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PROCEDIMENTO CAUTELAR
CRÉDITO DOCUMENTÁRIO
Sumário
I - A decisão proferida num procedimento cautelar é liminar e provisória e funda-se num juízo de probabilidade da existência séria do direito invocado pelo requerente e no receio de lesão desse mesmo direito. II - Nas Regras e Usos Uniformes para os Créditos Documentários da Câmara de Comércio Internacional, conforme revisão de 2007, ou RUU, o banco pode recusar pagar a carta de crédito quando determina que a apresentação de documentos feita pelo beneficiário da carta não está em conformidade. III - No crédito documentário, os documentos não são uma base de averiguação, constituindo eles próprios o objecto exclusivo da averiguação a que o banco tem de proceder antes de pagar. IV - É causa de desconformidade na apresentação de documentos e de recusa de pagamento da carta de crédito a entrega de quantidade de mercadoria inferior à quantidade nela prevista.
Texto Integral
Processo 193/12.4TBOAZ-B
Juiz Relator: Pedro Lima da Costa
Primeiro Adjunto: Araújo de Barros
Segundo Adjunto: Judite Pires
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto.
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B…, Limitada (adiante designada B1…),deduziu no dia 15/11/2011 procedimento cautelar comum (de início com o número 2578/11.4TBOAZ) contra o C…, Sociedade Anónima (adiante designado C1…), e contra D… (adiante designada D1…), pedindo que o C1… seja condenado a abster-se de pagar à D1…, enquanto beneficiária, o valor integral ou parcial da carta de crédito …………., ou, caso o C1… entenda pagar, intimar-se esse C1… para que tal pagamento não afecte em circunstância alguma a B1…, através do direito de reembolso que o C1… ficará inibido de exercer, ou, subsidiariamente, intimando-se o C1… a suspender esse pagamento até decisão final com trânsito em julgado a proferir na acção de que o presente incidente é dependente, se, na mesma acção, se vier a reconhecer que a B1… é devedora à D1… de qualquer quantia e pelo montante desta.
Sumariamente, alega a B1…:
Na República Popular da China, a B1… encomendou e comprou a E…, Ltd, 9.950 peças de vestuário pelo preço de 163.323,60€;
Conforme convencionado, o preço seria pago no prazo de 90 dias após o último embarque da mercadoria, segundo a convenção Free on Board;
Para garantir o pagamento da encomenda, a E…, Ltd, exigiu uma carta de crédito irrevogável no valor do dito preço, pagável através do F…, carta essa em que figurasse como beneficiária não a E…, Ltd, e sim a D1…, o que foi aceite pela B1…;
A B1…, agora na qualidade de fornecedora de G…, SL, era a beneficiária da carta de crédito …………., também no montante de 163.323,60€, emitida pelo H…, SA;
O C1.., depois de ter recusado emitir uma carta de crédito autónoma à B1… para o efeito de pagar à D1… e de ter recusado descontar a carta de crédito …………., aceitou tão só intervir no endosso dessa carta de crédito …………., por forma a que nela figurasse como segunda beneficiária a D1…, mantendo-se a B1… como primeira beneficiária;
Considera a B1… que o C1…, dessa forma, não assumiu qualquer responsabilidade própria e acrescida no pagamento da carta, já que esse pagamento é assumido exclusivamente pelo H…, limitando-se o C1…, enquanto banco transferente, a assegurar que o primeiro beneficiário, a B1…, cedia o seu crédito ao segundo beneficiário, a D1…;
Embora o H… considere, e bem, que caducou o prazo de validade da carta de crédito, o C1… propõe-se, se não houver decisão do tribunal em sentido contrário, a pagar à sua custa o crédito em causa ao F…, banco este que representa a D1…, exigindo depois o seu reembolso à B1…;
A B1… não aceitou que o C1…, em caso de recusa de pagamento por parte do H…, lhe pudesse exigir o valor da carta de crédito;
Entretanto, o fornecedor chinês – ciente de que só poderia receber o crédito titulado pela carta de crédito se a mercadoria fosse embarcada até 30/8/2011 e se quer a factura, quer o packing list, indicassem expressamente o dito total de 9.950 artigos – dolosamente fez constar falsamente:
- no bill of lading …………09 e respectiva packing list o embarque de 3.718 peças, quando efectivamente remeteu 3.535 peças;
- nesse bill of lading, que o embarque ocorreu em 30/8/2011, quando efectivamente ocorreu em 1/9/2011;
- no bill of lading …………31 e respectiva packing list, reportado a embarque, tempestivo, de 25/8/2011, o embarque de 3.517 peças, quando efectivamente remeteu 2.082 peças;
- uma vez que o pagamento da carta de crédito dependia da entrega de mercadorias no valor global do crédito, ou seja, 163.323,60€, imputou às mercadorias esse mesmo valor total, desdobrado em 87.925€ no bill of lading …………31 e de 75.398,60€ no bill of lading ………..09.
Ora, se o fornecedor tivesse feito constar de um bill of lading a data de embarque como sendo 1/9/2011, se tivesse feito constar as quantidades reais embarcadas e se tivesse indicado o preço correcto dessas quantidades reais embarcadas, convenceu-se a B1… que o banco obrigado ao pagamento da carta de crédito recusaria pagar a mesma;
Foi para obstar a essa recusa que o fornecedor fez constar aqueles elementos falsos;
Vieram a ser entregues à B1… 5.610 peças, faltando 4.340 peças, peças estas que o fornecedor diz ter já embarcado em 8/9/2011, mas que a B1… ainda não recebeu;
Acresce que os artigos recebidos apresentavam defeitos gravíssimos e a reparação desses defeitos, bem como a circunstância de só ter sido recebida parte da encomenda, fez com que a B1… só pudesse entregar aos seus clientes as respectivas encomendas para além dos prazos convencionados, apenas satisfazendo parcialmente as mesmas e tendo de suportar descontos nos preços entre 10% a 40%;
O C1… comunicou à B1… que a obrigação do H… tinha caducado em 11/10/2011 e que irá pagar, ele mesmo, no dia 22/11/2011 o dito valor de 87.925€ e no dia 25/11/2011 o dito valor de 75.398,60€, não obstante ter sido informado sobre os referidos elementos de falsidade;
A B1… terá prejuízos e incorrerá na ruína se o C1… lhe vier a exigir o que alega querer pagar;
A soma das peças declaradas como enviadas é de 7.235 peças, o que excede a variabilidade prevista na carta de crédito para que fosse paga, variabilidade essa que é de 5% em relação à dita quantidade de 9.950 peças;
A B1… não solicitou ao C1… que se obrigasse ao pagamento do montante da carta de crédito e este também não está obrigado a esse pagamento, seja pela existência dos referidos elementos de falsidade, seja por o C1… ser mero endossante, seja ainda por o C1… não ter confirmado a carta de crédito, antes inscrevendo nela “without our confirmation”.
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Foi dispensada a audiência prévia do C1… e da D1… e procedeu-se à inquirição de três testemunhas arroladas pela B1….
Foi imediatamente proferido despacho, em 21/11/2011, decidindo-se deferir o procedimento cautelar e condenando-se o C1… a abster-se de pagar à D1…, enquanto beneficiária, o valor integral ou parcial da carta de crédito …………., ou, caso o C1… entenda pagar, intimando-se esse C1… a suspender esse pagamento até decisão final com trânsito em julgado, por se entender ser esse o meio processual próprio, onde existindo todas as garantias, melhor se poderá definir sobre o eventual direito de reembolso alegado pelo C1….
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O C1… foi notificado desse despacho por telecópia do mesmo dia 21/11/2011.
O C1… e a D1… foram notificados da petição inicial por carta registada com aviso de recepção expedida em 12/12/2011, sendo ainda a D1… notificada do despacho de 21/11/2011, nos termos e para os efeitos do art. 385 nº 6 do Código de Processo Civil (CPC).
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O C1… limitou-se a juntar aos autos procuração a advogado.
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A D… apelou do despacho de 21/11/2011, a fim de o mesmo ser revogado.
Apresenta as seguintes conclusões:
1. Estando em causa uma carta de crédito em que o H… assume a qualidade de Banco emitente e a requerente a qualidade de 1.ª Beneficiária, a omissão de intervenção daquele Banco determina a violação do disposto no artigo 28.º/1 do CPC, pelo que as partes são ilegítimas para estar na acção.
2. O Tribunal a quo deu como indiciados os factos sob os números 10.º, 11.º, 13.º, 18.º, 20.º, 23.º, 24.º, 25.º, 26.º, 27.º, 28.º, 29.º, 30.º, 33.º.º 34.º, 35.º e 42.º, da douta sentença. Factos esses que, salvo o devido e muito respeito, foram incorrectamente julgados, porquanto contêm matéria conclusiva e de direito e contradizem os documentos apresentados pela requerente sob os docs. 4, 7, 9, para além de contraditórios entre si, como melhor vem especificado no corpo das presentes alegações.
3. Entende ainda a 2ª requerida que estando em causa um crédito documentário, foi violado o artigo 405.º, e as Regras e Usos Uniformes relativas aos Créditos Documentários, da Câmara de Comércio Internacional (UCP 600), na medida em que não se retiraram todas as consequências dos artigos 4/a 10/a 24 e 38 do mencionado normativo.
4. Em especial, a reconhecida irrevogabilidade do crédito documentário não foi relacionada com a sua função de garantia (nos mesmos termos que uma garantia bancária à primeira solicitação), o que determina que sejam considerados pelos agentes como o sangue das transacções comerciais internacionais.
5. Não foi igualmente tido em conta o disposto no artigo 24 UCP 600 que manda fazer fé nos documentos apresentados ao Banco para pagamento do crédito.
6. Se os mencionados documentos não mereceram qualquer oposição por parte do Banco pagador e se a mercadoria foi de facto, como foi admitido, expedida pela 2ª requerida e recebida pela requerente, que a utilizou, como reconhece e em mais de 60%, não existe qualquer fundamento para colocar em causa a fé dos documentos apresentados à 1.ª Requerida.
7. Não existe, pois, fundamento, à luz das Regras e Usos Uniformes relativas aos Créditos Documentários, da Câmara de Comércio Internacional, para considerar não estarem preenchidas as condições do crédito documentário, condições essas aliás, que a requerente alterou à revelia dos restantes intervenientes.
8. As características do crédito documentário dos autos, assim como todo o circunstancialismo trazido pela requerente não permitem sequer concluir estarem preenchidos os requisitos do número 1 do artigo 381.º do CPC.
9. Por último, os factos permitem ainda concluir pela existência de uma situação de venire contra factum próprio, se considerarmos que à requerente, na leitura que a mesma faz das suas obrigações e do Banco requerido, bastaria que ela própria enquanto 1.ª beneficiária deixasse caducar a garantia de crédito, para imediatamente fazer frustrar o pagamento à 2ª beneficiária, o que não pode ser tolerado pela Ordem Jurídica.
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Nas contra-alegações, a B1… entende que deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se na íntegra o despacho.
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No dia 26/1/2012 foi instaurada a acção declarativa principal, a qual segue os termos do processo ordinário e tem o número 193/12.4TBOAZ, passando o procedimento cautelar a ser o correspondente apenso A e o presente recurso, por ser processado em separado, a ser o correspondente apenso B.
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Foram colhidos os vistos legais.
A questão a decidir prende-se com a definição da matéria de facto indiciada, com a legitimidade do C1… por estar desacompanhada no procedimento cautelar do H… e apurar se o C1… pode ou não recusar pagar à D1… a carta de crédito.
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No despacho apelado consideraram-se indiciados os seguintes factos:
1 A B1… tem como actividade o fabrico, comércio, importação e exportação de vestuário têxtil e em pele.
2 No exercício dessa actividade e numa deslocação pessoal de um seu colaborador à China, mais concretamente a I…, adquiriu por compra a E…, Ltd (doravante designado por fornecedor), com sede em …, …, …, …, República Popular da China, os artigos de vestuário que constam dos documentos 1 a 3, compostos de várias folhas, num total de 9.950 peças pelo preço global de 163.323,60€.
3 Os artigos em causa, ainda que não fabricados pela B1…, foram confeccionados de acordo com modelos próprios, por si desenvolvidos, que naturalmente agradam aos seus clientes, que lhos encomendam.
4 Conforme convencionado, o preço seria pago no prazo de 90 dias após o último embarque de mercadorias (Free On Board).
5 Para garantir o pagamento dessa encomenda (outras foram feitas ao mesmo, mas não relevam para o presente litígio), o fornecedor exigiu uma carta de crédito irrevogável, pelo montante igual ao preço, pagável através do F…, mas em que figurasse como beneficiária, não o próprio fornecedor, mas sim a D1….
6 Segundo explicação transmitida à requerente, tal disparidade no que concerne à identidade do beneficiário dever-se-ia ao facto de o fornecedor não possuir crédito suficiente junto da banca, designadamente para, se assim o entendesse, descontar essa carta de crédito, sendo que a B1… nada opôs a essa pretensão.
7 A B1…, face a tal imposição, tentou negociar junto da agência do C1…, situada no concelho de Oliveira de Azeméis, a emissão dessa carta de crédito, oferecendo como garantia o desconto de uma carta de crédito de que era beneficiária, emitida pela H…, sediado em Espanha, e por ordem de G…, SL.
8 Com efeito, aquando dessa encomenda à China, já a B1…, agora na qualidade de fornecedora, tinha recebido da G…, SL, com sede na …, .., …… …, …, Espanha, uma encomenda de parte daqueles mesmos artigos, encomenda essa cujo preço era igual ao que seria cobrado a si pelo fornecedor chinês, ou seja o lucro bruto a auferir pela B1… corresponderia ao preço por que iria vender o remanescente da encomenda efectuada à China não destinada àquele cliente espanhol, mas a outros já vinculados à B1… através das respectivas encomendas aceites.
9 Essa encomenda efectuada pela G…, SL, havia sido, a solicitação da B1…, garantida por uma carta de crédito irrevogável, n° …………, emitida pelo H… por instruções daquela (ordenante).
10 Perante a recusa daquele tipo de financiamento por parte do C1…, este acabou por aceitar intervir no endosso da mesma carta de crédito emitida pelo H…, por forma a que nela figurasse como segunda beneficiária a D1….
11 Ao intervir nessa carta de crédito, o C1… não assumiu qualquer obrigação em nome pessoal de pagar o valor titulado pela mesma, antes se limitando, enquanto banco transferente, a assegurar que o primeiro beneficiário, a B1…, cedia o seu crédito à segunda beneficiária, a D1….
12 Embora o H… considere que caducou o prazo de validade da carta de crédito, o C1… propõe-se, como comunicou à B1…, se não houver decisão do tribunal em sentido contrário, a pagar à sua custa o crédito em causa ao F…, representante do beneficiário chinês, exigindo depois o seu reembolso à B1….
13 Na sequência desse endosso, o C1… requerido emitiu via swift o documento que se junta sob o n° 6 onde consta:
- como banco emitente, o H…, SA;
- como primeira beneficiária, a B1…;
- como segunda beneficiária, a D1…;
- como valor do crédito, 163.323,60€;
- como prazo de pagamento, 60 dias após o embarque;
- e como prazo de validade 10/9/2011.
14 Nele constando expressamente a expressão no swift “without our confirmation”.
15 O pagamento seria feito contra a entrega dos seguintes documentos:
- factura assinada e carimbada em 3 exemplares;
- lista dos produtos fornecidos em 3 exemplares (packing list); e
- bill of lading (documento de embarque das mercadorias).
16 Posteriormente, a solicitação da B1…, que faz expressa alusão a “endosso de carta de crédito”, o C1… alterou o campo 42p da carta de crédito, por forma a que o pagamento fosse efectuado 90 dias após a data de embarque.
17 O que foi aceite e emitida a respectiva comunicação, via swift, dirigida ao F…, onde consta como banco emitente o H….
18 Entretanto o fornecedor chinês comunicou que não conseguia cumprir com a data aprazada para embarque, 20/8/2011, pedindo uma dilação de 10 dias.
19 O que a B1… aceitou, solicitando essa alteração ao C1…, bem como a alteração da data limite da validade e autorização para serem permitidos embarques parciais da mercadoria, cujo preço era garantido por aquela carta.
20 Porque se tratava de um endosso, o representante do C1… questionou a B1… se já haviam pedido ao cliente espanhol, ou seja, à G…, SL, autorização para fazer constar essas alterações à carta de crédito.
21 Em resposta, a colaboradora da B1…, nessa qualidade, transmitiu ao C1… o seguinte: “Quando endossámos a carta de crédito foi possível alterar a data de embarque e de expiração, pelo que penso agora também poderemos alterá-la. Estou enganada? Quanto aos embarques parciais é que não tinha havido nenhuma alteração. Não podemos alterar? Peço desculpa, agradeço a sua ajuda. Cumprimentos, J…”.
22 O C1… respondeu informando que “junto segue mensagem com as alterações efectuadas”, remetendo cópia do swift enviado ao F… onde aparece:
- como data de expiração 20/9/2011;
- data limite para o embarque 30/8/2011;
- alteração do ponto 43p, por forma a permitir-se o embarque parcial.
23 A B1… sempre esteve convicta, e continua, de que nenhuma obrigação própria o C1… assumiu ao intervir nessa carta de crédito, obrigação essa que apenas vinculava o banco emitente.
24 A B1… não aceitou que o C1… alguma vez, em caso de recusa de pagamento por parte do H…, lhe pudesse exigir o valor do crédito em causa.
25 O fornecedor chinês, ciente de que só poderia receber o crédito titulado por aquela carta de crédito se, além do mais, a mercadoria fosse embarcada até à data limite de 30/8/2011 e se, quer a factura, quer o packing list a apresentar ao banco, indicassem expressamente o total dos artigos encomendados, 9.950, fez constar falsamente no bill of lading …………09 o embarque de 3.718 peças, quantidade que consta igualmente da respectiva packing list, ambas dirigidas ao C1….
26 Os dois contentores a que alude esse documento continham apenas 3.535 peças, como o fornecedor acabou por reconhecer num outro documento posteriormente enviado à B1….
27 Do mesmo bill of lading consta como data de embarque o dia 30/8/2011, quando o mesmo só foi embarcado a 1/9/2011.
28 O outro contentor, embarcado dentro do prazo previsto na carta de crédito, ou seja em 25/8/2011, é descrito no bill of lading …………31 como contendo 3.517 peças, número que também consta do packing list desse bill of lading, ambos entregues ao C1….
29 Quando o número de peças enviadas se cifrou apenas em 2.082.
30 O pagamento da carta de crédito dependia da entrega de mercadorias no valor global do crédito, ou seja, 163.323,60€.
31 No packing list e factura associados ao bill of lading …………09, o fornecedor atribuiu a essas mercadorias o valor de 75.398,60€.
32 E ao packing list e factura associados ao bill of lading …………31, o fornecedor atribuiu às mercadorias o valor de 87.925€.
33 Se o fornecedor tivesse feito constar do bill of lading a data de embarque de dois dos três contentores como sendo de 1/9/2011 e se tivesse feito constar dos packing list e facturas a ele anexas as quantidades reais efectivamente embarcadas e, sobretudo, o preço das mesmas, o banco obrigado ao pagamento da carta de crédito recusaria pagar a mesma.
34 Foi para obstar a essa recusa que o fornecedor fez constar aqueles elementos falsos nos documentos em causa.
35 Contados cada um desses artigos após a sua recepção, concluiu-se que nesses 3 contentores foram transportados e entregues à B1… apenas 5.610 peças, faltando 4.340 peças, peças estas que o fornecedor, pressionado pelos veementes protestos da B1…, diz ter já embarcado em 8/9/2011, mas que a B1… ainda nem sequer recebeu.
36 Os artigos recebidos apresentavam defeitos e obrigaram a trabalhos de apressada reparação, levada a cabo pelos funcionários da B1…, os quais deixaram de exercer outros trabalhos durante cerca de 30 dias, e ainda por pessoas contratadas para o efeito.
37 Tal facto, aliado à circunstância ter recebido do fornecedor apenas parte dos produtos encomendados, fez com que a B1… só pudesse entregar aos seus clientes as respectivas encomendas para além dos prazos convencionados e apenas satisfazendo parcialmente as mesmas.
38 Por isso, embora nenhum deles tenha recusado receber apenas parte do total encomendado, todos eles, entre os quais a G…, SL, exigiram descontos, atingindo alguns entre 10% a 40%, que a B1… se viu obrigada a aceitar, sob pena de nada receber ou transformar os artigos em monos.
39 Entretanto, o C1… comunicou à B1… o seguinte:
- a obrigação assumida pelo H… com a emissão da carta de crédito caducara em 11/10/2011, uma vez que – pelos motivos que se prendem com o atraso no embarque a partir da China e, sobretudo, com a falta de parte das mercadorias e com a necessidade de reparação de outras – até essa data a B1… não conseguiu entregar a totalidade das peças encomendadas pela cliente espanhola e, sobretudo, fazer prova desse facto perante o banco;
- irá pagar, o C1…, no próximo dia 22/11/2011 (3 dias antes do termo do prazo de 90 dias contados da data do embarque ocorrido em 25/8/2011), o valor constante da factura anexa ao bill of lading …………31, no montante de 87.925€, e no dia 25/11/2011 o remanescente constante da factura anexa ao outro bill of lading.
40 Decisão essa que o C1… decidiu manter.
41 A ser pago o valor da carta de crédito pelo C1… e admitindo-se que ele possa exercer o direito de regresso contra a B1…, esta não tem liquidez para suportar o pagamento do crédito, nem o poderá recuperar dos seus clientes, porque apenas pôde satisfazer parte das encomendas e com elevados descontos.
42 Por outro lado, caso não pague ao banco, o mesmo, além de accionar judicialmente a B1…, fará constar perante o Banco de Portugal, como está obrigado, que a B1… é devedora de um montante elevado e que se encontra em mora.
43 A B1… não poderá mais contar com crédito bancário, ao qual recorre assiduamente, para se financiar nas importações, atingindo o seu passivo bancário cerca de 800.000€.
44 Para além disso, no que se refere ao seu fornecedor chinês, o tempo necessário ao seu crédito/indemnização jamais lhe permitiria pagar a tempo ao banco.
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A apelante D1… [não confundir com E…, Ltd] insurge-se quanto à matéria de facto considerada indiciada nos pontos 10, 11, 13, 18, 20, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 33, 34, 35 e 42, entendendo que tal matéria contém juízos conclusivos e de direito e contradiz os documentos 4, 7 e 9 apresentados pela B1…, para além de os pontos em causa conterem contradições internas.
Vejamos.
O procedimento cautelar estabelece uma decisão liminar e provisória, sustentada num juízo de probabilidade – ainda que sério – da existência do direito invocado pelo requerente e quando se indicie que esse direito poderá ser lesado se não existir a própria decisão liminar e provisória (art. 387 nº 1 do CPC).
Se a decisão em causa já é liminar e provisória, os factos sobre as quais se sustenta também se demonstram em sede de juízo indiciário, ou facto indiciado, o qual é menos exigente do que o juízo que conduz à afirmação de facto provado, uma vez que o art. 384 nº 1 do CPC apenas exige prova sumária do direito ameaçado e exige justificação mínima do receio de lesão desse direito se não vier a existir a decisão liminar e provisória que se requer.
Conferidos os factos elencados como indiciados, é certo que a expressão “endosso” é empregue numa acepção de compreensão comum, sustentada na noção que tem o homem comum do verdadeiro, e juridicamente reconhecido, endosso de cheques e letras de câmbio, sendo certo que esse conceito não tem tradução directa nas Regras e Usos Uniformes para os Créditos Documentários da Câmara de Comércio Internacional, conforme revisão do ano 2007, conhecida em Portugal pelo acrónimo RUU e na versão original pelo acrónimo UCP 600 (publicada na versão bilingue pela Delegação Portuguesa da Câmara de Comércio Internacional, sob o título “Regras e Usos Uniformes da CCI para os Créditos Documentários, Revisão 2007, UCP 600”, com depósito legal 2596667/07).
O emprego de um sentido comum da expressão “endosso”, num contexto que é só de demonstração indiciária, não é impróprio, pelo que não se alterará o que quer que seja no elenco de factos indiciados para suprimir a expressão “endosso”, ou para a adaptar à terminologia e conceitos da RUU.
Mas é patente a razão da D1… na objecção aos supostos factos 11 – “Ao intervir nessa carta de crédito, o C1… não assumiu qualquer obrigação em nome pessoal de pagar o valor titulado pela mesma, antes se limitando, enquanto banco transferente, a assegurar que o primeiro beneficiário, a B1…, cedia o seu crédito à segunda beneficiária, a D1…” – e 30 – “O pagamento da carta de crédito dependia da entrega de mercadorias no valor global do crédito, ou seja, 163.323,60€”.
Nessas menções 11 e 30 constam puras conclusões de direito, quase auto suficientes para a decisão do procedimento cautelar, nunca podendo ser encaradas como premissas factuais para o assunto dos autos. A apelante refere mesmo que a menção 11 é quase uma sentença.
Nos termos do art. 646 do CPC consideram-se não escritas as menções 11 e 30.
A apelante invoca a ilegitimidade do C1… para o procedimento cautelar, na medida em que não é igualmente requerido o H…, SA.
Vejamos.
A B1… requer:
- a título principal, que o C1… seja condenado a abster-se de pagar à D1…;
- em sede subsidiária, confere a possibilidade de o C1… pagar à D1…, mas nessa possibilidade subsidiária pretende que o C1… seja judicialmente convencido de que pagará mal e que esse mau pagamento não pode ser repercutido na B1…, a título de reembolso;
- em novo grau subsidiário, pretende a condenação do C1… a suspender o pagamento à D1… até que o assunto seja decidido na acção principal.
Este último grau subsidiário tem um alcance parcialmente redundante com a sentença que venha a ser proferida na acção principal e torna-se totalmente redundante se proceder o pedido principal do procedimento cautelar.
Por seu turno, no despacho apelado condenou-se o C1… a não pagar à D1…, não se declarou que se o C1… pagasse à D1… pagaria mal e que por isso mesmo não poderia obter reembolso junto da B1…, concluindo-se, na decisão, pela parte irrelevante de condenação do C1… a suspender o pagamento até que o assunto seja decidido na acção definitiva: diz-se irrelevante porque depois de se ter proibido o pagamento é indiferente condenar na suspensão do pagamento, sendo certo que a decisão do procedimento cautelar só vale até ser proferida a decisão na acção principal e nunca pode prevalecer sobre essa última decisão.
A ilegitimidade no procedimento cautelar não tem de coincidir com a legitimidade na acção principal e a verdade é que o efeito liminar e provisório que a B1… pretende só afecta o C1… e a D1….
Esse efeito provisório não afecta o H… e ainda menos o afecta num contexto, afirmado pela C1… no art. 14 da petição inicial, de a carta de crédito ter caducado na parte em que podia obrigar o H…. Esse entendimento parece ser correcto, já que a B1… teria de apresentar a própria carta de crédito, acompanhada por factura (definitiva) de 4.547 casacos de homem em lã, packing list assinada pela G…, CMR de transporte rodoviário e apólice de seguro, ao H… até ao dia 20/9/2011, data ultrapassada no dia 15/11/2011 em que foi interposto o presente procedimento cautelar.
Está assegurada a legitimidade do C1… no procedimento cautelar mesmo sem ser requerido o H…, improcedendo a objecção de ilegitimidade suscitada pela D1….
Com quem a D1… conta para o efeito de lhe ser paga a mercadoria é com o C1… e não com o H…, parecendo ser medianamente óbvio, face à própria dedução da apelação, que na sequência da telecópia de 21/11/2011, enviada pelo tribunal ao C1…, este nada pagou à D1… (o primeiro pagamento estava previsto para 22/11/2011).
A carta de crédito é irrevogável e, até ver, a B1… logrou revogá-la.
Continuemos.
O banco confirmador é o banco que junta a sua confirmação a um crédito, a solicitação ou sob autorização do banco emitente, ao passo que o banco transferente é o banco designado [na carta de crédito] que transfere o crédito.
Entende a D1… que o C1… não tem estatuto de banco transferente e sim o estatuto de banco confirmador.
Concordamos claramente com essa tese da D1…, sendo patente que só ela confere acerto à intervenção do C1… na carta de crédito e à clara intenção que esse banco mostrou de querer pagar à D1…, afinal a razão imediata para ser instaurado o procedimento cautelar.
Não se aceita a possibilidade de o C1… querer pagar à D1… não porque se sinta obrigado a tanto e sim, tão só, por querer auferir o reembolso do que pagar à D1… junto da B1… e ainda auferir uma remuneração paga por esta B1…, além de ostentar perante o F… bom cumprimento dos seus deveres comerciais e bom nome na praça internacional.
Também parece evidente que a B1… solicitou a intervenção do C1… na carta de crédito para o preciso efeito de este pagar à D1…: se não fosse para o C1… pagar à D1… para que é que a B1… contactou o C1…?
Parece muito difícil que o complexo circuito pressuposto pela carta de crédito (versão com as três emendas) corresse bem para a G…, para o H…, para a B1…, para o C1… e para a D1…, bastando referir, na melhor das hipóteses e reportada ao primeiro bill of lading que atesta embarque em 25/8/2011 (suponhamos, também na melhor das hipóteses, que inclui os ditos 4.547 casacos de homem em lã) afigurar-se muito difícil que um navio que desamarra em Xangai no dia 25/8/2011 propicie que uma mercadoria será entregue, via porto de Leixões, na Corunha no dia 20/9/2011 e que ainda nesse dia a B1… apresente todos os documentos e carta de crédito ao H….
O H… pagaria à B1… em função de uma venda de 4.547 casacos de homem em lã feita pela B1… à G…, mas de nada adiantaria apresentar ao H… documentos de venda de 9.950 casacos de homem e de mulher feita pela D1…à B1…: o H… só estava obrigado à vista da factura de 4.547 casacos de homem em lã que essencialmente reproduzisse uma outra factura pró-forma 250511/11 que a B1… tinha emitido em 25/5/2011 à G… (além de ter de lhe ser apresentada a packing list assinada pela G…, CMR de transporte rodoviário e apólice de seguro, tudo até 20/9/2011).
Não nos iludamos com o preço coincidente na venda da B1… à G… e na venda da D1… à B1…, vigorando em ambas o preço de 163.323,60€, e não nos iludamos com a circunstância de os 4.547 casacos de homem em lã estarem incluídos nos 9.950 casacos de homem e de mulher, já que, para além da óbvia diferença entre 9.950 e 4.547 casacos, o H… só podia ser confrontado com os documentos da venda da B1… à G….
É patente que o único banco a quem poderiam ser apresentados os documentos de cobrança da D1… e o único banco que estava obrigado a honrar (to honour) perante a D1… é o C1…, tendo sido para esse preciso e exclusivo efeito que ele outorgou na carta de crédito, além de ser para esse efeito que o C1… foi contactado pela B1…: a B1… não precisaria do C1… se o H… pagasse à D1… e o art. 38 b. da RUU até admite que o H…, se aceitasse, actuasse simultaneamente como banco emitente – como é – e como banco transferente.
O C1… anula a sua declaração de não confirmação da carta de crédito irrevogável, na condição aparente de banco transferente, quando ele próprio declara no campo 41A que a pagará (cfr. ainda o campo 49 no “transfer of a documentary credit” emitido em 5/7/2011).
Ou seja, é contraditório – e acaba por ser indiferente – fazer constar “irrevocable without our confirmation”, no campo 40B, para logo a seguir se escrever no campo “available with/by 41A” a resposta “C…, SA” (estes elementos são acrescentados à carta de crédito em 5/7/2011) (a expressão “available” vem empregue no art. 6 a. da RUU e reporta-se ao banco que pagará).
Se fosse o H… a pagar à D1…, a menção no campo 41A teria de ser H… e das duas uma: quem paga à D1… ou é o H… ou é o C1…, já que a condição do F… na carta de crédito é só a de representar a D1….
Ao declarar que paga, o C1… assume a condição de banco confirmador.
Como banco confirmador, o C1… teria de honrar a carta de crédito, conforme prevê o art. 8 a. I a) da RUU.
O art. 8 b. da RUU estabelece que “um banco confirmador fica irrevogavelmente comprometido a honrar […] a carta de crédito a partir do momento em que junta a sua confirmação ao crédito”.
Só aparentemente o C1… não confirma o crédito quando declara “(…) without our confirmation”, uma vez que simultaneamente declara que pagará – campo 41A – e, pelo demais contexto da carta de crédito, resulta evidente que o H… só tem obrigação de pagar 4.547 casacos de homem em lã vendidos pela B1… à G…, sendo a carta de crédito também para o efeito de pagar 9.950 casacos de homem e de mulher vendidos pela D1… à B1….
Fazer prevalecer o entendimento de que a carta de crédito não é instrumento nem para o H… nem para o C1… pagarem o que quer seja à beneficiária D1…, só porque é evidente que o H… nada tem a pagar a essa D1… e só por o C1… ter declarado não confirmar o crédito, equivale, pura e simplesmente, a consagrar a carta de crédito como instrumento de burla à D1….
O pagamento pelo C1… à D1… deveria ocorrer no nonagésimo dia após o embarque de cada lote de mercadorias remetidas, ou seja na forma de pagamento diferido (campo 42P, na versão conferida em 11/7/2011) (veja-se que na sequência da última emenda de 11/8/2011 veio a ser permitido a entrega do total de 9.950 casacos em embarques distintos, conforme alteração do campo 43P).
Na decisão apelada entendeu-se que se indicia “fraude relevante” praticada pela D1….
Não concordamos com essa tese, na medida em que a D1… declara claramente ao C1… que enviava menos quantidade de mercadoria do que a prevista, numa quebra que veremos ser na ordem dos 27,28%.
A fraude relevante para ser recusado o pagamento da carta de crédito funciona em casos extremos, referidos por Gonçalo Andrade e Castro, in “O Crédito Documentário Irrevogável”, pág. 299, edição de 1999 da Universidade Católica do Porto, como a “fraude relativa ao contrato base só releva (…) quando implicar a completa destruição daquele contrato, ou quando for enorme, ou quando determinar uma total failure of consideration (…) ou uma egregious fraud”, a fraude que se esgota em si mesma e não na tentativa de cumprimento. Também João Calvão da Silva, in “Estudos de Direito Comercial (Pareceres)”, edição de 1996 da Almedina, pág. 69, e Carlos da Costa Pina, in “Créditos Documentários”, edição de 2000 da Coimbra Editora, pág. 105, tornam patente que só a fraude muito grave e que se esgota numa intenção de engano pode justificar o não pagamento da carta de crédito (note-se que se tratam de casos em que a apresentação dos documentos de cobrança aparenta qualidade para bom pagamento, o que veremos não acontecer no caso presente por via do desvio, declarado pela D1… ao C1…, na ordem dos 27,28%).
O art. 4 da RUU estabelece que “Um crédito é, por natureza, uma transacção distinta da venda ou do contrato em que se possa basear. Esse contrato, de modo algum, diz respeito ao banco nem o vincula, mesmo que o crédito, sob uma forma qualquer, lhe faça referência. Por conseguinte, o compromisso do banco de honrar, negociar ou executar qualquer outra obrigação ao abrigo do crédito não pode dar lugar a reclamações ou contestações por parte do ordenador que resultem do seu relacionamento com o banco emitente ou com o beneficiário”.
Acrescenta o art. 5 da RUU que “Os bancos lidam com documentos e não com as mercadorias, serviços ou prestações às quais esses documentos se possam reportar”.
Refere o art. 14a. da RUU que “Um banco (…) deverão examinar qualquer apresentação a fim de determinarem, exclusivamente com base nos documentos, se estes aparentam ou não, constituir uma apresentação em conformidade”.
Essas normas definem o núcleo radical da abstracção do crédito documentário, residindo na sua compreensão a essência desse mecanismo de pagamento, destacando-se nesse âmbito o trecho transcrito do art. 14a. “exclusivamente com base nos documentos, se estes aparentam ou não”: os documentos não são uma base de averiguação, antes sendo eles próprios o objecto exclusivo da averiguação a que o banco tem de proceder.
O mérito dos créditos documentários reside numa desigualdade assumida, protegendo sobremaneira o exportador e desfavorecendo claramente o importador.
O C1… teria de conferir a conformidade dos documentos que lhe fossem apresentados pela D1… com as três facturas pró-forma que em 12/5/2011 tinham sido emitidas pela D1… à B1… (campo 45A).
Essa conferência implica que o C1… tem de conceder fé a tudo o que a D1… declara nos documentos que apresenta para justificar o pagamento: é a aparência dos documentos que faz fé e o C1… não pode proceder a averiguações fora dos documentos.
Os documentos que a D1… teria de apresentar ao C1… seriam:
- factura definitiva;
- bill of lading à ordem do C1…, mas indicando como beneficiária da expedição a B1…;
- packing list.
O bill of lading é o conhecimento de embarque, sendo certo que poderia existir mais do que um conhecimento de embarque e mais do que uma packing list, tudo por se ter outorgado em 11/8/2011 que a mercadoria poderia ser expedida em mais do que uma ocasião e em mais do que um navio.
A coerência documental afere-se no confronto com as facturas pró-forma e ainda no confronto interno entre a factura definitiva, o bill of lading e a packing list: os quatro tipos de documentos têm de se coordenar entre eles para que se possa concluir pela “apresentação em conformidade”, ou apresentação boa para pagamento.
O total das facturas pró-forma de 12/5/2011 é de 233.105,60 dólares dos Estados Unidos da América, verba que se admite coincidir com o total de 163.323,60€ que consta nas facturas definitivas, uma com data de 18/8/2011 e outra com data de 26/8/2011.
No bill of lading …………09 consta que o embarque ocorreu no dia 30/8/2011.
Face a tal declaração da D1…, o C1… fica impedido de averiguar qualquer outra data de embarque – concretamente o dia 1/9/2011 – pela supra referida razão de ter conferir fé ao que a D1… lhe declara e não poder averiguar qual a data real de embarque. Aliás a data de 30/8/2011 parece estar confirmada pelo representante do armador K…, Ltd, representante esse que é a L…, Ltd.
Nada se refere nas duas facturas definitivas, nos dois bill of lading e nos dois packing list sobre defeito nos casacos, o que impede o C1… de supor – ou sequer de averiguar – que exista defeito algum na mercadoria.
Mas existe uma incongruência nos documentos da D1…: no total das três facturas pró-forma constam 9.950 casacos, ao passo que nas duas facturas definitivas, nos dois packing lists e nos dois bill of lading só constam um total de 7.235 casacos.
A B1… invoca tal divergência no art. 50 da petição inicial.
Essa incongruência tem de ser percebida pelo C1… na conferência entre as facturas pró-forma, por um lado, e as facturas definitivas, bills of lading e packing lists, do outro lado, arrastando incongruência para o preço indicado aos artigos, uma vez que o preço que em 12/5/2011 se tinha fixado para 9.950 casacos surgia agora a reportar-se a 7.235 casacos.
Embora no art. 18c. da RUU se especifique que a descrição da mercadoria que figurar na factura deverá corresponder à que constar no crédito, mesmo assim a RUU não exige uma equivalência perfeita entre os documentos que acompanham originalmente a carta de crédito e os documentos que vêm a ser apresentados pelo beneficiário, equivalência essa que antes era causa de elevada rejeição de pagamentos de cartas de crédito, ou seja no âmbito da regulação das RUU anteriores à versão de 2007.
Com efeito e quanto a quantidades, consta no art. 30b. da RUU que “Será admitida uma tolerância não excedendo 5% para mais ou para menos sobre a quantidade da mercadoria, na condição de o crédito não especificar tal quantidade por um número determinado de unidades de embalagem ou de artigos individualizados (…)”.
À luz desse art. 30b., a D1… até teria de fazer constar o rigoroso envio de 9.950 casacos, uma vez que as facturas pró-forma especificam a mercadoria por rigorosa quantidade de casacos, um “número determinado de unidades” no dizer do dito art. 30b.
Mas prevalece sobre esse art. 30 b. o que foi especificamente acordado na carta de crédito, constatando-se aí a admissão de defeito na quantidade entregue até 5% dos 9.950 casacos, conforme menção do campo 39A “positive/negative tolerance (%): 05/05”.
Para ser paga a carta de crédito, a quantidade de casacos não podia ser inferior a 9.452 peças [9.950 x ((100 – 5) : 100)].
Ao declarar como expedidos 7.235 casacos, a D1… confessa defeito de mais de 27,28% na quantidade enviada, muito para lá dos 5% admissíveis [((7.235 x 100) : 9.950) – 100].
É esse defeito na quantidade declarada pela própria D1… que determina que o C1… poderia recusar pagar a carta de crédito, sendo certo que a recusa de pagamento tem de ser a totalidade da verba de 163.323,60€.
A RUU não confere ao banco o poder de pagar alíquota em função da quantidade entregue face à quantidade prevista e seria um erro o C1… pagar a verba reclamada com redução de cerca de 27,28%, ou seja cerca de 118.768,92€ [((100 – 27,28) : 100) x 163.323,60€].
O art. 16a. da RUU prevê que o banco possa recusar pagar a carta de crédito quando determina que a apresentação de documentos não está em conformidade, devendo o C1…, nos termos do mesmo art. 16c. II. informar a D1… que não lhe pagava qualquer verba em virtude de existir defeito na quantidade declarada como enviada de mais de 27,28%, quando comparada com a quantidade prevista.
Se o C1… quiser pagar à D1… mesmo tendo de perceber – à vista do que a própria D1… lhe declara e em nada em função do que a B1… lhe possa comunicar – defeito superior a 27,28% na quantidade expedida, pagará mal e o mau pagamento pode-lhe ser oposto pela B1… para lhe recusar o reembolso e a remuneração pela intermediação.
Assim sendo, resta confirmar o despacho apelado e julgar improcedente a apelação.
Sumário previsto no art. 713 nº 7 do CPC:
1- O procedimento cautelar estabelece uma decisão liminar e provisória, sustentada num juízo de probabilidade – ainda que sério – da existência do direito invocado pelo requerente e quando se indicie que esse direito poderá ser lesado se não existir a própria decisão liminar e provisória (art. 387 nº 1 do Código de Processo Civil).
2- Se a decisão em causa já é liminar e provisória, os factos sobre as quais se sustenta também se demonstram em sede de juízo indiciário, ou facto indiciado, o qual é menos exigente do que o juízo que conduz à afirmação de facto provado, uma vez que o art. 384 nº 1 do Código de Processo Civil apenas exige prova sumária do direito ameaçado e exige justificação mínima do receio de lesão desse direito se não vier a existir a decisão liminar e provisória que se requer.
3- Nas Regras e Usos Uniformes para os Créditos Documentários da Câmara de Comércio Internacional, conforme revisão do ano 2007, ou RUU, o banco pode recusar pagar a carta de crédito quando determina que a apresentação de documentos feita pelo beneficiário da carta não está em conformidade.
4- No crédito documentário, os documentos não são uma base de averiguação, antes sendo eles próprios o objecto exclusivo da averiguação a que o banco tem de proceder antes de pagar.
5 - É causa de desconformidade na apresentação dos documentos e de recusa de pagamento da carta de crédito, a entrega de quantidade de mercadoria inferior em 27,28% à quantidade prevista, prevendo a carta de crédito tolerância até 5%, para mais ou para menos, na quantidade expedida.
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Em face do exposto, acordam os Juízes em julgar improcedente a apelação e confirmam o despacho de 21/11/2011.
Custas pela apelante.
Porto, 25/10/2012
Pedro André Maciel Lima da Costa
José Manuel Ferreira de Araújo Barros
Judite Lima de Oliveira Pires