INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
Sumário

O incidente de intervenção principal provocada é o adequado para o demandado fazer intervir na lide a seguradora para quem havia transferido a responsabilidade civil emergente dos danos causados a terceiros com o bem objecto do contrato de seguro entre eles celebrado.

Texto Integral


Apelação n.º 3868/11.1TBGDM-A.P1
Relator – Leonel Serôdio (269)
Adjuntos – José Ferraz
- Amaral Ferreira

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

B…… e C….., LD. intentaram ação declarativa com processo ordinário, que corre termos no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial da comarca de Gondomar sob o n.º 3868/11.1TBGDM, contra D….. e esposa E….. pedindo que estes sejam condenados a pagar à A C….. a quantia de € 110 189, 15 e ao A B….. a quantia de € 2 620,00, acrescidas de juros de mora à taxa legal desde a citação, por danos que alegadamente sofreram em consequência de uma inundação proveniente da fração predial dos RR.
Os RR contestaram e, para além do mais, requereram a intervenção principal provocada, como sua associada, da Companhia de Seguros F….., S.A. Para tanto alegam que celebraram, em 31.06. 2006, com a chamada Companhia de Seguros F….. um contrato de seguro Multi-riscos, titulado pela apólice nº 6235/06013151, tendo por objecto o imóvel sua propriedade, pelo qual transferiram para a mencionada seguradora a responsabilidade por danos causados por inundação no prédio do 1ºA e utilizado pela 2ª A por água proveniente do prédio deles.

Os AA não se pronunciaram.

De seguida foi proferido despacho datado de 18.05.2012 que admitiu o presente incidente como intervenção principal acessória e não como intervenção principal provocada.
Os RR apelaram e apresentaram as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da douta decisão que admitiu a intervenção da Companhia de Seguros F….., S.A requerida pelos réus, a título de intervenção acessória provocada, e não intervenção principal provocada, conforme o primeiramente peticionado, (despacho proferido com a referência electrónica nº 8481913 nos autos);
2. Dentro do enquadramento legal supra enunciado (arts. 320º, alínea a) e 325º, nº 1 do C.P.C.), os Réus (ora Apelantes) alegaram e demonstraram documentalmente que a responsabilidade que no presente processo se pretende assacar se encontrava transferida, à data dos factos, para a seguradora chamada;
3. Face ao exposto na conclusão que antecede, a intervenção da seguradora a título principal é não só legalmente fundamentada, como processualmente pertinente;
4. Também a seguradora – por si só ou em litisconsórcio passivo – poderia ter sido demandada pelos Autores nos presentes autos;
5. A seguradora tem, na discussão da presente causa, um interesse igual ao dos Réus – nos termos e para os efeitos da previsão do art. 27º do C.P.C.;
6. No incidente de intervenção deduzido, os Réus salientaram a previsão contida no art. 329º, nº 2 do C.P.C., clarificando que pretendiam a apreciação e efectivação desse mesmo direito no âmbito dos presentes autos – vide artigos 22º e 23º da contestação;
7. A conformação da factualidade alegada pelos Réus com a pretensão pelos mesmos invocada em sede incidental impunha que a intervenção da seguradora fosse admitida a título principal (e não acessório);
8. A intervenção da seguradora a título acessório desacautela os direitos dos Réus no âmbito dos presentes autos;
9. A adequação do incidente de intervenção principal provocada à factualidade invocada pelos Réus tem vindo a ser sobejamente sublinhada pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, conforme excertos supra transcritos, a título meramente exemplificativo;
10. Ao descurar toda a argumentação aduzida neste sentido pelos Réus e ao limitar o âmbito da intervenção da chamada (seguradora) nos termos constantes do despacho recorrido, o Tribunal a quo violou o disposto nos arts. 27º, 320º, al. a), 325º, nº 1 e 329º, nº 2, todos do C.P.C.

A final pedem que se altere a decisão recorrida e se defira a intervenção principal da Seguradora chamada.

Os AA não contra-alegaram

A única questão a decidir é a de saber se o incidente próprio é a intervenção principal da chamada seguradora como pretendem os RR/apelantes, ou antes, como foi decidido no despacho recorrido, o incidente adequado é a intervenção acessória.

Sobre a intervenção principal provocada o artigo 325º, n.º 1 do Código de Processo Civil, (sendo deste código todos os artigos citados sem referência ao diploma), estipula: “qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária”.
Por seu turno, o artigo 320º estabelece que “ estando pendente uma causa entre duas ou mais pessoas, pode nela intervir como parte principal:
a) Aquele que, em relação ao objecto da causa, tiver um interesse igual ao do autor ou do réu, nos termos dos artigos 27º e 28º. ”
O artigo 321º prevê que o “interveniente principal faz valer um direito próprio, paralelo ao do autor ou do réu...”.
Os artigos 27ºe 28º, para que remete o artigo 320º al. a), prevêem o litisconsórcio voluntário e necessário.

Assim, a intervenção principal provocada é admissível, ao abrigo do art. 325º n.º1, quando qualquer das partes pretenda fazer intervir na causa um terceiro como seu associado, ou seja, quando qualquer das partes deseje chamar um litisconsorte necessário ou voluntário (cf. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág.180).
Há litisconsórcio sempre que a relação controvertida respeite a uma pluralidade de interessados, activos ou passivos.
Relevante ainda é o art. 329°, introduzido na reforma do CPC de 95, pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12 que na sequência de ter sido eliminado como incidente autónomo o chamamento à demanda previsto nos artigos 330º a 334º do CPC antes da reforma, prevê o chamamento de condevedores ou do principal devedor (n°1), e tratando-se de obrigação solidária, e sendo a prestação exigida na totalidade a um dos condevedores, permite que o chamamento pode ter ainda como fim a condenação na satisfação do direito de regresso que lhe possa vir assistir (n°2).
Assim, as situações que se enquadravam no chamamento à demanda especialmente previstas no art. 330º antes da reforma e outras em que existam condevedores, passaram a integrar o incidente de intervenção principal passivo.

Por outro lado, a intervenção provocada acessória está prevista no art. 330º do CPC que estipula:
“1. O réu que tenha ação de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar da defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal.
2 . A intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na ação de regresso invocada como fundamento do chamamento.”
Este incidente de intervenção acessória veio preencher a lacuna decorrente da supressão do incidente do chamamento à autoria, regulado antes da reforma do CPC, introduzida pelo DL n.º 329-A/95, nos artigos 325º a 329º, como incidente autónomo.

O n.º 1 do art. 330º do actual CPC corresponde na sua 1ª parte ao anterior 325 n.º1, mas ao requisito do direito de regresso do R sobre terceiro (chamado) foi acrescentado um outro requisito negativo, carecer o terceiro de legitimidade de intervir como parte principal.
O legislador pretendeu demarcar o âmbito de previsão de cada incidente, evitando situações de sobreposição, por isso, delimitou o âmbito da intervenção acessória impedindo que o terceiro que tenha legitimidade para intervir como parte principal intervenha como parte acessória.
Assim, quanto à distinção entre intervenção principal e intervenção acessória, seguindo o acórdão deste Tribunal de 14.06.2010, proferido no processo n.º 9506/08.2TBMAI-A.P1, “que a primeira respeita às situações em que está exclusivamente em causa a própria relação jurídica invocada pelo autor ou em que os terceiros sejam garantes da obrigação a que se reporta a causa principal (é neste quadro que se inserem as situações configuradoras dos antigos incidentes de nomeação à acção e do chamamento à demanda) e a segunda cabe nos casos em que ocorre a existência de uma relação jurídica material conexa com aquela que objecto da acção é este o lugar outrora reservado ao chamamento à autoria.
A intervenção principal provocada abrange todos os casos em que a obrigação comporte pluralidade de devedores ou quando existam garantes da obrigação a que a causa principal se reporte, sob condição de o réu ter algum interesse atendível em os chamar a intervir na causa, quer com vista à defesa conjunta, quer para acautelar o eventual direito de regresso ou de sub-rogação que lhe assista.”
Temos, pois, que com a reforma do CPC de 95, por um lado, o incidente de intervenção principal do lado passivo, passou a englobar as situações enquadráveis nos anteriores incidentes de chamamento à demanda e nomeação à ação, passando a ter muito maior amplitude. Por outro, o incidente de chamamento à autoria foi eliminado e substituído pelo incidente de intervenção acessória, mas este passou a ter um âmbito de aplicação mais restrito, pois está afastado quando o chamado possa ser condenado caso a ação proceda.

Perante o nova configuração dos incidentes de intervenção de terceiros, concretamente nas diferenças entre intervenção principal passiva e intervenção acessória, introduzida pelo DL n.º 329-A/95, quando o Réu invocar ter ação de regresso sobre o chamado apenas é admissível a intervenção acessória quando resultar do alegado que o chamado, nunca podia ser demandado pelo autor e consequentemente nunca podia ser condenado no pedido ou em parte dele.

Por outro lado, ao contrário do que era entendimento dominante, saber se estamos perante uma situação de listisconsórcio voluntário passivo, que justifique a intervenção principal, não se pode aferir atento apenas pelo âmbito da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor.
O artigo 329º n.º3 impõe ao requerente da intervenção o ónus de indicar a causa do chamamento e alegar o interesse, que através dele, se propõe acautelar, como forma precisamente de se clarificar liminarmente a relação invocada e a sua conexão com a relação controvertida alegada na petição. Assim sendo, para aferir da legitimidade do chamado para intervir na ação não pode deixar de atender-se ao alegado pelo Réu quando este suscita o incidente de intervenção, em particular, quando o chamado surge como um co-obrigado.
Também não se pode confundir a questão da admissibilidade do incidente com a questão de saber se o chamado é ou não co-obrigado, esta é já questão de mérito, que obviamente vai depender da posição por ele assumida, quanto à relação invocada pelo R, a justificar o seu chamamento.
O que é relevante é que do alegado pelo R, em conjugação com a causa de pedir invocada na petição, resulte que o chamado tem uma posição própria, mas paralela à do R e consequentemente também tem interesse direto em contradizer.
Ora, no caso, e alegando os RR que tinham transferido a sua responsabilidade por danos materiais causados a terceiros com o seu imóvel, designadamente pela “água” para a chamada Seguradora por contrato de seguro multi-riscos titulado pela apólice cuja cópia junta, em vigor à data do sinistro, está-se no âmbito de um seguro de responsabilidade civil que integra a classificação de contrato a favor de terceiro (cf. neste sentido José Vasques, Contrato de Seguro, pág. 120 e 121).
Neste sentido consta do acórdão da Relação de Guimarães de 06.01.2011, proferido no processo n.º 5907/09.7TBBRG-A-G1, no sítio do ITIJ: “Porém, atenta a natureza do contrato de seguro de responsabilidade civil, assumidamente concebido como um contrato a favor de terceiro (art. 444º, do Código Civil), a seguradora obriga-se, também, para com o lesado a satisfazer a indemnização devida, ficando aquele com o direito de demandar directamente a seguradora, ou o segurado, ou ambos, em litisconsórcio voluntário (considerando que o contrato de seguro de responsabilidade civil consubstancia um contrato a favor de terceiro podem ver-se, entre outros, os Acs. do STJ de 16.01.1970, BMJ, nº 193, pág. 359, e de 30.03.1989, BMJ, nº 385, pág. 563, e o Acs. da RL de 07.11.2006, proc. 7576/2206-7, e da RP de 06.07.2009, proc. 721/08.0TVPRT-A.P1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt; na doutrina cfr. Vaz Serra, RLJ, ano 99º, pág. 56, nota 1; Diogo Leite de Campos, Contrato a favor de terceiro, 1991, págs. 13 a 16, Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 6ª ed., pág. 372 e segs. (…).”
Mais acrescenta que “que, perante o lesado, segurado e seguradora são solidariamente responsáveis, nos termos do art. 497º, do Código Civil, pelo que o segurado não fica desonerado perante o terceiro-lesado por virtude da existência de um contrato de seguro. Na verdade, pelo contrato de seguro apenas se transferiu o pagamento do quantum indemnizatório para a seguradora, mas não a responsabilidade jurídica pelo evento (cfr. Ac. STA de 01.02.2000, Acórdãos Doutrinais, 466º-1231).”
Assim sendo, e retomando o caso em apreço, a chamada seguradora podia ter sido demanda pelos AA conjuntamente com os RR, sendo certo que estes transferiram para a chamada a obrigação de indemnizar terceiros, até determinado montante, pelos danos invocados na petição. Donde resulta como expressamente estabelece a 2ª parte do no 1ºdo art. 330º que o incidente próprio não é a intervenção acessória.

Em resumo e conclusão: O incidente de intervenção principal provocada é o adequado para a Ré assegurar a presença na lide da seguradora para a qual havia transferido a responsabilidade civil emergente dos danos causados a terceiro pela água que proviesse do seu prédio.

Decisão

Julga-se a apelação procedente e revoga-se o despacho recorrido e admite-se o incidente de intervenção principal da chamada Companhia de Seguros F….. como associada dos RR, procedendo-se à sua citação nos termos do art. 327º n.º 1 do CPC.
Custas do incidente na 1ª instância pelos RR, por não ter havido oposição. Desta apelação pelo vencido a final.

Porto, 15.11.2012
Leonel Gentil M. Serôdio
José Manuel carvalho Ferraz
António do Amaral Ferreira