CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
INQUÉRITO
Sumário

I - Conquanto a Lei 48/2007 mantenha a obrigatoriedade da constituição como arguido, no âmbito de um inquérito, restringe aquela obrigatoriedade aos casos em que haja “fundada suspeita” de uma pessoa ter praticado um crime.
II – A conclusão do Acórdão de fixação de jurisprudência 1/2006 deve ser actualizada, face à nova redacção do preceito legal (art.º 272º, n.º 1 do CPP), no sentido em que se reporta a obrigatoriedade de constituição e interrogatório de arguido apenas aos casos de fundada suspeita da prática de um crime.

Texto Integral

Proc. Nº 1022/09.1tavnf-A.P1

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

No T. J. de Vila Nova de Famalicão o Mertº Juiz exarou o seguinte despacho, datado de 14/03/2012:-

(…)

No requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente B… vem suscitada nulidade do Inquérito, por referência à falta de constituição como arguidos e respectivo interrogatório dos denunciados, remetendo para o art. 120º, nº 2, al. d), do Código de Processo Penal.
Cfr. fls. 82 a 88.

O Ministério Público pronunciou-se a fls. 172 pugnando pela improcedência do invocado, por não estarem reunidos os pressupostos para a constituição como arguidos.
Os arguidos não assumiram posição processual.
Cumpre decidir.
Compulsados que são os autos, verifico que na queixa de fls. 01 a 12 são indicados como denunciados três pessoas, a saber:- C…, Ldª, D… e E….
O Ministério Público determinou o registo e autuação da queixa como Inquérito e procedeu ao mesmo, determinando a realização de diligências, desde a junção de elementos documentais bancários e certificado de registo criminal dos denunciados.
Não determinou a constituição formal como arguidos dos denunciados e a realização do interrogatório dos mesmos.
Estabelece o Acórdão nº 1/2006 de 23/11/2005, do STJ, publicado no DR, I série A, de 2/01/2006 que “A falta de interrogatório como arguido, no Inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120º, nº 2, al. d), do Código de Processo Penal”.
No caso dos autos, conforme flui da própria queixa, é indicado e conhecido o paradeiro/domicílio dos dois primeiros denunciados, sendo que não foi determinada pelo Ministério Público a constituição formal, como arguidos e a realização de interrogatório dos mesmos, sendo que em complemento do sumário do Acórdão supra citado, há que ponderar que nos termos do art. 272º, nº 1, do Código de Processo Penal “Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime é obrigatório interrogá-la como arguido, salvo se não for possível notificá-la”.
Conforme referido, durante o Inquérito em que houve diligências efectuadas por determinação do Ministério Público, nada se determinou e nada se fez em relação à constituição formal como arguidos e interrogatório dos mesmos, nem sequer se tendo tentado tal acto.
Verifica-se, pois, a referida nulidade, a qual aqui expressamente se declara, para todos os efeitos legais.
Notifique e oportunamente, tendo em vista a realização de interrogatório dos arguidos e retirada das demais consequências processuais, remetam-se os autos aos serviços do Ministério Público, considerando-se, por conseguinte, prejudicado o mérito do requerimento de abertura de Instrução quanto ao pedido de pronúncia, sempre sem prejuízo do que o ulterior processado vier a revelar.
(…)

Inconformado com o decidido, o Digno Magistrado do MP veio interpor recurso, o qual motivou, aduzindo as seguintes CONCLUSÕES:-

1.º - O tribunal entendeu, no caso, verificada a nulidade de insuficiência de inquérito por não ter sido praticado acto legalmente obrigatório, nomeadamente, por não se ter procedido a interrogatório de arguido, nos termos do art. 272.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

2.º - Não podemos concordar com o entendimento segundo o qual se impõe como obrigatória a constituição de arguido e subsequente interrogatório pelo simples facto de correr inquérito contra pessoa determinada.

3.º - Os presentes autos tiveram início com a notícia de factos, uns, abstractamente integradores da prática de crime burla relativa a trabalho ou emprego, p. e p. pelo art. 222.º, n.º 1 do Código Penal e, outros, teoricamente subsumíveis ao crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art. 11.º, n.º 1 al. a) do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro.

4.º - Foi proferido despacho de arquivamento, nos termos do art. 277.º, n.º 1do C. P. Penal, porquanto se entendeu que, quanto ao primeiro núcleo de factos (abstractamente integradores da prática de crime burla relativa a trabalho ou emprego) se estava perante um incumprimento contratual emergente da celebração de contratos de trabalho e, quanto ao segundo núcleo, falecia um pressuposto objectivo típico do crime (o cheque não fora apresentado a pagamento no prazo de oito dias, conforme previsto no art. 29.º da Lei Uniforme relativa ao cheque).

5.º - Não se procedeu à constituição dos denunciados como arguidos, uma vez que se entendeu não assomar nos autos a fundada suspeita exigida para o efeito pelos arts. 58.º, n.º 1 al. a) e 272.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

6.º - Na verdade, a reforma de 2007, ao introduzir alterações nestes preceitos legais, visou expressamente evitar que correndo inquérito contra pessoa determinada, fosse obrigatório interrogá-la como arguido e sujeita-la a prestar Termo de Identidade e Residência, sem previamente se averiguar da verosimilhança, atendibilidade e/ou fundamento da denúncia.

7.º - Após as alterações introduzidas na redacção dos arts. 58.º, n.º 1 al. a) e 272.º, n.º 1 do Código de Processo pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no decurso do inquérito não tem que ser obrigatoriamente interrogada como arguido pessoa relativamente a quem não exista a fundada suspeita da prática de crime.

8.º - A jurisprudência constante do Acórdão n.º 1/2006 do Supremo Tribunal de Justiça, mantém-se válida, tem de ser actualizada e interpretada em conjugação com as alterações da Reforma de 2007, ou seja, no sentido de que a falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre e em relação à qual haja fundada suspeita da prática de crime, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal.

9.º - A fundada suspeita deve, pois, ser entendida, como um indício (não forte, nem suficiente), mas uma razão para crer que o denunciado cometeu ou vai cometer ou participou na comissão de um crime.

10.º - Nos presentes autos, não resultando qualquer suspeita atendível da prática de crime, não se constituíram os denunciados arguidos.

11.º - Interpretação como a perfilhada pelo MM.º Juiz de Instrução, para além de estar carecida de fundamento legal e manifestamente desactualizada, coloca em crise o princípio de economia e celeridade processuais.

12.º - Não se verifica a nulidade de insuficiência de inquérito por não ter sido preterido qualquer acto, no caso, legalmente obrigatório.

13.º - Ao decidir como decidiu, violou o MM.º Juiz de Instrução o disposto nos arts. 58.º, n.º 1, al. a), 120.º, n.º 2., al. d) e 272.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal.

Nestes termos e nos demais de direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, substituir-se o despacho recorrido por outro que indeferida a suscitada nulidade e conheça o mérito do requerimento de abertura de instrução, assim se fazendo justiça.

XXX

Não se mostra certificada a dedução de qualquer resposta e nesta Relação, a Ilustre Procuradora-Geral Adjunta veio emitir douto Parecer por via do qual e em suma defende a procedência do recurso.

Cumprido que se mostra o disposto no art. 417º, do CPP verifica-se que não foi deduzida qualquer resposta.

XXX

COLHIDOS OS VSTOS LEGAIS CUMPRE DECIDIR:-

Resenha dos autos:-

Os presentes autos tiveram início com a queixa criminal certificada a fls. 27 a 38, datada de 15/07/2009, apresentada por F…, B… e G… contra C…, Lda., D… e E….
A sobredita queixa, porque veiculava factos abstractamente integradores da prática de crime de burla relativa a trabalho ou emprego, p. e p. pelo art. 222.º, n.º 1 do Código Penal e, eventualmente, de crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art. 11.º, n.º 1 al. a) do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, deu origem à abertura de inquérito, nos termos do art. 262.º, do Código de Processo Penal.
Realizadas as diligências que no caso se impunham, o Ministério Público concluiu, por um lado, estar perante um incumprimento contratual (emergente da celebração de contratos de trabalho), afastando, assim, a possibilidade de subsunção dos factos ao enunciado crime de burla relativa a trabalho ou emprego, e, por outro, não se verificarem os elementos objectivos do tipo de crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art. 11.º, n.º 1 al. a) do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro (em concreto, o cheque não fora apresentado a pagamento no prazo de oito dias, conforme previsto no art. 29.º da Lei Uniforme relativa ao cheque).
No decurso do inquérito, que foi arquivado por despacho datado de 21/12/2010, nos termos do n.º 1 do art. 277.º do Código de Processo Penal, os denunciados não chegaram a ser constituídos arguidos.
Na sequência de tal arquivamento, o assistente B… requerer a abertura de instrução, nos termos do art. 287.º, n.º 1, al. b), do CPP, suscitando, entre o mais, a questão da nulidade do inquérito, por referência à falta de constituição de arguidos e respectivo interrogatório, nos termos do art. 120.º, n.º 2, al. d), do Código de Processo Penal.
Por despacho (acima transcrito), entendeu o tribunal estar verificada a invocada nulidade, uma vez que durante o inquérito em que houve diligências efectuadas por determinação do Ministério Público, nada se determinou e nada se fez em relação à constituição formal como arguidos e interrogatório dos mesmos, nem sequer se tentando tal acto.
O Mmo. Juiz de Instrução sustentou a sua decisão no art. 272.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e tirou, também, para tanto, subsídio, da jurisprudência fixada pelo acórdão n.º 1/2006, de 23/11 de 2005, publicado no DR., I série A, de 02/01/2006: A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal.

X

É desta decisão do Mertº Juiz “a quo” que vem interposto o recurso do MP, sendo certo que face às conclusões da motivação está em causa aquilatar da bondade (ou não) de tal despacho no sentido de saber se se prefigura a declarada nulidade.

Vejamos:-

A Lei nº59/98, de 25/08 estabeleceu, como obrigatório, o interrogatório como arguido, no caso de o Inquérito correr contra pessoa determinada, cessando tal obrigatoriedade em caso de não ser possível a notificação.
Tal Lei teve como escopo dois objectivos: por um lado, criar um momento processual em que o arguido pudesse ser confrontado com o resultado da investigação, antes do despacho final do Inquérito, (ou nos dizeres de Paulo P. de Albuquerque – Com. do CPP, ed. de 2007, pag. 690 e que seguimos de perto), uma espécie de “audiência pré-final” que o direito alemão já conheceu (Vorschlussgehor); e, por outro lado, assegurar a possibilidade de o arguido ser julgado na sua ausência, depois de ter sido constituído como tal e ter prestado termo de identidade e residência.
Tal novidade teve, contudo, um efeito contraproducente: por vezes, o MP tinha que interrogar, como arguido, uma pessoa relativamente a quem não havia quaisquer indícios da prática do crime e em relação a quem o MP vinha a arquivar o processo.
Ora, com o advento da Lei nº 48/2007, de 29/08, em termos da sua ratio” e a nosso ver é evidente que o Legislador pretendeu expurgar o “efeito perverso” da constituição como arguido, nos termos anteriormente prescritos.
Assim, a Lei nº 48/2007, conquanto mantenha a obrigatoriedade da constituição como arguido, faz uma importante restrição; isto é, restringe aquela obrigatoriedade ao caso em que haja “fundada suspeita” de uma pessoa ter praticado um crime.
Para tanto basta comparar a redacção do art. 272º nº 1, do CP, antes (Lei nº 59/98) e depois (Lei nº 48/07).
E a existência de indícios e o seu “julgamento” ao nível do Inquérito é da soberania do MP (cfr. art. 127º, do CPP).

A “ratio” da Lei é a mesma que orientou a modificação do art. 58º nº 1, al. a), isto é, evitar a constituição e o interrogatório como arguido nos casos de queixa manifestamente infundada, em que o MP desde logo, vislumbra a possibilidade de arquivar e arquiva o Inquérito.

Para além disto estamos perante caso de nulidade sanável dependente de arguição – cfr. art. 120º nº 2, al. d), do CPP - também nos parecendo que a conclusão do Ac. de fixação de Jurisprudência do STJ, nº 1/2006 deve ser actualizada, face à nova redacção do preceito legal (art. 272º nº 1, do CPP), no sentido em que se reporta a obrigatoriedade de constituição e interrogatório de arguido em caso de fundada suspeita de prática de crime e isto sem pretender aqui discutir a fundamentação de tal douto Acórdão, pois que tal não é objecto do recurso.

Daqui concluímos que a razão, neste caso, está do lado do Digno Recorrente.

XXX
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso, pelo que revogam o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por decisão que indefira a suscitada nulidade e conheça do mérito do requerimento de abertura de Instrução.

Sem tributação.

PORTO, 28/11/2012
José João Teixeira Coelho Vieira
José Carlos Borges Martins