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PROVIDÊNCIA CAUTELAR
DESOBEDIÊNCIA
GUARDA NACIONAL REPUBLICANA
Sumário
I - É hoje inquestionável, face à norma constante do art. 391º do CPC, que se incrimina como desobediência qualificada o acto que se traduz no respectivo desrespeito da decisão cautelar, da mesma forma que se confere garantia de exequibilidade às medidas adequadas à sua execução coerciva. II - Sendo assim, não parece descabido solicitar-se à GNR a sua intervenção no sentido de fazer cumprir uma decisão do tribunal que impõe a um cidadão que permita que outro entre na sua propriedade para daí retirar água para a rega, em certas alturas, desde que haja em vista remover obstáculos que prenunciem um confronto físico. III - Esta medida, por ser praticável e por se afigurar capaz de garantir, em tempo útil, a providência antecipatória adequada a remover os inconvenientes da demora inerente ao exercício da acção cível, é tida por legítima e tem o apoio legal, podendo ser adoptada pelo tribunal recorrido.
Texto Integral
1. A, identificada nos autos, requereu, na comarca de Mangualde e em procedimento cautelar comum contra B e mulher e outra, que os requeridos fossem notificados para permitirem que retire a água de um poço que se situa num prédio destes e a conduzam até às suas propriedades, para rega, abstendo-se de praticar quaisquer actos que impeçam o exercício do direito a essa água.
A providência é preliminar de uma acção em que a autora pretende ver declarado o invocado direito.
A providência foi concedida e os requeridos notificados. Apesar disso não cumprem a decisão, que transitou, e continuam a impedir que a requerente use a água, não obstante advertidos para as consequências penais pelo crime de desobediência.
Louvando-se no artigo 391º do Código de Processo Civil, a requerente solicitou ao tribunal que desencadeasse medidas adequadas à execução coerciva da decisão, sugerindo que fosse requisitada a força policial para permitir que a requerente execute os trabalhos de rega sem ser molestada pelos requerentes que ameaçam seriamente com o confronto físico. Concretizam, dizendo que fixam o dia de Quarta-feira de cada semana, em tempo de rega, e que lhes bastam duas horas e meia, a contar das nove da manhã.
Sobre este requerimento proferiu o Sr. Juiz um despacho do seguinte teor: “Como ficou já salientado no despacho proferido em 22 de Maio deste ano, constante de fls. 60 verso, não se afigura possível assegurar a presença de forças policiais de cada vez que os requeridos não cumprem o que lhes foi ordenado.
Assim sendo e pela última vez, deverão os requeridos obedecer ao que ficou estabelecido, sendo certo que corre já os seus termos a acção principal, onde se apreciará e decidirá a pretensão da aqui requerente.
Deverão igualmente consciencia1izar-se de que ninguém está acima da lei, existindo formas legais de reagir e de ressalvar os interesses de cada um, pelo que se mantiverem a atitude que vêm demonstrando, será ordenada a extracção de certidão dos presentes autos e remetida aos Serviços do Ministério Público, incorrendo os mesmos na prática de um crime de desobediência qualificada, punido com pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias - cfr. art. 391º do Código de Processo Civil. Notifique requerente e requeridos do presente despacho”.
2. A requerente não se conforma e agrava desse despacho, concluindo: a) À recorrente assiste o direito de retirar a água do poço e a ele aceder pela forma que lhe foi reconhecida na decisão proferida no procedimento cautelar. b) O Tribunal tem o poder/dever de tomar as medidas necessárias à execução coerciva de decisão proferida em procedimento cautelar comum. c) É possível e viável assegurar a presença de forças policiais durante todas as quartas-feiras de cada semana no período das 09:00 às 11:30 horas por forma a que a Recorrente possa exercer os direitos que lhe foram reconhecidos. d) Tal presença não inviabiliza, dificulta ou impede o exercício dos demais deveres que incumbe àquela entidade policial. e) Uma das funções primordiais das entidades policiais é fazer cumprir as decisões judiciais. f) Ao Tribunal "a quo", indeferindo a deslocação da entidade policial, incumbia decretar medidas que assegurassem o efectivo incumprimento da decisão proferida. g) A omissão de tomada de medidas adequadas, a efectiva execução coerciva de decisão judicial desacredita a justiça e conduz a que as partes sejam tentadas a recorrer à denominada "justiça popular" por ausência efectiva de meios judiciais para fazer valer os seus legítimos direitos. h) Ao decidir da forma constante do douto despacho o Meritíssimo Juiz "a quo" violou por erro de interpretação o artigo 391º do Código de Processo Civil. i) Deve ser concedido provimento ao recurso e revogado o despacho recorrido, decretando a presença da autoridade policial no período e local referidos, ou decretadas medidas concretas quepermitam a execução coerciva da decisão proferida de deferimento da providência cautelar.
3. Não foram apresentadas contra-alegações. Estão colhidos os vistos. Cumpre decidir.
Os factos são os que constam do requerimento inicial e do requerimento sobre o qual recaiu o despacho agravado.
O objecto do recurso, delimitado, como se sabe, pelas conclusões da alegação do recorrente (artigos 684º, 2 e 3 e 690º , 1 do Código de Processo Civil), consiste em saber se podia (ou devia) o tribunal requisitar a intervenção policial (GNR) para assegurar o cumprimento da sua própria decisão.
O suporte legal da solução consta do artigo 391º do Código de Processo Civil que reza assim: incorre na pena do crime de desobediência qualificada todo aquele que infrinja a providência cautelar decretada, sem prejuízo das medidas adequadas à sua execução coerciva.
Este preceito foi introduzido no Código de Processo Civil revisto pelo Dec. Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro. O facto de não constar da anterior redacção uma norma deste teor, fez com que a jurisprudência hesitasse em reconhecer a garantia penal das decisões proferidas em procedimentos cautelares. Se alguns arestos aceitavam que a desobediência à ordem emanada da decisão constituía crime ( vide, entre outros, Acórdão da RC, de 27/11/85, CJ. 1985, V, 61 e BMJ, 351º , 46.) outros entendiam que só era aceitável a sanção civil, designadamente a execução e eventual indemnização.( RC. acórdão de 16/05/79, CJ, 1979, 3º, 914 e de 28/03/84, CJ, 1984, 2º, 70.)
Hoje é inquestionável que tais decisões têm garantia de exequibilidade ajustável à sua própria natureza e aos fins a que se destina cada decisão.
Com efeito, as providências conservatórias ou antecipatórias são decretadas para se remover o periculum in mora concretamente verificado em cada caso e para assegurar a efectividade do direito ameaçado. Daí que o sistema tenha de garantir, na medida do possível, as duas vertentes estruturantes do procedimento cautelar: a urgência do procedimento e a efectividade do acatamento da providência ordenada. Por isso é que se incrimina expressamente como desobediência qualificada o acto que se traduz no respectivo desrespeito da decisão cautelar.
Mas não é só a incriminação que está inscrita no rol dessas garantias; são também, de um modo genérico as medidas adequadas à sua execução coerciva, como diz a lei. Estão aqui incluídas as medidas instituídas para os casos de violação de obrigações que tenham por objecto um facto negativo (artigo 941º do Código de Processo Civil), onde se inclui a sanção pecuniária compulsória, prevista no artigo 829º - A do Código Civil.
Pode acontecer (e é bom que não nos esqueçamos disso) que nenhuma destas medidas se ajuste ao caso concreto; basta imaginar o incumpridor sem meios de garantia de pagamento, para logo se concluir pela total ineficácia dissuasória desta medida.
Mas a nossa questão é a de saber se é legítimo o pedido de intervenção da GNR para fazer observar uma decisão de cariz cível. Por um lado, há que ter em conta que o tribunal não pode dar ordens a uma entidade policial; o que lhe assiste é tão só a legitimidade de requerer ou solicitar a sua intervenção, no sentido de fazer cumprir as suas decisões. Sobre o modus operandi já as coisas passam para o domínio desta entidade.
Sendo assim, não parece descabido solicitar-se à GNR a sua intervenção no sentido de fazer cumprir uma decisão do tribunal que impõe a um cidadão que permita que outro entre na sua propriedade para daí retirar água para rega, em certas alturas, desde que haja em vista remover obstáculos que prenunciem um confronto físico. Uma tal tarefa nem extravasa o âmbito das suas funções de polícia rural.
O modo de actuação pode ir da simples presença da força policial uma única vez, à detenção em flagrante delito por desobediência. O poder dissuasório destas medidas serão, por certo, bem mais eficazes que as simples advertências de procedimento criminal e de sanções pecuniárias.
Não deve, por isso, repugnar a inclusão deste tipo de medida no predito inciso legal. A intervenção da força policial constitui uma medida eventualmente adequada à execução coerciva das decisões de natureza cautelar, a que se refere o artigo 391º do Código de Processo Civil. E nem o conhecimento público e notório de recentes medidas deste género e tudo o que se lhe associou, nos deve demover, pois nos parece que é para isto mesmo que o Estado e a sociedade civil se armam: é para impor as medidas legitimamente tomadas.
No caso dos autos, dá-se notícia da notificação feita aos requeridos, no sentido de acatamento da decisão e das sanções penais que podem vir a sofrer, e, não obstante, prosseguem obstinadamente no desrespeito pela decisão do tribunal, com prenúncios de uso de força física e afrontamentos pessoais. Adequada seria, pois, a intervenção da GNR.
Não se trata de colocar o tribunal a ordenar a presença desta força, sempre que a agravante queira regar a sua horta. Isso seria uma medida impraticável, se não ridícula. Trata-se sim de solicitar a intervenção da GNR, no sentido de adoptar as medidas que entenda necessárias à execução coerciva da decisão - que concretamente lhe deve ser transmitida -, quer removendo, no terreno, os obstáculos que os requeridos oponham ao seu cumprimento, quer adoptando as medidas dissuasórias tidas por convenientes.
Esta medida, por ser praticável e por se afigurar capaz de garantir, em tempo útil, a providência antecipatória adequada a remover os inconvenientes da demora inerente ao exercício da acção cível, entretanto proposta, e a assegurar a efectividade do direito ameaçado, é tida por legítima e tem o apoio legal. Por isso pode ser adoptada pelo tribunal recorrido em substituição do despacho agravado.
4. Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes desta Relação em conceder provimento ao agravo, para que o tribunal recorrido defira ao requerido, dentro das condicionantes sobreditas.
Sem custas, tendo em conta o artigo 2º, n.º 1, al. o) do Código das Custas Judiciais.
Coimbra,12-12-2000