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ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
RESPONSABILIDADE CIVIL
PRINCÍPIO DA DEFESA
PROIBIÇÃO DA TRANSMISSIBILIDADE DA RESPONSABILIDADE PENAL
Sumário
I - O art. 8.º, do RGIT, prevê dois tipos de responsabilidade civil pelas multas e coimas aplicadas às pessoas coletivas: a responsabilidade subsidiária e a responsabilidade solidária. II - O facto de a sentença penal condenatória ter transitado em julgado e nada dizer sobre a responsabilidade solidária do arguido, relativamente ao pagamento da multa da sociedade, não impede a posterior responsabilização solidária (ou subsidiária, consoante o caso) do arguido. III – O princípio das garantias de defesa é violado sempre que se não dá ao arguido a oportunidade de apresentar as suas próprias razões e de valorar a sua conduta. IV - O exercício do contraditório resultante da notificação feita ao arguido, na pessoa do seu defensor, para, no prazo de 10 dias, se pronunciar, querendo, quanto ao estipulado no n.º 7 do art. 8.º do RGIT, elide qualquer ideia de encurtamento inadmissível da sua possibilidade de defesa. V - A responsabilidade pelas multas e coimas prevista no art. 8º do RGIT deve ser vista como uma responsabilidade civil e não como a transmissão da responsabilidade penal: o que a lei estabelece é a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente e que constitui causa adequada do dano que resulta, para a Administração Fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram devidas.
Texto Integral
Processo 336/05.4TAVNF-B.P1
Relator: MeloLima
Acordam em Conferência na 1ªSecção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
1 Em processo Comum Singular, pelos Juízos Criminais de V.N. de Famalicão, o MºPº deduziu acusação contra B….., Lda, C….. e D…., imputando às 2ª e 3ª arguidas, a prática, em co-autoria, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p. e p.p. art° 27°- B do R.J.I.F.N.A., na redacção dada pelo Decreto-Lei n° 140/95, de 14/06, com referência ao art° 24°, no 1 e 5 do Decreto-Lei n° 20-A/ 90, de 15/01, na redacção do Decreto-Lei n° 394/93, de 24/11 e à sociedade arguida a responsabilidade criminal emergente do art° 7º do RJIFNA. 2 Realizado o julgamento, foi proferida sentença condenatória [Depositada em 10.07.2007], com o seguinte DECISUM:
«Pelo exposto, julgo a acção penal parcialmente provada e, em consequência:
A) Condeno a arguida C….., como co- autora material de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, na forma continuada, previsto e punido pelo art° 105°, n° 1 da Lei n0157ü, de 05/06, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 8,00 €, perfazendo a multa de 2.000,00 € (dois mil euros). B) Condeno a arguida D…., como co-autora material de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, na forma continuada, previsto e punido pelo art° 105°, n° 1 da Lei n° 15/2001, de 05/06, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 8,00 €, perfazendo a multa de 2.000,00 € (dois mil euros).
C) Condeno a sociedade B…., Lda, pela prática de um crime de crime de abuso de confiança em relação à segurança social, p. e p. p. art° 24°, n° 1 e 110, 2 do RJIFNA na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de 25,00 € (vinte e cinco euros), perfazendo a multa de 7.500 € (sete mil e quinhentos euros).
D) Absolvo as arguidas de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, p. e p.p. art° 24°, n°5 do RJIFNA e ios°, n° 5 do RGIT.
E) São os arguidos são responsáveis pelo pagamento das custas do processo, com 4 UC de taxa de justiça, acrescida de 1%, nos termos do art° 13°, n° 3 do Decreto-Lei n° 423/91, de 30/10 e 1/4 de procuradoria.
F) Honorários à II. Defensora nomeado à sociedade, nos termos da Tabela.
G) Julgo o pedido de indemnização civil provado e, em consequência, condeno as demandadas a pagar ao demandante a quantia de 62.849,57 € (sessenta e dois mil oitocentos e quarenta e nove euros e cinquenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, calculados nos termos do Decreto-Lei n° 73/99, de 16/03, até integral pagamento.
Custas cíveis a cargo das demandadas.
Boletins ao registo criminal. Deposite.» 3 Em 21.06.2011, foi aberta conclusão no processo com a informação de que «A título de multa e da responsabilidade da arguida B…., Lda, se encontra em dívida a quantia de 7.500,00€. Que a título de custas, se encontram em dívida as quantias de 843,84€, da responsabilidade da mesma arguida, bem como 1.920,00€ de custas solidárias, o que totaliza 2.763,84€». 4 Aberta Vista ao MºPº, promoveu este a solicitação, para consulta, do processo de insolvência da sociedade condenada. 5 Junta aos autos cópia da sentença proferida em 14.02.2008, a qualificar a insolvência da referida B…., Lda, como fortuita, o MºPº lançou nos autos a seguinte promoção:
«Atendendo ao teor da certidão comercial permanente da sociedade condenada B…., Lda,…, e da sentença proferida, aos 14.02.2008, no âmbito do processo nº 2468/07.5TJVNF, pendente pelo 3º Juízo deste Tribunal, a qual qualificou como fortuita a insolvência da mencionada sociedade, o Ministério Público entende que não se encontram preenchidos os requisitos constantes do artigo 8º nº1 alinea a) do RGIT – designadamente no que respeita à culpa dos gerentes na insuficiência do património da sociedade para o pagamento da multa aplicada – pelo que nada promove quanto à responsabilidade subsidiária das pessoas singulares condenada» 6 Foi, então proferido despacho judicial a ordenar a notificação das arguidas, na pessoa do seu Ilustre Defensor, para, no prazo de 10 dias, exercer, querendo, o contraditório e, para se pronunciar, querendo, quanto ao estipulado no nº7 do artigo 8º do RGIT. 7 Pronunciaram-se as arguidas: que já tinham cumprido a pena de multa em que haviam sido condenadas; não tinham sido condenadas no pagamento solidário a que se reporta o nº7 do Artigo 8º do RGIT; concluindo, no sentido de que «O nº7 do artigo 8º não pode ser interpretado no sentido da consideração de uma responsabilidade solidária determinante da transmissibilidade para as arguidas da responsabilidade pelo pagamento de uma pena criminal (de multa) em que foi condenada pessoa diversa ( a sociedade co-arguida), que ainda não a pagou, sob pena de ilegal e inconstitucional interpretação daquele preceito legal, maxime por violação dos princípios constitucionais da intransmissibilidade das penas, da culpa e do ne bis in idem.» 8 O MºPº lavrou, então, resposta de discordância relativamente à posição assumida pelas arguidas C…. e D…. 9 Foi proferida decisão judicial, nos seguintes termos: No âmbito dos presentes autos, conforme resulta de fls. 722 a 747 foi a sociedade arguida “B…., Ld.ª” condenada, pela pratica de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena única de 300 dias de multa, à razão diária de € 25,00, o que perfaz o montante global de sete mil e quinhentos euros A firma mencionada, contudo, não efectuou, voluntariamente e no prazo legal, o pagamento de tal quantia, de sua responsabilidade. Foram as arguidas notificadas, na pessoa do seu i. defensor para se pronunciar, nos termos e para os efeitos previstos no art.° 8º, n.° 7 do RGIT, concluindo que o n.° 7 do art.° 8º do RGIT não pode ser interpretado no sentido de consideração de uma responsabilidade solidária determinante da transmissibilidade para as arguidas de uma responsabilidade pelo pagamento de uma pena criminal em que foi condenada pessoa diversa, que ainda não a pagou, sob pena de ilegal e inconstitucional interpretação daquele preceito legal, maxime, por violação dos princípios constitucionais da intransmissibilidade das penas, da culpa e do princípio ne bis in idem. A digna Magistrada do Ministério Público discordou da posição assumida pelas arguidas C…. e D…. e dos respectivos fundamentos apresentados, aduzindo em súmula que, em face da epígrafe e do teor da norma em questão, estamos perante a enunciação de uma responsabilidade civil — pelo pagamento de valor equivalente àquele a que corresponda a multa ou a coima que não foi paga — de quem tenha colaborado dolosamente na prática da infracção tributária. Cumpre decidir: Preceitua o disposto no art.° 90-B, n.°6 do Código Penal: “Findo o prazo de pagamento da multa ou de alguma das suas prestações sem que o pagamento esteja efectuado, procede-se à execução do património da pessoa colectiva ou entidade equiparada. Contudo, verifica-se não ser possível instaurar execução contra a sociedade arguida para cobrança da pena de multa, nos termos do art.° 90-B n.° 6 do Código Penal, e art.° 491º, n.°2 do CPP, uma vez que não lhe são conhecidos bens susceptíveis de penhora, conforme resulta do teor da informação junta a fls. 977. Aqui chegados coloca-se a questão de saber se tem aplicação o estatuído no art. 8° da RGIT. Na verdade preceitua o disposto no ri.°1 do art.° 8.° do RGIT “Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis: a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento; b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento. Atentando à redacção do citado art° 8°, n.°1 do RGIT e dos art°s 22°, 23° e 24° da Lei Geral Tributária, ressalta que a preocupação do legislador foi a de garantir que o devedor subsidiário só pode ser demandado na ausência, total ou parcial, de bens do obrigado principal e desde que se demonstre que ele agiu com culpa (dolo ou negligência) para a insuficiência dos bens da sociedade. Assim, do teor conjugado dos art°s 8° do RGIT e 24° da Lei Geral Tributária, extrai-se o seguinte: a) Que a responsabilidade subsidiária tributária reveste natureza civil, pois que como tal é sempre tratada; b) Que esta surge numa situação em que: ● O obrigado, na relação tributária, ao cumprimento do imposto não o fez; ● Foi contra ele instaurado um processo de execução fiscal; ● Nesse processo verificou-se, ou que não há bens para pagar a dívida fiscal, ou que esses bens são insuficientes; e ● A execução fiscal vai então reverter contra eventuais responsáveis. c) Que o procedimento de reversão contra algum ou alguns dos responsáveis subsidiários deve ser realizado nas hipóteses previstas nos art.s 230 e 240 da Lei Geral Tributária e 153°, n° 2 do CPPT e segundo o ritual previsto nos artigos 23, n° 4 e 60 da Lei Geral Tributária, em conjugação com o art. 45 do CPPT. Assim, as condições e os meios em que a referida responsabilidade pode e deve ser accionada, não podem ser outros que não os previstos na lei tributária, pois nem a lei civil nem a lei penal contêm quaisquer regras sobre tal tema. Ademais, nos presentes autos apenas dispomos de informação de que a sociedade arguida não dispõe de meios para proceder ao pagamento da quantia em que foi condenada. Porém, desconhece-se as razões que levaram a que tal acontecesse, bem como a quem pode ser imputada a responsabilidade por tal situação. Não temos por isso elementos que nos permitam concluir que foi por culpa das arguidas — pessoas singulares C…. e D…., que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento, tanto mais que até a insolvência da sociedade comercial foi considerada fortuita — cfr. fis. 1008. Com efeito, ao caso em apreço não tem aplicação a responsabilidade subsidiária decorrente do n° 1 do art. 8° do RGIT. Aqui chegados coloca-se agora a questão de apurar se tem aplicação o disposto no número 7 do art.° 8º, “Quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso.” Vejamos então se se encontram preenchidos os requisitos exigidos por este normativo. Conferida a sentença condenatória certificada nestes autos, verificamos que o crime de abuso de confiança fiscal, pelo qual tanto a sociedade arguida como as arguidas C…. e D… foram condenadas, assenta nos mesmos factos, precisamente na falta de entrega, no mesmo lapso temporal, de prestações para a Segurança Social. Acresce que as arguidas - pessoa singulares — agiram como representantes legais- gerentes da sociedade - arguida, assim administrando-a, decidindo sobre as opções que vinculavam a sociedade arguida, quanto a pagamento das cotizações à Segurança Social, sabendo que estavam obrigadas a entregar àquela as cotizações retidas aos trabalhadores, não tendo contudo entregue tais quantias. Ali ficou, igualmente, assente que as arguidas sabiam que estavam obrigadas a fazer a entrega de todas aquelas quantias e que agiram deliberada, livre e conscientemente. Assim, e perante esses factos, entendemos que se mostra integralmente preenchida a previsão do actual no 7 RGIT do art. 8° do RGIT. Poder-se-ia alegar que na sentença nada se diz expressamente acerca da responsabilidade solidária das arguidas no pagamento da multa em que a arguida sociedade foi condenada. Contudo, e na esteira do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, datado de 27-05-2009, e publicado em www.dgsi.pt, entendemos que tal não se afigura necessário, uma vez que tal responsabilidade decorre de norma imperativa e nada impede que seja reconhecida em momento posterior, como é o caso, ou seja, quando se verifica que a sociedade não pagou a multa, nem é viável o seu cumprimento coercivo. Não se trata pois de apreciar novos factos, mas sim de extrair uma conclusão que já decorre da letra da lei. Finalmente, e para um cabal e melhor esclarecimento dos dois regimes previstos quer no n.°1 do art. 8º, quer no seu n.°7, acompanhamos as palavras de Germano Marques da Silva, “Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus Administradores e Representantes”, págs. 443-448: “(...) O n.° 6 (reportando-se à anterior redacção do art.° 8º antes da entrada em vigor da - Lei n.° 60-A/2005, de 30/12) dispõe que quem colaborar dolosamente na prática de crime tributário é solidariamente responsável pelas multas aplicadas pela prática do crime, independentemente da sua própria responsabilidade criminal, quando for o caso. Assim, se o administrador for também responsável penal pelo crime por que tiver sido condenado o ente colectivo, a regra é a do n.° 6, ou seja, é sempre solidariamente responsável pelo pagamento da multa aplicada à pessoa colectiva, sendo que a regra do n.° 1 tem como pressuposto não a responsabilidade criminal do administrador, mas a sua culpa pelo não pagamento, quando tiver sido por culpa sua que o património do ente colectivo se tornou insuficiente para o seu pagamento ou por culpa sua não tiver sido efectuado. Conclui por isso que o fundamento da responsabilidade solidária é a colaboração na prática do crime tributário e por isso que respondem solidariamente pelas consequências jurídicas do crime os seus agentes, ou seja, os agentes do crime, e se esses agentes forem administradores ou representantes do ente colectivo não respondem nos termos do n.° 1, mas deste n.° 6. Ao invés, o n.° 1 segue o disposto no art. 24º da LGT, já o n.° 6 se afasta desse regime, embora se trate ainda de responsabilidade também por dívida de outrem, mas agora a responsabilidade é solidária porque o adminístrador colaborou dolosamente na prática da infracção e, por isso, vai responder solidaríamente com os co-responsáveis pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua própria responsabilidade, porque foi o seu comportamento ilícito causa directa da multa, foi o seu comportamento a causa da multa aplicada à pessoa colectiva pela prática do facto ilícito penal. Assim, importa ter presente que a responsabilidade de que trata o n.° 7 do art. 8º do RGIT se refere exclusivamente às consequências decorrentes da prática do crime enquanto que n.°1 (que segue o art. 24.0 da LGT) se reporta às consequências decorrentes do não pagamento do imposto devido. E não se diga se está perante uma transmissibilidade penal e que o tribunal incorrerá numa interpretação ilegal e inconstitucional. A epígrafe do art.° 8 é esclarecedora «Responsabilidade civil pelas multas e coimas» (nosso sublinhado). De facto, não estamos perante uma transmissão de uma responsabilidade penal que era originariamente imputável à sociedade arguida, mas antes perante a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito culposo que é praticado, no caso sub judice, pelas arguidas, pessoas singulares, pelo que a norma em apreço não viola nenhum princípio constitucional em matéria penal (neste sentido, vide Acórdãos do Tribunal Constitucional com os n.°s 129/2009, de 12/03/2009, e 150/2009, de 25/03/2009, cit. na promoção que antecede). Com efeito, “a pena de multa ou a coima apenas são referidas no preceito enquanto elemento de referência para a quantificação do valor da responsabilidade a que ela respeita: a civil” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/09/2011, Relator Vasco Freitas, processo 1062/05.OTAPRD-B.P1, in www.dgsi.pt). No Acórdão n.° 129/2009, de 12/03/2009, o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucionais as normas das alíneas a) e b) do n.° 1, do artigo 8.0 do RGIT, na parte em que se refere à responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes por coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação. Apesar do Tribunal Constitucional se ter pronunciado sobre os casos de responsabilidade subsidiária, previstos nas alíneas a) e b) do n.° 1, do artigo 8º do RGIT, por maioria de razão, o seu entendimento é aplicável aos casos de responsabilidade solidária do n.° 7, do referido artigo (neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/06/2010, Relator Élia São Pedro, processo n.° 248/07.7IDPRT-A.P1, in www.dgsi.pt). - citado da promoção antecedente. No caso em apreço, como dito, é evidente, que se mostra integralmente preenchida a previsão do n.° 7, do artigo 8.0, do RGIT, da qual resulta a responsabilidade solidária das arguidas C…. e D…. pelo pagamento da multa aplicada à arguida sociedade pela prática do crime por que foram, também elas, condenadas. Pelo exposto, e nos termos do disposto no artigo s°, n°s 7, do RGIT, declara-se as arguidas C…. e D…. solidariamente responsáveis pelo pagamento da multa em que a sociedade “B…., Ld.”, foi condenada nos presentes autos, no valor total de C 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), resultante da 300 dias de multa, à diária de € 25,00. Após trânsito em julgado emita as respectivas guias para pagamento.» 10 Inconformadas com esta decisão, dela recorrem as arguidas C…. e D…., as quais, na pretensão de verem “declarado nulo o despacho recorrido, por enfermar da nulidade insanável prevista no artigo 119º e) do CPP, ou se assim não se entender, ser o mesmo revogado”, rematam a respetiva Motivação com as seguintes Conclusões: 10.1 O despacho recorrido, mediante invocação do o disposto no n° 7 do art. 80 do RGIT, declarou as arguidas, ora recorrentes, solidariamente responsáveis pelo pagamento da multa em que a sociedade co-arguida “B…., Ld.” Foi condenada na sentença final, no valor total de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), resultante de 300 dias de multa, à taxa diária de € 25,00. 10.2 O despacho recorrido ordenou ainda, após trânsito em julgado, a emissão das respectivas guias para pagamento. 10.3 Cada uma das recorrentes já tinha visto a sua actuação ser punida pela co-autoria material de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, na forma continuada, tendo cumprido integralmente a pena de multa que lhes foi autónoma e individualmente imposta pela sentença condenatória. 10.4 É princípio geral de direito que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, com a ressalva, quanto ao processo penal, do disposto nos termos dos arts. 371º-A, 379ºe 380 do CPP. 10.5 Com a prolação da sentença que condenou as arguidas/recorrentes, esgotou-se o poder jurisdicional do Tribunal, estando vedado ao juiz, em despacho posterior, alongar essa condenação, ainda que apoiado em preceito legal. 10.6 O despacho recorrido enferma, por isso, de nulidade insanável, prevista no artº 119º, e), do CPP. 10.7 O preceito legal invocado no despacho recorrido para declarar as recorrentes solidariamente responsáveis pela multa imposta pela sentença condenatória à co-arguida não podia ser aplicado in casu. 10.8 As recorrentes foram condenadas pela prática de um crime na forma continuada, punido com a pena aplicada à conduta mais grave que integrou a continuação, mais exactamente o não pagamento à Segurança Social da prestação relativa ao mês de Julho de 1999, no valor de € 2.070,63, funcionando as restantes condutas como agravantes. 10.9 Essa conduta relativa ao mês de Julho de 1999 é anterior à vigência da norma legal invocada no despacho recorrido, que só entrou em vigor em 05 de Julho de 2001. 10.10 Antes dessa data, vigorava o art. 72-A do Regime Jurídico das Infracções não Aduaneiras (RJIFNA), segundo o qual a responsabilidade civil dos administradores, gerentes e outras pessoas que exercessem funções de administração em pessoas colectivas e entes fisicamente equiparados era (apenas) subsidiária. 10.11 Esse preceito tinha como pressuposto subjectivo, não a co-autoria dolosa da prática da infracção tributária, mas a comprovada culpa do responsável civil nas causas de insuficiência económica da pessoa colectiva condenada. 10.12 O despacho recorrido, ao decidir nos termos do preceito legal nele invocado, violou o princípio geral e constitucional da legalidade, previsto no art. 29, ns 1 e 3, da CRP e no art. 1 do CP. 10.13 Não decorre desse preceito a responsabilidade solidária do administrador ou gerente, co- arguido, pelo cumprimento da pena de multa criminal imposta à co-arguida pessoa colectiva. 10.14 A jurisprudência do Tribunal Constitucional, designadamente a que é firmada nos Acórdãos n 437/2011, do Plenário, de 03.10.2011 (sobre o artigo 8, n.2 1, alíneas a) e b), do RGIT), e n 561/2011, também do Plenário, de 22.11.2011 (sobre o art. 7-A do RJIFNA), não é transponível para declarar que o n27 do art. 8 do RGIT não é inconstitucional. 10.15 As situações previstas no n 1 do art 8 do RGIT e as obrigações delas decorrentes têm natureza diversa das situações previstas no n 7 do mesmo preceito e das obrigações que delas decorrem. 10.16 A interpretação do n7 do art. 8 do RGIT sustentada no despacho recorrido viola a Constituição da República Portuguesa, designadamente o princípio “ne bis in idem” (art. 29, n 5) e o princípio da intransmissibilidade das penas (art. 30, n 3). 10.17 Não colhe a argumentação invocada por parte da jurisprudência no sentido de que não é a pena criminal directamente imposta a terceiro que o art. 8 do RGIT transmite, mas apenas a responsabilidade civil pelo pagamento da multa, funcionando esta apenas como elemento de referência para a quantificação do valor de tal responsabilidade. 10.18 Não estando em causa uma situação de abuso do direito, nem a violação de um direito absoluto, a ilicitude extracontratual a atribuir ao co-autor do acto para também o responsabilizar solidariamente nos termos previstos no n° 7 do art. 8 do RGIT só poderia dar-se por violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, nos termos do n2 1 do art. 483. do Código Civil. 10.19 O não pagamento da multa criminal em que foi condenada a sociedade co-arguida não constitui para a Segurança Social qualquer dano, pelo que inexiste fundamento ressarcitório que torne legalmente admissível a aplicação do disposto no nº 7 do art 8 do RGIT e a solidária responsabilização dos gerentes. 10.20 Entendimento diverso traduziria clara violação dos princípios constitucionais acima aludidos (em 16). 10.21 O exercício do direito de audiência e de defesa, constitucionalmente garantido pelo art. 32, ns 1, 5 e 10, da CRP, como também pelos arts. 61v, n1, b), do CPP, e 3, n1, 2 parte, do CPC, não foi integralmente assegurado a qualquer das recorrentes no que tange à declaração de responsabilidade solidária. 10.22 A garantia desse direito não se bastava com a mera notificação às recorrentes, na pessoa do seu defensor, para, querendo, exercer o contraditório e, para se pronunciar, querendo, quanto ao estipulado no n2 7 do art.2 8 do RGIT. 10.23 As recorrentes não puderam pronunciar-se quanto aos factos pertinentes à determinação da medida da pena e à fixação da taxa diária aplicadas à sociedade co-arguida e pelas quais se pretende sejam agora responsabilizadas. 10.24 Ao decidir como decidiu, o despacho recorrido violou o disposto no artigo 8, n27, do RGIT, nos arts. 29, nºs 1, 3 e 5, 30º, nº3, e 32º, nºs 1, 5 e 10, todos da Constituição da República Portuguesa, nos arts. 4º e 61º, nº1, b), do Código de Processo Penal, nos arts. 3º, nº1, 2ª parte, e 666º, nº1, ambos do Código de Processo Civil, e no art. 483, nº1, do Código Civil. 11Respondeu o MºPº, pugnando no sentido da improcedência do recurso, assim justificando: 11.1 Não ocorre violação da Constituição da República Portuguesa, designadamente doPrincípio ne bis in idem e do Princípio da Intransmissibilidade das Penas, pela razão de que, atendendo à epígrafe e ao teor da norma em questão(Artigo 8º/7 RGIT), resulta que estamos perante a enunciação de uma responsabilidade civil, ou dizer: não estamos perante uma transmissão de uma responsabilidade penal que era originariamente imputável à sociedade arguida mas, antes, perante a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito culposo que é praticado, no caso sub judice, pelas arguidas, pessoas singulares, de modo que “não se trata de transferir a condenação criminal da sociedade condenada para as condenadas recorrentes, mas de lhes imputar o pagamento de uma indemnização civil assente em factos ilícitos típicos (pelos quais foram condenadas), sendo certo que esse montante indemnizatório corresponde ao montante da pena de multa que não foi possível cobrar à sociedade”. 11.2 Carece de fundamento a invocada nulidade insanável, prevista no artigo 119.°, Alínea e), do CPP na justa medida em que resulta evidente da leitura do despacho recorrido que o Tribunal a quo não “alongou” a condenação constante da sentença de fls. 722 a 747: não foram apreciados novos factos, antes e apenas extraída uma “conclusão que já decorre da letra da lei”, sendo que se trata de um caso de fixação obrigatória da indemnização, face à constatação da insuficiência do património social. 11.3 Não foi violado o princípio da legalidade uma vez que a lei a ter em consideração é a lei em vigor à data da condenação do ente colectivo, a saber, 10/07/2007. Ora, nesta altura, vigorava já o n.° 7 do artigo 8.° do RGIT (com a última redacção introduzida pela Lei n.° 60-A/2005, de 3 0/12). 11.4 Não foi violado o princípio da defesa porquanto, por despacho proferido pelo Tribunal, foram as recorrentes notificadas para “se pronunciar, querendo, quanto ao estipulado no n.° 7 do artigo 8º do RGT”. As recorrentes, notificadas para o efeito, pronunciaram-se. Destarte, o despacho sob recurso foi proferido, após ter sido dado oportunidade às recorrentes e ao Ministério Público, para se pronunciarem mostrando-se, deste modo, respeitado, o direito ao contraditório, de audiência e de defesa das recorrentes. 12. No despacho de admissão do Recurso, a Exma. Juiz manteve a decisão recorrida. 13. Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu proficiente Parecer no sentido de que seja negado provimento ao Recurso, sustentado em jurisprudência desta Relação, a que acrescentou o argumento de que “a condenação solidária entre as pessoas colectivas e os seusrepresentantes encontra a sua razão de ser nas especiais relações e responsabilidades entre eles existentes, nos termos do Direito das Sociedades, não se confundindo com a transmissão de penas ou de sanções, cuja proibição se consagra constitucionalmente”, sublinhando, pari passu, que “sendo a condenação solidária, isso apenas significa que qualquer dos arguidos pode responder pelo cumprimento integral das multas em que ambos foram condenados. O que vale por dizer que, por via legal, a condenação solidária apenas implica que o credor — no caso o Estado — pode exigir a prestação integral de qualquer dos devedores condenados, sendo que se é certo que o pagamento efectuada por qualquer um destes os desobriga a todos perante o credor, não é menos certo que esse pagamento não tem a virtualidade de impedir, ou excluir, o eventual exercício do direito de regresso por parte de quem pagou relativamente à responsabilidade do outro (artigo 524° do C. Civil).» 14. Cumprida a notificação a que alude o Artigo 417º/2 do CPP, colhidos os Vistos, realizada a Conferência, cumpre conhecer e decidir.
II FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.
1. São quatro as questões decorrentes das conclusões do recurso que delimitam o seu objeto:
i. O despacho sub iudicio enferma da nulidade insanável prevista no artigo 119 alínea e) do CPP?
ii. A prolação daquele despacho consubstancia violação do princípio constitucional da legalidade?
iii. Mostra-se violado, de igual passo, o exercício do direito de audiência e de defesa?
iv. Violados, ainda, os princípios de raiz constitucional ne bis in idem e da intransmissibilidade das penas?
2. Conhecendo.
2.1 Nulidade insanável, segundo a previsão e) do artigo 119º do CPP?
O argumento invocado pelas recorrentes reconduz-se à ideia da “violação das regras de competência do Tribunal”, no sentido de que, uma vez proferida sentença, ficava-lhe vedado, em despacho posterior, “alongar a condenação”, “ainda que apoiado em preceito legal”.
Objetivamente, é fundada a alegação de que na sentença condenatória proferida não reza qualquer declaração no sentido da responsabilidade solidária das recorrentes relativamente ao pagamento da multa imposta à sociedade co-arguida. [Supra I, 2]
Tornava-se, por isso, defeso ao tribunal, transitada em julgado a sentença condenatória, vir agora, dizendo o que ali não tinha dito, declarar as recorrentes solidariamente responsáveis pelo pagamento da multa em que a sociedade arguida havia sido condenada?
Como ainda não é chegado o momento da discussão quer sobre a sua conformidade jusconstitucional quer sobre a conformidade legal na sua aplicação ao caso concreto, retenhamo-lo nos seus termos, o artigo 8º do RGIT em que a decisão sob apreço sustentou o decidido: «Responsabilidade civil pelas multas e coimas 1 - Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis: a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento; b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento. 2 - A responsabilidade subsidiária prevista no número anterior é solidária se forem várias as pessoas a praticar os actos ou omissões culposos de que resulte a insuficiência do património das entidades em causa. 3 - As pessoas referidas no n.º 1, bem como os técnicos oficiais de contas, são ainda subsidiariamente responsáveis, e solidariamente entre si, pelas coimas devidas pela falta ou atraso de quaisquer declarações que devam ser apresentadas no período de exercício de funções, quando não comuniquem, até 30 dias após o termo do prazo de entrega da declaração, à Direcção-Geral dos Impostos as razões que impediram o cumprimento atempado da obrigação e o atraso ou a falta de entrega não lhes seja imputável a qualquer título.
4 - As pessoas a quem se achem subordinados aqueles que, por conta delas, cometerem infracções fiscais são solidariamente responsáveis pelo pagamento das multas ou coimas àqueles aplicadas, salvo se tiverem tomado as providências necessárias para os fazer observar a lei. 5 - O disposto no número anterior aplica-se aos pais e representantes legais dos menores ou incapazes, quanto às infracções por estes cometidas. 6 - O disposto no n.º 4 aplica-se às pessoas singulares, às pessoas colectivas, às sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e a outras entidades fiscalmente equiparadas. 7 - Quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso. 8 - Sendo várias as pessoas responsáveis nos termos dos números anteriores, é solidária a sua responsabilidade.»
Sem necessidade de particulares lucubrações exegético-normativas, parece óbvio que desta norma resultam, no que ora importa e releva, dois tipos de responsabilidade relativamente ao pagamento das multas e coimas aplicadas às pessoas coletivas, às sociedades: i. Seja a responsabilidade subsidiária dos administradores, gerentes e outras pessoas que naquelas exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração – quer com referência às multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento [(Al.a)],quer com referência às multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento[(Al. b)];ii. Seja a responsabilidade solidária de “quem colaborou dolosamente na prática da infração tributária, “independentemente da sua responsabilidade pela infração, quando for o caso” [Item 7]
Em face do que, parecerá igualmente óbvio que constituiria verdadeira precipitação uma formulação expressa no decisum relativamente à responsabilidade solidária.
Se bem se ajuíza, uma vez verificada a impossibilidade do pagamento da multa, só então, se cuidará – desde logo, por impulso do Ministério Público Exequente -, se haverá lugar à responsabilização subsidiária, se à responsabilização solidária, uma e outra subordinadas a pressupostos próprios, bem específicos, como a norma transcrita deixa claramente ver: naquela, a culpa na insuficiência do património ou a imputabilidade da falta de pagamento; nesta, a colaboração dolosa na prática da infração.
Destarte, entende-se que nada obsta a que a condenação do responsável solidário possa ser feita posteriormente à sentença condenatória.
Adere-se, aqui, por inteiro, à argumentação expendida no Acórdão desta Relação de 23.06.2010: «É verdade que pode ainda levantar-se a questão de saber se o facto de a sentença penal condenatória nada dizer sobre a responsabilidade solidária do arguido, relativamente ao pagamento da multa da sociedade, faz caso julgado e, nessa medida, impede a posterior condenação do arguido. Julgamos que não existe caso julgado, nem qualquer obstáculo a que a condenação seja feita posteriormente. Neste sentido se pronunciou o Acórdão desta Relação (proc. n.º 47/02.2IDPRT-B.P1), de 27/05/2009, onde se decidiu: “ (…) se é certo que na sentença nada se disse expressamente acerca da responsabilidade solidária do recorrente no pagamento da multa em que a arguida sociedade foi condenada, não é menos certo que não era absolutamente imprescindível que ali fosse feita tal menção, pois tal responsabilidade decorre de norma imperativa e nada impede que seja reconhecida em momento posterior, precisamente quando, verificando-se que a responsável penal não havia pago a multa nem era viável o seu cumprimento coercivo, se registou a necessidade de chamar o responsável civil. Além de que o reconhecimento da referida responsabilidade não envolveu a apreciação de novos factos, nem a prolação de uma nova decisão, mas apenas a extracção de uma mera conclusão que resulta daqueles que ficaram definitivamente assentes conjugada com o que decorre imperativamente da lei. Assim, o despacho recorrido mais não fez do que declarar o que já resultava da lei.» [1]
2.2 Violação do Princípio constitucional da legalidade?
Consabidamente, na instância de recurso aprecia-se a conformidade legal da decisão recorrida de acordo com os pressupostos de facto e de direito que lhe estiveram subjacentes.
Neste conspecto, em nota prévia, importará referir que, quando do exercício do contraditório (audiatur et altera pars) as Recorrentes não suscitaram qualquer questão relativa à violação do princípio da legalidade, pelo que a mesma não foi objeto de apreciação no despacho sob recurso.
Não obstante, da mesma tomar-se-á conhecimento.
Em que fundamentam as recorrentes a violação do princípio da legalidade?
A argumentação ressuma das alíneas 10.8 a 10.12 [Supra I] das conclusões do Recurso: as recorrentes foram condenadas pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, sendo que a pena cominada, visto o crime ter sido considerado cometido na forma continuada, teve em consideração a conduta mais grave que integrou a continuação, em concreto o não pagamento da prestação relativa ao mês de Julho de 1999; ora, a norma legal invocada só entrou em vigor em Julho de 2001, pelo que mostra-se violado o princípio da legalidade na vertente da proibição da aplicação retroactiva in pejus.
Quid iuris? Falece, de todo, a razão às recorrentes.
Normativamente, importa ter presente, desde logo, que «O crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação» [79º/1CP] e que «O prazo de prescrição só corre c) nos crimes continuados … desde o dia da prática do último ato» [119º/2 CP]. ([2])
Facticamente, o Tribunal, na sentença condenatória proferida, teve em consideração “prestações relativas a set. de 1995, janeiro e fevereiro de 1996, Novembro e Dezembro de 98, janeiro a dezembro de 1999, fevereiro e dezembro de 2000, janeiro a dezembro de 2001, janeiro a dezembro de 2002, janeiro a dezembro de 2003, janeiro a maio de 2004, todas relativas às deduções nos salários dos trabalhadores; a que acrescem as prestações relativas ao desconto sobre as remunerações dos órgãos sociais, relativas aos períodos de Julho de 2001 a dezembro de 2001, fevereiro a novembro de 2002, janeiro a dezembro de 2003 e janeiro de 2004”
As recorrentes e a sociedade co-arguida, respondiam, respetivamente: as primeiras, pela prática “em co-autoria, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social p. p. p. artigo 27º B do RJIFNA, na redação dada pelo DL 140/95 de 14/06, com referência ao Artigo 24º nº1 e 5 do DL 20-A/90 de 15/01, na redação do DL 394/93 de 24/11”; a sociedade, de acordo com “a responsabilidade criminal emergente do Artigo 7º do RJIFNA”.
Certo, porém, que chegado o momento da subsunção fáctico-normativa, o Tribunal ponderou:
«Acresce que, a entrada em vigor da Lei 15/2001 de 05/06, que veio estabelecer um novo regime jurídico para as infrações tributárias, eliminando do respetivo tipo legal o elemento da apropriação, não introduziu, quanto ao mais, alterações no tipo legal de crime em apreço, por forma a afastar a responsabilidade das arguidas (cfr. artigos 107º e 105º da Lei 15/2001 de 05/06), pelo que também à luz da lei nova os factos apurados integram o mesmo tipo de ilícito. Acresce, ainda, que não obstante o valor global das contribuições não entregues ser superior a 25.000,00€ (no regime vigente na data dos factos) e superior a 50.000,00 € (no regime actual), face à continuação criminosa a que se aludiu e ao preceituado nos artigos 24º nº2 do RJIFNA e 105º nº7 do RGIT, os valores a atender são agora, no regime da lei nova, os relativos a cada prestação tributária individualmente considerada e não já à soma de todas as prestações, pelo que, em nosso entender, a conduta das arguidas preenche, não o crime de abuso de confiança fiscal agravado, mas o referido crime simples, na forma continuada, p.p. p. artigo 105º nº1 do RGIT, por ser logo em sede de qualificação, o mais favorável, dado que nenhuma das prestações individualmente agora consideradas excede o montante de 50.000,00€”
Se a leitura do texto transcrito não é deficitária, o Tribunal aplicou, no caso concreto o princípio da legalidade na vertente da retroatividade in melius.
Mas, assim sendo, visto a adoção, sem oposição por parte das ora recorrentes, do regime concretamente mais favorável, obviamente terão de o ver aplicado no seu todo e não segundo critérios ou respigos de conveniência. [Artigo 2º/4 CP]
2.3 Violado o princípio da defesa?
Alegam as recorrentes que o exercício do direito de audiência e de defesa não foi integralmente assegurado, na justa medida em que a garantia de tal direito “não se basta com a mera notificação às recorrentes, na pessoa do seu defensor, para, querendo, exercer o contraditório”.
Está processualmente adquirido ter sido proferido despacho judicial “a ordenar a notificação das arguidas, na pessoa do seu ilustre Defensor, para, no prazo de 10 dias, exercer, querendo, o contraditório e, para se pronunciar, querendo, quanto ao estipulado no nº7 do artigo 8º do RGIT” [Supra I, 6], como igualmente está adquirido que, respondendo à notificação, as Recorrentes pronunciaram-se, exercendo o contraditório, pugnando pela inaplicabilidade daquele normativo [Supra I, 7]
Poder-se-á falar, conforme crítica formulada pelas recorrentes, numa violação das garantias da defesa? Entende-se que não.
O núcleo essencial do princípio da defesa proclamado no artigo 32º/1 da Constituição da República reconduz-se á ideia de um due process of law, no sentido de que, nele, há-de o arguido poder defender-se.
No Acórdão do TC n.º 61/88 (publicado no Diário da República, II série, de 20 de Agosto de 1988) – depois de se acentuar que, no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, ‘se proclama o próprio princípio da defesa’ e, portanto, apela-se, inevitavelmente, para ‘um núcleo essencial deste’ – escreveu-se:
‘A ideia geral que pode formular-se a este respeito – a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas no n.º 2 do artigo 32º – será a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido.’(Cf. também o Acórdão n.º 207/88, publicado no Diário da República, II série, de 3 de Janeiro de 1989).
Assim, pois, como se sublinhou no Ac. TC 135/88 (in DR, II série, 08/09/1998), se o processo deixa de ser um due process of law, um fair process, viola-se o princípio das garantias de defesa. O princípio das garantias de defesa é violado toda a vez que ao arguido se não assegura, de modo efectivo, a possibilidade de organizar a sua defesa. Dizendo de outro modo: sempre que se lhe não dá oportunidade de apresentar as suas próprias razões e de valorar a sua conduta (cf. os Acórdãos TC nºs 315/85 e 337/86, publicados in DR II série, de 12/04/1986, e I série, de 30/12/1986, respectivamente).
Ocorreu, in casu, algum procedimento implicativo de um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa das recorrentes?
Entende-se que não.
Socorremo-nos, uma vez mais e com inteira adesão, ao já citado acórdão desta Relação de 23.06.2010: «Nos termos do art. 49º do RGIT, “os responsáveis civis pelo pagamento de multas, nos termos do artigo 8º desta lei, intervêm no processo e gozam dos direitos de defesa dos arguidos compatíveis com a defesa dos seus interesses.” Deste preceito resulta sem qualquer ambiguidade que é no processo penal e não em processo autónomo que deve ser proferida a condenação dos responsáveis civis, a que alude o art. 8º do RGIT. Resulta ainda do mesmo preceito que os responsáveis civis pelo pagamento de multas gozam dos direitos de defesa (dos arguidos) compatíveis com a defesa dos seus interesses, o que significa que devem poder defender-se dos pressupostos de que a lei faz depender a sua responsabilidade civil. No caso previsto no art. 8º, n.º 7 do RGIT, aquele que “colaborar dolosamente na prática da infracção tributária” deve ter as mesmas garantias de defesa dos arguidos, para poder defender os seus interesses. Contudo, quando o arguido também for condenado como autor do crime imputado à Sociedade, mostra-se necessariamente preenchido este requisito. Nestes casos, o arguido teve oportunidade de se defender da prática do crime e, portanto, da colaboração dolosa na prática da infracção.» Se é assim, no que concerne à imputada responsabilidade decorrente da própria colaboração dolosa, não é menos certo que o exercício do contraditório plasmado na notificação adrede produzida [Supra I, 6], tendo em vista a aplicação da norma ínsita no artigo 8º/7 do RGIT, elide qualquer ideia de encurtamento inadmissível da possibilidade de defesa das recorrentes. Foi garantido, pois, o exercício do direito de defesa quer com referência ao momento do julgamento, quer, depois, com referência ao momento da concreção da responsabilização solidária quanto ao pagamento da multa em que a co-arguida sociedade tinha sido condenada, uma vez adquirida a certeza da impossibilidade do pagamento pelas forças desta. Manifestamente, às Recorrentes não faltou “oportunidade de apresentar as suas próprias razões”.
2.4 Violados os princípios ne bis in idem e da intransmissibilidade?
O acento tónico, se bem se compreende a argumentação recursiva, coincide com a questão relativa ao princípio constitucional da proibição da transmissibilidade da responsabilidade penal.
Entendem as recorrentes que, tendo elas satisfeito o pagamento da multa da sua condenação, não lhes pode ser assacada a responsabilidade do pagamento da multa em que condenada a co-arguida sociedade sob pena já de uma dupla condenação pelo mesmo facto ilícito penal (violação do ne bis in idem) já da violação do princípio ínsito no artigo 30º/3 da Constituição da República: «A responsabilidade penal é insusceptível de transmissão”.
O punctum prurens da questão identifica-se, como ressuma reconhecido na própria motivação do recurso, em saber se a norma diretamente em causa comporta a natureza de uma responsabilidade de cariz meramente civil ou se, como entendem as recorrentes, uma tal responsabilização assume ainda a natureza de responsabilidade penal.
O dispositivo sob apreciação – o artigo 8º do RGIT, sob a epígrafe “RESPONSABILIDADE CIVIL PELAS MULTAS E COIMAS” – fica acima transcrito [2.1], importando dele reter o segmento da alínea 7 onde se dispõe: Quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso.
Reconheçamos que não se trata de norma virgem.
Lembremos, desde logo, a norma ínsita no Artigo 11º [Responsabilidade das pessoas singulares e colectivas] da Lei Penal Substantiva, nos seus nºs 7, 9, 10 e 11:
«7 - A responsabilidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes nem depende da responsabilização destes.
(……………….)
9 - Sem prejuízo do direito de regresso, as pessoas que ocupem uma posição de liderança são subsidiariamente responsáveis pelo pagamento das multas e indemnizações em que a pessoa colectiva ou entidade equiparada for condenada, relativamente aos crimes:
a) Praticados no período de exercício do seu cargo, sem a sua oposição expressa;
b) Praticados anteriormente, quando tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva ou entidade equiparada se tornou insuficiente para o respectivo pagamento; ou
c) Praticados anteriormente, quando a decisão definitiva de as aplicar tiver sido notificada durante o período de exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.
10 - Sendo várias as pessoas responsáveis nos termos do número anterior, é solidária a sua responsabilidade.
11 - Se as multas ou indemnizações forem aplicadas a uma entidade sem personalidade jurídica, responde por elas o património comum e, na sua falta ou insuficiência, solidariamente, o património de cada um dos associados.»
Daqui, pela simples leitura, deflui ora que a responsabilidade das pessoas coletivas concorre com a responsabilidade individual dos respetivos agentes, outrossim que a responsabilidade coletiva ou social por multas ou indemnizações é garantida pela responsabilidade subsidiária dos líderes – sendo que estes, solidários entre si – num quadro legal que não deixa de prevenir a compensação visto o salvaguardado direito de regresso.
Dizer, então: posto que, por princípio, sejam apenas susceptíveis de responsabilidade criminal as pessoas singulares, sabido é que, excepcionalmente – ou seja, nos casos especialmente previstos ([3]), nomeadamente os casos expressamente consignados no item 2 do artigo 11º do Código Penal – também as pessoas colectivas e entidades equiparadas são susceptíveis de responsabilidade criminal, de uma responsabilidade criminal específica.
Específica, no sentido, desde logo, de que a responsabilidade dos entes colectivos concorre com a responsabilidade individual dos respectivos agentes: [«A responsabilidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes …» Artigo 11º/7 C.P.] e, assim, é que «É punível quem age voluntariamente como titular de um órgão de uma pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, ou em representação legal ou voluntária de outrem, mesmo quando o respectivo tipo de crime exigir: a)….; b) que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado» [Artigo 12º/1 C. P.], como assim é, igualmente, que «sem prejuízo do direito de regresso, as pessoas que ocupem uma posição de liderança são subsidiariamente responsáveis pelo pagamento das multas e indemnizações em que a pessoa colectiva ou equiparada for condenada, relativamente aos crimes: a) praticados no período de exercício do seu cargo, sem a sua oposição expressa» [Artigo 11º/9 C.Penal]
Distinção na responsabilidade criminal de uns (entes colectivos) e outros (agentes dos entes colectivos) que tem a sua compreensão na ideia de que se, de uma parte, (i) não há uma representação para delinquir, antes são os representantes que delinqúem no desempenho do seu encargo (princípio da responsabilidade do membro ou representante por actuação através de facto pessoal próprio), originando o comportamento voluntário e desviante da pessoa física ou singular a responsabilidade criminal do ente colectivo, também é certo, de outra parte, (ii) que a responsabilidade da pessoa colectiva exige, além dos elementos essenciais do facto típico, comuns aos agentes e à pessoa colectiva, que o facto seja praticado em seu nome e no seu interesse (seu, dela pessoa colectiva), bem assim exige se comprove a culpa própria da pessoa colectiva, culpa própria no sentido de que a vontade do acto seja a vontade da pessoa colectiva e não a do agente, ainda que titular de órgão ou representante. ([4]) ([5])
Aresponsabilidade dos entes colectivos concorre com a responsabilidade individual dos respectivos agentes, deixou-se referido.
Dizer, por isso, já numa específica referência ao RGIT: «A responsabilidade criminal das entidades referidas no n.º 1 não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes» [Artigo 7º/1 e 3]
Responsabilidade criminal e civil, entenda-se.
O incumprimento da obrigação legal por parte do agente (pessoa singular) que – posto que agindo como gerente, em nome e no interesse da sociedade – não cumpre a obrigação da entrega ao Fisco dos valores percebidos – in casu, a título de prestação para a segurança Social – antes, desviando-os, passa a dispor ut dominus o que recebera uti alieno conferindo-lhes fins diferentes daqueles aos quais se destinavam (entrega nos cofres do Estado), do mesmo passo que acarreta - verificados que, assim, se mostrem os elementos objectivo-subjectivos do tipo-do-ilícito – uma responsabilidade criminal (in casu, Artigo 105º/1 RGIT), importa, de igual passo, ipso facto (dizer, por força da prática do ilícito penal > responsabilidade aquiliana ou responsabilidade subjectiva ou por facto ilícito –Artigo 483º do Código Civil) a correspectiva responsabilidade civil pelos danos causados, desde logo quanto aos valores em falta. ([6])([7])
Acontece que, por força Lei Geral Tributária, a responsabilidade tributária pode abranger solidária ou subsidiariamente outras pessoas além dos sujeitos passivos originários, sendo que a responsabilidade tributária por dívidas de outrem é, salvo disposição em contrário, apenas subsidiária. ([8])
Na responsabilidade solidária a cobrança do imposto (voluntária ou coerciva) actua directa ou imediatamente sobre qualquer dos sujeitos passivos - contribuinte directo ou responsável ([9]) Na responsabilidade subsidiária a cobrança do imposto só actua sobre o responsável por forma mediata e coerciva, e por reversão em processo de execução fiscal, ([10]) ou seja, primeiro haverá que envidar a cobrança da dívida sobre o devedor do imposto (contribuinte directo ou o substituto) e só após exauridos ou esgotados esses mecanismos será possível reverter, cobrar a dívida aos responsáveis, administradores e gerentes das sociedades comerciais.
Ressalvou-se: “salvo disposição em contrário”.
Importa, então ter em conta que, se na responsabilidade tributária pelas dívidas de outrem, a regra é a responsabilidade subsidiária e conjunta, impõe-se de igual passo a responsabilidade solidária nos casos em que a lei expressamente o determine (cfr. Artº 513º do Código Civil).
O que acontece, exactamente, com referência à responsabilidade civil por facto ilícito.
Vale dizer: estando em causa responsabilidade civil emergente da prática de crime, verificados os pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos (facto> dano > nexo de causalidade facto-dano > ilicitude > culpa), quando o crime não tenha sido praticado por um único agente, todos os co-autores são solidariamente responsáveis, por força do disposto no Art. 497º, n.º 1, do Código Civil, de sorte que qualquer um deles responde pelo cumprimento unitário da prestação, (sem prejuízo do direito de regresso) podendo o credor optar por exigir a totalidade da prestação a todos os devedores solidários, ou exigir a qualquer um deles a prestação, total ou parcial.
Aqui chegados, entramos no âmago da questão da conformidade constitucional sob apreciação.
Uma questão já abundantemente debatida na jurisprudência das Relações ([11]) Apertis verbis, assume-se aqui, a posição da conformidade constitucional.
Socorrendo-nos da doutrina, tenhamos presente o acautelado ensinamento de Damião da Cunha:
«No âmbito da jurisprudência constitucional, o problema da transmissibilidade da responsabilização (penal ou outra sancionatória) assumiu sobretudo relevância ao nível de responsabilidade de pessoas coletivas e das consequências daí derivadas para os “titulares” dos seus órgãos ou seus ”representantes”, nomeadamente na responsabilidade subsidiária pelo pagamento de coimas. Não nos parece que se possa, sem mais, transpor aquele princípio de intransmissibilidade para o âmbito sancionatório (penal ou outro) de pessoas coletivas.Com efeito, por um lado, porque não estará em causa, por forma tão evidente, a mesma ratio que preside à intransmissibilidade da responsabilidade de pessoas individuais – nomeadamente as ideias de culpa pessoal, de juízo de censura pessoal, de “sensibilidade” à pena, etc, consequências e traduções dos princípios da autodeterminação e da liberdade, etc. – e, por outro, porque tais entidades, para atuarem, carecem de “titulares/suportes” individuais que, com base numa relação jurídica, as “representem”»
Depois de dar conta do entendimento que o Tribunal Constitucional tem vindo a revelar no sentido de que, “A responsabilidade subsidiária prevista na lei (no caso, o Regime Geral das Infrações Tributárias, estando tal responsabilidade prevista hoje no artigo 8º da Lei nº15/2001) de administradores, gerentes, etc., não implicaria qualquer transmissão de responsabilidade, uma vez que esta responsabilidade decorre, não imediatamente da responsabilização sancionatória, mas da violação culposa de deveres que àqueles agentes deva ser imputada e da qual resultou a insuficiência patrimonial para o pagamento da coima (cfr., assim e neste sentido, os Acs. Nº 129/09 e 150/09), pelo que estaria em causa apenas um problema de responsabilidade civil»
Já o mesmo Autor se questiona sobre saber
“Se este pensamento regra não deve ser generalizado a toda e qualquer hipótese de responsabilidade subsidiária pelo não pagamento, quando este seja devido em consequência da aplicação de sanção penal ou não penal (mas sancionatória) a pessoa coletiva”, para responder com alguma reservas, se bem se interpreta, «Julgamos que assim deverá suceder, embora a lei por vezes pareça não fazer esta ressalva. Com efeito, é preciso não esquecer que, além do princípio da não transmissibilidade da responsabilidade penal (ou outra), também se poderá questionar a “automaticidade” da sua concretização (impedindo a possibilidade de defesa pelo visado) e ainda o ne bis in idem (quando pelo mesmo facto o representante da pessoa coletiva possa ser responsabilizado pessoalmente pelo crime e sem mais, tenha ainda de assumir a responsabilidade subsidiária face à pessoa coletiva). Por isso, a responsabilidade subsidiária pelo pagamento de multas ou de sanções pecuniárias de pessoas coletivas deve pressupor sempre um “juízo” autónomo, assente em critérios de decisões próprios (ou seja, com base na “censura” por violação de deveres decorrentes da “representação”, violação que tenha sido a causa para a insuficiência patrimonial, da pessoa coletiva, subjacente ao não pagamento, ou para o não pagamento);
Mas também para logo ressalvar: “Critérios naturalmente diferentes daqueles que regulam a responsabilidade penal, pelo que está em causa uma responsabilidade que não deve ser confundida (tanto de um ponto de vista material, como de um ponto de vista processual), com a penal» ([12])
Dúvidas da conformidade constitucional do artigo 8º do RGIT não subsistem, igualmente, para Germano Marques da Silva.
Desde logo no que concerne ao seu item 1, na ideia de que
“Trata-se de um caso de responsabilidade civil por facto próprio, facto culposo causador do não pagamento pelo ente coletivo pelo pagamento da dívida que onerava o seu património”, de modo que “a responsabilidade civil pelo pagamento da multa penal nada tem a ver com os fins das penas criminais, porque a sua causa não é a prática do crime, mas a colocação culposa da sociedade numa situação de impossibilidade de cumprimento de uma obrigação tributária”.
A solução de idêntico sentido chega o mesmo Autor relativamente ao segmento da norma que constitui o punctum saliens da questão sob apreço, dizer a responsabilidade solidária das recorrentes condenadas:
”Agora, o fundamento da responsabilidade solidária é a colaboração na prática do crime tributário e por isso respondem solidariamente pelas consequências jurídicas do crime os seus agentes, ou seja, os agentes do crime”, “responsabilidade solidária porque o administrador colaborou dolosamente na prática da infração e, por isso, vai responder solidariamente com os co-responsáveis pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infração, independentemente da sua própria responsabilidade, porque foi o seu comportamento ilícito causa direta da multa, foi o seu comportamento a causa da multa aplicada à pessoa coletiva pela prática do facto ilícito penal”. ([13])
A esta mesma solução dever-se-á chegar, se consideradas as decisões do Tribunal Constitucional.
Visto a clareza de exposição e assertividade da argumentação, com a devida vénia, socorremo-nos mais uma vez do já citado Ac. de desta Relação do Porto: « O citado art. 8º do RGIT foi objecto de apreciação no acórdão do Tribunal Constitucional, de 12/03/2009, o qual decidiu: «não julgar inconstitucionais as normas das alíneas a) e b) do nº l do artigo 8° do RGIT (…) na parte em que se refere à responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes por coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação», com fundamento em que aquele preceito não consagra uma qualquer forma de transmissão de responsabilidade penal ou contra-ordenacional imputável à sociedade, estabelecendo, antes, a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente e que constitui causa adequada do dano que resulta, para a Administração Fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram devidas (tratar-se-ia de uma responsabilidade de natureza civil extracontratual dos gerentes e administradores, resultante do facto culposo que lhes é imputável por terem causado uma situação de insuficiência patrimonial da empresa, determinante do não pagamento da coima, ou por não terem procedido ao pagamento da coima quando a sociedade foi notificada para esse efeito ainda durante o período de exercício do seu cargo)”. E entendimento idêntico veio a ser sufragado nos acórdãos de 25/03/09 e de 12/05/09, nos processos nºs 150/09 e 234/09, do mesmo Tribunal, que apreciaram a constitucionalidade da norma prevista no art. 7º-A do RJIFNA, equivalente à do art. 8º do RGIT. De acordo com o Tribunal Constitucional, a responsabilidade subsidiária prevista no art. 8º do RGIT assenta não no facto típico que consubstancia a infracção contra-ordenacional, mas num outro facto diferente e autónomo: o comportamento pessoal causador de um dano para a Administração Fiscal, sendo que a «(…) circunstância de o montante indemnizatório corresponder ao valor da multa ou coima não paga apenas significa que é essa, de acordo com os critérios da responsabilidade civil, a expressão pecuniária do dano que ao lesante cabe reparar, que é necessariamente coincidente com a receita que deixa de ter dado entrada nos cofres da Fazenda Nacional; e de nenhum modo permite concluir que tenha havido a própria transmissão para o administrador ou gerente da responsabilidade contra-ordenacional. (…)». Deste modo, e de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, a responsabilidade pelas multas e coimas prevista no art. 8º do RGIT deve ser vista como uma responsabilidade civil e não como a transmissão da responsabilidade penal. Esta diversa natureza da responsabilidade afasta liminarmente a argumentação feita com base na intransmissibilidade das penas. Em suma, a responsabilidade subsidiária estabelecida no artº 8º do RGIT é de natureza meramente civil e não penal, pelo que essa norma não viola nenhum princípio constitucional em matéria penal. O TC pronunciou-se, é verdade, sobre os casos de responsabilidade subsidiária previstos nas alíneas a) e b) do art. 8º, 1 do RGIT mas, por maioria de razão, o seu entendimento é aplicável aos casos do art. 8º, n.º 7. Nestas hipóteses, em que a responsabilidade é solidária (e não subsidiária), ainda é mais flagrante a sua natureza civil, fundada na “colaboração dolosa” na prática da infracção. Por outro lado, é pressuposto do n.º 7 do art. 8º do RGIT que o sócio-gerente tenha “colaborado dolosamente na prática da infracção”, o que significa que também tenha sido condenado no processo-crime. E se é verdade que um juízo sobre a necessidade da pena ou a sua proporcionalidade (art. 18º da CRP) deve limitar-se a assegurar a protecção dos bens jurídicos penalmente ofendidos e não a prossecução de receitas, o certo é que as finalidades da punição não podem ser invocadas para afastar a responsabilidade civil, ainda que fundada no mesmo facto ilícito. O fundamento da responsabilidade civil por facto ilícitos é essencialmente a reparação de um dano, ou seja, a consideração de que não deve ser o lesado a suportar um prejuízo ilicitamente causado por um comportamento alheio. Daí que o princípio da necessidade ou proporcionalidade, no que respeita à génese da responsabilidade civil, não seja ofendida por um regime jurídico que impõe o dever de indemnizar a quem causar (ou contribuir para sua causa) um dano. Trata-se, aliás, do regime regra da obrigação de indemnizar, conforme resulta do art. 497º do C. Civil. Julgamos assim que não existe qualquer obstáculo constitucional à aplicação do artigo 8º, n.º 7 do RGIT.»
Sem necessidade de qualquer outra argumentação – razão demais, seria razão de menos – conclui-se no sentido da improcedência do argumento da violação do princípio da intransmissibilidade.
III DECISÃO
Termos em que, na improcedência do recurso, confirma-se a douta decisão recorrida.
Da responsabilidade individual das Recorrentes, pelo decaimento, a taxa de justiça de 3UC.
Porto, 10 de Outubro de 2012 Joaquim Maria Melo Sousa Lima Francisco Marcolino de Jesus
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[1] Ac. TRP no Processo 248/07.7IDPRT-A.P1, Relatora: Élia São Pedro, in www.dgsi.pt
[2] Presente, ainda, que “As infracções tributárias consideram-se praticadas no momento e no lugar em que total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado” e que “As infracções tributárias omissivas consideram-se praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários”. [Artigo 5º/ 1 e 2 RGIT]
[3] Assim com referência às infrações tributárias, relativamente às quais, “as pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei (RGIT) quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo”. Sendo certo que “A responsabilidade criminal das entidades referidas no n.º 1 não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes”.[Artigo 7º/1 e 3]
[4] Vide: Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette – Código Penal Anotado e Comentado, Quid juris, Sociedade Editora/2008, Pág.90.
[5] A talhe de foice, importa intercalar, aqui, o reconhecimento, com Germano Marques da Silva, de «alguma insuficiência da praxe judiciária no que respeita à narração dos factos reveladores da culpabilidade» da pessoa coletiva.
Explicitando: «Porque a responsabilidade das pessoas coletivas não é consequência necessária da do agente que seja titular de um seu órgão ou seu representante”, «a responsabilidade da pessoa coletiva exige…., além dos elementos essenciais do facto típico, comuns aos agentes e à pessoa coletiva, que o facto seja praticado em seu nome e no seu interesse».
Outrossim, «A culpa da pessoa coletiva é culpa própria, não se confundindo com a culpa dos agentes do facto». Dizer, pode «não se verificar a responsabilidade da pessoa coletiva, porque o facto, ainda que praticado aquando do exercício das funções do titular do órgão, não foi praticado no interesse da pessoa coletiva», ou porque «a vontade da pessoa coletiva não tenha sido formada nos termos legais.»
Dizer, ainda: «Não basta a determinação da culpa dos agentes para fixar a culpa das pessoas coletivas; a culpa da pessoa coletiva é culpa própria, diversa da culpa dos agentes..»
Posto que «a culpa da pessoa coletiva se forme com referência à culpa dos agentes titulares do órgão ou seus representantes», «não se confundem, não é consequência necessária da daqueles». «QUE FUTURO PARA O DIREITO PROCESSUAL PENAL», Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, Coimbra Editora, 2009, págs. 793-794
[6] De GERMANO MARQUES DA SILVA transcreve-se a este propósito: “(…) se o crime não é o facto gerador da dívida de imposto (da prestação tributária não paga) pode ser causa do não pagamento e nessa medida é causa do dano para a administração tributária. A generalidade dos crimes tributários são susceptíveis de causar dano à administração tributária, frustrando o pagamento da prestação tributária em falta, mas a sua causa é autónoma. A dívida tributária existe e o seu fundamento, a sua causa, é autónoma do crime, mas o prejuízo resultante do não pagamento foi causado pela perpetração do crime. Por isso que os agentes do crime devem responder pelos prejuízos causados com o seu acto. (…) O valor do dano causado à administração tributária corresponde, em regra, ao valor da prestação tributária em falta, mas a causa do dano é outra, é a prática do crime. Pode até suceder que o crime não tenha causado prejuízo equivalente ao da prestação tributária em dívida, ou porque não existe qualquer prestação tributária em dívida ou porque o prejuízo causado pelo crime foi inferior ao do valor da prestação tributária devida. Nem o RGIT nem a LGT afastam a regra geral constante dos arts. 483.º a 498.º do Código Civil, aplicáveis por remissão do art. 129.º do Código Penal, porque nunca se referem aos danos emergentes do crime, salvo quando o art. 3.º, al. c), do RGIT manda aplicar subsidiariamente as disposições do Código Civil. (…) A dívida tributária existe e mantém-se independentemente da prática do crime tributário, mas se o crime causar danos os seus agentes são responsáveis pela indemnização dos danos dele emergentes nos termos gerais.”
[“Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus Administradores e Representantes”, págs. 453 456]
[7] “A responsabilidade civilque pode ser feita valer no processo penal não emerge do incumprimento das obrigações contributivas, mas apenas do facto de a falta de entrega das mesmas constituir um facto ilícito” Ac. TRP de 20.04.2009, Processo 7625/08 - Relatora Leonor Esteves
[8] A responsabilidade tributária abrange, nos termos fixados na lei, a totalidade da dívida tributária, os juros e demais encargos legais. / Para além dos sujeitos passivos originários, a responsabilidade tributária pode abranger solidária ou subsidiariamente outras pessoas. / A responsabilidade tributária por dívidas de outrem é, salvo determinação em contrário, apenas subsidiária. / As pessoas solidária ou subsidiariamente responsáveis poderão reclamar ou impugnar a dívida cuja responsabilidade lhes for atribuída nos mesmos termos do devedor principal, devendo, para o efeito, a notificação ou citação conter os elementos essenciais da sua liquidação, incluindo a fundamentação nos termos legais. [Artigo 22º/1,2,3,e 4 LGT]
[9] Salvo disposição da lei em contrário, quando os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa, todas são solidariamente responsáveis pelo cumprimento da dívida tributária. [Artigo 21º/1LGT]
[10] Entenda-se por reversão, o chamamento à execução do responsável subsidiário.
[11] Síntese interessante das divergências assumidas em diferentes arestos, encontra-se no Ac. TRP de 20.12.2011 no Processo 1299/06.4TAVNF-A.P1 / Relator: Augusto Lourenço, in www.dgsi.pt No sentido adotado na presente decisão, indicam-se ainda, pelo seu particular interesse: Ac. TRP de 30.09.2009, Processo 16/05.0IDBGC.P1/ Relator Francisco Marcolino, in www. dgsi.pt; Ac.TRP. 12.01.2011, Processo 243/05.0IDPRT-A.P1/ Relatora Maria da Graça Silva, in www.dgsi.pt; Ac.TRP de 28/09/2011, processo 1062/05.OTAPRD-B.Pl/ Relator Vasco Freitas in www.dgsi.pt; Ac.TRG de 21/11/2011, processo 1453/07.1TAVCT.G2/ Relator Fernando Chaves, in www.dgsi.pt eCJ Nº234 ANO XXXVI, Tomo V/2011, págs. 293-295 [12] CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA ANOTADA – JORGE MIRANDA * RUI MEDEIROS – TOMO I, 2ªEd. Coimbra Editora, págs. 684-685
[13] Sobre a Responsabilidade Civil emergente de Crime Tributário e Outras Questões Pertinentes, págs.5 nota 12, 8 e 9 e Direito Penal Tributário – Universidade Católica Editora – 2009, pág. 328/329. Citações recolhidas do Ac. TRG de 26.03.2012, in CJ Nº237, ANO XXXVII, TOMO II/2012, pags. 293-295 /Relatora: Maria Augusta Fernandes.