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VENDA JUDICIAL
ERRO SOBRE A COISA TRANSMITIDA
ANULAÇÃO
Sumário
I - No caso de existência de erro sobre a coisa transmitida, por desconformidade com o que tiver sido anunciado (n°1 do art. 908° CPC), a venda judicial é anulável independentemente da verificação dos demais requisitos de que a lei geral faz depender a anulação do negócio jurídico por erro (arts. 257º e 251º CC), sendo suficiente que a identidade ou as qualidades do bem vendido divirjam das que tiverem sido anunciadas. II - Quanto o legislador fala em divergência com "o que foi anunciado", não quererá cingir-se à identificação do imóvel constante dos "anúncios", pretendendo com tal expressão abranger a identificação do imóvel resultante das várias diligências tendentes à divulgação da venda efectuadas pelo tribunal, nomeadamente a correspondência física que dele for fornecida pelo encarregado da venda. III - Assim sendo, se o prédio penhorado e vendido não corresponder ao prédio que foi mostrado ao adquirente pelo encarregado da venda, será tal venda anulável ao abrigo do n°1 do art. 908º.
Texto Integral
Processo nº 2900/07.8TVPRT.P1 –Agravo
Relator: Maria João Areias
1º Adjunto: Maria de Jesus Pereira
2º Adjunto: José Igreja Matos
Acordam no Tribunal da Relação do Porto (2ª Secção): I – RELATÓRIO
Nos presentes autos deexecução ordinária que o Banco B… instaurou contra C… e mulher, e outra,
veio D…, Lda., nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 908º e 909º do CPC, pedir a anulação da venda efectuada nos presentes autos respeitante ao prédio rústico inscrito na matriz sob o art. 538º, com a restituição à proponente do valor do preço da venda e despesas conexas, num total de 49.653,78 €.
Para o efeito, alega, em síntese:
aquando das diligências de venda, contactou o encarregado da venda, deslocando-se ao local, onde constatou existir uma casa de habitação antiga em ruínas, tendo, assim, instado aquele para esse facto, que lhe transmitiu apenas não existir registo do imóvel enquanto prédio urbano, mas que era aquele o bem a vender;
após a venda, quando se encontrava a proceder à limpeza do terreno, apareceu um terceiro, de nome E…, que intitulando-se proprietário do imóvel requereu ao adquirente a sua desocupação;
após diligências, por pensar ser outro o imóvel por si adquirido nestes autos, não conseguiu apurar existir tal bem e respectiva localização.
Invocando os pressupostos dos arts. 908.º, n.º 1, 2.ª parte e 909.º, n.º 1, al. d), do Cód. Proc. Civil, com base na invalidade da venda, peticiona, ainda, indemnização, a esse título contabilizando €1.824,66, de juros, desde 24.1.08 sobre o montante do preço pago de 40.000,00€, à taxa de 3%, €2.000,00, referente ao IM sobre transmissões do imóvel, €150,00, pagos em registo, €622,65, pagos em custas notariais, €445,77, pagos pela limpeza do terreno, €600,00, pelo pagamento de honorários à arquitecta, €10,70, de despesas administrativas, €1.500,00, pagos pelo projecto de ampliação da habitação e €2.500,00, pagos em despesas de deslocação, incómodos e aborrecimentos.
Cumprido o disposto no art. 908.º, n.º 2, do CPC, pronunciou-se a exequente no sentido do indeferimento do requerido, alegando que não é o aparecimento de alguém a identificar-se como proprietário do imóvel, sem qualquer documentação, mínima que seja, que pode justificar o acolhimento da pretensão de anulação da venda com base na desconformidade sobre a coisa que foi transmitida com o que tinha sido anunciado para essa venda na execução, nem tal facto consubstancia qualquer “reivindicação pelo dono”, tanto mais que não houve qualquer protesto pela reivindicação.
Produzida a prova testemunhal indicada pelo requerente, foi proferida decisão que, julgando não se verificarem os requisitos para a peticionada anulação da venda, indeferiu o pedido apresentado pela adquirente.
Inconformada com tal decisão, a Requerente/Adquirente dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:
a) A recorrente tomou conhecimento através de anúncio público de que corria termos no 4º Juízo da Comarca de São João da Madeira, uma Carta Precatória registada com o n.º 1034/05.4TBSJM, deprecada pela 2ª Secção da 6ª Vara Cível do Porto e extraída do Proc. 2900/07.8TVPRT3, em que são partes intervenientes no processo, como exequente o BANCO B…, S.A. e na qualidade de executados F…, C…; G… e H… e I….
b) O citado anúncio destinava-se a publicitar a venda do imóvel penhorado identificado por “prédio rústico composto por pomar, sito no …, freguesia e concelho de São João da Madeira, com cerca de 0,0660 Há, a confrontar do norte com O… e Rua …, do nascente com J… e outro, do sul com … e poente com Rua, inscrito na respectiva matriz rústica, sob o art.º 538º e com o valor tributável de € 58,66, descrito na Conservatória do Registo Predial de São João da Madeira sob o n.º 04369/23102002”.
c) O Tribunal nomeou para encarregado da venda K…, construtor civil, com domicílio (…).
d) Mostrando-se interessada na aquisição, a recorrente/agravante através do seu legal representante L…, contactou o identificado encarregado da venda, com a finalidade deste lhe mostrar o citado prédio, o que veio a acontecer, numa visita que fizeram ao local.
e) Depois de observar o objecto do negócio e a sua localização, verificou existir implantada no citado prédio posto à venda judicial, uma casa de habitação, antiga, desocupada, composta por cave, Rés-do-chão e 1º andar e quintal,
f) Apesar do prédio se encontrar descrito como sendo um artigo rústico, foi-lhe informado pelo encarregado da venda, que aquela casa em ruínas, não estava registada como prédio urbano.
g) E, que o objecto da venda era efectivamente o prédio penhorado nos autos e que estava a vender.
h) A agravante reflectiu sobre a realização do negócio, e considerou proceder à sua aquisição, pelo preço de 40.000,00 €.
i) Oferta que o encarregado da venda deu a conhecer ao Tribunal, o qual, por consequência da tramitação processual, notificou o Exequente/agravado Banco da respectiva oferta.
j) Findo o prazo para oposição, e no silêncio das partes, realizou-se o negócio da aquisição do imóvel.
k) A citada escritura pública da compra e venda foi celebrada em 24 de Janeiro do ano 2008, no Cartório Notarial de São João da Madeira.
l) Isto depois de ter sido liquidado o respectivo imposto do IMT, no Serviço de Finanças de São João da Madeira.
m) Seguidamente, a recorrente efectuou o registo do imóvel na Conservatória do Registo Predial de São João da Madeira, na data de 29-01-2008.
n) Pensando estar tudo legalizado, julgou-se dona e legitima proprietária daquele imóvel.
o) Procedendo, inclusive, à limpeza do terreno.
p) E, acordado com uma arquitecta M… para esta lhe projectar a construção de uma nova moradia.
q) Até que, passados alguns dias, com surpresa, apareceu um sujeito que se identificou como proprietário do imóvel de nome E…, residente na …, . -.ª, …, Loures, a informá-lo que desocupasse o imóvel,
r) Uma vez que aquele era pertença sua e da sua irmã N…, actualmente a viver em Oeiras,
s) Com espanto, o legal representante da recorrente respondeu existir equívoco da parte dele, uma vez que tinha documentos respeitantes à aquisição de tal prédio, exibindo-os, designadamente anuncio publicitado pelo tribunal, certidão do tribunal, escritura publica de compra e venda e título de registo de propriedade.
t) Mesmo assim, não conseguiu demonstrar que o prédio adquirido ao tribunal não pertencia à herança mas sim aos executados.
u) Posteriormente, na suposição de existir outro prédio naquela zona, com a citada área de terreno ou outra aproximada, com referência às confrontações, chegou mesmo a requisitar junto dos serviços da Câmara Municipal …, uma planta topográfica
v) Só que, com estes acontecimentos, a recorrente não só ficou defraudada com as expectativas criadas à volta do negócio, como também teve elevados prejuízos.
z) Por conseguinte, o imóvel vendido, pelo Tribunal, em negociação particular não existe.
aa) E porque se o prédio vendido pelo tribunal através de negociação particular não existia, então, o negócio era física e legalmente impossível.
bb) Pelo que deve ser anulado, destruído “ab initio” e restituído à recorrente não só o que ela pagou pela aquisição do imóvel inexistente,
cc) Como também deve ser compensada pelos juros bancários que deixou de auferir,
dd) Assim como das despesas que despendeu com o negócio.
de) Sendo o prédio objecto da venda o que o encarregado da venda indicou ao recorrente, logo se padece de vício grosseiro, na medida em que o prédio nunca poderia ser penhorado em virtude de não ser do executado.
df) Parece-nos que é irrelevante se o prédio adquirido era Rústico ou Urbano, sendo certo que pelo facto (dado como provado), existe aparente e clara contradição, no douto despacho recorrido na medida em que aquele prédio do qual o executado era arrendatário nunca poderia ser penhorado no âmbito dos autos.
dg) E, esta parece-nos ser uma questão prévia e essencial que não foi levada em conta pela juíza “a quo”;
dh) Encontra-se, desta forma, a recorrente altamente penalizada por ter adquirido ao Tribunal, de total boa fé um prédio que lhe foi:
- indicado pelo encarregado de venda,
- nomeado pelo Tribunal,
- de um prédio que afinal não podia ser vendido;
- por não ser do executado.
Mostrando-se violadas as normas constantes dos artigos 908º., 906º., 909º, do Código de Processo Civil bem como o dispositivo do artigo 280º. do Código Civil, conclui pela revogação do despacho que não decretou a nulidade da venda, substituindo-o por outro.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpridos que foram os vistos legais, há que decidir. II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artºs. 684º, nº3 e 685º-A, do Código de Processo Civil, a questão a decidir é uma só:
1. Se a matéria dada como provada impõe a procedência do pedido de anulação da venda. III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO A. Matéria de Facto:
São os seguintes os factos dados como provados pelo tribunal a quo:
1. Nos autos de carta precatória registada com o n.º 1034/05.4TBSLM, remetida pela 2.ª secção, da 6:ª Vara, deste tribunal, e extraída destes autos, publicitou-se, através do respectivo anúncio público, a venda do imóvel nestes autos penhorado a fls. 145, do p.,p., identificado como ‘prédio rústico pomar, sito no …, freguesia e concelho de S. João da Madeira, com a área de 0,0660Ha, a confrontar do norte com O… e Rua …, do nascente com J… e outro, do sul com … e do Poente com rua, inscrito na respectiva matriz rústica sob o art. 538.º, com o valor tributável de 58,66 euros, não descrito na C.R. Predial, pertencente aos executados C… e mulher G…, residentes na …, n.º …- ..º ….-… Porto.’
2. Face à ausência de propostas, seguiu-se a venda por negociação particular, tendo sido nomeado encarregado de venda K…, conforme resulta de fls. 422/427, do p.p..
3. Mostrando-se a requerente interessada, contactou, para o efeito o respectivo encarregado de venda.
4. A aqui requerente apresentou proposta para aquisição do imóvel pelo preço de €40.000,00, cuja oferta o Sr. Encarregado da venda deu a conhecer ao Tribunal
5. Por aceite a proposta, foi celebrada a respectiva escritura pública em 24 de Janeiro de 2008, no cartório notarial de São João da Madeira, conforme consta de fls. 580, do p.p., aqui dado por reproduzido todo o seu teor, tendo suportado o pagamento de €622,65 (cfr. fls. 730, do p.p.).
6. A requerente depositou o valor proposta para a aquisição, bem como o respectivo imposto IMT, no serviço de finanças de S. João da Madeira, no valor de €2.000,00, conforme consta de fls. 554 e 721, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
7. Procedeu, ainda, a requerente ao respectivo registo do imóvel a seu favor, com data de 29.1.08, pagando €30,00 – cfr. doc. de fls. 724, do p.p.
8. Quando se encontrava a proceder a limpeza do terreno, apareceu um indivíduo que se identificou como sendo E…, residente em Loures, intitulando-se como comproprietário do prédio, por si adquirido por herança.
9. Em face disso, a proponente diligenciou no sentido de tentar apurar e identificar o imóvel por si efectivamente adquirido o que não conseguiu, tendo-se deslocado com o Sr. Encarregado ao local que, apesar das dúvidas manifestadas, mencionou ter sido esse o prédio que lhe foi referenciado como pertencendo ao executado C… e esposa, por aí terem vivido em tempos. B. Subsunção do direito aos factos. 1. Anulação da venda – o prédio adquirido não corresponde ao que foi mostrado ao adquirente pelo encarregado da venda.
A venda executiva é anulável quando ocorra algum dos fundamentos indicados nos arts. 908º e 909º do Código de Processo Civil (CPC), dentro dos quais se destacam as duas causas de anulação previstas a favor do adquirente, no nº1 do art. 908: a) a existência de algum ónus ou limitação que não tenha sido tomado em consideração e exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria; b) a existência de erro sobre a coisa transmitida, por desconformidade com o que tiver sido anunciado – nº1 do art. 908º.
Como vem sendo entendido pela doutrina[1], os dois referidos fundamentos (existência de ónus ou limitação não considerado ou erro sobre a coisa transmitida), integram situações de erro acerca do objecto jurídico (ónus ou limitação) ou material (identidade ou qualidade da coisa transmitida) da venda, distinguindo-se, no entanto, do regime geral de anulação do negócio jurídico por erro (arts. 257º CC e 251º CC) pela dispensa dos requisitos de que a lei a faz depender, designadamente a essencialidade para o declarante e o seu conhecimento ou cognoscibilidade pelo declaratário; basta por isso que o ónus ou limitação não tenha sido tomado em consideração ou que a identidade ou as qualidades do bem vendido divirjam das que tiverem sido anunciadas.
Há erro sobre a coisa transmitida quando o comprador supunha que adquiria o prédio A e adquire o prédio B, há erro sobre as qualidades da coisa quando o comprador adquire a própria coisa que imaginava adquirir, mas verifica, posteriormente à venda, que ela tem qualidades diversas das que supunha[2].
Contudo, como frisa Alberto dos Reis, o erro só é causa de rescisão ou indemnização, ou seja, só tem relevância, quando haja desconformidade entre o que se anunciou e o que se transmitiu[3].
Seguindo embora de perto a interpretação da norma aqui exposta, o juiz a quo veio a indeferir o requerimento de anulação da venda com o argumento de que, no caso em apreço, embora o requerente tenha adquirido um bem imóvel rústico pensando que esse bem era um imóvel que afinal pertence a um terceiro, existiria “coincidência entre o bem anunciado e o vendido”: “Daqui resulta que a requerente adquiriu um bem imóvel rústico pensando que esse bem era aquele urbano, inscrito e registado a favor de um terceiro na presente execução. Constata-se, assim, existir uma representação inexacta do bem por si adquirido, ou seja, o imóvel por si adquirido não se situa no local que julgava ser o do imóvel objecto da venda, desconhecendo, a final, onde se localiza o bem que adquiriu. Ora, face à situação concreta dos autos não se pode concluir verificar-se erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, dado que o que foi anunciado, foi o que foi vendido. Diferente é saber-se onde se localiza o imóvel, se é que o mesmo existe, ou se terá ocorrido um qualquer erro de inscrição desse bem nas finanças e, bem assim se, nessa base, por erro o adquirente mantém interesse na manutenção do negócio, por erro na formação da vontade quando o adquiriu, em acção própria para esse efeito. Acresce que, por outro lado, como decorre da factualidade em apreço, também, in casu, não se pode dizer ter sido vendido bem não pertencente aos executados, na medida em que não foi dado à execução, nem anunciado e vendido aquele prédio urbano situado nas … (…) pertencente a E… e N…”.
A nossa discordância quanto ao decidido restringe-se ao que se deve entender como “o que foi anunciado”.
O que se pretendeu realçar com a redacção dada pelo DL 47 690, de 11 de Maio de 1967, ao nº1 do art. 908º do CPC – nomeadamente, quanto ao erro do comprador por falta de conformidade com o que foi “anunciado” – foi a ideia de que não será qualquer engano do adquirente que surge como relevante para a anulação da venda, sendo necessário que o erro, a percepção errada que o adquirente tem do prédio vendido, lhe tenha sido induzida pelo próprio tribunal, para efeitos de excluir os casos em que o engano é directamente imputável ao comprador.
Aquando da discussão do projecto de revisão do Código de Processo Civil, discutiu-se sobre se o erro sobre o objecto ou sobre as suas qualidades deveria constituir, sem qualquer restrição, um dos vícios da arrematação que poderia levar à sua anulação (constando tal possibilidade do art. 1267º do Projecto), uma vez que o anterior art. 864º do CPC apenas admitia a anulação com base na existência de algum ónus real que não fosse entendido na determinação do valor.
Alberto dos Reis insurgiu-se contra tal alargamento com a seguinte argumentação: “A venda faz-se em praça ou por concurso, mediante anúncios prévios com o tempo necessário para que o objecto seja visto e examinado, de maneira a discutir qualquer erro, dolo ou coacção. E tudo isto custa dinheiro e exige tempo. O arrematante deverá procurar conhecer o que deseja adquirir; se o não faz a culpa é sua[4]”.
Assim, apoiando a solução adoptada pelo legislador no art. 908º, aquele autor refere que uma das diferenças desta norma em relação ao art. 1267º do Projecto consistiu em “dar a entender que o erro só tem relevância quando haja desconformidade entre o que se anunciou e o que se transmitiu[5]”.
Ora, será que o “o que foi anunciado” se reporta tão só à descrição do imóvel constante dos anúncios, como se deduz do raciocínio adoptado pelo juiz a quo, ou deverá consistir num conceito mais amplo, de modo a abranger não só a descrição física e jurídica constante dos anúncios, mas também a correspondência física que lhe é fornecida pelo tribunal, nomeadamente através do encarregado da venda?
Quanto o legislador fala em divergência com “o que foi anunciado”, não quererá cingir-se à identificação constante dos “anúncios”, pretendendo com tal expressão abranger todas as diligências tendentes à divulgação da venda, no que respeita à identificação do imóvel, efectuadas pelo tribunal.
O art. 890º do CPC[6], sob a epígrafe “publicidade da venda”, determina que designado dia para a abertura das propostas em carta fechada, a mesma deverá ser “publicitada mediante editais, anúncios e inclusão na página informática da secretaria de execução, sem prejuízo de, por iniciativa oficiosa ou sugestão dos interessados na venda, serem utilizados outros meios que sejam considerados eficazes”.
Mais se estipula que, durante o prazo dos editais e anúncios é o depositário obrigado a mostrar os bens a quem pretenda examina-los (art. 891º).
Ambas as disposições visam assegurar o cumprimento do dever de fornecer uma cabal identificação do imóvel cuja venda o tribunal se propõe efectuar, de modo a que não restem dúvidas aos potenciais interessados quanto à identificação do imóvel, sua localização e estado do mesmo.
E, note-se que a obrigação de mostrar os bens que recai sobre o encarregado de venda se aplica a todas as modalidades da venda (cf., nº2 do art. 886º do CPC), enquanto que os “anúncios” só encontram previstos para a venda por propostas em carta fechada e para a venda em depósito público, e mesmo na venda por propostas em carta fechada podem vir a ser dispensados pelo agente de execução (nº3 do art. 890º).
E dentro do dever de “mostrar os bens”, surge à cabeça como obrigação principal do encarregado da venda de no local, a indicação aos interessados de qual é o imóvel a vender (indicação que, sobretudo no caso dos prédios rústicos, se mostrará fundamental, por a sua individualização não se tornar evidente pela simples leitura da descrição predial ou registral do mesmo), sendo que, se o encarregado da venda se engana e mostra outro prédio que não o “anunciado”, tal inquinará necessariamente a percepção do proponente quanto ao prédio a adquirir.
Concluindo, quando o legislador fala em erro sobre a coisa transmitida, por desconformidade com o que tiver sido “anunciado”, pretenderá reportar-se aos elementos de identificação do imóvel, incluindo as suas qualidades e localização, fornecidos através das várias diligências efectuadas pelo tribunal para a publicitação da venda – nelas se incluindo a descrição do imóvel constante dos anúncios e editais, da página informática do tribunal, se houver lugar a tais diligências, bem como a que dele fizer o encarregado da venda.
No caso em apreço, se da leitura dos factos dados como provados restassem dúvidas acerca dos exactos contornos da venda cuja anulação é requerida, atentar-se-á em que, na fundamentação de direito, o juiz a quo admite expressamente que o prédio penhorado e vendido ao adquirente não corresponde ao prédio que lhe foi mostrado pelo encarregado da venda: o prédio penhorado e vendido é o prédio rústico inscrito no art. 538º, sito no …, e ao proponente/adquirente foi-lhe mostrado o prédio urbano sito em …, inscrito no art. 1304, e que se mostra registado a favor de terceiros[7].
Houve um erro na formação da vontade do adquirente, por facto imputável ao tribunal que não só lhe mostrou o prédio errado como, aparentemente, até agora não logrou descobrir onde o mesmo se situa (nem parece dar grande importância a tal facto!).
Por outro lado, mais se constata que a venda em questão foi efectuada mediante negociação particular, ou seja, nem sequer terá sido “anunciada” através dos meios previstos no art. 890º[8], restringindo-se nestes casos a publicidade da venda precisamente aos contactos pessoais feitos pelo encarregado da venda com os eventuais interessados e às informações prestadas por este quanto à identificação do imóvel.
E mais grave se nos afigura o facto de, para além de o prédio vendido não corresponder ao bem que lhe foi mostrado, o tribunal não ter sequer conseguiu esclarecer se tal imóvel ainda existe e onde se situa.
Tendo tal venda sido efectuada através do tribunal e sendo o engano imputável ao próprio tribunal, este não se pode alhear do facto de ter sido ele próprio a induzir em erro o adquirente, refugiando-se numa leitura restritiva e formal do nº1 do art. 808º do CPC, e na afirmação de que “o prédio vendido corresponde ao anunciado”.
Impor-se-á, pois, a procedência do agravo, com a consequente anulação da venda e devolução ao adquirente do preço por si pago, no montante de 40.000,00 €, acrescida de juros de mora à taxa peticionada de 3%[9], no valor de 1.824,66 €, a cumular com a indemnização prevista no art. 906º do Código Civil.
Segundo Miguel Teixeira de Sousa, “o quantum da indemnização determina-se segundo as regras extraídas do regime sobre a venda de bens onerados. Se não houve dolo da pessoa encarregada da venda, o adquirente deve ser indemnizado apenas dos danos emergentes do contrato (art. 909º CC), ou seja, a indemnização respeita somente ao interesse contratual negativo e não abrange os lucros cessantes. Se tiver havido dolo daquela pessoa, devem ser indemnizados quer os danos emergentes correspondentes ao interesse contratual negativo, quer os lucros cessantes[10]”.
Não haverá, assim, dúvidas de que a agravante terá direito às seguintes quantias por si peticionadas, e dadas como provadas, por se incluírem no conceito de danos emergentes do contrato[11]: à devolução do preço, no montante de 40.00.000,00 €, e respectivos juros de mora desde a data da escritura, no valor de 1.824,66 €, mais as despesas por si suportadas como a referida aquisição e que se mostram dadas como provadas (622,65 € com a realização da escritura pública, 2.000,00 € referente ao IMI, e 30,00 € com a inscrição no registo). IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em dar provimento ao agravo interposto pela apelante, revogando-se a decisão recorrida, e decretando-se a anulação da venda efectuada nos presentes autos respeitante ao prédio rústico inscrito na matriz sob o art. 538º, e atribuindo-se ao proponente uma indemnização correspondente ao valor do preço da venda e despesas conexas, num total de 44.477,31 €.
O presente agravo não se encontrará sujeito a custas.
Quanto às custas do incidente serão suportadas pelo exequente e pelo requerente/adquirente, na proporção do respectivo vencimento.
Porto, 03 de Dezembro de 2012
Maria João Fontinha Areias Cardoso
Maria de Jesus Pereira
José Manuel Igreja Martins Matos
_____________
[1] Cfr., José Lebre de Freitas, “A Acção Executiva, à Luz do Código Revisto”, 2ª ed., Coimbra Editora 1997, pág. 280 e 281, Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 3º, Coimbra Editora 2003, pág. 609, Fernando Amâncio Ferreira, “Curso de Processo de execução”, 11ª ed., Almedina 2009, pag. 408, Miguel Teixeira de Sousa, “Acção Executiva Singular”, LEX 1998, pág. 396, J.P. Remédio Marques, “Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto”, Almedina 2000, pág. 419, Alberto dos Reis, “Processo de Execução”, Vol. 2º, Reimp., Coimbra Editora 1985, pág. 419, e Jacinto Rodrigues Bastos, “Notas ao Código de Processo Civil”, Vol. IV, Lisboa 1984, pág. 143.
[2] Cfr, Alberto dos Reis, obra citada, pág. 422.
[3] Obra citada, págs. 419 e 423.
[4] Obra e vol. citados, pág. 417 e 418.
[5] Obra e vol. citados, pag. 419.
[6] Na redacção do DL 38/2003, de 8 de Março.
[7] A explicação para tal engano de identificação do imóvel por parte do encarregado da venda residirá no facto de o executado lá ter residido durante cerca de 20 anos como arrendatário, conforme o declarado pelo próprio executado em audiência de julgamento – cfr., fundamentação da matéria de facto constante da decisão recorrida.
[8] Os anúncios emitidos nos autos respeitam à designação de dia para abertura de propostas, a qual ficou sem efeito por ausência de propostas.
[9] Embora a taxa de juros legais se situe nos 4%, o requerente apenas pediu juros à taxa de 3%.
[10] “Acção Executiva Singular”, pág. 396 e 397.
[11] Como refere Fernando Amâncio Ferreira, obra citada, pág. 411, o comprador terá de ser embolsado do preço e das despesas de compra (IMT, escritura, etc.). _____________ V – Sumário
1. No caso de existência de erro sobre a coisa transmitida, por desconformidade com o que tiver sido anunciado (nº1 do art. 908º CPC), a venda judicial é anulável independentemente da verificação dos demais requisitos de que a lei geral faz depender a anulação do negócio jurídico por erro (arts. 257º e 251º CC), sendo suficiente que a identidade ou as qualidades do bem vendido divirjam das que tiverem sido anunciadas.
2. Quanto o legislador fala em divergência com “o que foi anunciado”, não quererá cingir-se à identificação do imóvel constante dos “anúncios”, pretendendo com tal expressão abranger a identificação do imóvel resultante das várias diligências tendentes à divulgação da venda efectuadas pelo tribunal, nomeadamente a correspondência física que dele for fornecida pelo encarregado da venda.
3. Assim sendo, se o prédio penhorado e vendido não corresponder ao prédio que foi mostrado ao adquirente pelo encarregado da venda, será tal venda anulável ao abrigo do nº1 do art. 908º.