direito de preferência tanto ao arrendatário de fração autónoma como ao arrendatário do prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, sendo a expressão “local arrendado” uma fórmula uniformizadora que se reportava quer à alienação da fração autónoma quer à alienação de prédio não constituído em propriedade horizontal. As modificações na redação da lei visaram harmonizar os preceitos pretéritos existentes quanto à preferência nos arrendamentos para comércio, indústria e profissão liberal, por um lado, e quanto ao arrendamento habitacional, por outro. De resto, que assim era revelava-o o disposto no n.º 2 do art.º 47.º, cuja utilidade assentava na frequente concorrência de direitos de preferência decorrente da pluralidade de arrendatários em prédios não constituídos em propriedade horizontal – sendo certo que a eventual pluralidade de arrendatários do mesmo locado (situações de co-arrendamento), pela sua raridade, não justificaria esse preceito legal. Este representava a aplicação aos arrendamentos comerciais, industriais e para o exercício de profissão liberal da solução anteriormente prevista para a concorrência na preferência de inquilinos habitacionais (no sentido maioritário vide, na doutrina, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. II, Coimbra Editora, 4.ª edição, 1997, p. 568; Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte especial): contratos: compra e venda, locação, empreitada, 2.ª edição, Almedina, 2001, p. 266, nota 2; Jorge Alberto Aragão Seia, Arrendamento urbano anotado e comentado, Almedina, 7.ª edição, 2003, p. 327; Agostinho Cardoso Guedes, O exercício do direito de preferência, ob. cit., pp. 184-186); na jurisprudência, vide acórdãos do STJ, de 26.9.1991, BMJ 409, p. 774; 30.4.1996, CJSTJ, 1996, t. II, p. 132; 28.01.1997, CJSTJ, 1997, t. I, p. 77; 30.4.1997, BMJ 466, p. 501; 10.12.1997, proc. n.º 97A853, base de dados do IGFEJ; no sentido minoritário, vide acórdão do STJ, de 09.3.1995, CJSTJ, 1995, t. I, p. 118; 02.6.1999, CJSTJ, 1999, t. II, p. 129).
De notar, de todo o modo, que a aludida interpretação restritiva da lei era, por alguns, tida como preferível, de jure condendo (Pedro Romano Martinez, ob. cit., p. 266, nota 2). E havia defensores, de jure condendo, da pura e simples eliminação da preferência do inquilino na alienação do arrendado, “que desvaloriza a propriedade e dificulta a sua circulação” (António Menezes Cordeiro e Francisco Castro Fraga, Novo Regime do Arrendamento Urbano, 1990, Almedina, p. 97, nota 3).
E, na primeira tentativa de reforma profunda do regime jurídico do arrendamento urbano que se sucedeu à aprovação do RAU, foi prevista a eliminação do direito de preferência dos arrendatários na alienação dos prédios arrendados. De facto, impulsionado pela Proposta de Lei n.º 140/IX, apresentada em 27.9.2004 pelo XVI Governo Constitucional (liderado por Pedro Santana Lopes) onde se anexava o NRAU/2004, como “Ante-projecto de decreto-lei autorizado que aprova o regime dos novos arrendamentos urbanos” (DAR, II série A, n.º 5/IX/3, suplemento de 30.9.2004, pp. 15 e ss), veio a ser aprovado, com o voto favorável dos Grupos Parlamentares do PSD e CDS e contra dos restantes partidos, o Decreto n.º 208/IX da A.R., de 18.11 (DAR, II série A, n.º 23/IX/3, de 09.12.2004, pp. 4 e ss), no qual o Governo era autorizado a “suprimir os direitos de preferência atribuídos nas leis em vigor, salvo preceito expresso em contrário” (art.º 3.º, 1, dd)). Nos termos do anexo da Proposta de Lei n.º 140/IX, o art.º 1096.º do Código Civil, sob a epígrafe “Regra geral”, inserido na Subsecção VI (Direito de preferência) da Secção VII (Arrendamento de prédios urbanos), proclamava o seguinte: “Nos arrendamentos urbanos regidos pela presente secção, nenhuma das partes tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do direito da outra, salvo preceito expresso em contrário.”
Segundo consta no ponto 18 do anexo da Proposta de Lei, “trata-se de uma velha aspiração destinada a libertar a riqueza imobiliária, permitindo a transparência requerida pela efectividade de um mercado.”
O principal autor da projetada reforma, António Menezes Cordeiro, explicitava o seu entendimento, no artigo “A modernização do Direito português do arrendamento urbano”, in O Direito, ano 136.º (2004), II-III, pp. 235-253: “Muito importante é o desaparecimento da apertada teia de preferências, antes existente – 1096.º. Desde o período liberal, são pacíficos os inconvenientes dos gravames que recaiem sobre a propriedade. Meros sobrecustos não produtivos, as preferências exprimiam-se por abundante litigiosidade, complicando os negócios e entravando a livre circulação da propriedade.” (p. 251).
Contudo, a queda do XVI Governo Constitucional fez abortar a pretendida reforma do regime do arrendamento urbano, batizada de “Regime do Novo Arrendamento Urbano- RNAU.”
A nova maioria política não extinguiu, contudo, o impulso reformador do regime do arrendamento urbano, o qual veio a desembocar, como se sabe, no NRAU. Contudo, como se viu, o NRAU não eliminou a preferência do arrendatário na alienação do arrendado, continuando a prevê-la, no art.º 1091.º do Código Civil. Mas, por um lado, impôs-lhe restrições, como seja a decorrente do prolongamento (de um ano para três anos) da duração do arrendamento para a concessão da preferência. Por outro lado, por força da aplicação do regime geral do arrendamento urbano a situações que à luz do RAU dele estavam arredadas (vide arrendamentos de duração limitada – art.º 99.º n.º 2 do RAU - e arrendamentos para fins limitados – artigos 5.º n.º 2 al. e) e 6.º n.º 1 do RAU), o direito de preferência passou a beneficiar, em tese geral, arrendatários de espaços destinados, por exemplo, ao parqueamento de viaturas ou à afixação de publicidade. Mas, como se viu, a determinação legal do objeto da preferência fixou-se, como se salientou, no “local arrendado”, abandonando-se a referência ao “prédio urbano” ou a “sua fração autónoma” e, mais ainda, desaparecendo a norma que resolvia o litígio decorrente da frequente concorrência, na preferência, entre arrendatários de partes não autónomas de prédio não constituído em propriedade horizontal.
Nos trabalhos preparatórios da Lei n.º 6/2006 não se encontra menção a uma eventual explicação para a aludida modificação do texto legal respeitante à preferência do arrendatário na alienação do locado. Mas sabe-se, até pela tentativa da sua eliminação na legislatura antecedente, que essa realidade não estava fora das atenções do legislador. Note-se que, em sede de discussão na especialidade da Proposta de Lei n.º 34/X (que originou a Lei n.º 6/2006), o PSD propôs, com o apoio do CDS-PP, a eliminação do art.º 1091.º, o que foi rejeitado, com os votos do PS, PCP e BE (DAR, II série A, n.º 072S1, 05.01.2006, pp. 8 e 17). Realizada a votação final global, em Plenário, os Deputados do PSD, José Luís Arnaut e Rosário Cardoso Águas, entregaram à Mesa uma declaração de voto em que, além do mais, lamentavam a rejeição da proposta de abolição dos direitos de preferência (DAR, I Série, n.º 071, 22.12.2005, p. 3358).
O textual direcionamento da preferência para a alienação do “local arrendado”(elemento gramatical) e a simultânea eliminação da regra cuja aplicabilidade pressupunha a concorrência da preferência de arrendatários de partes não autónomas de prédio não constituído em propriedade horizontal (regra essa que sempre antes existira, desde 1924 – elemento histórico), acrescida da injustificável eventual atribuição de preferência na alienação do prédio a arrendatários a ele ligados por interesse meramente acessório face à sua finalidade principal -v.g., arrendatários para utilização de um espaço publicitário ou para colocação de uma antena de telecomunicações – (elemento sistemático), levaram a maioria da doutrina e parte da jurisprudência a considerar que o legislador quis, desta feita, restringir o direito de preferência a titulares de arrendamentos cujo objeto coincidisse com o da alienação. Assim, o arrendatário de parte não autónoma de um prédio não constituído em propriedade horizontal não tem direito de preferência na alienação da totalidade do prédio. Neste sentido, cfr., na doutrina, Pedro Romano Martinez, no Parecer junto a estes autos; Maria Olinda Garcia, O arrendamento plural, quadro normativo e natureza jurídica, Coimbra Editora, 2009, pp. 162 e 163; Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, Arrendamento urbano, Novo regime anotado e legislação complementar, 3.ª edição, 2009, Quid Juris, p. 435; António Menezes Cordeiro, Leis do Arrendamento Urbano anotadas, Códigos Comentados da Clássica de Lisboa, Almedina, 2014, p. 262; José Pedro Carneiro Cadete, Da Preferência do Arrendatário Habitacional, Trabalho de Mestrado na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2011, acessível na internet através de motor de busca. Em sentido contrário, A. Barreto Menezes Cordeiro, no Parecer junto a esta apelação (embora o Parecer aparente considerar um caso de arrendamento habitacional); Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, volume II, 2011, 5.ª edição, Almedina, pp. 816-818; Elsa Sequeira Santos, in Código Civil anotado, coordenação de Ana Prata, 2017, volume I, pp. 1334-1337. Na jurisprudência, no sentido ora propugnado, cfr. o acórdão da Relação de Lisboa, de 26.3.2015, processo 9065-12.1TCLRS.L1-6, e o acórdão do STJ que o confirmou, de 21.01.2016, processo n.º 9065/12.1TCLRS.L1.S1 – ambos consultáveis na base de dados do IGFEJ. Em sentido contrário, cfr. o acórdão da Relação de Coimbra, de 23.6.2015, processo n.º 1275/12.8TBCBR.C1 e, embora em obiter dictum, por incidir sobre caso ainda regido pelo RAU, o acórdão do STJ de 12.01.2012, processo n.º 72/2001.L1.S1.
O legislador assumiu, nesta contraposição de interesses e de soluções possíveis que supra se expôs (elemento teleológico), uma solução intermédia, mantendo as peias que a preferência impõe à circulação do bem arrendado, mas circunscrevendo-a à proteção daquele que exerce um direito pessoal de gozo coincidente, na sua expressão física, com o bem alienado.
Tal restrição no âmbito da preferência não ofende as valorações constitucionais, conforme decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 583/2016, de 03.11.2016 (publicado no D.R., II série, de 09.12.2016), tirado sobre o supra citado acórdão do STJ, de 21.01.2016, nomeadamente no que concerne à igualdade entre arrendatários de frações autónomas e arrendatários de frações não autonomizadas de prédios não constituídos em propriedade horizontal. Segundo o TC, “não pode afirmar-se igual a situação do arrendatário de uma parte de um imóvel com autonomia jurídica — designadamente, uma fração autónoma — e a do arrendatário de uma parte de um imóvel não autonomizada, desde logo porque a igualdade não pode aferir-se por referência ao mais simplificado plano de facto, mas à situação global complexa de facto e de direito”. “Não estando vedado ao legislador a previsão, como objeto da preferência, de um direito tão amplo como aquele que resulta da atuação da teoria expansionista, a circunscrição desse objeto nos termos resultantes da chamada teoria do local também não está vedada, pois a distinção de regimes envolvida nesta última opção não se apresenta arbitrária ou carecida de fundamento racional na diferenciação das situações envolvidas: as que, no quadro de uma pretensão de exercício da preferência pelo arrendatário habitacional, podem conduzir a um tratamento diferenciado de quem é confrontado com a venda, exclusivamente, do seu “local arrendado” e quem é confrontado com um negócio abrangendo um espaço mais amplo do qual não é juridicamente destacável o correspondente ao objeto do arrendamento.”
É certo que, contudo, se mantém a possibilidade, prevista no art.º 417.º n.º 1 do Código Civil (aplicável à preferência do arrendatário por força da remissão do n.º 4 do art.º 1091.º do Código Civil), de o obrigado à preferência vender ao beneficiário, por força do mecanismo da preferência, a fração autónoma arrendada, juntamente com outra ou outras cuja alienação faça parte do negócio global que havia sido acordado com terceiro. Aqui poderia lobrigar-se contradição com a impossibilidade de o arrendatário de parte não autónoma do prédio poder adquirir a totalidade do prédio à boleia do seu direito de preferência. Porém, aqui o legislador manteve a solução tradicional, que, em virtude da natureza dos bens alvo da preferência e da transação acordada (coisas juridicamente autónomas), dá ao obrigado à preferência e ao preferente a possibilidade de modelarem o exercício da preferência, que em primeira linha incidirá tão só sobre a coisa arrendada, alvo da preferência, e só subsidiariamente, no interesse do senhorio, poderá abarcar outras frações autónomas.
Da manutenção deste esquema não se deve ou pode deduzir que o legislador, ao alterar o texto legal do regime da preferência do arrendatário na alienação do arrendado, da forma como o fez, não quis na realidade modificar tal regime. Cumpre presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9.º n.º 3 do Código Civil), e não, conforme propugna o apelante, defender que o preceito sub judice enferma de uma imprecisão de conceitos técnico-jurídicos (vide conclusão uu) das alegações da apelação).
Assim, a eliminação do preceito que regulava a (frequente) concorrência na preferência entre arrendatários de partes diversas de prédio não submetido à propriedade horizontal, não é inocente. Ela significa que, para o legislador, desapareceu o problema que estava vocacionado para resolver. E não, contrariamente ao propugnado pelo Prof. Barreto Menezes Cordeiro, no Parecer que juntou a estes autos, que a esta solução presidam “simples propósitos de sistematização ou de simplificação da matéria” (pág. 25 do Parecer). Propósitos esses que, afinal, ficariam bem defraudados face às dúvidas e divergências em que incorrem os defensores da tese expansionista no esforço de suprirem a suposta lacuna: Pinto Furtado hesita entre a adjudicação do prédio aos preferentes em conjunto, na proporção das respetivas quotas (invocando o disposto no art.º 1464.º do CPC anterior, atual art.º 1036.º do NCPC) e a licitação entre todos (ao abrigo do art.º 896.º n.º 2 do anterior CPC, atual art.º 823.º n.º 2) – ob. cit., pp. 417 e 418; Barreto Menezes Cordeiro limita-se a remeter para a multiplicidade de regras de direito adjetivo constantes nos artigos 1028.º a 1038.º do CPC (pág. 25 do Parecer) e Elsa Sequeira Santos defende a aplicação analógica do art.º 419.º do Código Civil (ob. cit. pp. 1336 e 1337) – o que parece ser contrariado pelo facto de o legislador remeter, no n.º 4 do art.º 1091.º do Código Civil, para os artigos 416.º a 418.º do mesmo diploma, excluindo o art.º 419.º - a que acresce o facto de o art.º 419.º conter soluções diversas, nos seus dois números, o que alargará ainda mais a controvérsia.
Afigura-se-nos, assim, concorde-se ou não com a bondade da opção, que o legislador tomou o rumo que fora anteriormente propugnado por Oliveira Ascensão, não eliminando o direito de preferência do arrendatário urbano na alienação do locado, mas restringindo o seu alcance.
Consequentemente o A., arrendatário de parte não autónoma de um prédio não constituído em propriedade horizontal, não tem direito de preferência na venda desse prédio, por tal direito não lhe ser reconhecido pelo art.º 1091.º n.º 1 al. a) do Código Civil.
Nesta parte, pois, a apelação é improcedente.
Segunda questão (abuso de direito por parte da 1.ª R.)
Como é sabido, o direito de preferência pode ter fonte convencional. Com efeito, as partes podem celebrar entre si um “pacto de preferência”, que a lei define como a “convenção pela qual alguém assume a obrigação de dar preferência a outrem na venda de determinada coisa” (art.º 414.º do Código Civil). Nos termos desse contrato o obrigado à preferência compromete-se, no caso de vir a pretender vender (ou transmitir a outro título, compatível com a obrigação de preferência – art.º 423.º do CC) a outrem o bem objeto do pacto, a dar ao beneficiário do pacto a possibilidade de adquirir a coisa, em igualdade de condições (“tanto por tanto”). Para o efeito, “querendo vender a coisa que é objecto do pacto, o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato” (n.º 1 do art.º 416.º). Por sua vez, “recebida a comunicação, deve o titular exercer o seu direito dentro do prazo de oito dias, sob pena de caducidade, salvo se estiver vinculado a prazo mais curto ou o obrigado lhe assinar prazo mais longo” (n.º 2 do art.º 416.º).
Se as partes tiverem atribuído ao pacto eficácia real, observando os necessários requisitos de forma e publicidade, o preferente terá, no caso de incumprimento do pacto, direito a obter, por via judicial, a efetivação da preferência (artigos 421.º e 1410.º do CC). Caso contrário, o beneficiário da preferência apenas terá direito a ser ressarcido pelos prejuízos emergentes do incumprimento do pacto.
No caso dos autos, a 1.ª R., senhoria do A., comunicou-lhe o projeto de venda do imóvel onde o arrendado se localizava (n.ºs 8 e 9 da matéria de facto). Mas não o fez ao abrigo de um qualquer pacto de preferência, mas de uma (suposta) preferência legal. De resto, tal comunicação foi enviada pela senhoria também aos outros inquilinos do prédio (n.º 17 da matéria de facto). O que retiraria à aludida comunicação a natureza de uma verdadeira proposta de venda, apresentada com o intuito de dar forma a um autêntico contrato-promessa de compra e venda (art.º 410.º do Código Civil).
De todo o modo, a verdade é que o A. respondeu a essa carta, declarando à 1.ª R. que pretendia exercer o direito de preferência, ao que a 1.ª R. não respondeu. E, tendo o A. comparecido na data aprazada para a realização da venda, a 1.ª R. recusou-se a vender-lhe o imóvel, alienando-o, antes, à ora 2.ª R..
Invoca assim o A., subsidiariamente, para sustentar a sua pretensão, o instituto do abuso de direito, previsto no art.º 334.º do Código Civil.
Sob a epígrafe “abuso do direito”, o art.º 334.º do Código Civil estipula que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito.”
Artigo resultante do artigo 281.º do Código Civil grego, positiva um mecanismo geral de correção daquilo que, na formulação de António Menezes Cordeiro, constituirá o “exercício disfuncional de posições jurídicas” (“Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, Exercício Jurídico”, 2.ª edição, 2015, Almedina, pág. 403), ou seja, a “disfuncionalidade de comportamentos jurídico-subjetivos” que, embora consentâneos com normas jurídicas, contrariam o sistema jurídico em que estas se inserem, isto é, o conjunto de normas e princípios de Direito, ordenado em função de um ou mais pontos de vista, que aquele postula, iluminado pela ideia central do respeito pela boa-fé (Menezes Cordeiro, obra citada, páginas 400 e 401, 402 a 407).
A aplicação do abuso do direito tem-se desenvolvido a partir de grandes grupos de casos típicos, avultando, para o caso sub judice, o venire contra factum proprium, que é invocado pelo apelante. Venire contra factum proprium consiste, em Direito, no exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente (Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 305). Aqui, a regra da observância da boa-fé expressa-se enquanto tutela da confiança, que pressuporá, seguindo-se a síntese de Menezes Cordeiro, quatro requisitos, não necessariamente cumulativos:
1.º- “Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa-fé subjetiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias”;
2.º- “Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objetivos capazes de, em abstrato, provocarem uma crença plausível”;
3.º- “Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efetivo de atividades jurídicas sobre a crença consubstanciada”;
4.º- “A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela proteção dada ao confiante: tal pessoa, por ação ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao fator objetivo que a tanto conduziu” (Menezes Cordeiro, ob. cit., pp. 322-324).
No caso dos autos, é inegável que a 1.ª R. criou no A. a convicção de que lhe reconheceria o direito de preferência na venda do dito imóvel, tanto por tanto, ou seja, a faculdade de lho comprar pelo preço e demais condições que haviam sido acordadas com a ora 2.ª R.. E, tendo o A. escrito à 1.ª R. dando nota do seu interesse na compra, a 1.ª R. não desmentiu ou contrariou tal propósito. Dando azo a que o A. tomasse providências e assumisse despesas tendo em vista a concretização do negócio. Assim, ao proceder à venda do imóvel à 2.ª R., a 1.ª R. agiu em violação da confiança que criara junto do A..
Porém, em relação à 2.ª R. nada se provou que justifique ou imponha o seu envolvimento na tutela alegadamente proporcionada ao A. pelo art.º 334.º do Código Civil. A 2.ª R. acordou com a 1.ª R. a aquisição do imóvel, tendo as partes fixado o respetivo preço e designado a data da respetiva escritura. Assim, também a 2.ª R. tinha, afinal, razões, tuteladas pelo direito, para reclamar a celebração do negócio. Não constando nos autos que, de alguma forma, contribuiu, subjetiva ou objetivamente, para uma situação de que deveria, à luz dos princípios da boa-fé que presidem ao sistema, sair preterida face ao ora A..
Assim, negando a lei o direito de preferência do A. no dito negócio, não existindo entre o arrendatário e a senhoria um pacto de preferência com eficácia real, e sendo inoponível ao terceiro o exercício abusivo do seu direito por parte da 1.ª R., falece a pretensão do A, de obter, por aplicação do art.º 334.º do Código Civil, a sequela prevista no art.º 1410.º n.º 1 do Código Civil.
Também nesta parte a apelação é improcedente.
Terceira questão (direito de indemnização do A.)
Se, como se aduziu supra, a pretensão principal do A. (substituição da 2.ª R. na posição de comprador do imóvel) não pode ser acolhida, o mesmo não pode dizer-se quanto ao ressarcimento das despesas por si suportadas em virtude do comportamento da 1.ª R., mais precisamente as referidas no n.º 15 da matéria de facto.
Efetivamente, sob a epígrafe “culpa na formação dos contratos”, no n.º 1 do art.º 227.º do Código Civil prescreve-se que“quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”.
Ora, embora a 1.ª R. não possa ser compelida a vender ao A. o imóvel de que era proprietária, nem a 2.ª R. possa ser removida da titularidade do imóvel, a 1.ª R. deve ser responsabilizada pelas despesas supra referidas, a que deu azo em virtude do seu comportamento que, conforme supra aduzido, atenta, objetivamente, contra as regras da boa-fé, sendo certo que as aludidas despesas suportadas pelo A. se confinam ao interesse contratual negativo, tradicionalmente reconhecido no âmbito da responsabilidade civil pré-contratual (neste sentido, cfr. STJ, acórdão de 08.01.2009, processo 08B2772).
Nesta parte, pois, diverge-se da sentença recorrida, procedendo a apelação.
DECISÃO.
Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e, consequentemente:
1.º- Altera-se a sentença recorrida, condenando-se a 1.ª R. a pagar ao A., a título de indemnização, a quantia de € 3 577,84 (três mil quinhentos e setenta e sete euros e oitenta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, atualmente de 4%, vencidos e vincendos desde a data da citação da 1.ª R. e até integral pagamento;
2.º- No mais, mantém-se a sentença recorrida, exceto quanto a custas, que são da responsabilidade do A. e da 1.ª R., na proporção do respetivo decaimento, tanto na primeira instância quanto nesta Relação (art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC).
Lisboa, 08.02.2018
Jorge Leal Ondina Carmo Alves Pedro Martins (vencido, conforme declaração de voto que segue):
Não há base legal para a posição que dois acórdãos recentes adoptaram relativamente a esta questão, contra uma posição tradicional amplamente maioritária que reconhecia o direito de preferência do arrendatário de parte indivisa no caso da venda de todo o prédio. Sendo esta posição recente que explica que a ré, tendo primeiro notificado o autor para a preferência, apercebendo-se daquela posição, tenha voltado atrás recusando-lhe esse direito. No sentido de se manter a posição tradicional, para além do parecer do Prof. de Direito apresentado pelo autor, veja-se a anotação 4 ao art. 1091 do CC, feita por Elsa Sequeira Santos, no Código Civil anotado, 2017, Almedina, págs. 1334/1335 (para além de outros autores citados no acórdão). Ambos estes autores dão resposta aos argumentos da posição contrária, entre eles os baseados na expressão “local arrendado” (que já existia no RAU de 1990) e na supressão da previsão contida no revogado art. 47/2 do RAU, que não tem qualquer valor, pois que, mesmo para a tese que fez vencimento continua a haver possibilidade de concorrência de preferentes. Tal como rebatem também o argumento ad absurdum do arrendatário de uma antena de telhado que poderia preferir na venda de todo o prédio. A solução de considerar existente o direito de preferência também nestes casos em nada prejudica o senhorio e prossegue os mesmos objectivos de extinguir a oneração da propriedade, que a solução contrária não evita (o prédio vai continuar onerado com o arrendamento). A posição ‘esmagadoramente maioritária’ de que fala a ré, resume-se, jurisprudencialmente, àqueles dois acórdãos, um do TRL e outro do STJ, que recaíram sobre o mesmo caso. Sendo que em sentido contrário, o acórdão a que respeita este voto de vencido aponta outros dois [embora um deles em obiter dictum; ainda nestes termos, podia invocar-se, neste último sentido, o ac. do STJ de 29/09/2015, proc. 1555/08.7TBMAI.P1.S1; hoje podem ainda invocar-se outros dois acórdãos em sentidos opostos: ambos do TRG, um de 19/10/2017, proc. 1832/15.0T8GMR.G1, e outro de 07/12/2017, proc. 1130/15.0T8VNF-F.G1]. E a doutrina (aquela que já se pronunciou sobre a questão, que não foi toda) também continua dividida como, aliás, o acórdão dá conta. Assim, voto vencido quanto a esta questão.