CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
PRESSUPOSTOS
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
RECONHECIMENTO PRESENCIAL DAS ASSINATURAS
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
NULIDADE
RENÚNCIA ANTECIPADA DE ARGUIÇÃO
Sumário

I - O recurso à execução específica de um contrato-promessa de compra e venda de imóvel pressupõe a mora, não sendo viável quando se verifica uma situação de incumprimento definitivo.
II - Para além dos casos expressamente previstos na lei, deverá entender-se que também configura incumprimento contratual definitivo a ocorrência de um comportamento do devedor que exprima, de forma inequívoca, a vontade de não querer o contrato.
III - Estando a nulidade decorrente da omissão das formalidades legais a que se refere o art. 410°, n° 3 do Cód. Civil na disponibilidade das partes, nada impede que, prevendo tal efeito jurídico, ambas as partes renunciem antecipadamente, de forma expressa ou tácita, ao direito de invocá-la.
IV - Se as partes declararam prescindir do reconhecimento presencial, deverá entender-se que pretenderam afastar toda e qualquer intervenção notarial na certificação dos documentos que corporizam a licença de utilização.
V - Uma vez que esta licença existe, estando inclusivamente mencionada no contrato-promessa e ainda porque a sua certificação notarial é feita simultaneamente ou mesmo no próprio termo de reconhecimento de assinaturas, a partir do momento em que se prescindiu desse reconhecimento, está-se também a prescindir dessa certificação.

Texto Integral

Proc. nº 7883/10.4 TBVNG.P1
Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia – 1ª Vara de Competência Mista
Apelação
Recorrentes: B… e C…; D…
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Pinto dos Santos

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
Os autores B… e mulher, C…, residentes na Rua …, n.º …, …, r/c esquerdo, …, Vila Nova de Gaia, propuseram contra os réus D… e mulher, E…, residentes na Rua …, n.º …, …, Vila Nova de Gaia e “F…, S. A.”, com sucursal na Rua …, n.º …., …, Vila Nova de Gaia, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, pedindo que:
. os 1ºs réus sejam condenados a pagar aos autores a restante parte do preço em falta no montante de 81.801,65€, destinando-se parte deste valor a obter a expurgação das hipotecas sobre o imóvel a favor do 2º réu;
. os 1ºs. réus sejam condenados a pagar a quantia de 6.397,84€ – mensalidades em dívida de prestação que os réus se obrigaram a pagar;
. o 2.º réu seja condenado a entregar aos autores títulos de distrate das hipotecas;
. os 1ºs. réus sejam condenados a pagar o competente I. M. T.;
. seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial dos faltosos em sede de contrato-promessa.
O fundamento fáctico destes pedidos assenta na celebração de um contrato-promessa entre autores (promitentes-vendedores) e réu (promitente-comprador) relativo a uma fração autónoma (T2, r/c esquerdo, bloco A, entrada n.º .., sito na Rua …, …, Vila Nova de Gaia) com contrato definitivo a celebrar no prazo máximo de 3 anos e que chegado o dia 31.7.09, no cartório notarial, os réus invocaram diversas vicissitudes e não o celebraram.
Citados, contestaram os 1ºs. réus alegando que a ré mulher não celebrou o contrato já que não o assinou e que o contrato está ferido de nulidade por não conter o reconhecimento da licença de habitabilidade e por não estar assinado pela ré mulher.
Mais alegaram que na data marcada para realização da escritura o prédio ainda estava onerado e que não houve qualquer estipulação para pagamento por cheque visado.
Terminam pedindo a improcedência da acção e, em reconvenção, a condenação dos autores a restituírem o que receberam do réu marido (9.425,82€) ou o pagamento do prestado em dobro, tudo acrescido de juros de mora.
Replicaram os autores referindo que o contrato assinado por um dos cônjuges é válido juridicamente, há referência a licença de habitabilidade no contrato e que a exigência de cheque visado foi efectuada pelo 2.º réu e que seria algo que podia ser ultrapassado no próprio dia da escritura.
Mais referem que também nesse dia, pago o valor do empréstimo hipotecário, seria emitido o distrate das hipotecas, na posse do representante do Banco.
Elaborou-se despacho saneador, com subsequente fixação da factualidade assente e organização da base instrutória.
Realizou-se audiência de julgamento, tendo o tribunal respondido à matéria da base instrutória através do despacho de fls. 295 e segs.
Foi proferida sentença na qual se julgou parcialmente procedente a ação e, em consequência, condenou-se o réu D… a pagar aos autores a quantia de 3.333,00€, sendo absolvido dos restantes pedidos formulados.
Absolveu-se a ré E… de todos os pedidos formulados pelos autores.
Absolveu-se o 2.º réu do pedido contra si formulado pelos autores.
Por último, o pedido reconvencional foi julgado totalmente improcedente.
Inconformados, interpuseram recurso os autores, que finalizaram as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª- A sentença, de fls., ao julgar apenas parcialmente procedente a acção, absolvendo os 1ºs. e 2º Réus dos pedidos formulados em A), C), D) e E) da parte final da P.I., fez erradas apreciação das provas, julgamento e decisão da matéria de facto e, consequentemente, incorrectas subsunção e aplicação do direito;
2ª- Os AA. apelam para este Venerando Tribunal no sentido de que seja alterada a decisão sobre a matéria de facto e revogada tal sentença na parte que lhes é desfavorável, ora recorrida, e os 1ºs. RR. e 2º R. sejam condenados no restante pedido;
3ª- Os AA. consideram que foram incorrectamente julgados os factos 2º, 6º, 7º, 9º, 10º, 11º e 12º da Base Instrutória, porquanto da instrução e julgamento da causa resultou que a resposta a dar aos mesmos deveria ser, mais rigorosamente, a de “provado”;
4ª- Neste sentido, tal resulta do depoimento das testemunhas G…, H… e I… – que foram inquiridas à matéria de facto em causa na sessão de 29 de Novembro de 2011, conforme consta da respectiva Acta de Audiência de Discussão e Julgamento e cujos depoimentos ficaram registados em sistema integrado de gravação digital, respectivamente, com início às 10:08:16 e fim às 10:25:33, com início às 10:26:25 e fim às 10:50:34, e com início às 10.51:21 e fim às 11:14:59, aqui dados como reproduzidos e integrados, para os devidos e legais efeitos, e cujas passagens das gravações são transcritas em I) supra;
5ª- É de presumir e, nesse sentido, dar-se como provado que o preço de €: 82.301,65 referido na segunda cláusula do contrato-promessa era o valor dos dois mútuos com hipoteca ao banco 2º R. que, naquele momento estava em dívida;
6ª- Os AA. fizeram essa prova através do Extracto Combinado Nº 2005/…, datado de 05/09/30, que juntaram aos autos com o requerimento probatório;
7ª- Da matéria de facto apurada na 1ª instância, extractada em 3.1., de I) supra, resulta que a 1ª Ré mulher celebrou o contrato-promessa em lide, mas apenas não o assinou;
8ª- A responsabilidade da 1ª Ré-mulher emergente de tal contrato sempre derivaria do facto de ter sido celebrado pelo 1º Réu marido, como cônjuge administrador e em proveito comum do casal;
9ª- Em caso de inadimplemento de contrato-promessa que derive da recusa de celebração do negócio prometido, abrem-se ao contraente não faltoso ou lesado dois caminhos: a execução específica do contrato ou a resolução do contrato;
10ª- Os AA., contraentes não faltosos, optaram pela execução específica do contrato;
11ª- A situação dos autos deverá ser configurada como de “mora debitoris”, porquanto se verificam os seus requisitos:
1º- Existe atraso no cumprimento da prestação por parte dos devedores promitentes-compradores faltosos;
2º- A prestação a realizar pelos AA. – isto é, a celebração do contrato prometido, “rectius”, a transmissão da propriedade da fracção para os RR. – é ainda possível;
3º- Há culpa do devedor, a qual, aliás, se presume; e
4º- Foi feita a interpelação dos credores aos devedores;
12ª- Nada obsta à execução específica do contrato-promessa em lide;
13ª- Os 1ºs. Réus são obrigados e, como tal, devem ser condenados a pagar aos AA., pelo menos, a quantia mensal de 277,23€, até à data do douto acórdão que decretar a execução específica do mesmo contrato, em substituição da escritura;
14ª- Foram, desse modo, violadas pela sentença recorrida, entre outras, a norma constitucional do Art. 13º (princípio da igualdade) da ConstRep.[1]; e as normas legais substantivas constantes dos Arts. 349º, 351º, 406º-1, 799º-1, 804º-2, 830º, 1690º-2, al. c) e 1724º-1, al. b) todos do CC, e adjectivas ínsitas nos Arts. 659º-3 e 660º do CPC.
Pretendem assim os autores a alteração da decisão do Tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto, ao abrigo do disposto no art. 712º do Cód. do Proc. Civil e, por via disso, a integral procedência da acção.
Também inconformado, igualmente interpôs recurso o réu D…, que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª - Vai o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos acima referenciados, porquanto mal apreciou a prova testemunhal e documental produzida – devendo ser reapreciada a prova testemunhal gravada (abaixo parcialmente transcrita) por forma a conhecer-se correctamente dos factos – e mal aplicou o direito ao julgar a acção parcialmente procedente e a reconvenção totalmente improcedente (...).
2ª – Pedem os AA. – promitentes-vendedores da fracção autónoma de prédio constituído em regime de propriedade horizontal – a execução específica do contrato-promessa de compra e venda que incidiu sobre a mesma.
3ª – Em reconvenção pediu o ora apelante a declaração de nulidade do contrato-promessa com a consequente devolução do que prestou em singelo, em dobro caso as nulidades invocadas não vierem a ser declaradas.
4ª – Dá-se como reproduzida a matéria de facto elencada na douta sentença e supra sintetizada nas presentes alegações.
5ª – Dão-se como reproduzidos os excertos de depoimentos de testemunhas referidos nas alegações supra sob o título: Reapreciação da Prova Testemunhal Gravada.
6ª – Se forem bem apreciados os depoimentos das testemunhas I…, J… e K… (antes …, de anterior casamento) – respectivamente, irmão do A. marido, vendedora do imóvel (L:..) pelo mesmo A. contratada para o negócio em causa e outro vendedor de que esta se socorreu para o mesmo efeito – únicas que estiveram presentes na reunião em que o ora apelante e os AA. acordaram em pôr termo ao contrato-promessa a que alude o quesito 8 – impõe-se que se dê como provado o mesmo quesito 8 ficando descontextualizada a resposta ao quesito 15, com todas as consequências em termos da solução da questão de direito.
7ª – Liminarmente dir-se-à que a situação em causa é vertebrada pela carta do ora apelante de 18 de Agosto de 2009, junta a fls. 183.
8ª - A fundamentação da matéria de facto, que desvaloriza depoimentos de pessoas próximas ou contratadas pelos autores e que hipotetiza a possibilidade de tal contrato-promessa (que a testemunha K… diz ter sido o B… a celebrar) poder ter sido celebrado com os AA. ou com os RR. (embora no final do período comente tal inverosimilhança) contraria frontalmente a prova produzida e, salvo o devido respeito, (...), a razoabilidade da sua apreciação.
9ª – Impor-se-ia, pois, que daqueles depoimentos consonantes que vertebram e alicerçam o acordo de cessação do contrato-promessa e que corroboram documento a que os autores não responderam – só o tendo feito em juízo, a convite expresso do Mmº Juiz “a quo”, comprometedoramente, refugiando-se na sua pretensa extemporaneidade – tivesse sido dado como provado o quesito 8º, i. é:
Em 2008 os AA. acordaram com o 1º R. marido, ora apelante, em pôr termo ao contrato, tal como alegado nos arts. 21º e 22º da contestação.
10ª – Em consequência esvaziar-se-ia de sentido a resposta ao quesito 15º - por contradição com aquela, uma vez que consubstanciaria a impossível ressuscitação do que havia fenecido ou, por paralelismo com o que se diz na douta sentença, se um contrato está extinto, não se pode incumpri-lo – que deveria ter como resposta qualquer coisa como “prejudicado pela resposta dada ao anterior quesito 8º”.
11ª – Consequências de direito da modificação da decisão sobre a matéria de facto supra: deveria a acção ter sido julgada totalmente improcedente por não provada – a execução específica em virtude da sua “ratio” e natureza detalhadas nos arts. 8º a 11º da contestação, que aqui se dão como reproduzidos, bem como na douta sentença, a que nada se acrescenta dado o ganho de causa obtido pelo apelante nesta matéria – sendo também o ora apelante absolvido do pagamento das mensalidades intercorrentes entre Agosto de 2008 e 31.7.2009 no total de €3.333,00.
12ª – Também foi decidido que “a falta de assinatura da R. mulher faz com que a mesma não tenha celebrado o contrato-promessa, mas sendo o mesmo inteiramente válido entre AA. e R. marido” (...), assim se dando ao contrato celebrado o mesmo tratamento que teria se do seu cabeçalho (onde constam marido e mulher) e texto constasse tão somente o nome do marido.
13ª – Ora do texto do contrato resultam direitos (v.g. a cessão da posição contratual) que só podem ser exercidos por marido e mulher – à semelhança do invocado art. 1682-A do C. Civil – direitos esses inequivocamente desvertebrados pela assinatura de um só de entre eles – o mesmo se diga quanto ao direito de onerar (v.g. constituição de registo provisório de hipoteca necessário à obtenção de empréstimo bancário).
14ª – Constando marido e mulher como segundos outorgantes no cabeçalho do dito contrato, a assinatura da última era essencial para a perfeição da declaração negocial tal como configurada no texto de tal instrumento.
15ª – Assim, tal falta de assinatura não torna apenas inexistente tal contrato quanto à R. mulher, mas também o torna nulo quanto ao ora apelante, por omissão de uma intervenção que era essencial a que os direitos nele consagrados não fossem vazios, ou não direitos, sendo, tal como o texto contratual configura a teia de direitos e deveres, evidente motivo essencial à formação da vontade dos seus signatários a intervenção de todos os que dele constam.
16ª - Também decide a douta sentença que “tendo as partes prescindido do reconhecimento presencial do contrato, entende-se que declaram prescindir de todo e qualquer reconhecimento notarial seja sobre as assinaturas seja sobre a existência de licença.”
17ª – Acontece, porém, que a “ratio” do reconhecimento presencial de assinaturas não se confunde com a da certificação da existência da licença de construção ou utilização (“in casu” habitabilidade).
18ª – A primeira visa garantir que as pessoas que subscrevem o contrato são aquelas que nele constam como contraentes, obstando a convenientes, que não legítimas, impugnações de assinaturas, garantindo-se, também, no caso das pessoas colectivas, que são aquelas as pessoas que as obrigam.
19ª – A outra visa garantir que o imóvel construído se encontra conforme aos requisitos da legislação atinente, certificando-se a existência da competente licença.
20ª – O facto de qualquer das referidas omissões estar ferida de nulidade pelo nº 3 do art. 410º do C. Civil reflecte a exigência do legislador nesta matéria, sabido como é que o que caracteriza o regime da nulidade é a protecção de interesses de ordem pública, podendo ser invocável por qualquer pessoa a todo o tempo e oponível “erga omnes”.
Dos contratos pode constar, ou não, que se prescinde da certificação da existência da licença de construção, mas se não se prescindir da certificação da mesma e tal certificação não tiver lugar estão feridos de nulidade.
21ª – Neste conspecto é desajustado falar-se no automatismo de prescindir de um reconhecimento importar o do outro, ou em abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, ou outra, quando evidentemente de anulabilidade (na disponibilidade das partes) se não trata, porque não se está perante um caso de protecção de interesses particulares, porque unicamente válidos e invocáveis entre as partes.
22ª – Foram, pois, mal interpretados, salvo o devido respeito, os arts. 410º - 3 e 334º do C. Civil – preceitos que impõem a disciplina inversa da perfilhada na douta sentença.
23ª – Consequências da verificação das nulidades supra na decisão de direito: impõem a devolução em singelo daquilo que as partes prestaram uma à outra, o que “in casu” representa a devolução do sinal inicial e mensalidades subsequentes, no total de €9.425,82 (€500,00 + €277,23 x 34) pedidos em reconvenção.
24ª - Mesmo no caso da decisão sobre a matéria de facto não vir a ser alterada, a verdade é a que resulta da prova produzida, designadamente do contrato-promessa, que antes do incumprimento apontado em termos de construção conclusiva ao ora apelante, está o dos AA.
25ª – Com efeito, do contrato-promessa não constava que sobre a fracção prometida vender recaíam duas hipotecas, sendo certo que também do mesmo não constava que o remanescente do preço deveria ser pago por cheque visado.
26ª – Mais, constava que a prometida venda seria “livre de ónus, encargos, hipotecas, penhoras, pessoas ou qualquer tipo de responsabilidades.”
27ª – Ora, as hipotecas cuja existência foi sonegada no contrato-promessa não tinham sido distratadas no acto da escritura e foi referido pela advogada que representava o R. marido que por tal motivo os AA. não cumpriram o contrato.
28ª - A construção feita no certificado notarial pela Notária Drª M… no tocante à possibilidade de os RR. poderem contornar a falta dos AA., visando o cheque e operando-se na altura o distrate não foi acordada no contrato-promessa.
29ª – Seria o mesmo que a notária dizer à R. mulher que, nos termos da douta sentença “A ré mulher não celebrou o contrato pelo que a mesma é alheia ao mesmo”: sabe, de facto a senhora não celebrou nenhum contrato-promessa, mas pode contornar essa inexistência assinado-o agora!
30ª – Não se pode encobrir hipotecas e depois dizer-se que não foram distratadas por causa dos RR., por falta de um cheque visado que o contrato não contempla, transferindo-lhes a responsabilidade pelo não cumprimento das obrigações contratuais dos AA.
31ª – Diferente seria se, como é habitual nos casos em que se promete vender prédios hipotecados, se se informasse a existência desse ónus, consignando-a no contrato, assim como a estipulação do pagamento do preço por cheque visado, para operar os distrates na escritura.
32ª – A Notária Drª M…, de acordo com o caminho que apontou no certificado que emitiu, estava a reescrever o contrato-promessa, dele passando a constar o que as partes não acordaram, isto é, fazendo recair o ónus do distrate das hipotecas sobre o promitente-comprador, quando tais hipotecas nunca foram, sequer, mencionadas.
33ª – Se a isto acrescentarmos que, posteriormente à celebração do contrato-promessa em lide, os AA. celebraram novo contrato-promessa de venda da mesma casa a terceiro, com tradição porque este (ou esta) a habitou, referida nos excertos da prova testemunhal anteriormente transcritos, é fácil ver de que lado está a culpa e o incumprimento relapso.
34ª – E, independentemente de qualquer comportamento ou vontade do ora apelante e antes dele, o contrato-promessa e certificado notarial referido, carta de fls. 138, documento de fls. 228 e registos prediais de que constam as hipotecas sobre a fracção prometida vender (documentos todos assentes) vertebram e provam incontroversa e incontrovertivelmente este incumprimento dos AA. – pasmando-se ante o relevo dado pela douta sentença ao não pagamento de I.M.T., quando é certo que desde 2008 são os notários que normalmente emitem as guias para pagamento deste imposto, que pode ser pago em qualquer estação dos correios (a de Gaia fica no prédio imediatamente acima da notária Drª M…), em qualquer caixa multibanco (são incontáveis os terminais em redor da Câmara …, que é o prédio imediatamente acima do dos Correios citado), ou por home banking através de computador portátil, usando a internet wireless dos Notários, ou dispositivo portátil.
35ª – A aceitar-se a demonstração efectuada ficam os AA. constituídos na obrigação de devolverem o sinal em dobro.
36ª – Normas violadas:
Arts. 227, 251, 252, 286, 287, 289, 290, 334, 371, 376, 410, 440 e 1682-A do C. Civil e 659 e 668 – 1, b) e c) do C. P. Civil, entre outros dispositivos legais.
Pretende assim o réu marido a revogação da sentença recorrida, com a total improcedência da acção e a procedência da reconvenção.
Os autores responderam ao recurso interposto pelo réu marido, tendo suscitado previamente a questão da sua intempestividade.
Colhidos os vistos legais, cumpre então apreciar e decidir.

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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 684º, nº 3 e 685º - A, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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QUESTÃO PRÉVIA
Os autores nas suas contra-alegações suscitaram a questão prévia da intempestividade do recurso interposto pelo réu marido, uma vez que tendo este impugnado a decisão sobre a matéria de facto, o que implicava a reapreciação da prova gravada, não deu cumprimento ao disposto no art. 685º-B do Cód. do Proc. Civil.
E, por via disso, não sendo de admitir o recurso no tocante à matéria de facto, o prazo para a sua interposição cingir-se-ia aos trinta dias referidos no art. 685º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil, donde resultaria patente a sua extemporaneidade.
Compulsando o recurso interposto pelo réu marido verifica-se que este indicou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (nº 8 da base instrutória), tal como indicou os concretos meios probatórios que, na sua perspectiva, imporiam decisão diversa da recorrida (depoimentos prestados pelas testemunhas I…, J… e K…).
Transcreveu, inclusive, algumas passagens destes depoimentos.
Assim, ainda que a impugnação da matéria de facto não se mostre modelar, a mesma cumpre, pelo menos no seu patamar mínimo, as exigências decorrentes do preceituado no art. 685º-B do Cód. do Proc. Civil.
Daí decorre que, pressupondo reapreciação de prova gravada, o prazo para interposição de recurso é acrescido de dez dias, nos termos do art. 685º, nº 7 do Cód. do Proc. Civil, o que, no caso “sub judice”, tem como efeito a sua tempestividade.
Consequentemente, há que rejeitar a questão prévia suscitada pelos autores.
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QUESTÕES A DECIDIR:
I – Impugnação da matéria de facto (nºs 2, 6, 7, 9, 10, 11 e 12 da base instrutória – autores/nº 8 da base instrutória – 1º réu marido);
II – Responsabilidade da 1ª ré mulher;
III – Execução específica do contrato-promessa;
IVResponsabilidade dos 1ºs réus pelo pagamento aos autores das mensalidades por estes pagas ao banco 2º réu, relativas aos empréstimos hipotecários que incidem sobre a fracção;
V Nulidade do contrato-promessa por falta de assinatura da ré mulher;
VI Nulidade do contrato-promessa por falta de reconhecimento das assinaturas e da certificação da existência de licença de utilização;
VII Incumprimento do contrato por parte dos autores.
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A matéria fáctica dada como assente pela 1ª Instância é a seguinte:
1). No dia 20/09/05 foi celebrado um contrato que as partes denominaram de «contrato promessa de compra e venda» no qual são outorgantes B… e mulher C… (1ºs., ora Autores), D… e mulher, E… (2ºs. e ora Réus), assinado pelos 1ºs. outorgantes e 2.º outorgante D…, através do qual os 1ºs. declaram prometer vender aos 2ºs. que declaram prometer comprar uma fração autónoma T2, r/c esquerdo, …, entrada n.º .., sito na Rua …, …, Vila Nova de Gaia, com licença de habitabilidade n.º …./02, pelo preço de €82.301,65, com entrega nessa data de €500 a título de sinal, o restante no acto da escritura de compra e venda, a efetuar no prazo máximo de 36 meses.
Mais se clausulou que os 2ºs., aqui Réus, se obrigavam a pagar aos 1ºs., ora Autores, a quantia mensal de €277,73 até à realização da escritura a título de compensação pela demora na realização da mesma, tendo ambos declarado prescindir do reconhecimento notarial do contrato, tudo conforme consta de fls. 17 e 18 cujo teor se dá por reproduzido (A).
2). A fração acima referida encontra-se registada na 2.ª C. R. P. de V. N. de Gaia sob o n.º 2586/19971124-B, com registo de aquisição de 23/10/03 a favor dos Autores, estando inscrita hipoteca com registo de 23/10/03 a favor de F…, S. A. (ap. 21) com capital máximo de €87.797,77 e outra hipoteca (ap. 22 de 23/10/03) com capital máximo de €14.714, a favor de F…, S. A, tudo conforme consta de fls. 22 e 23 cujo teor se dá por reproduzido (B).
3). Dá-se por reproduzido o teor de fls. 43 a 47 (carta datada de 12/11/08 onde o Autor interpela os Réus D… e mulher para procederem à marcação da escritura em 30 dias e que se o não fizerem intentarão acção judicial para execução específica, sendo fls. 46 o registo datado de 13/11/2008 e fls. 47 a/r não assinado) – al-C-.
4). Dá-se por reproduzido o teor de fls. 48 a 74 (notificação judicial avulsa dos aqui Réus, assinada pelos mesmos em 23/07/09 onde os aqui Autores marcam a realização de escritura do contrato definitivo para o dia 31/07/09, às 14.30 horas e que caso os aqui 1ºs. Réus não compareçam era interposta acção de execução específica) – al.D-.
5). Dá-se por reproduzido o teor de fls. 75 e 76 (certidão de certificado emitido pela Notária M…, em Vila Nova de Gaia pelas 14.30 horas, referente ao citado dia 31/07/09 onde se menciona que a escritura em questão não se realizou porque a advogada da parte compradora referiu que a venda não seria feita livre de ónus e encargos, existindo uma hipoteca e que o pagamento seria feito com cheque à ordem e não visado.
Mais consta que a Sr.ª Notária informa que a venda seria feita livre de ónus e encargos já que a instituição de crédito aí presente já tinha emitido o cancelamento da hipoteca e que era o Banco que exigia o pagamento com cheque visado e que tal situação ainda podia ser ultrapassada) – al. E -.
6). No Cartório Notarial, no dia e hora mencionado em 5), estava presente um representante do Réu F…, S. A. com os distrates das hipotecas acima mencionadas e que seriam efetuados pela Sr.ª Notária (F).
7). Os 1ºs. Réus, no dia 31/07/09, não tinham pago I. M. T. relativo à aquisição do imóvel em causa (G).
8). Os 1ºs. Réus, em 31/07/09, não tinham pago aos Autores a restante parte do preço no valor de € 81.801,65 (H).
9). A quantia mensal de € 277,73 referida em 1) destinava-se ao pagamento dos empréstimos pedidos pelos Autores que estão na base das hipotecas mencionadas em 2) – facto 1.º-.
10). Desde Agosto de 2008 em diante que o Réu D… não paga a prestação mensal referida em 1) que seria para pagamento de prestações dos empréstimos de aquisição pelos Autores da fração também referida em 1) – facto 3.º-.
11). Antes de 18/08/09 o Autor fez saber ao Réu marido que queria celebrar a escritura do contrato prometido com o recebimento da parte restante do preço (4.º, 5.º).
12). Desde 31/07/09 que são debitadas em conta bancária titulada pelo Autor as seguintes quantias a título de empréstimo bancário n.º ………:
. Agosto de 2008 -€ 362,31;
. Setembro de 2008 -€ 362,31;
. Outubro de 2008 -€ 362,31€;
. Novembro de 2008 -€ 362,31;
. Dezembro de 2008 -€ 350;
. Janeiro de 2009 -€ 412,03;
. Fevereiro de 2009 -€ 412,03;
. Março de 2009 -€ 296,94;
. Abril de 2009 -€ 296,94;
. Maio de 2009 -€ 296,94;
. Junho de 2009 - 257,08;
. Julho de 2009 -€ 257,08;
. Agosto de 2009 -€ 257,08;
. Setembro de 2009 -€ 240,91;
. Outubro de 2009 -€ 240,91;
. Novembro de 2009 -€ 240,91;
. Dezembro de 2009 -€ 232,62;
. Janeiro de 2010 -€ 232,62;
. Fevereiro de 2010 -€ 232,62;
. Março de 2010 -€ 230,63;
. Abril de 2010 -€ 230,63;
. Maio de 2010 -€ 230,63;
. Junho de 2010 -€ 230,63.
. Julho de 2010 -€ 229,45;
. Agosto de 2010 -€ 229,45;
. Setembro de 2010 -€ 236,38;
. Outubro de 2010 -€ 236,38;
. Novembro de 2010 -€ 236,38;
. Dezembro de 2010 -€ 241,48;
. Janeiro de 2011 -€ 241,48;
. Fevereiro de 2001 -€ 241,48;
. Março de 2011 -€ 241,48;
. Abril de 2011 -€ 241,48;
. Maio de 2011 -€ 241,48;
. Junho de 2011 -€ 252,62;
. Julho de 2011 -€ 252,65;
. Agosto de 2011 -€ 252,62;
. Setembro de 2011 -€ 262,33 (facto 7.º).
13). Entre Julho de 2006 e Abril de 2007 a fração referida em A) foi ocupada por terceiros tendo sido consumida água e eletricidade com base em contratos celebrados por N… e O… com P… (10.º).
14). A exigência de entrega de cheque visado referida em 5) foi feita pelo 2.º Réu (13.º), podendo nessa altura os 1ºs. Réus ter visado o cheque ou levantado o numerário necessário (14.º).
15). No dia 31/07/09 os 1ºs. Réus não queriam cumprir o contrato referido em 1) – facto 15.º-.
*
Passemos agora à apreciação do mérito do recurso.
I – Os autores nas suas alegações de recurso insurgem-se contra as respostas que foram dadas aos nºs 2, 6, 7, 9, 10, 11 e 12 da base instrutória, pretendendo que todos eles sejam dados como provados.
Funda tal pretensão nos depoimentos que foram produzidos pelas testemunhas G…, H… e I… e também no conteúdo do próprio contrato-promessa (fls. 17/18 – segunda cláusula) e no extrato combinado nº 2005/…, junto a fls. 158/9.
Por seu turno, também o réu impugna a matéria de facto dada como assente, mais concretamente a resposta obtida pelo nº 8, que se pretende ver alterada para provado, ficando simultaneamente prejudicada a resposta do nº 15.
Apoia-se, para tal efeito, nos depoimentos prestados pelas testemunhas I…, J… e K….
É a seguinte a redacção dos números da base instrutória que foram objecto de impugnação e respectivas respostas:
“2. Sabendo os réus que os autores adquiriram uma nova habitação passando a pagar dois novos empréstimos bancários?
R: Não provado.
6. E as mensalidades vencidas e vincendas até à escritura?[2]
R: Não provado.
7. Desde 31.7.09 que continuam a ser debitadas mensalmente aos autores as quantias referidas em 3)?
R: Provado que desde 31.7.09 que são debitadas em conta bancária titulada pelo autor as seguintes quantias a título de empréstimo bancário nº ………: [tratam-se das quantias que vêm indicadas no nº 12 da matéria de facto, supra]
8. Em 2008, os autores acordaram com o 1º réu marido em pôr termo ao contrato referido em A)?
R: Não provado.
9. A 1ª ré mulher aprovou a realização do contrato referido em A)?
R: Não provado.
10. Os 1ºs réus deram de arrendamento a fracção em causa a terceiros após a celebração do contrato referido em A)?
R: Provado que entre Julho de 2006 e Abril de 2007 a fracção referida em A) foi ocupada por terceiros tendo sido consumida água e electricidade com base em contratos celebrados por N… e O… com P….
11. Perspectivando os 1ºs réus que, após a celebração do contrato referido em A), iriam tentar «revendê-lo» a terceiro por valor superior ao ali acordado?
R: Não provado.
12. E só quando os réus constataram que o não conseguiriam «revender» é que invocaram vícios formais ao contrato referido em A)?
R: Não provado.”
Procedemos assim à audição dos depoimentos das testemunhas que foram referenciadas pelos recorrentes na impugnação da matéria de facto.
G…, mediador imobiliário, prestou um depoimento vago e que se caracterizou por algumas hesitações. Disse pensar que a quantia de 277,73€ era para pagar empréstimos que o Sr. B… (autor) tinha pedido ao Q…. Referiu que os autores compraram casa noutro sítio, julgando que os réus sabiam que os autores iam adquirir uma nova habitação. Disse também que já tinha feito negócios com o réu (Sr. D…), embora não o defina como um investidor nato – não como aqueles com os quais estavam habituados a trabalhar (mas, adianta, poderia ser esse o caso). Esteve presente na reunião de 20.3.2009, mas do que nela se passou nada sabe esclarecer de concreto, referindo apenas que o autor fez saber que queria celebrar a escritura – estava a passar dificuldades e precisava de resolver a situação.
H… é o patrão do autor B…. Relativamente à matéria do nº 2 da base instrutória (se os réus sabiam que os autores adquiriram uma nova habitação passando a pagar novos empréstimos bancários) respondeu que não sabe, não faz ideia. Depois disse que em 2006, 2007 ou 2008 foi-lhe dito pelo Sr. B… (o autor) que estava alguém a habitar no apartamento, nem ele sabia. Contou-lhe este que meteu a chave à porta e estava lá gente. Afirmou ainda que o autor, a propósito de quem lhe ia comprar o apartamento, se referia a uma pessoa que era investidor. Acrescentou também que o autor queria celebrar a escritura, até porque o casal não tinha condições para pagar duas casas.
I…, irmão da autora e cunhado do autor, disse pensar que os compradores sabiam que os vendedores tinham comprado uma outra habitação, também com empréstimo bancário. Os compradores pagavam ao seu cunhado, mas havia atrasos – iam pagando -, o que sucedeu durante cerca de três anos. O réu era conhecido como investidor, que compra para vender. Disse depois que a casa estava habitada, tendo sido falado que era “alugada” e que a pessoa que lá estava era para a comprar, acrescentando ainda que quem a alugou foi o “investidor”. Referiu igualmente que teria havido muitas possibilidades de vender a casa, não sabendo dizer porque razão tal venda não se concretizou. Na reunião que foi efectuada, na qual esteve presente, apareceu um indíviduo que lhes disse que a melhor forma de resolver o problema era entregar a casa ao banco, o que não teve a concordância do seu cunhado, que queria que se cumprisse o contrato, com o que terminou a reunião.
J… [testemunha que concerne apenas à impugnação factual produzida pelo réu – nº 8 da base instrutória], mediador imobiliário, referiu que houve vários interessados na compra da casa, só não se tendo conseguido a venda em virtude das avaliações dos bancos não permitirem empréstimos por serem inferiores ao preço. Fez-se uma reunião para tentar resolver o problema e nesta foi proposto anular o negócio. Instado pelo Mmº Juiz para se saber se houve ou não acordo no sentido de pôr termo ao contrato, disse que “aquele senhor [o autor] não disse que não” e, por isso, houve acordo. Assim, saiu da reunião com a ideia de que se tinha acordado no sentido da “anulação” do contrato. Voltou a haver uma reunião algum tempo depois em que ficou surpreendido com a presença de um advogado, pois para ele tudo estava resolvido.
K… [testemunha que concerne apenas à impugnação factual produzida pelo réu – nº 8 da base instrutória], na altura era vendedora imobiliária e representava o autor. Disse que houve um acordo para pôr termo ao contrato. Fez-se uma reunião na sua loja, na qual explicou ao autor qual era a situação da casa e no fim dessa reunião, depois de referir que a pessoa que comprou perde todo o dinheiro que meteu, disse que o contrato termina aqui e a seguir cumprimentaram-se todos e vieram-se embora. Por isso, ficou espantada quando algum tempo depois o réu lhe disse que ia precisar do seu depoimento como testemunha. Afirmou também que houve uma outra reunião referente a este problema, na agência imobiliária “L…”, sendo certo que estava convencida de que o contrato havia terminado. Referiu ainda que nunca ouviu o autor dizer que queria fazer a escritura.
Apreciando, em primeiro lugar, a impugnação factual produzida pelos autores, referente às respostas dadas aos nºs 2, 6, 7, 9, 10, 11 e 12 da base instrutória, há a dizer que, face ao teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas G…, H… e I… e ao que o Mmº Juiz “a quo” escreveu em sede de fundamentação da decisão fáctica, não vislumbramos motivo para alterar tais respostas.
Vejamos então.
Quanto ao nº 2 escreveu o Mmº Juiz “a quo” que em relação à ré mulher aparentemente esta só após uma reunião havida em meados de 2009 é que terá sabido dos concretos contornos do contratado, pelo que não houve prova mínima de que ela soubesse de novos empréstimos contraídos pelos autores. No que toca ao réu o mesmo negou que o soubesse, de modo que, não havendo prova em contrário, persistiu a dúvida. Os trés depoimentos referidos, acima sintetizados, mostraram-se todos bastante vagos quanto a este ponto, ao que acresce que o conteúdo do contrato-promessa e do extracto combinado junto a fls. 158/9 não permite concluir no sentido de que ambos os réus soubessem que os autores haviam contraído novos empréstimos. Como tal, a resposta de “não provado” que o nº 2 mereceu deve ser mantida.
No que tange aos nºs 6, 7 e 9, dos depoimentos das três testemunhas nada resulta que permita alterar as respostas que lhe foram dadas pela 1ª Instância.
Depois, quanto ao nº 10, referente ao arrendamento da fracção em causa a terceiros após a celebração do contrato-promessa, o Mmº Juiz “a quo” escreveu que o mesmo obteve uma resposta restritiva, atendendo a que não foi junto aos autos qualquer contrato de arrendamento, os réus negam que tenham arrendado o imóvel e as informações constantes de fls. 223/230 e 261/268 apenas permitem concluir que entre Julho de 2006 e Abril de 2007 houve celebração de contratos de água e electricidade e ocorreram consumos no local, tendo, para tal efeito, sido eventualmente exibido contrato-promessa de compra e venda, que tanto pode ter sido celebrado pelo autor como pelo réu. Sucede que dos depoimentos prestados pelas testemunhas H… e I… não resulta que tenha sido celebrado qualquer contrato de arrendamento em relação ao imóvel aqui em causa e deles apenas se extrai a ocupação da casa por terceiros, donde deverá permanecer inalterada a resposta restritiva dada pela 1ª Instância ao dito nº 10.
No que toca aos nºs 11 e 12 da base instrutória, relativos ao eventual propósito de revenda “ab initio” por parte dos réus, escreveu o Mmº Juiz “a quo” que tal foi negado pelos réus, não havendo prova no sentido do alegado pelos autores, acrescentando a seguir que na carta de fls. 183, escrita pelo réu, não se refere qualquer investimento, mas antes a vontade de adquirir para si e, não o conseguindo, de tentar vender o imóvel. Acontece que os depoimentos produzidos pelas testemunhas G…, H… e I…, pese embora explicitem alguma ambiguidade quanto à intenção do réu na celebração do contrato-promessa dos autos, não são de molde a permitir a alteração destas duas respostas negativas, pois deles não se retira, com a suficiente e necessária clareza, que o propósito do réu era, desde o início, o de vender a terceiro o imóvel por preço superior ao acordado.
Passando, em segundo lugar, à impugnação fáctica levada a cabo pelo réu referir-se-à que esta se cingiu ao nº 8 da base instrutória, que obteve resposta negativa, e também aqui, ouvidos os depoimentos prestados pelas testemunhas I…, J… e K…, não se vê motivo para alterá-la.
I…, presente na reunião em que tal se discutiu, foi peremptório ao afirmar que, confrontado com a ideia de que a melhor forma de resolver o problema era entregar a casa ao banco, o autor, seu cunhado, disse que queria que se cumprisse o contrato.
Já as testemunhas J… e CK… prestaram depoimentos marcados pela imprecisão em que disseram que teria havido acordo no sentido de pôr termo ao contrato, não tendo, porém, conseguido relatar qualquer concreta atitude do autor donde fosse possível concluir que este tivesse dado a sua aquiescência a tal solução.
A carta de fls. 183, escrita pelo réu, nenhuma luz faz quanto a esta questão.
Assim, bem andou a 1ª Instância ao dar como não provado que tenha havido acordo entre os autores e o réu no sentido de pôr termo ao contrato-promessa.[3]
Como tal, improcedem as impugnações factuais efectuadas por ambas as partes, mantendo-se, sem qualquer alteração, a matéria fáctica dada como assente pelo tribunal recorrido.
* * *
II – Entendeu-se na sentença recorrida que da falta de assinatura da ré mulher resulta que esta não celebrou o contrato-promessa, sendo, por isso, alheia ao mesmo. O contrato foi celebrado, de forma válida, apenas entre os autores e o réu marido.
Os autores discordam deste entendimento, por considerarem que da matéria de facto provada decorre que a ré mulher celebrou, com o réu marido, o contrato-promessa de compra e venda em causa nos autos, acrescentando ainda que a responsabilidade da ré mulher sempre derivaria do facto desse contrato ter sido celebrado pelo réu marido, como cônjuge administrador e em proveito comum do casal.
O que flui da factualidade dada como assente é que no contrato-promessa figuram como seus outorgantes os réus D… e E…. Porém, apenas o primeiro apôs a sua assinatura nesse contrato.
Dispõe o art. 410º, nº 2 do Cód. Civil que «(...) a promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja unilateral ou bilateral.»
Tal significa que não estando o contrato-promessa assinado pela ré mulher E…, mesmo constando o seu nome do respectivo cabeçalho, esta não está vinculada ao mesmo, daí que se tenha de entender, à semelhança da 1ª Instância, que não o celebrou.
O contrato-promessa vinculará apenas o réu marido.
Contudo, os autores sustentam que a responsabilidade da ré mulher poderá derivar também do facto do contrato-promessa ter sido celebrado pelo réu marido, na qualidade de cônjuge administrador e em proveito comum do casal.
Preceitua o art. 1691º, nº 1 do Cód. Civil, na sua alínea c), que «são da responsabilidade de ambos os cônjuges: (...) c) as dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração.»
Acrescenta depois o nº 3 desta mesma disposição que o proveito comum do casal não se presume, excepto nos casos em que a lei o declarar.
Esta expressão “proveito comum do casal” traduz-se num conceito de natureza jurídica a preencher através dos factos materiais indicadores daquele destino, a alegar na petição inicial.
Trata-se, assim, de proceder à qualificação da dívida, necessariamente através do preenchimento do conceito legal pelos factos, ou por aplicação daquela a estes, o que envolve questão de direito.[4]
Ora, percorrendo a factualidade dada como provada pela 1ª Instância, logo se conclui que da mesma não resultam factos materiais susceptíveis de integrar o dito conceito de “proveito comum do casal”, razão pela qual, igualmente por esta via, improcederá, neste segmento, a pretensão recursória dos autores.
*
III – Na sentença recorrida, entendeu-se existir da parte do promitente-comprador (réu marido) recusa em celebrar o contrato prometido, recusa essa que se verifica, pelo menos, desde 31.7.09.
E havendo recusa de cumprimento, ocorre, desde esta data, incumprimento definitivo do contrato-promessa, de tal forma que não é possível a sua execução específica, a qual só se compagina com a mora.
Divergem os autores/recorrentes deste entendimento, por considerarem que na situação dos autos nada obsta à execução específica do contrato-promessa.
Se não existem dúvidas de que a situação de mora – imputável a um dos promitentes – permite ao contraente não faltoso o recurso à execução específica, já o caso é discutível se se estiver perante incumprimento definitivo.
Acontece que tanto a doutrina como a jurisprudência maioritárias só admitem a possibilidade da execução específica face à mora na execução da prestação.
O art. 830º do Cód. Civil, onde se encontra prevista a execução específica, dispõe o seguinte no seu nº 1:
«Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida.»
Menezes Leitão[5] escreve que desta norma resulta que o não cumprimento da promessa atribui à outra parte o direito de recorrer à execução específica. A referência legal a “não cumprimento” deve ser entendida em sentido amplo, uma vez que para efeitos de execução específica é suficiente a simples mora, já que o credor mantém interesse na prestação, exercendo o seu direito a ela. Aliás, a execução específica deixa de ser possível a partir do momento em que se verifique uma impossibilidade definitiva de cumprimento.
Calvão da Silva[6] salienta ser importante reter que “o pressuposto da chamada execução específica do contrato-promessa é a mora e não o incumprimento definitivo.”
Henrique Mesquita[7] conquanto releve que “a lei não se encontra redigida, relativamente a este ponto, de modo inequívoco, mas é assim [no sentido da aplicação aos casos de mero atraso] que deve ser interpretada”, pelo que não se [torna] necessário que o beneficiário da promessa transforme esta situação em não cumprimento definitivo, através da fixação de um prazo suplementar razoável para o cumprimento nos termos do nº 1 do art. 808º.
Gravato Morais[8] adere também a esta posição ao afirmar que “a mora representa uma condição necessária e suficiente para o recurso à execução específica, precludindo tal via o incumprimento definitivo do contrato, dada a sua incompatibilidade com tal mecanismo, sendo que, por outro lado, inexistindo qualquer atraso, não se verifica um dos pressupostos da execução específica. Desta sorte, o estado anterior à mora ou a situação a ela posterior não permitem a actuação de tal procedimento.”
Prosseguindo, diz este mesmo Professor que o art. 830º do Cód. Civil, onde se prevê a execução específica do contrato-promessa, não qualifica expressamente o incumprimento, ou seja, não refere qual é o seu tipo – temporário ou definitivo. Contudo, algumas expressões utilizadas neste preceito vão em apoio da posição que se vem expondo. Assim, no nº 3 do art. 830º, na sua parte final, escreve-se “ainda que a alteração das circunstâncias seja posterior à mora” e, por outro lado, ao determinar-se que a obtenção de “sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso” (nºs 1 e 3 do referido preceito), tal só parece fazer sentido na hipótese de ser ainda possível o cumprimento ou, dito de outro modo, no caso de não ser ele definitivo.
Do ponto de vista substancial, face à forma dualista como a lei se encontra estruturada decorrerá ainda um importante argumento a favor da posição sustentada pelo autor que temos vindo a seguir: “a execução específica pressupõe o incumprimento temporário, assim como a resolução pressupõe o incumprimento definitivo”. Bipartição que também se constata no plano sancionatório: a indemnização moratória pressupõe o incumprimento temporário, enquanto que a indemnização em caso de sinal pressupõe o incumprimento definitivo.
Em sentido oposto, Januário Gomes afirma que “o interesse do credor pode sobreviver, pode subsistir para além do incumprimento definitivo... Se o credor mantiver interesse na prestação, não parece haver justificação plausível que obste ao recurso à execução específica, já que o incumprimento definitivo não determina, por si só, a resolução do contrato.”[9]
Menezes Cordeiro, por sua vez, sustenta que o incumprimento definitivo “é um passo que abre as portas à execução específica ou à indemnização.”[10]
No que toca à jurisprudência dos nossos tribunais superiores, a mesma tem-se encaminhado maioritariamente no sentido de que o pressuposto da execução específica do contrato-promessa é a existência de mora e não o incumprimento definitivo (cfr., por ex., Ac. STJ de 4.3.2008, p. 08A272; Ac. STJ de 19.5.2010, p. 158/06.5 TCFUN.L1.S1; Ac. STJ de 9.12.2010, p. 1347/05.5 TVPRT.S1; Ac. Rel. Porto de 8.5.2006, p. 0651928; Ac. Rel. Porto de 9.5.2007, p. 0731918; Ac. Rel. Porto de 6.3.2008, p. 0830739; Ac. Rel. Porto de 27.11.2008, p. 0834257, todos disponíveis in www.dgsi.pt.).[11]
Não vemos motivo para divergir deste que é o entendimento maioritário da nossa jurisprudência e, por isso, apoiando-nos, em particular, nos argumentos que foram explanados por Gravato Morais, atrás reproduzidos, entendemos, em consonância com a sentença recorrida, ser de concluir que a execução específica do contrato-promessa pressupõe a verificação de mora e não uma situação de incumprimento definitivo.
Regressando ao caso “sub judice”, o que se verifica é que da parte do réu marido (promitente-comprador) há uma recusa em celebrar o contrato prometido, que remonta, pelo menos, ao dia 31.7.2009, recusa essa que é acompanhada pela prática de actos que demonstram inequivocamente a intenção de não querer esse contrato, como sejam a falta de pagamento do I.M.T e a falta de pagamento das mensalidades que haviam sido acordadas aquando da celebração do contrato-promessa (cfr. nºs 7, 10 e 15).
A lei considera definitivamente não cumprida a obrigação, com as respectivas consequências, nos casos de estipulação de cláusula resolutiva ou termo essencial e de impossibilidade culposa da prestação por parte do devedor – cfr. art. 801º, nº 1 do Cód. Civil.
O incumprimento contratual definitivo também pode resultar da conversão em mora por força de interpelação admonitória ou de perda de interesse do credor na prestação – cfr. art. 808º, nº 1 do Cód. Civil.
Todavia, para além dos casos expressamente previstos na lei, tem-se entendido que também configura incumprimento contratual definitivo a ocorrência de um comportamento do devedor que exprima, de forma inequívoca, a vontade de não querer o contrato.[12]
É o que ocorre na presente situação com o comportamento do réu marido, de tal modo que teremos de concluir, à semelhança do que fez o Mmº Juiz “a quo”, que existe incumprimento definitivo do contrato-promessa desde 31.7.2009, donde não seja possível a sua execução específica, apenas compaginável com a mora.
Por conseguinte, não sendo viável, pelas razões expostas, a execução específica, improcederá igualmente, nesta parte, o recurso interposto pelos autores.
*
IV – Por último, os autores suscitam, em via recursória, ainda uma outra questão – a da responsabilidade dos 1ºs réus pelo pagamento aos autores das mensalidades por estes pagas ao banco 2º réu, relativas aos empréstimos bancários que incidem sobre a fracção autónoma.
Na sentença recorrida escreveu-se que:
“. estando incumprido definitivamente o contrato-promessa desde 31.7.2009, a partir dessa data já não há qualquer obrigação de o réu marido pagar tal prestação [277,73€ por mês] pois o que servia de base, fundamento, a tal pagamento, deixou de existir;
. até 31.7.09, tal obrigação persistia pois, a partir de 20.9.2008, ultrapassado o prazo máximo previsto de celebração do contrato, existiria mora na celebração do contrato definitivo. Tal atraso na celebração do contrato prometido é imputado ao réu marido não só porque a si lhe competia a marcação da competente escritura de compra e venda como se presume que a sua mora é culposa – art. 799º, do C.C.
Assim, a obrigação de pagamento de 277,73€ por mês manteve-se em vigor até 31.7.09 pois se o réu a quisesse findar teria de resolver o contrato ou informar antes que considerava findo esse contrato por não querer cumprir.”
Face ao que atrás se explanou, em III, entende-se que, perante o comportamento do réu marido, ocorre incumprimento definitivo do contrato-promessa, por parte deste, desde 31.7.2009, o que no entendimento seguido inviabiliza o recurso à execução específica.
Acolher, nesta parte, a pretensão dos autores implicaria que previamente se tivesse considerado viável a execução específica, o que não sucedeu.
Deste modo, como consequência lógica do exposto em III, há também, nesta parte, que julgar improcedente o recurso interposto pelos autores.
* * *
V – O réu marido nas suas alegações de recurso veio sustentar a nulidade do contrato-promessa, por entender que, constando marido e mulher do cabeçalho do contrato, a assinatura da segunda era essencial para a perfeição da declaração negocial tal como configurada no respectivo texto. Dele resultariam direitos que só poderiam ser exercidos por ambos os cônjuges. Invoca como fundamento da sua pretensão o disposto no art. 1682º-A do Cód. Civil.
Sucede que não lhe assiste razão.
Em primeiro lugar, como se assinala na decisão sob recurso, não existe norma que imponha que o contrato-promessa de compra e venda de imóvel tenha que ser assinado por marido e mulher, uma vez que tal contrato, pela sua natureza, não implica qualquer transferência de propriedade.
Em segundo lugar, o art. 1682º-A do Cód. Civil, a que o recorrente alude, refere-se ao consentimento de ambos os cônjuges no caso de alienação ou oneração de imóveis, sendo, por esse motivo, inaplicável ao presente caso, em que o contrato prometido se reconduz, na vertente dos réus, à compra de um imóvel.
E para adquirir um imóvel não é necessária a intervenção de ambos os cônjuges.
Como tal, a falta de assinatura da ré mulher não determina a ocorrência de qualquer nulidade. Apenas significa, conforme se referiu em II, que esta não o celebrou, sendo o contrato-promessa plenamente válido entre os autores e o réu marido.
Consequentemente, improcede, nesta parte, o recurso interposto pelo réu marido.
*
VI – O réu marido suscita também a questão da nulidade do contrato-promessa por este não conter o reconhecimento das assinaturas, nem a certificação da existência de licença de construção ou utilização.
O art. 410º, nº 3 do Cód. Civil estatui o seguinte:
«No caso de promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção, ou a construir, o documento referido no número anterior deve conter o reconhecimento presencial das assinaturas do promitente ou promitentes e a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respectiva licença de utilização ou de construção; contudo, o contraente que promete transmitir ou constituir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte.»
Acontece que, no presente caso, atendendo a que o contrato-promessa se reporta à compra e venda de uma fracção de um prédio urbano, as assinaturas dos promitentes deveriam estar reconhecidas presencialmente e do contrato deveria constar também a certificação da existência da licença de utilização.
Porém, o que se constata é que as assinaturas apostas no contrato-promessa não estão reconhecidas presencialmente, tal como deste não consta a certificação da existência da licença de utilização.
Significa isto que houve preterição de formalidades legais, vício de forma que consubstancia uma nulidade atípica ou mista, a qual não pode ser conhecida oficiosamente, nem pode ser invocada por terceiros e que, pelo lado do promitente alienante, só pode ser invocada quando a omissão tenha sido culposamente causada pela outra parte, e que, quanto à licença de construção ou utilização, é passível de sanação ou convalidação, mediante prova, da sua existência ou desnecessidade.[13]
Contudo, no contrato-promessa, que se encontra junto a fls. 17/8, encontra-se incluída a seguinte cláusula:
«Por expresso acordo, os outorgantes declaram prescindir de reconhecimento notarial do presente contrato.»
Estando a nulidade acima referida na disponibilidade das partes, nada impede que, prevendo tal efeito jurídico, ambas as partes (ou apenas uma delas) renunciem antecipadamente, de forma expressa ou tácita, ao direito de invocá-la e essa renúncia é perfeitamente válida, tanto quanto é certo que o direito de pedir a anulação não se mostra abrangido pela disposição restritiva do art. 809 do Cód. Civil.
Daqui decorre que os promitentes, se o assumiram ambos, não podem arguir a nulidade resultante da omissão das formalidades a que se reporta o art. 410º, nº 3 do Cód. Civil.[14] [15]
Verifica-se, assim, face ao teor da cláusula acima transcrita, que ocorreu uma clara e inequívoca renúncia das partes ao direito de arguirem a nulidade do negócio com base na omissão do reconhecimento presencial das assinaturas pelo notário.
Admitindo-se, conforme é nossa posição, a plena validade desta cláusula de renúncia, a questão que então se colocará será a de saber se as partes, ao declararem prescindir do reconhecimento presencial do contrato, quiseram igualmente prescindir de todo e qualquer reconhecimento notarial seja sobre as assinaturas, seja sobre a existência de licença de utilização.
Também aqui não nos afastaremos desta solução, que foi, de resto, a adoptada pela sentença recorrida.
É certo que na referida cláusula de renúncia não se alude, de forma expressa, à certificação notarial da existência da licença de utilização. Porém, da mesma claramente decorre que os outorgantes pretenderam afastar toda e qualquer intervenção notarial na certificação dos documentos que a corporizam. Uma vez que a licença de utilização existia, estando inclusivamente mencionada na cláusula 1ª do contrato-promessa (licença de habitabilidade nº …./02) e ainda porque a sua certificação notarial é feita simultaneamente ou mesmo no próprio termo de reconhecimento de assinaturas, a partir do momento em que se prescindiu desse reconhecimento, está-se também a prescindir dessa certificação.[16]
Mas ainda que se interpretasse de forma diversa o teor da cláusula de renúncia, nem mesmo assim se poderia acolher a pretensão do réu marido, atendendo a que este, com toda a sua conduta, que passou designadamente pelo pagamento durante três anos das mensalidades referidas no contrato-promessa, criou na contraparte a legítima convicção de que, no tocante à falta de certificação notarial da existência de licença de utilização, não suscitaria qualquer nulidade, de tal modo que a sua invocação sempre consubstanciará abuso do direito na modalidade de “venire contra factum proprium” – cfr. art. 334º do Cód. Civil.
Por conseguinte, também nesta parte, improcederá o recurso interposto pelo réu marido.
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VII – O réu marido sustenta, por fim, nas suas alegações de recurso que ocorreu incumprimento do contrato-promessa por parte dos autores, referindo designadamente que a existência de hipotecas sobre a fracção dos autos lhe foi omitida e também que os autores celebraram depois um novo contrato-promessa de compra e venda da mesma casa com um terceiro, com tradição desta.
Ora, da matéria fáctica dada como assente nada resulta que permita concluir que os autores tenham omitido ao réu marido a existência das hipotecas. Aliás, dessa factualidade parece inferir-se até o contrário, uma vez que se deu como provado que a quantia mensal de 277,73€, referida na quarta cláusula do contrato, alínea b), se destinava ao pagamento dos empréstimos pedidos pelos autores que estão na base de tais hipotecas - cfr. nº 9.
Tal como nada resulta no sentido da celebração de um novo contrato-promessa com um terceiro relativamente à mesma casa.
Inexiste, pois, qualquer elemento factual que permita concluir pela verificação de incumprimento do contrato-promessa por parte dos autores, sendo certo que, na sequência do que atrás se explanou (III, supra), o incumprimento definitivo do contrato é de atribuir ao réu marido que se recusou a celebrar o contrato prometido.
Deste modo, ainda nesta parte, naufraga o recurso do réu marido.
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Consequentemente, ambos os recursos interpostos serão julgados improcedentes, o que terá, como consequência, a integral confirmação da sentença recorrida.
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Sintetizando:
- O recurso à execução específica de um contrato-promessa de compra e venda de imóvel pressupõe a mora, não sendo viável quando se verifica uma situação de incumprimento definitivo.
- Para além dos casos expressamente previstos na lei, deverá entender-se que também configura incumprimento contratual definitivo a ocorrência de um comportamento do devedor que exprima, de forma inequívoca, a vontade de não querer o contrato.
- Estando a nulidade decorrente da omissão das formalidades legais a que se refere o art. 410º, nº 3 do Cód. Civil na disponibilidade das partes, nada impede que, prevendo tal efeito jurídico, ambas as partes renunciem antecipadamente, de forma expressa ou tácita, ao direito de invocá-la.
- Se as partes declararam prescindir do reconhecimento presencial, deverá entender-se que pretenderam afastar toda e qualquer intervenção notarial na certificação dos documentos que corporizam a licença de utilização.
- Uma vez que esta licença existe, estando inclusivamente mencionada no contrato-promessa e ainda porque a sua certificação notarial é feita simultaneamente ou mesmo no próprio termo de reconhecimento de assinaturas, a partir do momento em que se prescindiu desse reconhecimento, está-se também a prescindir dessa certificação.
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedentes os recursos de apelação interpostos pelos autores B… e mulher C… e pelo réu marido D…, confirmando-se na íntegra a sentença recorrida.
Custas de ambos os recursos a cargo dos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário que foi concedido aos autores.

Porto, 9.10.2012
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
Márcia Portela (com declaração que segue)
Manuel Pinto dos Santos
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[1] Refira-se, desde já, que a alusão ao art. 13º da Constituição da República (princípio da igualdade) é inócua, porquanto não foi invocada qualquer concreta inconstitucionalidade.
[2] Este número da base instrutória conexiona-se com os antecedentes 4 e 5 cuja redacção é “4 – No dia 20.3.09 o autor marido fez saber ao 1º réu que queria celebrar a escritura do contrato prometido?; 5 – E que queria receber a parte restante do preço?”, os quais obtiveram a resposta conjunta de “provado que antes de 18.8.09 o autor fez saber ao réu marido que queria celebrar a escritura do contrato prometido com o recebimento da parte restante do preço”.
[3] Para além de sempre se poder questionar, de acordo com o preceituado nos arts. 394º e 395º do Cód. Civil, a admissibilidade de prova testemunhal relativamente a uma eventual revogação do contrato-promessa aqui em causa por acordo das partes.
[4] Cfr. Ac. STJ de 7.6.2005, CJ STJ, ano XII, tomo II, págs. 118/122.
[5] In “Direito das Obrigações”, vol. I, 7ª ed., pág. 229.
[6] In “Sinal e Contrato-Promessa”, pág.97.
[7] In “Obrigações e ónus reais”, pág. 233, citado por Fernando de Gravato Morais, “Contrato-Promessa em Geral; Contratos-Promessa em Especial”, 2009, pág. 106.
[8] Ob. cit., pág. 109.
[9] In “Em tema de contrato-promessa”, Lisboa, 1990, pág. 17, citado por Fernando de Gravato Morais, “Contrato-Promessa em Geral; Contratos-Promessa em Especial”, 2009, pág. 107.
[10] Cfr. “O novíssimo regime do contrato-promessa”, Estudos de Direito Civil, pág. 85.
[11] Em sentido contrário, de que a execução específica pode também ter lugar em situações de incumprimento definitivo, cfr. Ac. STJ de 29.4.2004, p. 04B1430 e Ac. Rel. Porto de 7.6.2010, p. 2094/09.4 TVPRT.P1, disponíveis in www.dgsi.pt.
[12] Cfr. Ac. Rel. Porto de 27.11.2008, p.0834257, disponível in www.dgsi.pt.
[13] Cfr. sobre esta matéria os Assentos do Supremo Tribunal de Justiça nº 15/94 de 28.6.1994 (DR I série – A, de 15.10.94) – “No domínio do nº 3 do art. 410 do Cód. Civil, a omissão das formalidades previstas nesse número não pode ser invocada por terceiros” e nº 3/95, de 1.2.1995 (DR I série – A, de 22.4.95) – “No domínio do nº 3 do art. 1410 do Cód. Civil, a omissão das formalidades previstas nesse número não pode ser oficiosamente conhecida pelo tribunal.”
[14] Cfr., por ex., Acórdão do STJ de 6.5.2004, p. 04B1291, Ac. Rel. Porto de 14.7.2005, p. 0533279, Ac. Rel. Porto de 23.3.2006, p. 0630729, Ac. Rel. Porto de 16.11.2006, p. 0632617, Ac. Rel. Porto de 7.9.2010, p. 1667/06.1 TBGDM.P1, Ac. Rel. Porto de 6.12.2010, p. 1794/08.0 TBVCD.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[15] Em sentido contrário, de que não se pode renunciar antecipadamente ao direito de invocar a nulidade resultante da omissão das formalidades a que se reporta o art. 410º, nº 3 do Cód. Civil, cfr., por ex., Ac. STJ de 5.7.2007, p. 07B2027 e Ac. Rel. Porto de 24.5.2012, p. 46/10.0 TBVFR.P1, disponíveis in www.dgsi.pt.
[16] Cfr. Ac. Rel. Porto de 20.4.2004, disponível in www.dgsi.pt. (citado por Gravato Morais, “Contrato-Promessa em Geral; Contratos-Promessa em Especial”, 2009, págs. 275/6, nota 562).
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Declaração:
Embora sem consequências a nível da decisão do recurso, não acompanho o acórdão no segmento em que considera que a nulidade prevista no artigo 410º, nº 3, CC, está na disponibilidade das partes, perfilhando o entendimento oposto, também enunciado no acórdão.

Márcia Portela