Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ACÇÃO DE DIVÓRCIO
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
DEVER CONJUGAL DE COABITAÇÃO
PRESSUPOSTOS
ÓNUS DE PROVA.
Sumário
Acção Divórcio -Impugnação da decisão sobre a matéria de facto - Dever conjugal de coabitação - Pressupostos - Ónus de prova Ac. RC de 2004/07/07 ***I- As profundas alterações introduzidas ao CPC pela reforma processual de 1995/96 fizeram-se sentir, nomeadamente, a nível da apreciação da matéria de facto, ao pretender consagrar-se um efectivo 2º grau de jurisdição, daí resultando, em área, uma ampliação dos poderes de cognição dos tribunais da Relação. II- Porém, não podemos esquecer que continuam em vigor os princípios da oralidade, da imediação e bem assim do princípio da livre apreciação das provas (consignado no artº 655, nº 1, do CPC), pelo que, mesmo nos casos de gravação da prova, só perante situações de manifesta desconformidade ou violação grosseira entre a prova efectivamente produzida em audiência de julgamento e a decisão, proferida pela 1ª instância, que foi exarada sobre a decisão da matéria de facto é que se deve alterar esta última. III- O dever conjugal de coabitação não significa apenas ou tão só que os cônjuges habitem conjuntamente na mesma casa que foi escolhida para residência do casal, mas, sobretudo, que vivam em comunhão de leito, mesa e habitação. IV- A violação do dever conjugal de coabitação não se confunde, necessariamente, com a separação de facto, pelo que para fundamentar e ter relevância em termos de êxito do pedido de divórcio não tem que se converter em separação de facto nos termos em que se encontram definidos, a esse propósito, nos artºs 1782 e 1781, ambos do CC. V- Todavia, para configurar a violação de tal dever não basta que objectivamente se constate que um dos cônjuges abandonou o lar conjugal, sendo ainda necessário que resulte provado que tal abandono foi culposo, em termos de permitir formular um juízo de censura, por tal comportamento, sobre esse mesmo cônjuge. VI- É sobre o requerente do divórcio que incumbe, à semelhança do que acontece com os demais requisitos previstos no 1779, nº 1, do CC, o ónus de alegar e provar a culpa do cônjuge que abandonou o lar conjugal.
Texto Integral
Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1- A autora, A, instaurou contra o réu, B, ambos com os demais sinais dos autos, a presente acção especial de divórcio litigioso, pedindo que, com o fundamento na violação dos deveres conjugais de respeito, assistência e cooperação por parte do último, fosse decretado o divórcio entre ambos e, consequentemente, dissolvido o casamento que celebraram entre si.
2- Na sua contestação o réu negou os factos em que a autora consubstanciou o seu pedido de divórcio, e, por sua vez, contra-atacou, pedindo, em reconvenção, que fosse decretado o divórcio entre ambos, mas tendo por fundamento a violação, por parte da última, dos deveres conjugais de respeito, assistência, cooperação e coabitação.
3- A autora respondeu, concluindo pela improcedência da reconvenção.
4- No despacho saneador, depois de se ter afirmado a validade e a regularidade da instância - com prévia admissão do pedido reconvencional -, procedeu-se à elaboração da selecção da matéria de facto, sem que tivesse sido então objecto de qualquer censura.
5- Mais tarde, procedeu-se à realização do julgamento – com a gravação da audiência.
5-1 A resposta aos diversos pontos (vulgo quesitos) da base instrutória, teve lugar sem que tivesse então merecido qualquer reclamação das partes.
6- Seguiu-se a prolação da sentença, na qual, e a final, acabou por se julgar procedente a acção, e improcedente a reconvenção, decretando-se o divórcio entre a autora e o réu com a, consequente, dissolução do casamento celebrado entre ambos, declarando-se ainda o réu o principal culpado.
7- Não se tendo conformando com tal sentença, o réu dela interpôs recurso, o qual foi admitido como apelação.
7-1 Nas suas correspondentes alegações, apresentadas a fls. 128/130, o réu-apelante concluiu as mesmas nos seguintes termos:
“A) O que se provou e que contende com as violações dos deveres conjugais por parte do réu é apenas o que resulta das respostas aos quesitos 18º, 21º e 22º, em virtude de o restante alegado, em sede de petição inicial, nada mais se ter provado;
B) Foi convicção do juiz a quo que, apesar das testemunhas não terem presenciado a agressão, relataram, no entanto factos concordantes entre si, que fizeram presumir, com forte probabilidade que a recorrida tenha sido agredida pelo recorrente.
C) A Testemunha Maria das Dores T.S.Fontana não soube referir ao tribunal quais as lesões de que padecia a recorrida.
D) Todas as testemunhas, ou quase todas sabiam, que a recorrida tinha ido levar os filhos ao recorrente, porque a mesma lhes contara.
E) A testemunha Maria Rosa Carreira tinha pensado que a recorrida tinha tais hematomas derivados a um acidente.
F) Foi a Recorrida que lhes “induziu” a afirmarem que tinha sido o recorrido o responsável por tais agressões por a mesma lhes ter informado que tinha sido ele.
G) Não ficou provado que a Autora tivesse recebido tratamento médico.
H) O facto de a recorrida, nesse dia ter ido levar os filhos, e posteriormente ter comparecido com hematomas, não pode originar convicção para o tribunal que tais agressões foram originadas pelo ora recorrente.
I) Deveria ter sido a autora a culpada pela dissolução do casamento.
J) Faltou ao dever de assistência e de coabitação.
Termos em que deverá ser revogada a douta decisão do tribunal de primeira instância, e em consequência o divórcio não ser decretado com culpa exclusiva do recorrente, mas da recorrida.”
8- Não foram apresentadas contra-alegações.
9- Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
*** II- Fundamentação
1- Delimitação do objecto do recurso
Como é sabido, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se que se define o objecto e delimita o âmbito dos recursos, isto é, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitados pelas conclusões das alegações dos recorrentes, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. disposições conjugadas dos artºs 664, 684, nº 3, e 690, nºs 1 e 4, todos do CPC, bem ainda, a esse propósito, entre muitos outros, Acs. da RC de 5/11/2002; do STJ de 27/9/94, de 13/3/91, de 25/6/80, e da RP de 25/11/93, respectivamente, in “CJ, Ano XXVII, T5, pág 15; CJ, Acs. do STJ, Ano II, T3 – 77; Act. Jur. Ano III, nº 17, pag. 3; BMJ nº 359-522 e CJ, Ano XVIII, T5 –232).
Por outro lado, como resulta do prescrito no nº 2 do artº 660 do CPC, é dever do julgador resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Vem, também, sendo dominantemente entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a derimir (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec, e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.)
2- Ora calcorreando as conclusões do recurso verifica-se que as questões que importa aqui apreciar são, essencialmente, as seguintes:
a) Procedência da impugnação da decisão matéria de facto feita pelo apelante (no que concerne às respostas dadas aos pontos 18º, 21º e 22º da Base Instrutória - que doravante designaremos somente por BI)?
b) Face à matéria factual dada como assente, por provada, se deverá, a acção ser julgada totalmente improcedente, e a reconvenção procedente, decretando-se o divórcio entre a autora e o réu, com base na violação dos deveres conjugais de assistência e coabitação por parte daquela, considerando-se mesma a culpada pelo divórcio (tal como defende o apelante e ao contrário do que foi decidido pelo tribunal a quo)?
2-1 Apreciemos aquela primeira questão (impugnação da matéria de facto).
Muito embora tal não resulte expressamente claro, tal como exige o artº 690-A, nº 1 al. b), do CPC, todavia das aludidas conclusões em conjugação com o demais alegado nas alegações de recurso, é possível extrair a conclusão que o réu-apelante impugna a decisão da matéria de facto, por incorrecta valoração da prova, no que concerne à resposta dada, pelo tribunal a quo, aos pontos (quesitos) 18º, 21º e 22º, (defendendo que devem ser dados como não provados, ao contrário do que se fez).
Teçamos, a propósito, algumas considerações de cariz teórico-técnico.
Dispõe o artº 690-A do CPC que:
“1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar: a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida...”
Por sua vez, o artº 712, daquele mesmo diploma legal, prevê, além do mais, que:
“1. A decisão do tribunal da 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada nos termos do artº 690º-A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por qualquer outras provas;”
Como é sabido, a possibilidade de documentação da prova foi introduzida no nosso ordenamento jurídico através do DL nº 39/95 de 15/12, com a justificação de assegurar “a criação de um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais – e seguramente excepcionais – erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto”.
Calcorreando o preâmbulo desse mesmo diploma é possível ainda ler-se que “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede da matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
Dentro de tal contexto e do espirito do diploma atrás citado, e na sequência de um exercício de hermenêutica interpretativa, escreveu-se no acordão desta Relação (Ac. RC de 3/10/2000, in “CJ, Ano XXV, T4 – 28”) “...é preciso não esquecer que a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, não pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas inserto no artº 655 do CPC...E na formação dessa convicção entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova - seja audio, seja vídeo -, por mais fiel que ela seja das incidências concretas da audiência. Na formação da convicção do juíz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis...”
O que é necessário e imprescindível (como escreve Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág., 348”) é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado». No mesmo sentido vai, aliás, também o Tribunal da Relação do Porto, através do acordão de 19/09/2000 (in “CJ, Ano XXV, T4 – 186”), ao traçar os parâmetros balizadores dos poderes da Relação quanto à matéria de facto, e cuja síntese ficou exemplarmente no sumário que foi feito do mesmo e que aqui, com a devida vénia, transcrevemos:
“I- A reforma processual operada pelo DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei nº 180/96, de 25 de Setembro, dando nova redacção ao artº 712 do C. P. Civil, ampliou os poderes da Relação quanto à matéria de facto, mas não impõe a realização de novo e integral julgamento, nem admite recurso genérico contra a errada decisão da matéria de facto.
II- Porque se mantêm vigorantes os princípios de imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados”. (sublinhado nosso)
Assim, nessa esteira, e dentro de tais princípios, tem dominantemente a nossa jurisprudência entendido que só quando os elementos dos autos levem inequivocamente a uma resposta diversa da dada na 1ª instância é que deve o tribunal superior alterar as respostas dadas pela 1ª instância. Só perante tal situação é que haverá erro de julgamento. Situação essa que não ocorre quando estamos na presença de elementos de prova contraditórios, pois nesse caso deve prevalecer a resposta dada pelo tribunal a quo, porestamos então no domínio e âmbito da convicção e da liberdade de julgamento, que não compete a este tribunal sindicar (artº 655 do CPC), e pelas razões já supra expandidas (vidé, por todos, Michel Taruffo in “La Prueba De Los Hechos, Editorial Trotta, 2002, págs. 435 e ss”; Ac. RC de 17/02/2002 in “Rec. Apelação nº 3380/2002- 3ª Sec” e ainda, entre outros, os acordãos desta mesma Relação e secção referentes aos recursos de apelação com os nºs 4221/03, 548/04 e 219/04”, dos quais fomos também relator).
Por último, não resistimos, a tal propósito, citar aqui um brilhante artigo do srº. conselheiro dr. Pires da Rosa - na altura ainda juiz desembargador nesta Relação (publicado no Jornal “Comunicar Justiça”, Ano II, nº 1, Janeiro 2003, pág. 13”), onde defende que “como actividade humana que é, feita por homens e mulheres concretos e normais, susceptíveis de errar, a Justiça é ainda e sempre uma questão de fé”, sendo que “em algum momento é preciso acreditar em alguém”. E, mais à frente, ao referir que há um momento em que é preciso assumir um juízo de convicção, escreveu “esse juízo é (...) não a assunção pelo tribunal da 2ª instância de uma nova convicção probatória – a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, não pode subverter, o princípio da livre apreciação da prova inscrito no artº 655, nº 1, do CPCivil – mas tão só a procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem um suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos dos autos, naturalmente) pode exibir perante si”. Para terminar, acrescenta “mesmo, se bem pensarmos, não pode o tribunal da 2ª instância substituir uma razoabilidade, qual seja a afirmada por si próprio. O que ao tribunal de recurso está reservado é apenas substituir uma desrazoabilidade por uma razoabilidade”. Aliás, sempre na esteira do pensamento e do exercício de hermenêutica interpretativa sobre a temática que vimos abordando, veja-se ainda, entre outros, Acs. da RLx de 27/03/2001 e de 13/11/2001, in “CJ, Ano XXVI, T2 – 86 e T2 – 85”, e Ac. RC de 17/12/2002 in “Rec. Apelação nº 3168/2002.” Posto isto, dado que houve gravação da prova e atento o disposto artº 712, nº 1, do CPC, nada obstará a que, em princípio, se reaprecie a matéria de facto e, se for caso disso, se altere a decisão da 1ª instância.
Mas será que no caso em apreço, e tendo sempre presentes as considerações teóricas acabadas de expôr, se impõe tal alteração da matéria de facto (nos termos em que defende o apelante)? Vejamos.
Como acima se deixou expresso, pretende o recorrente que seja alterada a resposta que foi dada aos pontos (quesitos) 18º, 21º e 22º da BI, ou seja, que, em todos eles, tal resposta seja “ não provado”. Quesitos esses que tinham a seguinte redacção:
Nº 18º “No dia 09/01/2002, a Autora foi ter com o Réu à casa referida em 1º, para aí deixar os filhos nessa noite, pois não havia quem ficasse com eles e a Autora ia começar o seu turno de trabalho no Hospital?”
Tendo merecido a seguinte resposta: “provado apenas que, em dia não apurado de Janeiro de 2002, a autora foi ter com o réu à casa referida na resposta ao quesito 1º para lhe deixar os filhos ao seu cuidado”.
Nº 21º “Por isso – na sequência dos factos quesitados sob os nºs 19º e 21º, em que se perguntava, no primeiro, “o réu pediu-lhe então para voltar para casa alegando que tinha vergonha dos vizinhos pelo facto de estarem separados?” e, no segundo, “A Autora não acedeu?’” -, o réu desferiu-lhe vários murros na cabeça e nas costas?”
Tendo merecido a seguinte resposta: “Provado apenas que, na altura referida na resposta ao quesito 18º, o réu agrediu a autora na cabeça e nas costas”.
Nº 22º “Os factos descritos em 18º e 21º ocorreram na presença dos filhos do casal?”.
Tendo merecido a seguinte resposta: “Provado apenas que os factos referidos nas respostas aos quesitos 18º e 21º ocorreram na presença dos filhos do casal”.
Começaremos por dizer que nos casos em que é impugnada a matéria de facto constante das respostas dadas a diversos quesitos, e tal como vem sendo defendido dominantemente pelos tribunais superiores, não se impõe ao Tribunal da Relação que dilucide, ponto por ponto, ou seja, individualmente, cada uma das aludidas respostas, se a decisão final, sobre todas elas, for coincidente (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”).
Posto isto, será então que, no que caso em apreço e tendo sempre presentes as considerações teóricas acabadas de expôr, se impõe a alteração da matéria de facto, no que concerne a tais quesitos, e, nomeadamente, no sentido propugnado pelo apelante?
A resposta a tal questão passa, assim e desde logo, por analisar e saber se o srº. juíz do tribunal a quo apreciou, ou não, de forma correcta ou válida tal prova, e, especialmente, no que concerne aos pontos concretos acima referidos em que a decisão da matéria de facto foi impugnada.
Começaremos por dizer que não existem elementos probatórios (nomeadamente de índole documental) juntos autos que só por si impusessem, no que concerne a tais factos, um decisão diversa ou então que destruíssem a prova em que assentou a decisão (cfr. als. b) e c) do citado artº 712 do CPC).
Sendo assim, o que a este tribunal, de 2ª jurisdição, compete é, então, apurar se existe uma flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, ou melhor da razoabilidade da convicção probatória do primeiro grau de jurisdição face aos elementos probatórios carreados para os autos.
Como resulta do atrás já expresso, este tribunal (de 2ª jurisdição) não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova, e que, por isso, só estão ao alcance do tribunal “a quo”) mas sim à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si.
Vejamos então como o srº Juíz do tribunal a quo fundamentou a respostas a tais quesitos, cuja resposta foi posta em crise. Na fundamentação dessas respostas o srº juíz do tribunal a quo exarou o seguinte: “...Para a convicção do tribunal quanto às respostas aos quesitos 21º e 22º foram decisivos os depoimentos de Maria Rosa Neto Carreira, de Dina Maria Duarte Soares e de Ana Maria Guerra Santos Costa. Apesar das testemunhas não terem presenciado a agressão, relataram, no entanto, factos concordantes entre si, que fazem presumir, com forte probabilidade, que a autora foi agredida pelo réu. Ana Maria Guerra Santos Costa afirmou que, em Janeiro de 2002, a autora (sua irmã) foi ter consigo à sua casa juntamente com os filhos, contando-lhe que tinha ido a casa do marido para deixar os filhos e que fora agredida na cabeça e nas costas. Logo nessa altura viu nódoas negras na cabeça e nas costas da autora. As restantes testemunhas (Maria Rosa Neto Carreira e Dina Maria Duarte Soares) afirmaram que, num dia de manhã, a autora apareceu no hospital com o filho mais novo ao colo e queixou-se de que o marido a tinha agredido naquela noite. As testemunhas relataram que, nessa altura, viram que a autora apresentava hematomas na cabeça e nas costas”.
Começaremos por dizer que compulsando a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto não vislumbramos qualquer referência expressa feita à resposta ao quesito 18º. Porém, se compulsarmos o teor do quesito em causa, a resposta que lhe foi dada e bem assim a fundamentação atrás exarada que expressamente foi dada aos quesitos 21º e 22º, facilmente, a nosso ver, se constata que estamos perante um manifesto lapso de escrita, já que nos parece óbvio que a aludida fundamentação se refere também à resposta dada ao dito quesito 18º. Pelo que, para os devidos efeitos, se considerará que a fundamentação que atrás se deixou exarada se reporta também à resposta dada ao quesito 18º. Todavia, mesmo que, porventura, assim não se entendesse, sempre diríamos, a tal propósito, o seguinte:
Como é sabido, a falta de fundamentação da decisão da matéria de facto ou a correcção dos erros dessa fundamentação, incluindo a forma de indicação, em termos críticos, dos meios de prova convincentes, continua a depender do requerimento do interessado feito nesse sentido, sendo que lei não estabelece qualquer sanção para essa falta de fundamentação e a Relação não pode oficiosamente ordenar tal correcção (cfr. nº 5 do artº 712 do CPC e neste sentido vidé, por todos, Ac. do STJ de 10/1/2002, in “Rev. Nº 2705/01, 2ª sec., Sumários, 1/2002” e Ac. do STJ de 10/1/2002 in “Rev. Nº 3294/01, 7ª sec., Sumários, 1/2002”).
Ora compulsando os autos verificamos que o apelante não protestou contra qualquer falta ou deficiência de fundamentação ou requereu qualquer correcção de erro da mesma, pelo que estava, desde logo, impedido este tribunal de daí extrair consequências (jurídicas), sendo que o apelante-recorrente se limitou no seu recurso a alegar que o tribunal a quoapreciou incorrectamente a prova (no que concerne aos pontos 18º, 21º e 22º, da BI), defendendo que os respectivos quesitos deveriam ser dados como não provados.
Posto isto, diremos que se nos afigura que para além da convicção do julgador da 1ª instância se encontrar bem fundamentada, auscultandoa gravação da provaque foi produzida em audiência de julgamento, podemos constatar que nenhum desvio, em termos de razoabilidade, foi feito quanto à prova ali produzida, ou seja, a convicção alicerçada - traduzida nas respostas dadas aos quesitos e especialmente no que concerne àqueles que foram directamente postos em crise no presente recurso - pelo srº juíz do tribunal a quo encontra-se em sintonia com prova produzida em audiência, não se vislumbrando qualquer desvio gritante ou grosseiro à mesma, bem antes pelo contrário.
É certo que nenhuma das testemunhas ouvidas, e nomeadamente aquelas acima identificadas e referidas pelo srº juíz (e como o próprio reconhece) do tribunal a quo, presenciou o réu agredir a autora. Porém, o referido srº juíz chegou a tal conclusão através das chamadas presunções judiciais, também conhecidas por presunções “omnis” ou naturais. Presunções essas admitidas em direito (artº 351 do CC), e que no caso - perante os demais elementos materiais apurados, e que resultam dos meios probatórios acima identificados e que se encontram referidos na aludida da decisão fundamentadora, a qual, pelo que ouvimos na auscultação da gravação mesma, se encontra, no essencial, em sintonia com a prova produzida em audiência -, se nos afigura perfeitamente razoável efectuar ou extrair para chegar a tal conclusão, partindo dos demais elementos materiais e probatórios apurados e produzidos.
Ora, face a tal, e considerando, por um lado, que matéria factual objecto dos pontos da BI em causa não está sujeita a qualquer limitação de prova, e, por outro, tendo em conta as considerações atrás expostas sobre as limitações da sindicância que este tribunal de recurso tem sobre a decisão da matéria de facto do juíz da 1ª instância e bem assim o princípio da liberdade do tribunal (do julgador) na apreciação das provas (que aprecia segundo a sua livre convicção), consignado no citado artº 655 do CPC, teremos de concluir que não se vislumbram razões (de direito) suficientemente sérias e fortes para este tribunal alterar a matéria de facto, e especialmente no que concerne aos factos que resultaram das respostas dadas aos pontos 18º, 21º e 22º, razão essa por que o recurso, concernente à parte daquela 1ª questão, terá de naufragar, julgando-se, assim, nessa medida, improcedente.
3- Os Factos Factos considerados provados :
3.1 A autora e o réu contraíram, entre si, casamento católico, sem convenção antenupcial, no dia 31 de Outubro de 1993 (alínea A) das factos assentes da selecção da matéria de facto, e a cuja peça pertencerá a alínea seguinte).
3.2 A autora e o réu são os progenitores de Beatriz Santos Lopes, nascida em 10 de Setembro de 1997, e de Miguel Santos Lopes, nascido em 2 de Junho de 2000 (B).
3.3 Após contraírem, entre si, casamento, a autora e o réu foram viver para uma moradia sita na rua 11 de Dezembro, n.º 202, Serra do Porto d’Urso, Monte Real (Quesito 1º B.I., e a cuja peça pertencerão os números seguintes).
3.4 A autora exerce a actividade profissional de auxiliar de acção médica no Hospital de Santo André, em Leiria, e o réu é operário fabril na empresa vidreira “Ricardo Gallo – Vidro e Embalagem, S.A., Marinha Grande (2º).
3.5Em data não apurada, numa altura em que esteve doente, a autora recebeu a ajuda da sua irmã, que lhe trouxe alimentos já confeccionados (13º).
3.6 A autora é boa mãe, trabalhadora e asseada (15º).
3.7 A autora, com os filhos, saiu de casa em Dezembro de 2001, indo viver para Moinhos de Carvide (17º).
3.8 Em dia não apurado de Janeiro de 2002, a autora foi ter com o réu à casa referida na resposta ao quesito 1º para lhe deixar os filhos ao seu cuidado (18º).
3.9 Na altura referida na resposta ao quesito 18º, o réu agrediu a autora na cabeça e nas costas (21º).
3.10 Os factos referidos nas respostas aos quesitos 18º e 21º ocorreram na presença dos filhos do casal (22º).
3.11 A autora, há cerca de 7 anos, saiu da casa do casal, voltando posteriormente (25º).
3.12 Por várias vezes, a autora discutiu com o réu (28º).
3.13 Uma vez, a autora, exaltada, atirou com um secador ao chão, partindo-o (29º).
3.14 Por vezes, a autora chamava, ao réu, “monstro” (30º).
3.15 Após herdar uma casa em Moinhos de Carvide, a autora dizia, por vezes, que ia sair de casa (33º).
4- O Direito 4.1 Quanto à apreciação da 2ª questão acima enunciada.
Saber se face à matéria factual dada como assente, por provada, deverá a acção ser julgada totalmente improcedente, e a reconvenção procedente, decretando-se o divórcio entre a autora e o réu, com base na violação dos deveres conjugais de assistência e coabitação por parte daquela, considerando-se mesma a culpada pelo divórcio (tal como defende o apelante e ao contrário do que foi decidido pelo tribunal a quo)
Porém essa questão já foi devida e exaustivamente abordada na douta sentença recorrida, com a aplicação adequada das normas e institutos jurídicos aplicáveis ao caso, concordando este tribunal inteiramente (face aos factos que foram dados como assentes) com a solução final encontrada, e para a qual nos remetemos à luz do disposto no artº 713, nº 5 do CPC. Remessa essa que, todavia, é feita com a seguinte correcção:
No último parágrafo de fls. 6, o srº juíz do tribunal a quo, na sequência da apreciação do pedido reconvencional deduzido pelo réu, escreveu o seguinte: “por último, a autora, ao sair de casa em Dezembro de 2001, indo viver juntamente com os filhos para outra casa, violou o dever de coabitação. No entanto, esta violação só adquire relevo para fundamentar o pedido de divórcio, se se converter em separação de facto, tal como é definida no artº 1782º, pelo período de 3 anos ou de um ano, nos termos das alíneas a) e b) do artº 1781”.
Ora, salvo o devido respeito, não se nos afigura correcta a conclusão exarada no último período acabado de transcrever e a que chegou aquele srº juíz, e, essencialmente, pelo seguinte:
Como é sabido o pedido de divórcio pode assentar numa das seguintes causa de pedir ou fundamentos: na violação culposa dos deveres conjugais (basta um deles) por parte de um dos cônjuges artº 1779 do CC ou então com base na separação (de facto) dos cônjuges nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1781 e 1782 do CC.
É igualmente sabido que um do deveres conjugais a que estão reciprocamente vinculados os cônjuges se traduz no dever de coabitação (cfr. artº 1672 do CC).
Dever esse que, grosso modo, significa não apenas habitar conjuntamente (na residência familiar que ambos os cônjuges escolheram, por comum acordo, nos termos do disposto no artº 1673 do CC), na mesma casa, ou viver em economia comum, mas, sobretudo, viver em comunhão de leito, mesa e habitação (tori, mensae e habitationis). Para mais e melhor desenvolvimento sobre este dever conjugal vidé, entre outros, os profs. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (in “Curso de Direito de Família, vol. I, 3ª ed., Coimbra Editora 2003, págs. 392/394”); o prof. A. Varela (in “O Direito da Família , Livraria Petrony, 1982, págs. 277/282 s)” e Brandão Ferreira Pinto in (“Causas do Divórcio, Livraria Almedina Coimbra 1980, págs.71/76”).
Resulta, assim, a nosso ver, claro que a violação do dever conjugal de coabitação – uma vez verificados os demais pressupostos legais - constitui, de per si, um fundamento autónomo susceptível de consubstanciar o pedido de divórcio litigioso, sem ter que, necessária e previamente, se converter em separação de facto, nos moldes e pelos períodos de tempo que se encontram definidos nos citados artºs 1781 e 1782 do CC.
Ora, no caso presente, a razão da alegada violação, de tal dever por parte da autora, não levar ao decretamento do divórcio não é aquele fundamento que foi invocado pelo Mmº juiz do tribunal a quo mas sim outro.
Factualmente, e a propósito de tal dever, ficou apenas provado que “A autora, com os filhos, saiu de casa em Dezembro de 2001, indo viver para Moinhos de Carvide” (cfr. nº 3.7 e que resultou da resposta dado ao quesito 17º).
Tal facto é susceptível, na verdade, de objectivamente configurar a violação, por parte da autora, do sobredito dever conjugal de coabitação.
Porém, tal facto, só por si, não chega para chegar a tal conclusão.
É que, como resulta do disposto no artº 1779, nº 1, do CC, não basta a violação dos deveres conjugais (em termos objectivos) por um dos cônjuges, para que seja decretado o divórcio, sendo ainda necessário (para além dos demais requisitos ali estatuídos, e que, para o caso, não interessa estar aqui agora a dilucidar) que tal violação seja culposa, isto é, que seja susceptível de permitir a efectivação de um juízo de censura, sobre o respectivo comportamento do cônjuge em causa.
Portanto, e tal como resulta do citado artº 1779, nº 1, em conjugação com o artº 342, nº 1, do CC, é sobre o cônjuge que requer o divórcio, com o fundamento na violação, por parte do outro, de algum dos deveres conjugais, que incumbe o ónus de alegar e provar, como factos constitutivos do seu direito (ao divórcio), todos os elementos que se encontram descritos naquele primeiro normativo, e nomeadamente que a sua violação é culposa. Ou seja, incumbe ao cônjuge que requer tal divórcio alegar e provar, além do mais, a culpa do outro cônjuge infractor.
Entendimento esse que hoje é praticamente pacífico na nossa jurisprudência, e sobretudo após a publicação do então denominado assento nº 5/94 que foi tirado pelo STJ, precisamente sobre o dever de coabitação, no acordão de 26/1/94 (publicado no DR Iª S de 24/3/94) ao fixar a seguinte jurisprudência “No âmbito e para efeitos do nº 1 do artº 1779 do CC, o autor tem o ónus da prova de culpa do cônjuge infractor do dever de coabitação”.
Ora face ao exposto, e compulsando somente o referido facto isolado, verifica-se que o réu (que deduziu a propósito pedido reconvencional) não logrou provar a culpa da autora na violação de tal dever, tal como lhe competia.
Na verdade, ficamos sem saber das verdadeiras razões ou motivos que levaram a autora, sua mulher, a abandonar ou sair então do lar conjugal (e nomeadamente se tal iniciativa partiu da vontade da última, ou se, porventura, tal atitude foi motivada pelo comportamento do réu). Pelo que não é, assim, possível fazer qualquer juízo de censura (em termos de imputação subjectiva) sobre tal comportamento da autora, razão essa pela qual não pode proceder o pedido de divórcio formulado pelo réu, em reconvenção, com fundamento na violação, por parte da autora, do dever conjugal de coabitação.
Aliás, mutatis mutandis, poder-se-ia dizer a mesma coisa quanto à alegada violação, por parte da autora, do dever de assistência.
Porém, conclusão diferente, tal como se chegou na douta sentença, já terá de ser extraída em relação à agressão física perpetrada pelo réu, na presença dos filhos menores do casal, sobre a autora. Na verdade, em relação à mesma é já possível fazer um juízo de censura sobre tal comportamento, já que o mesmo pôs em causa, desde logo, o direito à integridade física que é devida à autora, e cuja inviolabilidade é-lhe, desde logo, garantida pela nossa Lei Suprema, ou seja, pela nossa Constituição (artº 25, nº 1), e que depois encontra protecção noutras leis ordinárias (cfr., nomeadamente, artº 70 do CC, e 143, nº 1, do CP), e cuja limitação ou violação apenas é consentida nos casos excepcionais previstos nos artº 31, 32, 33, 34 e 35 do C. Penal (e dos quais ressalta a actuação em legítima defesa, cuja prova, no caso em apreço, não foi feita). Comportamento esse que, assim, viola o dever de respeito devido pelo réu à autora, e que nem o facto de, na altura, se encontrarem, há alguns dias, separados justifica ou ajuda a compreender (e muito menos à luz do direito), sendo que possui gravidade suficiente para se poder concluir, tal como se fez na sentença recorrida, que leva ao comprometimento de qualquer possibilidade de vida em comum (e numa altura em que o divórcio aparece, cada vez mais, como um remédio para uma relação conjugal que não está bem).
Posta esta correcção acima assinalada, e como supra também se deixou exarado, remete-se, quanto ao demais, e à luz do já citado nº 5 do artº 713 do CPC, para a douta sentença da instância, julgando-se, consequentemente, improcedente o recurso interposto pelo réu.
*** III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso (de apelação) interposto pelo réu, confirmando-se a sentença da 1ª instância (embora com a correcção supra assinalada, quanto a um dos seus fundamentos invocados).
Custas pelo réu-apelante (muito embora se tenha em consideração que o mesmo goza, até ao momento, do benefício de apoio judiciário, em tal modalidade – cfr. fls. 77).