COMPRA E VENDA FINANCIADO
UNIÃO DE CONTRATOS
NULIDADE
OBRIGAÇÃO CAUSAL
ABUSO DE DIREITO
Sumário

I – Na compra e venda financiada coexistem dois contratos distintos e autónomos – um de compra e venda e outro de crédito – em que existe uma ligação funcional entre ambos, servindo o crédito para financiar o pagamento do bem que é adquirido.
II – Trata-se de uma união de contratos em que a relação de interdependência influi na respectiva disciplina, prevista no art.º 12.º do DL n.º 359/91, de 21/9.
III – Servindo o crédito para financiar o pagamento de um bem vendido por terceiro ao mutuário e tendo o montante mutuado sido entregue directamente ao vendedor, a nulidade dos contratos não obriga o mutuário a restituir o montante mutuado, já que nada recebeu.
IV – No domínio das relações imediatas, a nulidade da obrigação causal produz a nulidade da obrigação cartular.
V- Não exprime abuso de direito, por não ser clamorosa e chocantemente violadora das regras da boa fé, a invocação, pelo consumidor, da nulidade do contrato de crédito ao consumo, por falta de entrega de um exemplar da proposta do contrato e pela inobservância dos deveres de informação e de comunicação a cargo do proponente, quando aquele o cumpriu durante substancial lapso de tempo, de modo consentâneo com a sua validade, e o tempo decorrido não foi de molde a criar neste último uma confiança, objectivamente justificada, de que a nulidade não seria invocada.

Texto Integral

Proc. nº 15/08.0TBCDR-A.P2 – Tribunal Judicial de Castro Daire
Rel. F. Pinto de Almeida (R. 1422)
Adj. Des. Teles de Menezes; Des. Mário Fernandes

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
O executado B… veio deduzir oposição à execução que lhe é movida pela exequente C…, S.A..

Como fundamento, alegou que o contrato de crédito que subjaz ao preenchimento da livrança apresentada como título executivo é nulo por não ter sido entregue um exemplar desse contrato no momento em que foi por si assinado ou posteriormente; a exequente não observou os deveres de informação e comunicação a que estava obrigada, tendo agido ainda em abuso de direito.

A exequente contestou, impugnando a factualidade alegada pelo executado e invocando a excepção de abuso de direito por parte do executado, por ter reconhecido, em momento posterior à celebração do contrato, a validade do contrato de crédito.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou procedente a oposição à execução, extinguindo a execução.
A exequente interpôs recurso dessa sentença, tendo, nesta Relação, sido anulada a decisão sobre a matéria de facto para ampliação desta.

Ampliada a matéria de facto e repetido o julgamento, foi proferida sentença que julgou a presente oposição procedente e, em consequência, determinou a extinção da instância executiva.

Discordando desta decisão, dela interpôs recurso a exequente, tendo apresentado as seguintes

Conclusões:
A. O contrato de mútuo celebrado entre Recorrente e Recorrido é autónomo face ao contrato de compra e venda celebrado entre o Recorrido e um terceiro,
B. A sentença recorrida não pode versar sobre o contrato de compra e venda celebrado entre o Recorrido e um terceiro, uma vez que este não é parte nos presentes autos, nem foi chamado a Intervir na causa,
C. Ficou provado na sentença sob recurso que a Recorrente através de acordo concedeu aos Recorridos um empréstimo destinado à aquisição do veiculo (cfr. ponto 2 da fundamentação de facto),
D. Não consta dos factos provados que a Recorrente entregou a terceiro a quantia mutuada
E. Não pode a sentença considerar como facto algo que nem sequer foi alegado e muito menos provado pelas partes,
F. Não há assim que apreciar relações "'tripartidas", ou conexão de contratos, porque nada foi alegado quanto a esta matéria,
G. Declarada a nulidade do contrato de mútuo outra consequência não se pode extrair que não seja a de que impende sobre o Recorrido a obrigação de restituir à Recorrente a quantia mutuada, ao abrigo do disposto no artigo 289º do CC,
H. O Tribunal a quo ao estender a obrigação de restituição da quantia mutuada a um terceiro violou o disposto no artigo 289º do CC.,
I. Tendo em consideração os factos dados como assentes, designadamente nos pontos 8 e 9 e, bem assim, o que consta do Auto de entrega de fls. 15 junto pelo oponente e a posição por este assumida na oposição designadamente em 10º, importa concluir que constam dos autos factos mais do que suficientes para concluir que a alegação de nulidade do contrato feita pelo oponente é feita com abuso de direito;
J. O oponente sempre assumiu e reconheceu, em especial em momento posterior à celebração, perante a recorrente a validade do contrato, em especial porque i) pagou prestações do contrato; ii) reconheceu a resolução do contrato; iii) entregou o veículo para amortizar a devida; iv) porque reconhece que o motivo do incumprimento nada tem que ver com a falta de entrega de exemplar do contrato ou falta de explicação das cláusulas contratuais;
K. Não é legítimo ao oponente vir invocar um comando legal que tem como finalidade unicamente acautelar que a parte contratante tenha efectivo conhecimento do acordo que está a celebrar;
L. Deve pois em face de tudo quanto foi alegado ser julgada procedente a excepção de abuso de direito na modalidade de «venire contra factum proprium», o que se requer. Ao não tê-lo feito o Tribunal a quo violou o estabelecido no artigo 334º do CC;
Nestes termos, deve a sentença ser revogada e substituída por outra que julgue procedente a excepção de abuso de direito e julgue improcedente a oposição prosseguindo a execução os seus ulteriores trâmites até final.

O opoente contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

- Restituição da quantia mutuada por força da nulidade do contrato de mútuo;
- Abuso do direito.

III.

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. A exequente «C…, S.A.» é detentora da livrança no valor de € 14.647,71 (catorze mil e seiscentos e quarenta e sete euros e setenta e um cêntimos), com data de emissão de 5 de Novembro de 2007 e com data de vencimento de 26 de Novembro de 2007, emitida a favor da exequente, da qual constam os dizeres “contrato n.º ……”, e no local destinado à assinatura dos subscritores, as assinaturas do executado B… e da falecida executada D…, conforme documento de fls. 9 dos autos principais, cujo teor se dá aqui por reproduzido (alínea A));
2. Por escrito datado de 28 de Dezembro de 2006, os executados celebraram com a exequente o acordo denominado “contrato de crédito n.º ……” através do qual esta concedeu àqueles “um empréstimo destinado a financiar a aquisição” do veículo automóvel de marca “Mitsubishi”, modelo …., matrícula ..-..-LX, no valor de € 11.820,92 (onze mil oitocentos e vinte euros e noventa e dois cêntimos), conforme resulta do documento de fls. 44 (frente e verso), cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (alínea B));
3. Através daquele contrato, em contrapartida, os executados ficaram vinculados a reembolsar a quantia mutuada, juros remuneratórios, encargos e impostos legalmente obrigatórios, em 72 prestações mensais e sucessivas, no valor, cada uma, de € 265,54 (duzentos e sessenta e cinco euros e cinquenta e quatro cêntimos), com vencimento a primeira prestação em 23 de Fevereiro de 2007 (alínea C));
4. Na frente do escrito referido em 2., antes da assinatura dos executados e após as condições particulares do contrato consta que «O(s) Cliente(s) declara(m) conhecer todas as condições e cláusulas do presente contrato de crédito (composto pelas presentes Condições Particulares e Condições Gerais constantes do verso ou de anexo ao presente documento), sobre as quais foi/foram devidamente informado(s), tanto por lhe(s) ter sido dado a ler, como por lhe(s) ter sido fornecido um exemplar do mesmo no momento da sua assinatura.» (alínea D));
5. Para garantia de pagamento das obrigações emergentes do contrato mencionado em 2., os executados entregaram à exequente a livrança referida em 1., “em branco” e subscrita por aqueles (alínea E));
6. Dispõe a cláusula 10.ª do contrato mencionado em 2. que «O cliente e, se aplicável, o(s) respectivo(s) avalista(s) autorizam a C… a preencher, caso exista, qualquer livrança ou outro documento ou garantia por si subscrito/avalisado e não integralmente preenchido, designadamente no que se refere à data de vencimento, ao local de pagamento e aos valores, até ao limite das responsabilidades assumidas pelo(s) Cliente(s)/Avalista(s) perante a C… por força do presente contrato, e em dívida na data do vencimento, acrescido de todos e quaisquer encargos com a selagem dos títulos. A C… apenas poderá preencher o título de crédito referido na presente cláusula desde que se verifique o incumprimento definitivo por parte do Cliente.» (alínea F));
7. Para a aquisição do veículo mencionado em 2., o executado dirigiu-se a um “stand” de automóveis em …, onde escolheu o veículo em questão (alínea G));
8. Em 7 de Agosto de 2007, o Executado entregou à Exequente a quantia de €1.851,38 (mil oitocentos e cinquenta e um euros e trinta e oito cêntimos) para pagamento das prestações do contrato referido em 2. e vencidas em 23/03, 23/04, 23/05, 23/06, 23/07, acrescidas dos respectivos juros e despesas, como resulta da factura constante de fls. 14, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzida (alínea H));
9. Em 8 de Agosto de 2007, o executado entregou à exequente o veículo identificado em 2., como resulta do auto de entrega constante de fls. 15, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (alínea I));
10. O executado formalizou a aquisição do veículo automóvel descrito em 2., depois da circunstância descrita em 7., a solicitação do vendedor, na sua residência pessoal, subscrevendo voluntariamente os documentos, juntamente com a sua esposa, que formalizaram a compra e venda e a concessão de um crédito (artigos 1.º e 2.º);
11. Os mutuários poderiam tomar conhecimento das condições especiais constantes do frontispício do contrato de crédito com o n.º 585659 (artigo 10.º);
12. Aquando da assinatura do contrato referido em 2. não foi entregue aos executados uma cópia daquele escrito (artigo 12.º).

IV.

Dos factos acima referidos decorre que a livrança dada à execução foi entregue para garantia de pagamento das obrigações emergentes do "contrato de crédito nº ……", através do qual a exequente concedeu aos executados “um empréstimo destinado a financiar a aquisição” de um veículo automóvel.
Ficou realmente provado que o executado formalizou a aquisição do referido veículo automóvel descrito, a solicitação do vendedor, na sua residência, subscrevendo voluntariamente os documentos que formalizaram a compra e venda e a concessão do crédito.

Estamos, assim, em presença de uma compra e venda financiada, em que coexistem dois contratos distintos e autónomos[1]: um contrato de compra e venda e um contrato de crédito, existindo uma ligação funcional entre os mesmos – o crédito serve para financiar o pagamento do bem que é objecto daquele contrato.
Trata-se de uma união de contratos, em que existe entre os contratos "um nexo funcional que influi na respectiva disciplina", que cria entre eles uma "relação de interdependência" bilateral ou unilateral, em que um deles pode funcionar como condição, contraprestação, base negocial do outro, ou outra forma de "dependência criada por cláusulas acessórias ou pela relação de correspectividade ou de motivação que afectam um deles ou ambos"[2].

Pressupõe, deste modo, como afirma Ana Isabel da Costa Afonso[3], "uma pluralidade de negócios entre os quais intercede um nexo, que só é juridicamente relevante quando se verifica uma conexão funcional entre os acordos, isto é, quando os vários acordos se unem na prossecução de uma finalidade económica comum – finalidade esta que não pode ser obtida senão através da realização das várias facti-species negociais – mas de tal forma que cada um dos elementos constitutivos mantém a sua autonomia estrutural e formal.
A existência de uma coligação funcional entre dois ou mais negócios produz efeitos jurídicos relevantes, na medida em que, em virtude dessa dependência funcional, as vicissitudes de um acabam por se repercutir sobre o outro ou outros. Com efeito, se um dos negócios estiver ferido de nulidade, nulo será também o negócio funcionalmente dependente (…)".

No caso da compra e venda financiada, a regulamentação do DL 359/91, de 21/9, segue inequivocamente o “modelo da separação”, aludindo expressamente a “contrato de crédito” e a “contrato de compra e venda”[4].
A relação de interdependência entre os dois contratos e o vínculo substancial que influencia o regime normal desses contratos está patente, designadamente, na disciplina prevista no art. 12º desse diploma.
Na sentença recorrida concluiu-se que o aludido contrato de crédito é nulo por falta de entrega de um exemplar do contrato no momento da sua assinatura pelo executado e por inobservância dos deveres de informação e de comunicação.
Entendeu-se, todavia, que essa nulidade não obriga, no caso, o executado a restituir o montante mutuado (art. 289º nº 1 do CC), incumbindo essa obrigação ao vendedor.
A Recorrente não discute os fundamentos dessa nulidade; apenas lhe opõe o abuso do direito por parte do mutuário. Discorda ainda do decidido, defendendo que é sobre o executado que impende a obrigação de restituir o montante mutuado.
Vejamos então estas questões, por esta ordem.

1. Sobre a primeira questão, na sentença, com apoio em abundante jurisprudência, afirma-se o seguinte:
"Na ponderação de saber se, no caso em apreço, houve abuso do direito o Tribunal deve actuar com prudência quando se está perante uma relação de consumo, onde é patente a desigualdade de meios entre o fornecedor e o consumidor, sendo de equacionar se, ao actuar como actuou, a exequente, prevalecendo-se da superioridade negocial em relação a quem recorreu ao seu crédito, não infringiu ela mesmo, em termos censuráveis, os deveres de cooperação, de lealdade e de informação, em suma, os princípios da boa fé.
Celebrado o contrato de crédito ao consumo e invocando o consumidor a nulidade do mesmo com base na não entrega de um exemplar e no incumprimento dos deveres de comunicação e informação a cargo do proponente, considera-se que o mero decurso do tempo ou o pagamento parcial das prestações não permite concluir, por si só, que ocorre um abuso do direito, exigindo-se, face às circunstâncias do caso concreto, que o seu comportamento seja manifestamente excessivo e colida frontalmente com os mais elementares ditames da boa fé.
Neste caso, quem deixou de cumprir as normas aplicáveis à negociação do contrato de crédito, violando a relação de boa fé e de confiança que deve existir entre os contraentes foi a exequente, pois não obstante saber que tinha que comunicar e informar o executado do conteúdo do negócio (criando, desde logo, um formulário em que a assinatura do consumidor constasse após a descrição das cláusulas) e fornecer um exemplar do contrato ao executado no momento da respectiva assinatura, não o fez.
Neste contexto, não se afigura clamorosamente ofensivo da justiça ou do sentimento jurídico dominante, a actuação do executado, que, não esclarecido, em tempo oportuno, por quem tinha a obrigação de o fazer, invoca a nulidade do contrato depois de usufruir do veículo adquirido com a quantia mutuada durante alguns meses e a entrega para amortizar a dívida, pagando prestações em atraso.
Na verdade, “não se vê que haja que tutelar a confiança gerada no credor pelo cumprimento das obrigações do devedor durante certo período da duração prevista para o contrato de crédito, quando aquele violou manifestamente os deveres de informação e de disponibilização imediata de um exemplar do contrato, em detrimento do direito do devedor à declaração de nulidade do contrato”

Tendo em consideração todo o circunstancialismo provado, afigura-se-nos que, neste caso, se decidiu bem esta questão.
Já se tem concluído em certas situações, desta natureza, pela existência de abuso (na vertente do venire contra factum proprium) por parte do mutuário[5]. Afirma-se que a ultrapassagem de um período temporal, mais ou menos amplo consoante as circunstâncias concretas, não permite ao mutuário eximir-se ao pagamento das prestações do empréstimo, sob pena de abuso do direito[6].

Existe abuso do direito quando este, em princípio legítimo, é exercido de modo a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, devendo, neste caso, o titular do direito ser tratado como se não o tivesse.
Não parece, contudo, que o mero decurso do tempo entre a celebração do contrato e a invocação da nulidade seja suficiente para concluir pela existência de abuso. A nulidade, como se afirma no Acórdão do STJ de 07.01.2010, pode ser invocada a todo o tempo (art. 286º do CC) e certamente que se o legislador pretendesse a sanação do vício pelo decurso do tempo, tê-lo-ia provavelmente sancionado com a anulabiliadde, como fez para os casos previstos no nº 2 do art. 7º do DL 359/91.
Assim sendo, como se acrescenta nesse Acórdão, "haveria de ter sido alegada e provada matéria de facto que permitisse concluir que o não exercício anterior do direito de invocar a nulidade por falta de entrega oportuna de um exemplar da proposta de contrato tinha sido acompanhado de uma actuação dos consumidores apta a, objectiva e justificadamente, criar na recorrente a confiança de que a nulidade não seria suscitada, tornando claramente inaceitável que, ao arrepio dessa sua atitude, a viessem a invocar, em violação da confiança que eles próprios (objectivamente, repete-se) criaram".

Ora, no caso, nada disto se provou.
Pelo contrário, ficou demonstrada uma situação que não será comum: celebrado o contrato e paga a 1ª prestação (vencida em 23.02.2007), o executado só veio a pagar as cinco prestações seguintes em 07.08.2007 e, logo no dia imediato, entregou o veículo à exequente.
Daí resulta que não ocorreu um cumprimento pontual do contrato por parte do executado, não se podendo afirmar que este tenha pautado a sua conduta, durante substancial lapso de tempo, de modo consentâneo com a validade do contrato. Nem o tempo decorrido foi de molde a criar na exequente uma confiança, objectivamente justificada, de que a nulidade não seria invocada. Esse período de tempo até se pode considerar relativamente curto em relação às situações em que tem sido reconhecida a invocação do abuso do direito.

Entende-se, pois, como no Acórdão do STJ de 30.10.2007, que, "sopesada a gravidade do comportamento da exequente, profissional do mercado de crédito com o arsenal de meios de que dispõe, o quadro factual em que o executado (a parte mais fraca no contexto negocial) invocou a nulidade não exprime abuso do direito, por não ser clamorosa e chocantemente violadora das regras da boa fé.
Não fora a actuação da exequente, incompatível com a ponderação e salvaguarda dos direitos do executado consumidor, não poderia este invocar a nulidade do contrato".

2. Sustenta, por outro lado, a Recorrente que:
- o contrato de mútuo é autónomo em relação ao contrato de compra e venda, sendo certo que o vendedor não é parte nestes autos;
- ficou provado que a exequente concedeu ao executado um empréstimo destinado à aquisição do veículo;
- não consta dos factos provados que a exequente entregou a terceiro a quantia mutuada;
- não há assim que apreciar relações "tripartidas" ou conexão de contratos, já que nada foi alegado nesse sentido;
- declarada a nulidade, impende sobre o executado a obrigação de restituir a quantia mutuada.
Não tem razão também aqui.
Já acima referimos que os dois aludidos contratos são distintos e autónomos, mas existe uma ligação funcional entre os mesmos, servindo o crédito para financiar o pagamento do bem que é adquirido. Trata-se de uma união de contratos, existindo entre estes um nexo funcional que influi na respectiva disciplina.
Esta influência é claramente reconhecida no art. 12º do DL 359/91, estabelecendo-se designadamente no nº 1 que a validade e eficácia do contrato de compra e venda depende da validade e eficácia do contrato de crédito, sempre que exista qualquer tipo de colaboração entre o credor e o vendedor na preparação ou na conclusão do contrato de crédito.

No caso, esta colaboração está patente na factualidade provada, desde logo por ser possível concluir que o executado apenas contactou o vendedor para celebrar os dois aludidos contratos, tendo a formalização dos dois contratos ocorrido com esse vendedor em casa do executado[7].
De qualquer modo, na sentença não se fez qualquer apreciação do contrato de compra e venda, sendo evidente, porém, que, sendo aquela a realidade provada – a existência dos dois contratos com a referida ligação funcional – não poderia alhear-se da mesma, ficcionando a existência tão só de um contrato, o de crédito.

Por outro lado, embora tal não resulte directa e explicitamente dos factos provados, temos por manifesto que, como é regra neste tipo de situações, também neste caso o capital mutuado foi entregue directamente ao vendedor. Foi realmente o vendedor quem liderou todo o processo negocial e foi perante ele que se formalizaram os dois contratos; aquele capital destinava-se a financiar exclusivamente a compra do veículo, sendo entregue naturalmente ao vendedor.
Assim se explica a autorização dada pelo executado à exequente para entregar o montante mutuado ao vendedor, prevista na clª 2ª a) das Condições Gerais, pressupondo-se também aí a colaboração entre estes (a entrega do capital nas "condições acordadas" entre a C… e o vendedor do bem), na medida em que a exequente não teve intervenção presencial e directa na celebração dos contratos.

Sobre os efeitos da nulidade declarada, afirma-se na sentença o seguinte:
"De acordo com o disposto no artigo 289.º, n.º 1 do Código Civil, a declaração de nulidade do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
No entanto, «havendo um contrato de crédito ao consumo cujo produto mutuado se destinou ao pagamento do preço de um veículo vendido por terceiro ao mutuário e tendo o montante mutuado sido directamente entregue ao vendedor, a nulidade dos contratos não obriga o mutuário - que nada recebeu em virtude do contrato de mútuo -, a restituir o montante mutuado, nos termos do art. 289º do Cód. Civil».
Na verdade, tendo a exequente entregue ao vendedor do veículo o montante mutuado, e nada tendo sido entregue ao executado, seria aquele vendedor quem teria de restituir o mesmo montante recebido, pelo que, por força da norma referida, nenhuma obrigação de restituir onera o executado, porquanto não recebeu qualquer quantia e entregou o veículo à exequente.

Subscreve-se esta fundamentação, que reflecte o entendimento que tem sido seguido na jurisprudência e na doutrina[8].
Mas nem parece que haja aqui de cuidar dos efeitos da nulidade declarada na sentença, tendo em conta que esta foi proferida na oposição a uma execução, tratando-se, para mais, de uma execução cambiária, baseada exclusivamente na livrança junta.

No domínio das relações imediatas, como é o caso, a nulidade da obrigação causal produz a nulidade da obrigação cartular. Sendo assim inválido o fundamento da execução, não vemos como este poderia, nesta fase, ser convolado para fundamento diferente.
Tratar-se-ia de uma alteração da causa de pedir (e até do pedido), pretendendo-se fazer valer agora uma causa diferente da obrigação, que não foi alegada no requerimento executivo[9]. Alteração da causa de pedir que não seria admissível – arts. 272º e 273º nº 1 do CPC.
Como refere Lebre de Freitas[10], "o objecto da execução tem de corresponder ao objecto da situação jurídica acertada no título (…). Assim, não é exequível, atenta a diversa natureza das obrigações em causa, o título que formalize um negócio jurídico nulo, mesmo quando a obrigação de restituição resultante da nulidade (art. 289º CC) tenha por conteúdo uma prestação materialmente idêntica à que o negócio tendia a constituir (…)".

Por outro lado, apesar da natureza declarativa da oposição, a pretensão que se prossegue através dela é a de extinção, total ou parcial, da execução. Com efeito, como se prevê no art. 817º nº 4 do CPC, a procedência da oposição extingue a execução, no todo ou em parte.
Assim, sendo esse o fim visado pela oposição, deve ser esse o objecto da decisão, estando vedado o reconhecimento de outros efeitos que poderiam derivar dos fundamentos invocados, como seria, no caso, o que caberia à nulidade declarada.

Improcedem, por conseguinte, as conclusões do recurso.
V.

Em face do exposto, julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 25 de Outubro de 2012
Fernando Manuel Pinto de Almeida
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes
_________________
[1] Acompanhamos de perto o que afirmámos nos Acs. desta Relação de 18.12.2003, de 15.04.2010 e de 31.03.2011, publicados em www.dgsi.pt (como todos os acórdãos adiante citados sem outra menção).
[2] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ª ed., 282 e 283; ainda sobre união ou coligação de contratos pode ver-se I. Galvão Teles, Manual dos Contratos em Geral, 4ª ed., 474 e segs; P. Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, 215 e segs; Vaz Serra, União de Contratos, BMJ 91-29 e segs; Ana Isabel da Costa Afonso, Os Contratos de Instalação de Lojistas em Centros Comerciais, 111 e segs; Acs. do STJ de 27.2.96 e de 4.6.96, CJ STJ IV, 1, 99 e IV, 2, 102.
[3] Ob. Cit., 113.
[4] Paulo Duarte, A Sensibilidade do Mútuo às Excepções do contrato de aquisição na compra e venda financiada, Sub Judice, 24, Janeiro/Março de 2003, 45.
[5] Cfr., entre outros, os Acórdãos desta Relação de 19.09.2000, de 22.05.2005, de 26.06.2008, de 07.10.2008 e de 14.11.2011. Já assumimos também essa posição no acórdão desta Relação de 18.06.2009 (Apelação nº 1837/08).
[6] Gravato Morais, Contratos de Crédito ao Consumo, 108 e 109.
[7] Cfr. Gravato Morais, Ob. Cit., 240 e 241.
[8] Cfr., como vem referido na sentença os Acórdãos do STJ 07/07/2009 e de 07/01/2010, da Rel. de Lisboa de 19/06/2008, de 20/01/2009 e de 24/03/2011 e da Rel. do Porto de 23/05/2005, bem como Gravato Morais, Ob. Cit., 247. Também o Acórdão desta Relação de 30.06.2011.
[9] Neste sentido, Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 5ª ed., 63 e Lopes do Rego, Comentários ao CPC, Vol. II, 2ª ed., 25 e o Ac. do STJ de 18.06.2002, CJ STJ X, 2, 113.
[10] CPC Anotado, Vol. 1º, 2ª ed., 88.