ESPECIAL COMPLEXIDADE DO PROCESSO
Sumário

I - A excepcional complexidade do processo pode derivar do número de arguidos ou de ofendidos ou do carácter altamente organizado do crime.
II – O n.º 3 do art.º 215º do CPP consagra uma cláusula geral e ampla de preenchimento do conceito de excepcional complexidade, que nos permite concluir que a mesma há-de ser preenchida através da avaliação casuística e criteriosa do julgador, sob pena de violação do princípio da legalidade.
III – A excepcional complexidade de um processo-crime está sempre dependente de uma decisão judicial.

Texto Integral

Proc. nº 534/10.9TASTS-GK.P1

Acordam, em conferência, os Juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

RELATÓRIO
No âmbito do processo de inquérito nº 534/10.9TASTS-GK que corre termos no 1º Juízo Criminal de Santo Tirso, e à ordem do qual se encontra preso preventivamente o arguido B…, aquando da reapreciação da medida coactiva de prisão preventiva, decidiu o Sr. Juiz de Instrução, a requerimento do Ministério Público, declarar a “especial complexidade do processo”, bem como manter a prisão preventiva ao recorrente, nos termos e com os fundamentos do despacho de fls. 39 a 49 deste traslado, (fls. 3.627 a 3.637 dos autos).

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Inconformado com a decisão, veio o arguido, B… a recorrer nos termos de fls. 50 a 53 deste traslado, tendo apresentado as seguintes conclusões:
«1 – O recorrente não é alvo da extensão invocada para justificar a declaração de excepcional complexidade, nem quanto a si é necessária a produção de mais e melhor prova.
2 – O arguido tem uma dimensão temporal na sua alegada actividade delituosa circunscrita entre Novembro e 1 data da detenção, não tem, assim, qualquer actividade antes dessa data, não era referência, não era conhecido e não era o alvo central e determinante da investigação.
3 – A lei para evitar um ónus de extensão da privação da liberdade, prevê a separação dos processos no artigo 30º, nº 1, al. a) do CPP, o que deve ser declarado.
4 – A decisão recorrida ao declarar a excepcional complexidade violou o artigo 215º, nº 4 do CPP, pelo que deverá ser revogada e substituída pela separação do processo quanto ao recorrente.
5 – Para além disso, a decisão mantém a medida coactiva, nivelando situações que necessitam de ponderação diferenciada.
6 – Efectivamente, nivelam-se situações completamente distintas, sem se atender à realidade do recorrente que só é conhecido na investigação a partir de 5 de Novembro de 2011, que não tem uma participação autónoma, que não tem conversas interceptadas no seu telefone, que não tem contactos efectuadas para si de compradores, fornecedores, co-arguidos (excepção feita ao co-arguido C…), que não tem elementos relevantes na busca; não tem indicações de contas para evidenciar actos de compra, venda, dívidas decorrentes de negócios de droga, que não tem veículo automóvel e que o veículo de marca … não é seu.
7 – Mais acresce que nesta fase o próprio co-arguido veio esclarecer e perante o JIC que o produto estupefaciente apreendido no dia da detenção era seu e destinado ao seu consumo.
8 – Mesmo que se aponte, como foi o caso do acórdão já proferido, que existe conversa interceptada de teor capaz de se referir a actos de tráfico, a intercepção, por si só, impõe que se faça alguma distinção nas medidas coactivas e se revogue a decisão quanto ao recorrente.
9 - Assim, face ao supra dito, proporcional, adequada e suficiente no caso dos autos para o recorrente será obrigar o recorrente a apresentar-se periodicamente perante os órgãos de polícia criminal.
10 – A decisão recorrida ao aplicar a medida coactiva da prisão preventiva ao recorrente violou, assim, os artigos 193º, 202º, nº 1, al. a) e 204º, al. c), todos do CPP e artigo 28º, nº 2 da CRP.
Revogando-se a decisão recorrida nos termos sobreditos, far-se-á justiça».

O Ministério Público, apresentou a sua resposta às alegações do recorrente, (fls. 54 a 60), tendo defendido a improcedência do recurso e concluindo nos seguintes termos:
- «Resulta ainda da investigação realizada o elevado número de arguidos (vinte e dois) que colaboravam entre si sendo os autos constituídos por seis volumes principais e por dezenas de volumes anexos com milhares de intercepções telefónicas efectuadas, validadas e reputadas com interesse para os autos e com dezenas testemunhas ouvidas — cfr. a respeito, o despacho de acusação entretanto proferido.
Resulta ainda dos autos que todos os vinte e dois arguidos “supra” referidos (como aliás é normal neste tipo de criminalidade) actuavam em rede de forma muito organizada, estruturada e complexa (sofrendo tal rede mutações ao longo de todo o ano de 2010 e do ano de 2011 o que torna ainda mais complexa a definição do alcance e a compreensão da sua forma de actuação).
Revela-se, por isso mesmo, o procedimento criminal instaurado de especial complexidade atento o número de arguidos envolvidos e o carácter altamente organizado do crime por que estão acusados como, aliás, refere o n°3 do art. 215 do CPP, o qual, entendemos, tem plena aplicabilidade ao caso aqui em apreço.
Atendendo-se então à forma como estava arquitectada (1 conduta (te todos os arguidos, (10 esquema de compra e venda entre eles montado e à interligação entre eles daí resultante reputou-se, assim, ser do interesse para a pretensão punitiva do Estado que quanto a todos eles (e não apenas tão só quanto aos que estavam presos preventivamente,) fosse efectuada no seu todo uma só investigação, fosse proferido uni só despacho acusatório e fosse realizado um só julgamento e como tal, para esse efeito, promoveu-se a declaração de especial complexidade do procedimento insta tirado (o que veio a ser deferido,) por forma a se reunir, em tempo útil, a prova necessária para esse desiderato.
Isto sem embargo de ser extraída certidão para continuação das investigações relativamente à demais matéria que ficou pendente e que tem uma natureza acessória ponderando-se os interesses - sempre conflituantes - entre a pretensão punitiva do Estado e dos arguidos em não verem a sua prisão preventiva excessivamente prolongada, conforme resulta do teor do despacho de fls. 4231 e seguintes dos autos.
Como é bom de ver, face ao ‘supra” exposto, entendemos não poder haver lugar à separação de processos a que os recorrentes aludem, nos termos e nos moldes em que entendem deveria ser feita urna vez que a audiência de julgamento a realizar só faz sentido se toda a rede (leia-se: os arguidos que integravam essa rede) fosse julgada ao mesmo tempo.
Todavia, como se disse, não foram olvidados também os interesses dos arguidos sujeitos a prisão preventiva, no sentido de não verem a sua situação demasiadamente prolongada, pelo que, finda a investigação quanto ao “grosso” da matéria factual que constitui o núcleo central do processo, ordenou-se urna separação de processos ao abrigo do art. 30, 1101, ai. a) do CPP quanto à matéria ainda por investigar e que tem urna natureza acessória na parte em que se refere aos arguidos acusados na fase do inquérito.
Da medida de coacção prisão preventiva manda pela Sr. Juíza de Instrução “a quo” relativamente aos recorrentes: afigura-se-nos estarem verificados, no caso concreto, os pressupostos da aplicação da medida de coacção mais gravosa (prisão preventiva), designadamente o perigo de fuga e o perigo de continuação de actividade criminosa sendo os indícios recolhidos da prática do crimes que lhes é imputado (p. e p. no art. 21, n°1 e 24, ais. b) e c) do DL 15/93) fortíssimos, resultando dos autos que arguidos pertenciam a um esquema de compra e venda de produtos estupefacientes (Canábis, Cannabis, MDMA e Cocaína) em quantidades elevadas e com vendas quase diárias aos consumidores finais ao longo de dois anos (2010 e 2011) - a respeito veja-se mais o vez o teor do despacho de acusação já proferido para cuja factualidade, elementos de prova aí indicados e promoção quanto ao seu estatuto processual se remete e ainda o teor do despacho de fls. 3633 a 3637.
A tudo isto acresce ser o crime por que os arguidos se encontram acusados muito grave, ser elevado o desvalor da sua conduta elevado, ser elevado o alarme social que tal conduta causa na sociedade, ser elevadíssimo o perigo de continuação, da sua parte, de actividade criminosa no que a este tipo de criminalidade diz respeito e serem gravíssimos os efeitos perniciosos que a venda de produtos estupefacientes provoca na comunidade (seja nos efeitos nefastos que causa na saúde dos toxicodependentes seja por estar na origem da maioria dos crimes contra o património que estes cometem como forma de sustentarem o seu “vício”).
Por fim: entende-se deverem os recursos interpostos subir de imediato, em separado e com efeito suspensivo.
Pelas razões invocadas ‘supra” consideramos não assistir razão aos arguidos/recorrentes, devendo-se manter a decisão recorrida quer na parte em que declarou o procedimento instaurado de especial complexidade quer na parte em que manteve os arguidos recorrentes sujeito à medida de coacção de prisão preventiva e, assim, fazer-se Justiça».
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Neste Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta, emitiu o Douto Parecer de fls. 78 a 79, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso.
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O recurso foi tempestivo, legítimo e correctamente admitido.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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FUNDAMENTOS
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, extraídas pelo recorrente, da respectiva motivação[1], que, no caso "sub júdice", se circunscreve à questão de saber se estamos perante uma situação em que a excepcional complexidade do processo deva ou não ser declarada e se, se justifica a manutenção da prisão preventiva aplicada ao arguido B….
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DESPACHO RECORRIDO
«A fls. 3484 a 3487 veio o Ministério Público promover que se declarasse a especial complexidade do processo e, consequentemente, se elevasse para um ano o prazo de prisão preventiva previsto no artigo 215º, nº 1, alínea a), por força do disposto no nº 3, do Código de Processo Penal.
Alega, para tanto e em resumo, que:
- nos presentes autos se investiga a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. nos artigos 21º, nº 1, e 24º, alínea b), do D.L. nº 15/93, de 22/01, criminalidade esta legalmente definida como “altamente organizada” nos termos do artigo 1º, alínea m), do Código de Processo Penal;
- existem, pelo menos, 26 arguidos/denunciados (que elenca) que compravam e vendiam, durante o ano de 2010 e até 20/12/2011, produtos estupefacientes – haxixe, pólen de haxixe, plantas de haxixe, MDMA, cocaína e cannabis – em quantidades que oscilavam entre o quilograma e os 12 quilogramas de haxixe, cannabis e pólen de haxixe e os 30 gramas de cocaína de cada vez, bem como plantas de haxixe a € 5,00 cada uma; tais compras e vendas eram feitas entre si e também a terceiros e a diversos consumidores finais nas áreas de Santo Tirso, Porto, Ermesinde, Vila Nova de Gaia, Vila Nova de Famalicão, Braga, Guimarães e Valongo; as referidas vendas às centenas de consumidores finais tinham carácter quase diário;
- os referidos arguidos atuam/atuavam em rede de forma muito organizada, estruturada e complexa, resultando dos autos que tal rede sofreu mutações ao longo de todo o ano de 2010 e de 2011, o que torna ainda mais complexa a definição do alcance e a sua forma de atuação;
- nos presentes autos foram já constituídos 20 arguidos (estando 3 dos quais em prisão preventiva), faltando ainda constituir um arguido e interrogá-lo como tal, bem como interrogar três outros;
- falta ainda inquirir, pelo menos, 10 testemunhas relacionadas com a atividade de tráfico de estupefacientes em investigação, tendo sido inquiridas cerca de 22;
- falta ainda efetuar cerca de 500 transcrições das interceções telefónicas (informação de fls. 3477), sendo os presentes autos constituídos, para além dos 4 volumes principais, por 50 volumes anexos de interceções telefónicas, uma vez que foram validadas e consideradas relevantes para os autos cerca de 10.000 sessões das interceções telefónicas, o que se traduz numa enorme dificuldade na exposição e concretização dos meios de prova.
Conclui, por fim, que, atento o exposto, não se perspetiva ser possível, até ao dia 20/06/2012, realizar todas as diligências de prova em falta, analisar detalhadamente toda a prova produzida e ainda deduzir o respetivo despacho final no inquérito, revelando-se este procedimento de especial complexidade.
Foram os arguidos notificados para se pronunciarem quanto ao promovido nos termos do artigo 215º, nº 4, parte final, do Código de Processo Penal, não tendo nenhum deles tomado posição.
Apreciando e decidindo.
O presente inquérito cuida da investigação de uma rede de tráfico de estupefacientes integrada por diversas pessoas, entre as quais os 20 arguidos já constituídos nessa qualidade, e de entre estes os 3 que aguardam os ulteriores termos do processo sujeitos à medida de coação de prisão preventiva, decretada na sequência do respectivo primeiro interrogatório judicial, em 21/12/2011.
É precisamente pelo facto de existirem arguidos sujeitos a tal medida coactiva que se suscita a questão submetida à nossa apreciação.
Com efeito, tratando-se da medida coactiva mais gravosa de entre a panóplia de medidas legalmente previstas, uma vez que priva o arguido a ela sujeito da sua liberdade numa fase em que goza da presunção de inocência, entendeu o legislador, à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, fundamental na interpretação das normas restritivas de direitos fundamentais como é o da liberdade, estabelecer limites temporais rigorosos à duração de uma tal situação necessariamente precária – art. 18º da Constituição da República Portuguesa.
Fê-lo mediante o estabelecimento de prazos máximos para a duração da prisão preventiva em cada uma das principais fases do processo – inquérito, instrução e julgamento -, de forma gradativa consoante a consolidação na formação da culpa, nos termos que constam do artigo 215º, nº 1 do Código de Processo Penal.
Estes prazos assim fixados não são, muitas vezes, suficientes para que, seguindo os trâmites processuais legalmente previstos, se logre finalizar a correspondente fase processual, seja pela prolação de despacho final no inquérito, seja pela prolação de decisão instrutória ou de sentença/acórdão, nas fases de instrução e do julgamento.
Tal sucede tendencialmente nos processos em que se persegue uma criminalidade de investigação mais complexa, seja pelo carácter altamente organizado da atividade criminosa, considerando a sua gravidade e modo de execução, seja pela ramificação geográfica dessa atividade ou pelo elevado número de pessoas nela envolvidas.
Para estes casos, teve o legislador o cuidado de, respeitando ainda o direito fundamental dos visados à liberdade e a presunção de inocência de que gozam, prever um alargamento dos referidos prazos-limite de duração da prisão preventiva, tornando-os compatíveis com a demora previsível da investigação, instrução e julgamento dos mesmos.
Assim se prevêem prazos mais alargados de duração da prisão preventiva para os casos em que se investigam e julgam crimes a que corresponde moldura penal cujo máximo seja superior a 8 anos, ou para casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada ou ainda para os crimes expressamente previstos nas alíneas do nº 2 do citado artigo 215º.
Porque a investigação e julgamento deste tipo de criminalidade se revela as mais das vezes muito complexa, designadamente pelo número de arguidos envolvidos e pelo seu carácter altamente organizado, entendeu ainda o legislador prever uma segunda exceção aos prazos-limite regra previstos no nº 1 do artigo 215º.
E assim chegamos à previsão do nº 3 do artigo 215º do Código de Processo Penal, invocada pelo Ministério Público para justificar a atribuição ao presente processo de especial complexidade.
Para avaliarmos desta pretensão teremos que proceder nesta sede, tal como o legislador fez a montante, a uma ponderação entre o direito à liberdade dos arguidos presos preventivamente e as necessidades da investigação em curso em ordem à descoberta da verdade e realização do interesse público na justiça.
Citamos, por esclarecedor nos princípios a seguir nesta matéria o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/09/2011 (Processo nº 431/10.8GAPRD-I.P1, disponível in www.dgsi.pt): “A lei (art.º 215.º n.º 3 do CPP) não define o que é um procedimento criminal de excecional complexidade. Limita-se a fornecer elementos exemplificativos, indiciadores dessa realidade fáctica, como sejam o número de arguidos ou ofendidos ou o carácter altamente organizado do crime, podendo caber neste conceito outros casos de criminalidade.
O critério material para a declaração de excecional complexidade tem que fundar-se em fatores objetivos. O juiz terá de cingir-se ao procedimento criminal em concreto, ponderar todos os seus elementos e formar a sua convicção de modo a proferir uma decisão prudencial fundamentada.
(…)
A excecional complexidade constitui uma noção que apenas assume sentido quando avaliada na perspetiva do processo, considerado não nas incidências estritamente jurídico-processuais, mas na dimensão factual do procedimento, enquanto conjunto e sequência de atos e revelação interna e externa de acrescidas dificuldades de investigação com refração nos termos e nos tempos do procedimento.
A conclusão sobre a excecional complexidade constitui um juízo de razoabilidade e da justa medida na apreciação das dificuldades do procedimento, tendo em conta, nomeadamente, as dificuldades da investigação, o número de intervenientes processuais, a deslocalização de atos, as contingências procedimentais provenientes das intervenções dos sujeitos processuais, ou a intensidade de utilização dos meios.
A decisão sobre a excecional complexidade depende do prudente critério do juiz na ponderação de elementos de facto e não nas questões de interpretação e aplicação da lei, por mais intensas e complexas que sejam.
A declaração de excecional complexidade visa a continuação da investigação para a realização das diligências necessárias, que se não fora aquela declaração, não podiam ser feitas no prazo legalmente estabelecido.
Tem como finalidade, necessidades de investigação criminal em que, havendo arguidos em prisão preventiva à ordem do processo, como é o caso dos autos, o prazo de duração máxima da prisão preventiva não é expectavelmente suficiente para se ultimar a investigação, mormente com vista a um juízo completo e tempestivo sobre a formulação de despacho acusatório, sob pena de virem a gorar-se as finalidades do inquérito, e eventual defraudação da busca da verdade material.
A declaração de excecional complexidade é uma medida cautelar, um compromisso necessário do legislador, em política criminal, de forma a estabelecer o equilíbrio entre a necessidade de combate ao crime e perseguição dos criminosos, em certos ilícitos mais graves catalogados por lei – através dos meios processualmente válidos inerentes à investigação criminal – e, os direitos ou garantias do cidadão arguido, em prisão preventiva, além de se circunscrever no âmbito do processo justo, em que a elevação do prazo de duração máxima da prisão não é arbitrária, mas contida pelo princípio da legalidade, considerado esse prazo, assim elevado, suficientemente idóneo à realização das diligências necessárias à ultimação do inquérito.
Ora, neste particular caso que nos ocupa, haverá que considerar que estamos perante a investigação de uma rede de tráfico de droga, com 20 arguidos constituídos e 3 sujeitos a prisão preventiva, três deles (C…, B… e D…) fortemente indiciados pela prática do crime de tráfico de estupefacientes na forma agravada, a que corresponde pena de 5 a 15 anos de prisão – artigos 21º e 24º, alíneas b) e c), do D.L. nº 15/93, de 22/01.
O tráfico de droga é de forma automática considerado “criminalidade altamente organizada” para efeitos do Código de Processo Penal como se determina na alínea m) do artigo 1º deste diploma legal[2].
O processo conta atualmente com 4 volumes de processo principal a que acrescem 50 apensos referentes a interceções telefónicas, uma vez que foram validadas e consideradas relevantes para os autos cerca de 10.000 sessões das interceções telefónicas, e outros 5 para tramitação de incidentes.
Não obstante os meios de prova já colhidos nos autos e disponíveis desde a detenção dos arguidos para primeiro interrogatório judicial, sejam as transcrições de conversações telefónicas intercetadas aos arguidos, sejam os autos de vigilância ou o resultado de buscas e apreensões realizadas aquando daquela detenção, constata-se da análise dos atos entretanto praticados no processo que o Ministério Público prossegue com atos de recolha de prova complementar.
Estes atos passam em grande medida pela inquirição de testemunhas e a realização de transcrições das referidas interceções telefónicas, faltando efetuar cerca de 500 transcrições – a indicar como meio de prova na acusação a proferir.
Estando em causa a investigação de tráfico de estupefacientes com distribuição desse produto por um grande número de pessoas e numa área geográfica ampla (abrangendo 6 concelhos), tendo ainda em conta que a referida rede sofreu mutações ao longo do período de investigação, é sem dúvida essencial que se proceda a estas diligências probatórias complementares, não obstante a morosidade que as mesmas implicam.
Ora, uma vez que estão em curso esse e outros procedimentos de recolha de prova, e mostrando-se decorridos mais de 5 meses desde a data em que aos arguidos foram aplicadas as medidas de coação, designadamente a de prisão preventiva, revela-se praticamente inviável a conclusão do inquérito no período que resta até se completarem os 6 meses previstos no nº 2 do artigo 215º, aqui aplicável.
Parecem-nos, por isso, reunidos os requisitos para que se atribua aos presentes autos de inquérito o carácter de especial complexidade, sem olvidar que o número de arguidos ou ofendidos e o carácter altamente organizado do crime investigado, são apenas dois critérios exemplificativos e não taxativos, como se retira da utilização da palavra nomeadamente.
Tal atribuição permitirá a elevação para um ano do prazo máximo de duração da prisão preventiva até à dedução de acusação.
O que não significa, naturalmente, que a totalidade desse prazo tenha que ser ou venha a ser efetivamente esgotada, cabendo ao titular do inquérito, dentro deste limite legal abreviar a prolação de despacho final na medida das possibilidades concedidas pelos meios ao seu dispor, levando em consideração que há 3 pessoas a aguardar os ulteriores termos do processo privadas da sua liberdade.
Em suma: atendendo a que os arguidos incorrem em penas que vão dos 4 anos até aos 15 anos de prisão, que existem nos autos indícios fortes de que praticaram os factos consubstanciadores dos imputados crimes de tráfico de estupefacientes, sendo provável a sua condenação em penas de prisão efetiva, afigura-se-nos ainda compatível com o respetivo direito à liberdade e presumida inocência, segundo princípios de necessidade e proporcionalidade, que a fase de inquérito se possa prolongar pelo período máximo de 1 (um) ano em homenagem ao interesse público da descoberta da verdade e realização da justiça.
Como tal e por tudo o exposto, decide-se conferir aos presentes autos de inquérito o carácter de especial complexidade nos termos e para os efeitos previstos no art. 215º, nºs 1, 2 e 3 do Código de Processo Penal.
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Os arguidos:
- C… encontra-se sujeito à medida de coação de prisão preventiva, à ordem destes autos, desde o dia 21 de dezembro de 2011 – cfr. fls. 2851 a 2870);
- B… encontra-se sujeito à medida de coação de prisão preventiva, à ordem destes autos, desde o dia 21 de dezembro de 2011 – cfr. fls. 2812 a 2831);
- D… encontra-se sujeito à medida de coação de prisão preventiva, à ordem destes autos, desde o dia 21 de dezembro de 2011 – cfr. fls. 2888 a 2905).
Por despacho de fls. 3231 a 3233, em cumprimento do disposto no artigo 213º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, procedeu-se ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva, tendo-se decidido pela manutenção da mesma medida relativamente aos três supra mencionados arguidos.
Decorrerão seis meses sobre a data de aplicação das referidas medidas de coação em 21/06/2012 e três meses sobre da data do último reexame dos seus pressupostos em 16/06/2012.
Ouvidos os arguidos nos termos do artigo 213º, nº 3, do Código de Processo Penal, os arguidos B… e D…, alegando que, em face das declarações por si ora prestadas, a indiciação dos factos se mostra atenuada, pugnaram pela alteração da medida coativa em conformidade – cfr. fls. 3563 a 3621.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido da manutenção das referidas medidas de coação de prisão preventiva – cfr. fls. 3484 a 3487 e 3579, 3600 e 3621.
Cumpre apreciar e decidir.
Estatui o artigo 213.º, n.º1, alínea a), do Código de Processo Penal, que «O juiz procede oficiosamente ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, decidindo se elas são de manter ou devem ser substituídas ou revogadas: a) No prazo máximo de três meses, a contar da data da sua aplicação ou do último reexame; b) Quando no processo forem proferidos despacho de acusação ou de pronúncia ou decisão que conheça, a final, do objeto do processo e não determine a extinção da medida aplicada.»
Relativamente aos três arguidos mencionados – D…, B… e C… – dá-se aqui por integralmente reproduzida a factualidade indiciada e os correspondentes meios de prova que lhes foram comunicados aquando da realização do primeiro interrogatório judicial e, novamente, aquando da sua audição para efeitos do disposto no artigo 213º, nº 3, do Código de Processo Penal, constantes de fls. 3564 a 3578, 3582 a 3598, 3603 a 3619.
Na verdade, e pese embora o teor das declarações que os arguidos entenderam prestar, consideramos que as mesmas não foram de molde a abalar a convicção do tribunal alicerçada nos meios de prova comunicados, os quais foram crítica, conjunta e articuladamente apreciados. Com efeito, todos os referidos elementos probatórios confirmam, de forma objetiva, isenta e coerente - e, por conseguinte, merecedora da credibilidade indiciária por parte do tribunal - a factualidade indiciada. Ademais, as transcrições das interceções telefónicas permitiram ao Tribunal, no essencial e de forma relevante, perceber a forma como se desenrolava a atividade delituosa em investigação e perceber qual a verdadeira intervenção dos arguidos na mesma.
Concretamente, o arguido D… tentou justificar parte da quantia de dinheiro que lhe foi apreendida, dizendo que € 830,00 provinham da venda de uma mota que havia efetuado no próprio dia da detenção e que o restante – cuja quantia não soube concretizar – era da sua mãe. Negou ainda este arguido qualquer relação com a arguida E… para além de uma amizade, tentando, assim, afastar a factualidade que o correlaciona com esta arguida, designadamente que ela procedesse à venda de plantas de cannabis a seu mando.
Ainda que se fizesse fé nas declarações do arguido, o que se mostra difícil atendendo à inexistência de demais elementos nos autos nesse sentido (sendo certo que o arguido anteriormente não quis prestar declarações), o certo é que, em face dos elementos probatórios comunicados e que vimos de referir, esta versão do arguido não afasta a factualidade essencial indiciada e que se subsume ao tipo de crime por cuja prática se encontra indiciado – tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. nos artigos 21º e 24º, alíneas b) e c), do D.L. nº 15/93, de 22/01. Na verdade, o arguido limita-se a negar a posse de todo o dinheiro apreendido e a relação afetiva de companheira/namorada com a arguida E… – nada mais.
Quanto ao arguido B…, nas declarações que entendeu prestar o arguido limitou-se a negar genericamente a prática da factualidade quanto a si indiciada.
Assim, estas declarações não lograram convencer minimamente o tribunal, nesta fase indiciária, porquanto foram as mesmas evasivas, sobretudo centradas no facto da negação total, pura e simples, dos factos que a incriminam, sem os circunstanciar de forma credível, não beliscando sequer a convicção do tribunal resultante dos meios de prova comunicados, designadamente as transcrições das interceções telefónicas.
Finalmente, as declarações do arguido C… resumiram-se ao seguinte:
- à assunção de que os cerca de 16 gramas de cocaína que lhe foram apreendidos eram seus e destinava-os ao seu consumo, uma vez que nessa altura fazia consumos excessivos de tal produto estupefaciente;
- à negação de ter contraído um empréstimo para pagar uma dívida ao arguido D… e de comprar produtos estupefacientes ao F…;
- ao relato do que tem sido o seu quotidiano no E.P., referindo ainda não ser mais consumidor de cocaína.
As declarações deste arguido, nesta fase indiciária, também não lograram convencer o tribunal, porquanto foram as mesmas evasivas, sobretudo escudadas no facto de ser consumidor da substância estupefaciente que lhe foi apreendida, nada explicando nem circunstanciando cabalmente em relação à restante factualidade que o incrimina, a qual ficou, assim, indiciariamente inabalada em face dos meios de prova comunicados.
In casu, está em questão a prática, pelos arguidos, de factos que se subsumem ao tipo de crime de tráfico de produtos estupefacientes, previsto e punido pelos artigos 21º e 24º, alíneas b) e c), do D.L. nº 15/93, de 22/01.
Determina o artigo 204.º, do Código de Processo Penal, que «Nenhuma medida de coação, à exceção da prevista no artigo 196.º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida: a) Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.»
Constituem pressupostos específicos da prisão preventiva os referidos no artigo 202.º, do Código de Processo Penal.
Os pressupostos de aplicação das respetivas medidas de coação de prisão preventiva, relativamente a todos os arguidos indicados, foram:
- a existência de fortes indícios da prática do referido crime de tráfico de produtos estupefacientes, previsto e punido pelos artigos 21º e 24º, alíneas b) e c), do D.L. nº 15/93, de 22/01, punido com pena de prisão de 5 a 15 anos – artigo 202º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal;
- a existência de perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade dos arguidos, de que estes continuem a atividade criminosa ou perturbem gravemente a ordem e tranquilidade públicas – artigo 204º, alínea c), do Código de Processo Penal.
Ora, da análise dos autos não resultam quaisquer elementos que afastem os pressupostos de facto e de direito que presidiram à aplicação das respetivas medidas de prisão preventiva, os quais se mantêm, integralmente, inalterados.
Com efeito, atenta a natureza, o número e gravidade dos factos indiciados que lhes vêm imputados, as circunstâncias que rodearam a sua indiciada prática, o seu modo de execução, o lapso de tempo durante o qual foram perpetrados, o grau de organização e a personalidade dos arguidos neles refletidos – vincada na desconformidade ao dever-ser jurídico-criminal – é de molde a gerar perigo de renovação da atividade delituosa, bem como perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
Há que sublinhar que os artigos 212º e 213º, do Código de Processo Penal traduzem um afloramento do principio de que as medidas de coação, pelas variações do seu condicionalismo, estão sujeitas à clausula ”rebus sic stantibus”, o que significa que, escolhida a medida de coação atentas as circunstâncias do caso concreto, a mesma deve permanecer imutável se, e enquanto, não ocorrerem circunstâncias de relevo que determinem a sua alteração.
Assim se conclui que nenhumas das circunstâncias declaradas pelos arguidos, apreciadas supra, tem a virtualidade de afastar os pressupostos que estiveram na base do decretamento e da manutenção da medida de coação de prisão preventiva. Ademais e como vimos, estas exigências cautelares que sustentaram a decisão de aplicação das aludidas medidas de coação são pertinentes e não resultam afastadas neste momento.
Donde e uma vez que se mantêm, na essência e por não atenuados, os pressupostos que determinaram a aplicação das medidas coativas de prisão preventiva, e considerando ainda que não se mostram ultrapassados os prazos máximos de sujeição dos arguidos à dita medida de coação (artigo 215.º, do Código de Processo Penal), determino que os arguidos C…, B… e D… continuem a aguardar os ulteriores termos do processo sujeitos à medida de coação de prisão preventiva, única medida proporcional e adequada para acautelar os mencionados perigos, o que se declara nos termos e para os efeitos previstos no art.213º, nº1, com referência aos artigos 202º, nº1, alínea a), e 204º, alínea c), do Código de Processo Penal.
Notifique».
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DO DIREITO
Em causa nos presentes autos, está em primeiro lugar apurar se é justificado o despacho que deferiu o requerimento do Ministério Público para que fosse declarado de “excepcional complexidade”, e em segundo lugar averiguar os pressupostos da prisão preventiva do recorrente.
Nos presentes autos investiga-se a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. nos artigos 21º, nº 1, e 24º, alínea b), do D. L. nº 15/93, de 22/01, criminalidade esta legalmente definida como “altamente organizada” nos termos do artigo 1º, alínea m), do cód. procº penal.
Tanto quanto é possível saber do traslado, existem pelo menos 26 arguidos que compravam e vendiam, durante o ano de 2010 e até 20/12/2011, produtos estupefacientes – haxixe, pólen de haxixe, plantas de haxixe, MDMA, cocaína e cannabis – em quantidades que oscilavam entre o quilograma e os 12 quilogramas de haxixe, cannabis e pólen de haxixe e os 30 gramas de cocaína de cada vez, bem como plantas de haxixe a € 5,00 cada uma; tais compras e vendas eram feitas entre si e também a terceiros e a diversos consumidores finais nas áreas de Santo Tirso, Porto, Ermesinde, Vila Nova de Gaia, Vila Nova de Famalicão, Braga, Guimarães e Valongo; as referidas vendas às centenas de consumidores finais tinham carácter quase diário.
Segundo se diz, “tais arguidos actuavam em rede de forma muito organizada, estruturada e complexa, resultando dos autos que tal rede sofreu mutações ao longo de todo o ano de 2010 e de 2011, o que torna ainda mais complexa a definição do alcance e a sua forma de actuação”.
Dos arguidos já constituídos, três deles estão em prisão preventiva.
Falta ainda efectuar cerca de 500 transcrições das intercepções telefónicas (informação de fls. 3477), sendo os presentes autos constituídos, para além dos 4 volumes principais, por 50 volumes anexos de intercepções telefónicas, uma vez que foram validadas e consideradas relevantes para os autos cerca de 10.000 sessões das interceções telefónicas, o que se traduz numa enorme dificuldade na exposição e concretização dos meios de prova.
Perante tal situação, segundo o Ministério Público, não se perspectiva ser possível realizar todas as diligências de prova em falta, no prazo legal estabelecido, sem prorrogação.
Notificados os arguidos para se pronunciarem quanto ao requerimento do Ministério Público, nos termos do artigo 215º, nº 4, parte final, do Código de Processo Penal, nenhum deles tomou posição ou se opôs.
Vejamos.
No presente inquérito investiga-se uma rede de tráfico de estupefacientes integrada por diversas pessoas, entre as quais os 26 arguidos já constituídos nessa qualidade, e de entre estes os 3 que aguardam os ulteriores termos do processo sujeitos à medida de coação de prisão preventiva, decretada na sequência do respectivo primeiro interrogatório judicial, em 21/12/2011.
A investigação de redes de tráfico de estupefacientes com diversos suspeitos, numerosas testemunhas e escutas telefónicas, cuja transcrição por vezes se exige, é manifestamente demorada, sendo certo que os prazos de prisão preventiva e de conclusão do inquérito, são em casos desta natureza, claramente insuficientes.
O Sr. Juiz “a quo”, socorrendo-se dos factos concretos apresentados e da interpretação da norma do artº 215º do cód. procº penal, entendeu estarem reunidos os pressupostos para declarar a “excepcional complexidade” do processo.
Vejamos.
O artº 215º do cód. procº penal, reporta-se aos prazos de duração máxima da prisão preventiva e diz-nos no seu nº 1 que a prisão preventiva não pode exceder:
- Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;
- Oito meses sem que tenha sido proferida decisão instrutória, no caso de se ter procedido à instrução;
- Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em primeira instância;
- Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.
Por sua vez no nº 2 daquele preceito consigna-se que esses prazos são elevados, respectivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses, e dois anos, nos casos ali expressamente previsto (nomeadamente quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a oito anos).
No nº 3 do artigo em causa, consagra-se uma espécie de regime de excepções, que são determinadas, designadamente, em função da natureza do crime e da natureza dos processos, ao consagrar que, “os prazos referidos no nº 1 são elevados, respectivamente para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e quatro meses, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.
O conceito de “criminalidade altamente organizada” é-nos dado pelo artº 1º al. m) do cód. procº penal que refere expressamente, considera-se :
- “«Criminalidade altamente organizada» as condutas que integrarem crimes de associação criminosa, tráfico de pessoas, tráfico de armas, tráfico de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas, corrupção, tráfico de influência ou branqueamento”[3].
Sob o ponto de vista formal e de acordo com um critério estritamente objectivo, os crimes em causa inserem-se naqueles que o legislador previu com possível enquadramento no conceito de “excepcional complexidade” – cfr. artº 215º nº 2 al. e) e f). São crimes puníveis com pena de prisão superior a 5 anos e integram também o conceito de criminalidade altamente organizada.
A excepcional complexidade pode derivar do número de arguidos ou de ofendidos ou do carácter altamente organizado do crime. Todavia no nº 3 que consagra uma cláusula geral e ampla de preenchimento do conceito de excepcional complexidade, que nos permite concluir que a mesma há-de ser preenchida através da avaliação casuística e criteriosa do julgador, sob pena de violação do princípio da legalidade.
Antes da alteração introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto ao artº 215º do cód. procº penal, era entendimento unânime, pelo menos desde o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência nº 2/2004, de 1 de Fevereiro de 2004, publicado no Diário da República nº 79, Série I-A, em 2 de Abril de 2004, que os processos em que estivesse em causa a prática de um crime como os acima mencionados e em investigação, tinham automaticamente a natureza de “excepcional complexidade”. Esta interpretação abrangente da lei, se por um lado podia retardar determinado tipo de processos, tinha pelo menos o mérito de evitar disparidades de entendimentos.
Na sequência das mencionadas alterações (Lei nº 48/2007, de 29/08) [4], a excepcional complexidade de um processo-crime passou a ficar sempre dependente de uma decisão judicial.
Não podemos todavia esquecer, que a referida declaração de excepcional complexidade tem essencialmente a ver com os efeitos de prorrogação da prisão preventiva[5] e deve obedecer a despacho prévio do juiz de instrução criminal, sobre o qual recai também a análise dos respectivos pressupostos e o dever de pronunciar-se sobre a revogação, alteração e extinção das medidas de coacção, sendo que a declaração de excepcional complexidade de um processo constitui uma alteração da regra geral das medidas coactivas.
No caso concreto, existiam à data do recurso três presos preventivos, entre eles o recorrente B…, num total de 26, sendo a lista ainda provisória, face ao decurso das investigações, dezenas de testemunhas, o processo é composto por 4 volumes principais e 50 anexos, foram validadas e consideradas relevantes para os autos cerca de 10.000 sessões de intercepções telefónicas.
Perante estes elementos e o dispositivo legal invocado, (artº 215º nº 3 e 4 do cód. procº penal) afigura-se-nos existirem fundamentos suficientes para podermos desde já concluir pela “excepcional complexidade” do processo.
Atendendo ao elemento literal da norma, o reconhecimento de tal declaração, não se basta com uma investigação complexa, morosa ou mais difícil. Exige-se que seja “excepcional”. O carácter de excepcionalidade mostra-se para já verificado, reconhecendo-se que os crimes apontados e o tipo de investigação exige uma especial morosidade, que no fundo parece ser essa a razão fundamental do requerimento do Ministério Público, embora se deva ter em conta que esta (morosidade) não se pode confundir com aquela, (excepcionalidade) que implica que seja invulgar e acima do comum.
Conforme se decidiu em acórdão deste mesmo Tribunal:
«I - A declaração de excepcional complexidade é uma medida cautelar, um compromisso necessário do legislador, em política criminal, de forma a estabelecer o equilíbrio entre a necessidade de combate ao crime e perseguição dos criminosos, em certos ilícitos mais graves catalogados por lei e os direitos ou garantias do cidadão arguido em prisão preventiva.
II - Na conformação prática da declaração de excecional complexidade (215º/3CPP) o Tribunal, enformado nos princípios da razoabilidade, da justa medida, do ‘processo justo’, ponderará as dificuldades do procedimento, tomando em linha de conta, nomeadamente, as dificuldades da investigação, o número de intervenientes processuais, a deslocalização de atos, as contingências procedimentais provenientes das intervenções dos sujeitos processuais, a intensidade de utilização dos meios», Ac. Rel. Porto de 14.09.2011, disponível em www.dgsi.pt/trp.
As limitações operadas com a alteração legislativa de 2007, acima citada, independentemente de se poderem considerar eficazes ou não, visaram no fundo traduzir esse equilíbrio entre a almejada celeridade processual por um lado e o direito a que, qualquer cidadão tem de ver a sua causa investigada e julgada, equitativa e publicamente, num prazo razoável. No fundo alinha-se com o entendimento previsto no artº 6º nº 1 da CEDH (Convenção Europeia dos Direitos do Homem)[6].

Assim, conclui-se estarem preenchidos os pressupostos para a declaração de “excepcional complexidade” do mencionado inquérito.
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O recorrente, embora sem sustentação atendível e fundamentada, pôs ainda em causa a medida coactiva aplicada – prisão preventiva -, alegando que, “se nivelam situações completamente distintas, sem se atender à realidade do recorrente que só é conhecido na investigação a partir de 5 de Novembro de 2011, que não tem uma participação autónoma, que não tem conversas interceptadas no seu telefone, que não tem contactos efectuadas para si de compradores, fornecedores, co-arguidos (excepção feita ao co-arguido C…), que não tem elementos relevantes na busca; não tem indicações de contas para evidenciar actos de compra, venda, dívidas decorrentes de negócios de droga, que não tem veículo automóvel e que o veículo de marca … não é seu”.
Mais alega que “o produto estupefaciente apreendido no dia da detenção era seu e destinado ao seu consumo”.
Em seu entender “seria adequada e suficiente obrigar o recorrente a apresentar-se periodicamente perante os órgãos de polícia criminal”.
Conclui, que a decisão recorrida ao aplicar a medida coactiva da prisão preventiva ao recorrente violou, os artigos 193º, 202º, nº 1, al. a) e 204º, al. c), todos do cód. procº penal e artigo 28º, nº 2 da CRP.
Apesar da posição do recorrente e da fragilidade dos argumentos, expostos, cumpre analisar a adequação da medida imposta.
Desde logo se nos afigura que em face da prova indiciária e da gravidade do crime indiciado, - tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº 21º nº 1 do D. L. 15/93 de 22.01 -, não se pode dizer que a mais gravosa das medidas coactivas previstas no nosso ordenamento jurídico-penal tenha sido excessiva.
É certo, que estamos neste fase processual no âmbito de prova indiciária e não de juízos de certeza, que apenas deverão funcionar em sede de julgamento. Todavia o tipo de crime e conduta criminosa referida aconselham a aplicação de tal medida pelo receio do perigo de continuação da actividade criminosa, aliada à intranquilidade pública que geram estes fenómenos, quando alguém com o tipo de actuação do recorrente é detido e depois restituído à liberdade, provocando impactos de insegurança na sociedade, geradores da sensação de impunidade, o que é de todo de evitar.
Por outro lado, dada a natureza do crime, a aplicação da medida de apresentações periódicas, prevista no artº 198º do cód. procº penal, (pretendida pelo recorrente) não garante minimamente o seu afastamento da prática do crime de tráfico de estupefacientes.
Ao contrário do que pretendeu dar a entender no seu recurso, a participação do recorrente B… na actividade do tráfico não é secundária, mas antes de elevada relevância, dentro do contexto com os demais arguidos. É certo que se detecta o seu começo a partir de 5 de Novembro de 2011, surgindo nos autos, como “sócio” do C…, passando a acompanhar este em todas as transacções, sendo a partir daí o recorrente a estabelecer os contactos com os fornecedores e colaboradores do C…. Encontram-se indiciadas nos autos numerosas transacções por ambos efectuadas, com um papel relevante do arguido B….
Encontram-se documentadas e referenciadas em escutas telefónicas diversas vendas de cocaína a terceiros, efectuadas pelo B…, com assídua regularidade.
A prisão preventiva teve por fundamento os seguintes elementos considerados relevantes:
● Auto de Busca referente à residência, presente de fls. 470 a 471 de Apenso ED;
● Auto de Apreensão referente à residência, presente de fls. 472 a 473, de Apenso ED;
● Reportagem fotográfica, referente à residência, presente de fls. 476 a 477, de Apenso ED;
● Auto de Busca referente à viatura com a matrícula ..-..-MQ, presente de fls. 441 a 443, de Apenso ED;
● Reportagem fotográfica, à viatura com a matrícula ..-..-MQ, presente de fls. 444 a 447, de Apenso ED;
● Teste DIK 12, presente de fls. 449 a 450, de Apenso ED;
● Auto de Detenção, presente de fls. 449 a 450, de Apenso ED;
Fundamentou o Sr. Juiz “a quo” as razões da inadequação de qualquer outra medida que não seja a de prisão preventiva, tendo nomeadamente, acerca da pretendida “apresentação periódica” referido o seguinte:
- “Sujeitar o arguido à medida de coacção de obrigação de apresentações periódicas prevista no artº 198º, do cód. procº penal não tem a virtualidade de afastar o arguido do perigo de continuação da actividade criminosa; se nem uma pena de prisão efectiva pela prática do mesmo crime e uma liberdade condicional ainda em curso tiveram essa virtualidade, cremos ser de formular um juízo de prognose de que mesmo no trajecto para o posto policial o arguido praticaria novos crimes”.
(…)
- Sobre a possibilidade, adequação, suficiência e proporcionalidade da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com sujeição a vigilância electrónica, prevista no artº 201º, do cód. procº penal, fundamentou o despacho recorrido desta forma: “ponderando que o arguido teve já uma condenação em pena de prisão efectiva pela prática do mesmo crime e que tal não o afastou da reiteração da actividade criminosa e ponderando ainda que praticou os factos quando em liberdade condicional, não se consegue – mas nãos e consegue mesmo - formular um juízo de prognose de que mesmo sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com sujeição a vigilância electrónica, o arguido cumprisse com os inerentes deveres e se afastasse da actividade criminosa”.
Depois de fundamentar a inadequação das medidas referidas e outras previstas na lei, concluiu-se, e bem, que a única medida de coacção que satisfaz as finalidades pretendidas é a de prisão preventiva, contida no artº 202º, do cód. procº penal.
Quanto a nós, subscrevemos o entendimento do Tribunal recorrido, face aos fortes indícios decorrentes dos autos, a gravidade do crime, a personalidade do arguido, os antecedentes criminais e o envolvimento deste no mesmo tipo de crime por que antes fora condenado, em período de liberdade condicional. Tal facto nos conduz à conclusão de insuficiência de qualquer outra medida coactiva e do elevado perigo de continuação da actividade criminosa.
Assim, atentas as circunstâncias objectivas descritas, a prova indiciária forte, a natureza do crime (tráfico de estupefacientes, p. e p. artº 210º, nº 1 do D.L. 15/93 de 22.0l,) e as normas legais aplicáveis, artº 191º, 193º, nº 2, 202º, nº 1, a) e 204º, al. c), todos do cód. procº penal, não merece qualquer censura a aplicação da prisão preventiva ao arguido, uma vez que se mostra como a única adequada no contexto actual, sem prejuízo de eventual alteração futura, caso se mostrem diminuídos os indícios carreados para os autos e reduzido o perigo de continuação da actividade criminosa, (cfr. artº 202º, nº 1, a) e 204º, al. c), ambos do cód. procº penal).
O despacho que decretou a prisão preventiva, mostra-se devidamente fundamentado e expressa de forma adequada a existência dos pressupostos de facto e de direito quanto à aplicação da prisão preventiva ao arguido B….
Convém sempre salientar que, o princípio constitucional da presunção de inocência implica que a medida de coacção de prisão preventiva não tenha em vista uma punição antecipada, só podendo ser excepcionalmente aplicada, (cfr. artºs 28º nº 2 e 32º nº 2 da CRP, artº 193º, 202º e 204º do cód. procº penal), todavia em situações como a dos autos, o manifesto perigo de continuar a actividade criminosa e perturbar o decurso das investigações justificam claramente a opção pela media aplicada.
Neste momento processual, o juízo de apreciação, não é um juízo de culpa, semelhante a um juízo de condenação, mas tão-só um juízo de indiciação, de forma a habilitar o J. I. C. a, de entre o catálogo de medidas de coação ao seu dispor e levando em conta o n° 2 do artigo 194°, do cód. procº penal, ajuizar qual a medida de coacção que melhor assegure e previna os perigos que sejam invocados e julgados reconhecidos à luz dos artigos 191°, 193°, 194°, 202° e 204°, todos do cód. procº penal.
Tais perigos, pelas razões acabadas de sucintamente aduzir não ficariam adequadamente prevenidos com a aplicação de qualquer outra medida que não fosse a prisão preventiva.
Estamos perante um crime que reveste enorme gravidade e causador de enorme danosidade e intranquilidade sociais.
É certo que a prisão preventiva assume hoje no nosso ordenamento jurídico um carácter de excepcionalidade, residual e que só deve ser aplicada quando qualquer outra das previstas se mostre insuficiente, o que manifestamente é o caso concreto, assim fazendo jus aos princípios da proporcionalidade e da adequação, consagrados no artº 193º do cód. procº penal, tendo sempre presente o disposto nos artº 18º, 28º, nº 2 da CRP.
- «Este princípio [proporcionalidade e adequação] tem aqui o sentido de proibição de excesso, impedindo a desproporcionalidade entre, por um lado, o sacrifício que a medida de coacção implica e, por outro lado, a gravidade do crime e a natureza e medida da pena que previsivelmente, com base nele, virá a ser aplicada.
O legislador ordinário, ao elaborar o Código de Processo Penal, traduziu o carácter excepcional da prisão preventiva através da criação de um alargado naipe de medidas de coacção alternativas». Ao. Rel. Lx 3ª secção in proc. 11271/2008-3 de 11.02.2009.
Mostrando-se verificados e minimamente fundamentados os pressupostos que determinaram a prisão preventiva, bem como os indícios da prática do crime supra citado, não se justifica no caso concreto a alteração da medida de coacção, em face dos elementos disponíveis.
«Não se perspectivando alteração dos pressupostos determinativos da prisão preventiva, como atrás se referiu, a decisão que impõe a medida de coacção de prisão preventiva, apesar de não ser definitiva, é intocável e imodificável enquanto subsistirem os pressupostos que a ditaram - o que no caso ‘sub júdice’ se verifica»[7].
Concluímos assim, pela falta de fundamento do recurso interposto, nenhuma censura nos merecendo a decisão recorrida, a qual não violou o disposto nos art°s 191°, 193°, 202° e 204° todos do cód. procº penal e os art°s 27° n° 3 al. b), 28° n° 2 e 205º da CRP, ao contrário do alegado pelo recorrente.
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DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto.
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Custas a cargo do recorrente, fixando a taxa de justiça a pagar em 5 UC, (cinco unidades de conta).
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Porto 24 de Outubro de 2012
Américo Augusto Lourenço[8]
Maria Deolinda Gaudêncio Gomes Dionísio
_________________
[1] - Cfr. Ac. STJ de 19/6/1996, BMJ 458, 98.
[2] Faz-se notar que esta especial atenção dada pelo legislador à actividade de tráfico de estupefacientes vem já da legislação anteriormente aplicável; assim, antes da revisão do Código de Processo Penal operada pela L. 48/2007, de 29/8, vigorava quanto aos crimes de tráfico de estupefacientes em matéria de prazos de duração da prisão preventiva o art. 54º do D.L. 15/93, de 22/1, agora revogado, a propósito do qual foi proferido o acórdão nº 2/04 do S.T.J. para fixação da seguinte jurisprudência: quando o procedimento se reporte a um dos crimes referidos no nº 2 do art. 54º do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, a elevação dos prazos de duração máxima da prisão preventiva, nos termos do nº 3 do art. 215º do Código de Processo Penal, decorre directamente do disposto no nº 3 daquele art. 54º, sem necessidade de verificação e declaração judicial da excepcional complexidade do procedimento (publicado no D.R., I Série-A, de 2/4).
[3] - Igual referência é feita, quanto ao crime de tráfico de estupefacientes no artº 51º nº 1 da Lei 15/93 de 22/01.
[4] - A propósito desta Lei decidiu o acórdão nº 555/2008, o Tribunal Constitucional:
“a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 215º, nº 4, do cód. procº penal, na versão dada pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de permitir que, durante o inquérito, a excepcional complexidade, a que alude o n.º 3 do mesmo artigo, possa ser declarada oficiosamente, sem requerimento do Ministério Público;
b) Julgar inconstitucional a mesma norma, quando interpretada no sentido de permitir que, em caso de declaração oficiosa da excepcional complexidade, esta não tem que ser precedida da audição do arguido, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição”.
[5] - Aliás, a epígrafe do artº 215º é justamente “prazos de duração máxima da prisão preventiva”.
[6] - Artº 6º nº 1 da CEDH: - «Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça».
[7] - Cfr. neste sentido Ac. Relação de Lisboa 9ª sec. de 24.06.2004 in www.DGSI.
[8] - Elaborado e revisto pelo relator.