EMBARGOS DE EXECUTADO
CHEQUE
ENDOSSO IMPRÓPRIO
Sumário

Mesmo no caso do endosso denominado impróprio o cheque continua a valer como título cambiário e o portador pode intentar judicialmente uma acção (ou execução) para obter o seu pagamento, uma vez que pode exercer todos os direitos resultantes do cheque, embora estes não lhe sejam transmitidos (artº 23º da Lei Uniforme Sobre Cheques).

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A... deduziu, em 17/06/2002, embargos de executado na Execução Ordinária nº 360/02, a correr termos pelo 4º Juízo Cível de Viseu, em que é exequente o B..., e executado o ora embargante, pedindo a procedência dos embargos nos termos dos artº 813º, als. a) e g), ex vi 815º do Código de Processo Civil, invocando a prescrição da obrigação cambiária, a inexequibilidade do título executivo (cheque), bem como a impropriedade do endosso.

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O embargado contestou, pugnando pela improcedência dos embargos.
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A acção foi decidida no saneador, com a improcedência dos embargos, em virtude de terem sido julgadas improcedentes as excepções invocadas pelo embargante.
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Inconformado, interpôs o embargante recurso de apelação, rematando a sua alegação com as seguintes (extensas) conclusões:
A) Na sentença recorrida, o Juiz a quo entendeu não se encontrar verificada a invocada excepção da prescrição do direito de acção cambiária por entender que, dentro do prazo legal de seis meses, o recorrido BCP apresentou participação criminal contra o embargante, assim interrompendo o decurso do prazo prescricional previsto no artº 52º da LUCH.
B) Proferido despacho de não pronúncia nos referidos autos em 19/10/2001 foi o mesmo cheque dado à execução em 13/05/2002.

C) Entendeu o MMº Juiz a quo aplicar o preceituado no artº 3º, nº1 e 2 do Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Nov., que estabelece que “nos processos por crime de emissão de cheque sem provisão cujo procedimento criminal se extinga por virtude do disposto neste diploma, a acção civil por falta de pagamento pode ser instaurada no prazo de um ano a contar da notificação do arquivamento do processo ou da declaração judicial de extinção do procedimento criminal.
D) O prazo legal de um ano para instaurar a acção civil estabelecido pelo artº 3º nº 1 e 2 do D.L. nº 316/97, apenas se considera aplicável aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
E) De acordo com o disposto no artº 5º as alterações introduzidas pelo referido diploma entraram em vigor em 01/01/1998.
F) O cheque apresentado à execução tem aposta a data de 12/10/99, tendo o embargado BCP apresentado a participação criminal em 14/03/2000.
G) Demonstrado que à data da entrada em vigor das alterações introduzidas ao D.L nº 454/91, de 28/12, o procedimento criminal ainda não se encontrava pendente, terá de concluir-se, no caso sub judice, pela inaplicabilidade das disposições transitórias, maxime do preceituado no artº 3º, nº 1 e 2 do D.L. nº 316/97.
H) A acção executiva foi apenas instaurada em 13/05/2002, pelo que, há muito havia já decorrido o prazo legal de seis meses estabelecido no artº 52º da Lei Uniforme para a prescrição do direito de acção cambiária.
I) O entendimento de que a participação criminal interrompe o decurso do prazo de prescrição do direito de acção cambiária, apenas faria sentido se o procedimento criminal pela emissão de cheque sem provisão revestisse natureza pública.
J) Atento o preceituado no artº 306º, nº 1 e artº 323º, nº 1 e 4 do Cód. Civil, conjugado com o Princípio da Alternatividade, aplicável aos crimes de natureza semi-pública, ao embargante BCP não estava vedada a possibilidade de deduzir o pedido de indemnização cível em separado, intentando a acção cível (declarativa ou executiva) perante o tribunal civil.
L) Nestes termos, considerando a data do termo do prazo de apresentação (20/10/1999) e a data da instauração da acção executiva (13/05/2002), não ocorrendo qualquer causa interruptiva ou suspensiva da prescrição, há muito que se encontrava esgotado o prazo de seis meses, sendo manifesta a verificação da excepção da prescrição do direito de acção cambiária.

M) Mesmo sufragando o entendimento de que a participação criminal tinha a virtualidade de interromper o decurso do prazo prescricional, o direito de acção cambiária não deixaria, ainda assim, de se encontrar prescrito.
N) Contrariamente ao aduzido na sentença, o embargado BCP foi notificado da decisão instrutória de não pronúncia através de oficio remetido pelo T.I.C. do Porto datado de 22/10/2001 (cfr. nota de notificação de fls., junta na contestação como doc. 2).
O) Pelo menos a partir da notificação do despacho de não pronúncia o embargado deixou de estar legalmente impossibilitado de exercer o direito de acção cambiária, iniciando-se o decurso do prazo de prescrição estabelecido no artº 52º da LUCH – artº 306º, nº 1 e 323º, nº 1 e 4 do C. Civil.
P) A acção executiva foi instaurada no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu em 13/05/2002, ou seja, posteriormente ao decurso do prazo legal de seis meses previsto no artº 52º da Lei Uniforme.
Q) Prescrito o direito de acção cambiária, o documento apresentado à execução não preenche os requisitos exigidos pelo artº 46º al. c) do C.P.Civil, razão pela qual o mesmo carece de força executiva, inexiquibilidade invocada nos termos do disposto na al. a) do artº 813º do C.P.Civil.
R) O embargado (por lapso diz-se embargante) BCP não é legítimo portador do cheque, nem se poderá considerar que lhe foram transmitidos quaisquer direitos por via de endosso.
S) Atento o princípio da literalidade e abstracção imanentes à relação cartular, o que se constata da análise do “cheque” é a inscrição “D – C” no verso, com o número de conta bancária, seguido da assinatura da beneficiária.
T) Pela menção “depósito em conta” apenas se conclui que a transmissão ao embargado BCP apenas se operou para cobrança do cheque, nos termos do disposto nos artºs 16º e 23º da LUCH, configurando um endosso por procuração ou para cobrança.
U) Tratando-se de um endosso impróprio, este não transmite ao endossado os direitos inerentes ao cheque, não havendo transmissão do crédito cambiário, já que este apenas tem por finalidade habilitar o endossado a exercer, na qualidade de mandatário, os direitos emergentes do cheque – artº 23º da LUCH.
V) O embargado não poderá ser considerado legítimo portador e titular do direito de crédito incorporado no cheque nos termos alegados na p.i., já que, tratando-se de um



endosso impróprio, apenas detém um mandato para cobrança e o titular continua a ser o endossante.
X) Prescrito o direito de acção cambiária, não poderão ser transmitidos por via de endosso os direitos inerentes ao “cheque prescrito” visto que o mesmo já não vale enquanto tal.
A sentença recorrida violou, além do mais, o disposto nos artºs 16º, 19º, 23º e 52º da LUCH; 3º, nº 1 e 2 do D.L. nº 316/97, 46º, al. c) e 813º, al. a) do C.P.Civil e 306º e 323º do C. Civil.
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O embargado absteve-se de contra-alegar.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Com interesse para a decisão do presente recurso, e tendo em conta os documentos juntos aos autos, importa destacar o seguinte:
1º - No processo principal foi dado à execução um cheque sacado sobre o Banco Santander (agência de Viseu), com o nº 8065282219, no montante de 15.450.000$00, com a data de 12/10/1999, por A..., à ordem de MAN PORTUGAL, Ldª.
2º - Apresentado a pagamento no dia 15/10/1999, foi o mesmo devolvido, com a menção de “falta de provisão”, em 18/10/1999.
3º - Apresentado, de novo a pagamento em 20/10/1999, foi o mesmo devolvido, com a menção de “motivo devolução”, em 21/10/1999.
4º - No verso do cheque encontra-se a assinatura de um gerente de “MAN Veíc. Ind. (Portugal), Soc. Unip., Ldª”, a beneficiária.
5º - O ora embargado, B..., apresentou, em 14/04/2000, queixa-crime contra o ora embargante pela emissão do cheque referido em 1º, que deu origem ao inquérito nº 609/00.2 TAVNG, do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, no qual foi deduzida acusação e requerida a abertura de instrução, tendo sido proferida decisão em 19/10/2001, que absolveu o arguido da instância.


6º - O queixoso, BCP, foi notificado do despacho de arquivamento por carta expedida pelo Tribunal em 16/11/2001, e em 13/05/2002 deu entrada no Tribunal Judicial de Viseu o requerimento executivo.
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Como é sabido, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação recorrente, não podendo o Tribunal da Relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Começa o recorrente por alegar que aquando da instauração da acção executiva há muito havia decorrido o prazo legal de seis meses estabelecido no artº 52º da LUC para a prescrição do direito de acção cambiária, já que, ao contrário do que se entendeu na sentença, à data da entrada em vigor das alterações introduzidas ao DL nº 454/91 pelo DL nº 316/97 ainda não se encontrava pendente o procedimento criminal.
No saneador/sentença recorrido entendeu-se que aquando da propositura da acção executiva ainda não se tinha verificado a prescrição da acção cambiária, com base nas seguintes considerações:
O cheque, que tem a data de 12/10/99, foi apresentado em 15/10/99 e devolvido por falta de provisão em 18/10/99; o embargado apresentou, em 14/04/2000, queixa-crime, tendo sido deduzida acusação, requerida a abertura da instrução e proferida decisão que absolveu o arguido; o embargado foi notificado desse despacho por carta de 16/11/01, e em 13/05/2002 deu entrada o requerimento executivo; dado que ao caso se aplica o disposto no artº 3º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 316/97, e não tendo, aquando da propositura da acção executiva, decorrido ainda o prazo de um ano prevista nessa norma, não se verifica qualquer prescrição.
Não podemos concordar com esta decisão.
O referido artº 3º dispõe, na parte que aqui interessa:
1 - Nos processos por crime de emissão de cheque sem provisão cujo procedimento criminal se extinga por virtude do disposto neste diploma, a acção civil por falta de pagamento pode ser instaurada no prazo de um ano a contar da data da notificação do arquivamento do processo ou da declaração judicial de extinção do procedimento criminal.


2 - Para o efeito do disposto no número anterior, o tempo decorrido entre a data de apresentação da queixa e a data de notificação aí referida não prejudica o direito à instauração da acção civil.
Este normativo aplica-se apenas aos processos pendentes, destinando-se a facilitar o exercício da acção civil por falta de pagamento, como fluí expressamente do preâmbulo do diploma, onde se refere que “as alterações agora introduzidas ao Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, vão ter importantes incidências nos processos pendentes, que serão decididos de acordo com as regras gerais de natureza substantiva e processual. Considerou-se, porém, necessário acautelar as consequências civis da extinção do procedimento criminal e, por isso, se consagram disposições transitórias em ordem a facilitar o exercício da acção civil por falta de pagamento”.
Ora, o Decreto-Lei nº 316/97 entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1998 (artº 5º), enquanto a queixa-crime relativa ao cheque dos autos foi apresentada em 14/04/2000, pelo que o processo de inquérito dela resultante não se encontrava pendente naquela primeira data.
O referido artº 3º, ao contrário do que se entendeu na decisão recorrida, não era, portanto, aplicável ao caso, não sendo de considerar o prazo de um ano nele previsto para a instauração da acção civil.
Há, assim, que ter em atenção o prazo de seis meses previsto no artº 52º da LUC.

Mas, será que, por força deste normativo, é de concluir que, aquando da instauração da acção executiva, já se encontrava prescrita a acção cambiária ?
Entendemos que não, pelas considerações que vão ser expostas e que se louvam, essencialmente, no Acórdão do S.T.J. de 14/01/2003 (Proc. 02A4017, in www.dgsi.pt), que, com a devida vénia, vamos seguir de perto e reproduzir, em parte.
O recorrido podia ter proposto a acção cível logo que o cheque foi devolvido por falta de provisão, formulando pedido de indemnização cível em separado, perante o tribunal civil, visto o crime não ser público (cfr. artº 11º-A, nº 1, aditado ao DL nº 454/91, de 28 de Dezembro, pelo DL nº 316/97, de 19 de Novembro), e, portanto, não ser aplicável o princípio da adesão (artºs 71º e 72º, nº 1, al. c), do Código de Processo Penal).


De acordo com o disposto no nº 2 desta última norma, no caso de o procedimento criminal depender de queixa, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa vale como renúncia a este direito.
No presente caso, como o recorrido apresentou a participação criminal, tem que se concluir que não quis renunciar ao respectivo direito de queixa e que, portanto, não renunciou ao direito de enxertar no processo-crime, na devida oportunidade, pertinente pedido cível.
Estando em jogo um crédito de avultada importância 15.450.000$00, o recorrido não prescindiria de o reclamar, o que o recorrente não devia ignorar.
A participação crime consubstanciou, assim, um acto que exprimiu, directa, ou, pelo menos, indirectamente, a intenção de exercer o direito ao ressarcimento, pelo que se interrompeu a prescrição de seis meses prevista no referido artº 52º da LUC, por força do disposto no nº 1 do artº 323º do Código Civil.
Ora, como o cheque está datado de 12/10/1999 e foi devolvido por falta de provisão em 18/10/1999, quando a queixa-crime foi apresentada, em 14/03/2000, ainda não tinha decorrido o prazo de prescrição de seis meses do aludido artº 52º.
E, notificado do arquivamento do processo-crime por carta de 16/11/2001, instaurou o recorrido a execução em 13/05/2002, dentro, portanto, do prazo de seis meses após aquela notificação.
É, assim, de concluir que, ao contrário do que pretende o recorrente, a acção cambiária não prescreveu.
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Valendo, portanto, o cheque como título executivo (artº 46º, nº 1, al. c), do C.P.C.), fica prejudicado o conhecimento da questão da inexequibilidade do título executivo, também apresentada pelo recorrente nas suas conclusões.
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Finalmente, alega o recorrente que pela inscrição “D-C” (depósito em conta) no verso do cheque se conclui que a transmissão ao embargado BCP apenas se operou para cobrança do cheque, nos termos do disposto nos artºs 16º e 23º da LUC, configurando um endosso impróprio, o qual não transmite ao endossado os direitos inerentes ao cheque, não havendo transmissão do crédito cambiário, não podendo, assim, o embargado ser considerado legítimo portador e titular do direito de crédito

incorporado no cheque.
Também falece a razão ao recorrente no que a esta questão diz respeito.
O artº 17º da LUC dispõe que o endosso transmite todos os direitos resultantes do cheque.
Segundo Abel Pereira Delgado (Lei Uniforme Sobre Cheques, pág. 92), o endosso transmite todos os direitos cambiários incorporados no cheque e só esses, e tem uma função de transferência (artº 17º), uma função de garantia (artº 18º), uma função de legitimidade (artº 19º) e uma função de exclusão de excepções (artº 22º).
É certo que, de acordo com o disposto no artº 23º, quando o endosso contém a menção “valor a cobrar”, “para cobrança”, “por procuração”, ou qualquer outra menção que implique um simples mandato, o portador pode exercer todos os direitos resultantes do cheque, mas não lhe transmite tais direitos.
No entanto, como se vê deste normativo e como bem se refere na decisão recorrida, mesmo no caso do endosso denominado impróprio o cheque continua a valer como título cambiário e o portador pode intentar judicialmente uma acção (ou execução) para obter o seu pagamento, uma vez que pode exercer todos os direitos resultantes do cheque.

No presente caso, não podemos deixar de afastar a hipótese de estarmos perante um endosso impróprio – ainda que, como se viu, isso não retirasse legitimidade ao recorrido para instaurar a execução -, visto que, não obstante termos obtido fotocópia certificada do cheque, não vemos que o mesmo contenha, no verso, a inscrição “D - C”, indicativa da menção “depósito em conta”, que configuraria, no entender do recorrente, um endosso para cobrança.
Temos, assim, de concluir que estamos perante um endosso próprio e verdadeiro, que confere ao recorrido o direito de ser considerado portador legítimo do cheque, podendo exercitar os direitos cambiários nele incorporados.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, com custas pelo recorrente.