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INSOLVÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA
CUMPRIMENTO DO CONTRATO
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
CADUCIDADE DOS ÓNUS E ENCARGOS REGISTADOS
Sumário
I - A intervenção do administrador da insolvência, mesmo no âmbito do cumprimento de um contrato-promessa de compra e venda, cai no domínio do regime geral das vendas realizadas em insolvência e para liquidação do património. II - Por isso, o bem objecto do contrato-promessa deve ser transmitido livre dos direitos de garantia que o oneram, sem que daí possa resultar qualquer prejuízo para o credor garantido, porque a preferência no pagamento transfere-se para o produto da venda desse bem. III - Porém, tendo o promitente-comprador pago integralmente o preço antes da declaração de insolvência e não sendo possível assegurar a preferência no pagamento do credor hipotecário através do mesmo, se o promissário mantiver interesse no cumprimento da promessa e o administrador da insolvência o aceitar, a transmissão do imóvel terá de operar-se com a oneração da hipoteca. IV - Doutro modo, a transmissão do imóvel livre da hipoteca deixaria desprotegido o credor hipotecário, que veria o seu crédito tratado como comum.
Texto Integral
Apelação 474/08.1TYVNG-M.P1
Insolvência 474/08.1TYVNG-M, 1º Juízo do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia
Acórdão
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório
Nos autos de insolvência em que é insolvente “B…, Lda.”, com sede na …, …, em Póvoa de Varzim, C… e esposa, D…[1], residentes na Rua …, .., em Póvoa do Varzim, aquele na qualidade de promitente-comprador da fracção M do prédio urbano inscrito na matriz respectiva da freguesia … sob o n.º 709 M, do concelho de Vila do Conde, descrito na CR sob º n.º 529/20110309, apreendido para a massa insolvente, vieram recorrer do despacho judicial que decidiu que o cumprimento do contrato-promessa pelo administrador de insolvência não faz caducar os ónus e encargos registados sobre o imóvel.
Apresentando a sua alegação, assim concluíram:
1/ Os recorrentes viram o seu crédito de € 74.819,68 reconhecido pelo Sr.º Administrador da Insolvência e reconhecido o crédito como crédito garantido por direito de retenção do imóvel – Fracção objecto do contrato de promessa de compra e venda junto com a reclamação de créditos – cfr. n.º 28 da Lista de créditos reconhecidos nos termos do artigo 129º, n.º 1 do CIRE e reclamação de créditos dos Recorrentes.
2/ Sem oposição da comissão de credores e a solicitação dos recorrentes (ora credores reclamantes), o Administrador da Insolvência optou pelo cumprimento do contrato-promessa cujo preço se encontra integralmente pago.
3/ Na sequência da comunicação feita pelo Sr.º Administrador da Insolvência a 19/01/2011, os recorrentes vieram aceitar a opção pelo cumprimento do contrato-promessa.
4/ Ao optar pelo cumprimento do contrato-promessa, o Sr.º Administrador de Insolvência assumiu uma obrigação com as condições do contrato-promessa.
5/ E o contrato-promessa menciona expressamente que a prometida venda é livre de quaisquer ónus ou encargos.
6/ O Administrador da Insolvência, a partir da altura em que comunicou a sua intenção em cumprir o contrato-promessa de compra e venda, livre de ónus e encargos, não mais poderá voltar atrás, sem o acordo da contraparte (artigos 224.º, 230.º e 406.º do Código Civil).
7/ Veio a Exm.ª Juiz, proferir, em consequência, do pedido de decisão judicial sobre questão formulada pelo Sr.º Administrador da Insolvência, a decisão de que se recorre que refere “estando em causa cumprimento dos contratos-promessa, tal não opera o levantamento de ónus e encargos, sendo o imóvel transmitido com os mesmos, pois não se trata de venda judicial e, como tal, não operam os efeitos desta”.
8/ Não concordam os recorrentes com a decisão ora referida, uma vez que, como já referiram a opção de cumprimento do contrato-promessa só pode ser um cumprimento sério e se no mesmo se prevê que a venda, objecto do contrato prometido, se faz livre de ónus e encargos, só pode existir cumprimento do contrato nesses termos e não noutros.
9/ Os negócios jurídicos devem ser cumpridos pontualmente e só podem, na falta de acordo, ser modificados com base na lei.
10/ Com o cumprimento desta prestação o Administrador, agindo como representante da massa insolvente, procede à alienação de bens que já a integravam, uma vez que pertenciam ao património da insolvente à data da declaração de insolvência — artigo 46° do CIRE.
11/ Daí que esta venda não possa deixar de ser encarada como uma venda judicial, feita no âmbito da liquidação da massa insolvente para benefício de todos os credores pois que os promitentes-compradores vêem satisfeitos os seus créditos sem participarem no concurso falimentar.
12/ Assim sendo, as hipotecas que afectavam os imóveis prometidos vender caducam com a venda, nos termos do artigo 824° do Código Civil, pelo que não há qualquer necessidade de proceder à sua expurgação, uma vez que elas não acompanham os imóveis sobre que recaíam após a sua venda aos promitentes-compradores.
13/ À insolvência, como execução universal, aplica-se o disposto no artigo 824.º do Código Civil, artigos 10.º e 13.º, 101.º, n.º 5 do CRP.
14/ Pelo que não vêm qualquer razão para a presente decisão e para que o Administrador de insolvência não cumpra com o contrato-promessa de compra e venda que a Insolvente celebrou com os aqui credores que, aliás, pagaram o preço na íntegra, e que têm a tradição da fracção e em que o direito de retenção sobre a mesma é-lhes reconhecido pelo Srº Administrador, celebrando a escritura de compra e venda da fracção referida, livre de ónus e encargos.
Pelo que assim decidindo farão V. Exas. JUSTIÇA!
REGRAS VIOLADAS: artigo 824º do Código Civil, artigo 10º, 13º e 101º, 5 do Código de Registo Predial, artigo 46º do CIRE, artigos 224º, 230º e 406º do Código Civil.
A E…, S.A., notificada do recurso interposto pelos credores C… e mulher, apresentou a sua resposta com as seguintes conclusões:
1. Não podem confundir-se, como insistem os recorrentes em fazer, o cumprimento do contrato-promessa e a venda em sede de liquidação do activo.
2.É desde logo sintomática da necessária distinção a localização sistemática dos dois regimes no CIRE: o cumprimento do contrato-promessa insere-se no âmbito dos efeitos da insolvência nos negócios em curso (Capítulo IV do Título IV), ao passo que a venda se insere no âmbito da liquidação do activo (Capítulo III do Título VI).
Com efeito,
3. Há que distinguir os efeitos jurídicos quanto à garantia (hipoteca) constituída a favor da E…, consoante se trate de cumprimento do contrato-promessa ou de liquidação do activo.
4. Na primeira situação, caso o administrador opte pelo cumprimento do contrato prometido (compra e venda de uma fracção), operará a transferência da propriedade da fracção. O administrador substitui o contraente insolvente; essa substituição consubstancia-se, no presente caso, na celebração do contrato mediante o qual transmite a propriedade do imóvel aos aqui recorrentes.
5. Ou seja, tudo acontece da forma e com a extensão que teria o contrato de compra e venda directamente celebrado com o Insolvente. A transmissão da propriedade, quer seja levada a cabo pelo administrador da insolvência, quer tivesse sido pelo Insolvente, em nada interfere, nem interferiria, com a hipoteca que onera o imóvel e cujo registo antecede qualquer direito de que possam os recorrentes arrogar-se.
6. Isto, mercê da sequela própria dos direitos reais, que permite ao titular do direito hipotecário invocá-lo onde quer que o bem se encontre, isto é, mesmo que tenha sido transmitido a terceiro após a constituição do direito (Antunes Varela, Das Obrigações, 3.ª Edição, 1.º Vol., pág. 122).
7. A hipoteca acompanha a coisa, independentemente de quaisquer vicissitudes e onde quer que ela se encontre, pelo que, transmitida a propriedade de um imóvel onerado com uma hipoteca, continuará o mesmo onerado até que o adquirente a expurgue, nos termos do artigo 721.º do Código Civil.
8. Cumprido o contrato, não pode o bem ser vendido no processo de insolvência, pelo que não serão aplicáveis, nessa opção, quaisquer normas respeitantes à venda, quer as que se retiram do CIRE, quer as do Código de Processo Civil.
9. Não há venda judicial nem tão pouco adjudicação de bens, pois esta figura consiste na alienação directa dos bens ao credor, em seu pagamento e, no caso, os recorrentes não são credores.
Ao invés,
10. Na circunstância de o administrador da insolvência optar pelo não cumprimento dos contratos, o bem em causa será vendido em sede de liquidação do activo, sendo aí aplicáveis as normas constantes dos artigos 156.º e seguintes do CIRE, bem como as normas que sobre a venda executiva versa o Código de Processo Civil.
11. Estará em causa, (apenas) nesta situação, uma venda judicial que opera os efeitos estabelecidos no artigo 824.º do Código Civil, isto é, pagos os credores pela a ordem estabelecida na Sentença de Verificação e Graduação de Créditos, os bens são transmitidos livres de ónus e encargos.
Em suma,
12. Quando se fala em cumprimento de contratos-promessa, não está em causa uma venda executiva do bem, pelo que a hipoteca que sobre ele recai não se extingue; antes subsiste na oneração do prédio.
13. Não opera, assim, o disposto no artigo 824.º do Código Civil.
14. A entender-se em contrário, estaríamos a confundir os regimes, aplicando a um (negócios em curso) as normas de outro (liquidação), o que não se concebe, tal como não concebe o CIRE a aplicação subsidiária de normas do Código de Processo Civil que lhe sejam contrárias,
15. Pelo que seria violadora do artigo 17.º do CIRE a aplicação, em sede de negócios em curso, de regras pensadas e particularmente previstas para a venda judicial e, bem assim, os efeitos que o Código Civil (artigo 824.º) lhe atribui.
16. É inconcebível a pretensão manifestada pelos recorrentes no sentido de aproveitarem o regime do artigo 824.º do Código Civil quando do mesmo não beneficiariam caso o promitente-vendedor não tivesse sido declarado insolvente.
17. Na hipótese de o contrato prometido ter sido celebrado pelo insolvente, ou bem que este expurgava a hipoteca ou o imóvel era transferido com esse ónus.
18. Não se pode pretender o cumprimento de um contrato como se não houvesse insolvência e ao mesmo tempo pretender-se a aplicação de regras respeitantes à venda em sede de liquidação da massa insolvente…
19. Ou o contrato é celebrado, e nessa situação terá que expurgar-se a hipoteca junto da Contra-Alegante, sob pena de subsistir o ónus,
20. Ou, se o contrato não for celebrado, o bem será vendido e os recorrentes pagos pelo montante e no lugar que lhes competir; pago o crédito do titular da hipoteca, será esta extinta e o imóvel transmitido livre de ónus e encargos, como bem manda o artigo 824.º do Código Civil.
21. O que não pode aceitar-se é que se subtraia à Contra-Alegante a sua garantia hipotecária com base numa errada aplicação da lei.
Termos em que, ao considerar que, no caso, não se trata de venda judicial e que, como tal, se mantêm os ónus sobre os bens objecto dos contratos-promessa, julgou bem o Tribunal a quo, devendo, manter-se o despacho recorrido. Assim se fazendo Justiça!
II. Questões a submeter a julgamento
O thema decidendum do recurso é estabelecido pelas conclusões da alegação do recorrente, sem prejuízo das matérias cujo conhecimento oficioso se imponha (artigos 660º, 2, 661º, 684º, 3, e 685º-A do Código de Processo Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei 303/2007, de 24 de Agosto). A questão a decidir resume-se a saber se a hipoteca que onera o imóvel prometido vender caduca com o cumprimento do contrato-promessa pelo administrador de insolvência no âmbito do processo de insolvência.
III. Iter processual relevante
1. A E… concedeu à “B…, Lda.” um empréstimo para financiar a sua actividade como construtora de imóveis.
2. Para garantia do cumprimento das suas obrigações, a devedora constituiu a favor da E… hipotecas sobre o prédio urbano, composto por terreno para edificação urbana, inscrito na matriz predial de …, concelho de Vila do Conde, sob o artigo n.º 623, descrito na Conservatória do Registo Predial de
Vila do Conde sob o n.º 529/010309 – freguesia …, e sobre o prédio rústico situado no …, freguesia …, inscrito na matriz sob o artigo n.º 800, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o n.º 228 – freguesia …. Hipotecas que abrangeriam as acessões, edificações e benfeitorias que neles viessem a ser feitas.
3. A devedora foi outorgando contratos-promessa de compra e venda de fracções.
4. Por contrato outorgado 13 de Maio de 2005, a “B…, Lda.” declarou prometer vender a C… e este declarou prometer comprar-lhe livre de ónus ou encargos, pelo preço de 74.819,68 euros, integralmente pago, a fracção M do prédio urbano inscrito na matriz respectiva da freguesia … sob o n.º 709 M, do concelho de Vila do Conde, descrito na CR sob º n.º 529/20110309, apreendido para a massa insolvente (fls. 24 a 25).
5. A B…, Lda.”, com sede na …, …, em Póvoa de Varzim, foi declarada insolvente por sentença de 04-02-2009, transitada em julgado em 30-03-2009 (fls. 16).
6. Foi nomeado Administrador da Insolvência o Sr. Dr. F…, com escritório na …, …, .º. S/.., …, Vila do Conde (fls.16).
7. O seu crédito de 74.819,68 euros de C… e esposa, D…, foi reconhecido pelo Sr.º Administrador da Insolvência como crédito garantido por direito de retenção do imóvel.
8. O administrador da insolvência optou por cumprir o contrato-promessa.
9. Na sequência da correspondente comunicação feita pelo Sr.º Administrador da Insolvência a 19-01-2011, os reclamantes C… e esposa, D…, aceitaram o cumprimento do contrato de promessa.
10. A E… manifestou a sua oposição ao cumprimento do contrato-promessa enquanto não estiver decidida a questão da (in)existência do direito de retenção sobre as fracções e graduados os créditos, manifestando aceitar o seu cumprimento caso seja pago o valor do expurgo, caso em que emitirá declaração para o cancelamento da hipoteca (fls. 28).
11. C… e esposa, D…, opondo a extemporaneidade dessa oposição, face à oportunidade da E… se pronunciar em sede de impugnação das reclamações de créditos, defendeu tratar-se de uma venda judicial e a correspondente caducidade das hipotecas (fls. 29 a 32).
12. Em 10-01-2011, tendo o administrador de insolvência requerido a emissão de certidão para outorgar a escritura de compra e venda do imóvel, foi proferido despacho judicial datado de 10-01-2011 do seguinte teor: “Os poderes de liquidação da massa insolvente resultam da lei, não dependendo de despacho. Emita certidão que ateste o cargo do A.I. (fls. 14).
13. Em 7-05-2012 foi proferido o seguinte despacho: “Quando foi colocada a questão do levantamento dos ónus e encargos não foi reflectida a situação em causa, ou seja, que se tratava do cumprimento dos contratos-promessa. Na verdade, estando em causa cumprimento dos contratos-promessa, tal não opera o levantamento dos ónus e encargos, sendo o imóvel transmitido com os mesmos, pois não se trata de venda judicial e, como tal, não operam os efeitos desta.” (fls. 133).
14. Aos 26-07-2012 reuniu a Comissão de Credores para deliberar quanto aos efeitos do cumprimento dos contratos-promessa de compra e venda no que respeita aos ónus e registados sobre os imóveis apreendidos para a massa, tendo deliberado que, caso o administrador da insolvência opte pelo cumprimento dos contratos-promessa, não operará o levantamento dos ónus e encargos registados, opondo-se a esse efeito caso ocorra o cumprimento dos mesmos (fls. 142 e 143).
IV. Fundamentação de direito
O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem por finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência que, nomeadamente, se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente (artigo 1º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[2], doravante denominado “CIRE”). Face à sua finalidade de obtenção de providências adequadas à reparação efectiva de direitos de crédito violados, a insolvência mais não é do que uma acção executiva, embora uma execução com características especiais; é uma execução colectiva, genérica ou total, cuja finalidade última é a satisfação dos direitos de todos os credores de um devedor[3].
Similarmente ao que sucede nos processos executivos concursais, também na insolvência os credores hipotecários visam obter o pagamento do seu crédito e, pelo tratamento preferencial que a hipoteca lhes confere, através do produto da venda do bem sobre o qual recai a hipoteca. Vale por dizer que com a venda os credores hipotecários vêem extinguir-se a garantia dada pela hipoteca, transferindo-se a sua preferência para o produto da venda. Por regra, mercê da sequela própria dos direitos reais, que permite ao titular do direito hipotecário invocá-lo onde quer que o bem se encontre, isto é, mesmo que tenha sido transmitido a terceiro após a constituição do direito, a hipoteca acompanha a coisa, independentemente de quaisquer vicissitudes e onde quer que ela se encontre[4]. O que significa que os bens hipotecados podem ser transmitidos, mas o respectivo ónus acompanha-os, ou seja, transmitida a propriedade de um imóvel onerado com uma hipoteca, o mesmo permanecerá onerado até que o adquirente a expurgue, nos termos do artigo 721.º do Código Civil[5].
Porém, as particularidades da venda executiva atribuem-lhe outros efeitos para além dos essenciais da compra e venda em geral. E os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os oneram, bem como dos demais direitos que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzem efeitos em relação a terceiros independentemente de registo (artigo 824º, 2, do Código Civil). De todo o modo, caducam todos os direitos reais de garantia: os bens são sempre transmitidos livres de todos eles, sejam de constituição anterior ou posterior à penhora, tenha havido ou não reclamação na execução dos créditos que garantem[6].
No regime insolvencial, são qualificados como créditos garantidos os que beneficiam de garantias reais sobre bens integrantes da massa insolvente até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias, a significar que, uma vez esgotados os bens sobre que incidem as garantias, se o crédito não for integralmente satisfeito à sua custa, o remanescente não pago por força das garantias mantém-se como crédito comum (artigos 47º, 4, a), e 174º do CIRE)[7]. E no caso dos bens se encontrarem onerados com garantias reais a favor de vários credores, o pagamento é realizado em função da hierarquização dessas garantias estabelecida na sentença de verificação e graduação de créditos e, não sendo suficientes para a liquidação integral dos créditos que garantem, são os respectivos saldos incluídos entre os créditos comuns, a atender nos rateios que se realizarem entre os credores comuns. Por isso, assistindo ao credor hipotecário direito a ver realizado seu crédito através do produto da venda do bem hipotecado, a E…, cujo crédito está garantido por hipoteca sobre a fracção prometida vender ao apelante marido, se opõe à caducidade dessa garantia real com o cumprimento do contrato-promessa, ou seja, com a realização do contrato prometido – a compra e venda da fracção ao promitente vendedor. Em contraponto, defendem os apelantes que essa venda, por ter a natureza da venda judicial, convoca a aplicação do normativizado naquele artigo 824º, 2, do Código Civil, fazendo caducar a hipoteca, sendo-lhe o imóvel transmitido livre desse direito de garantia que o onera. Este o núcleo relevante da questão decidenda, que intima para o debate os efeitos da insolvência do promitente vendedor sobre o contrato-promessa de compra e venda que outorgou.
Se o contrato-promessa for dotado de eficácia real e tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento da promessa (artigo 106º, 1, do CIRE). No caso, não está o contrato-promessa dotado de eficácia real e a disposição omite qualquer referência às situações em que a promessa tem eficácia meramente obrigacional, bem como àquelas em que o beneficiário da promessa sem eficácia real se encontra na posse da coisa, que gera em seu favor um direito de retenção (artigo 755º, f), do Código Civil), que constitui uma garantia que tem de ser atendida em sede de insolvência. Daí que haja quem defenda uma interpretação correctiva daquele preceito, por forma a que o contrato-promessa com eficácia real não seja afectado, em qualquer circunstância, pela declaração de insolvência. Na verdade, constituindo um direito real de aquisição a favor do beneficiário da promessa, não vislumbramos fundamento válido para ser afectado pela declaração de insolvência, independentemente do bem se encontrar ou não na sua posse. Já num contrato-promessa sem eficácia real em que haja tradição da coisa o alcance da disposição terá de ser no sentido do administrador da insolvência não poder recusar o cumprimento do contrato, sendo essa a hipótese contemplada por aquele artigo 106º, 1, do CIRE. E no n.º 2 do preceito enquadrar-se-iam apenas as situações em que não houve entrega da coisa ao promitente-comprador, caso em que o administrador da insolvência está legitimado a recusar o cumprimento da promessa, mas o crédito sobre a insolvência deve ser calculado de acordo com o critério do artigo 104º, 5, do CIRE[8]. Tese sufragada de jure constituendo por José Carlos Brandão Proença[9] que preconiza ser suficiente para impedir a recusa do administrador da insolvência a cumprir a promessa o acordo de tradição material da coisa objecto do contrato prometido. Solução que não é pacífica, nem de jure constituto nem de jure constituendo, pois há quem propugne que é de presumir que o legislador se exprimiu em conformidade com o seu pensamento e plasmou naquele n.º 1 do artigo 106º do CIRE os casos em que o administrador fica interdito de recusar o cumprimento da promessa, enquanto excluiu todos os demais[10]. Afirmando mesmo estar em causa uma opção legislativa deliberada, porque a impossibilidade de recusa de cumprimento nas promessas com eficácia real é a normal consequência da eficácia erga omnes da obrigação. Nas promessas de eficácia meramente obrigacional a recusa do cumprimento gera para o promitente-comprador um direito de crédito que o habilita a comprar bem idêntico e se não conseguir obter integral pagamento não está a assumir um risco exclusivo, mas um risco comum a todos os credores[11]. E no caso de existir tradição da coisa para o promitente-comprador, que já cumpriu, totalmente, a sua contra-prestação, a recusa do cumprimento do contrato-promessa por parte do administrador de insolvência, na hipótese de insolvência do promitente- vendedor, já não será possível, independentemente de o contrato-promessa ter ou não eficácia real[12].
O quadro facutal apurado não nos determina a imiscuir em tal matéria, porque, tendo havido tradição da coisa, com aceitação do promitente-comprador, o administrador da insolvência aprontou-se a cumprir o contrato-promessa, à luz do regime consagrado no artigo 102º, 1, do CIRE. É que fica suspenso o cumprimento de qualquer contrato bilateral que, à data da declaração de insolvência, ainda não tenha obtido total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte até que o administrador da insolvência declare optar pela sua execução ou pela recusa de cumprimento ante uma ponderação casuística dos interesses implicados na manutenção ou extinção do negócio. Donde a questão a decidir esteja reduzida a aferir os efeitos do cumprimento do contrato-promessa sobre o direito real de garantia que onera a coisa objecto do mesmo.
Com a declaração de insolvência todos os poderes de administração e disposição do devedor são transferidos para o administrador da insolvência (artigo 81º, 1, do CIRE). Administrador que assume o controlo da massa insolvente, procede à sua administração e liquidação e reparte pelos credores o respectivo produto final[13]. A actividade do administrador da insolvência é, pois, predominantemente dirigida à preparação do pagamento de dívidas do insolvente através da liquidação do património do devedor; é orientada para a satisfação dos interesses dos credores com vista à administração e liquidação da massa insolvente. E essa satisfação dos credores, sejam da insolvência ou da massa, concretiza-se pelo pagamento daquilo que lhes é devido[14]. E no âmbito da liquidação compete-lhe especificamente proceder à venda dos bens, escolhendo a modalidade da venda que lhe pareça mais conveniente (artigos 158º, 1, e 164º, 1, do CIRE).
Na administração da massa cabe-lhe a tarefa de cumprir os contratos relativamente aos quais haja opção de cumprimento. Os seus poderes têm em vista a satisfação dos interesses da massa, poderes funcionais que ele deve desempenhar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado (artigo 59º, 1, do CIRE). Tudo a inculcar a ideia que a intervenção do administrador da insolvência, mesmo no âmbito do cumprimento dos contratos, como no caso, cai no âmbito do regime geral das vendas realizadas em insolvência e para liquidação do património. Daí que, prima facie, nos pareça que com a venda o bem deve ser transmitido livre dos direitos de garantia que o oneram, sem que daí resulte qualquer prejuízo para o credor garantido, porque a preferência no pagamento transfere-se para o produto da venda desse bem (artigo 824º, 2, do Código Civil). O fundamento deste regime de transmissão dos bens livres daqueles direitos de garantia e da consequente extinção destes com a venda judicial é a de evitar a depreciação do valor dos bens que resultaria duma alienação com subsistência de encargos, assim beneficiando a globalidade dos credores[15]. Neste quadro, não vemos fundamento para declinar a convocação do regime geral das vendas efectuadas em processo executivo concursal. Agindo como representante da massa insolvente, o administrador da insolvência limita-se a proceder à alienação de bem que integra a massa (artigo 46º do CIRE), pelo que a venda tem a natureza judicial, feita no âmbito da liquidação da massa insolvente para benefício de todos os credores, não obstante o promitente-comprador alcançar a satisfação dos seus direitos sem participar no concurso falimentar. Tudo a justificar a caducidade dos direitos reais de garantia que oneram o imóvel, alcançando os direitos dos credores garantidos plena satisfação preferencial através do preço da venda que é depositado à ordem da administração da massa (artigo 167º do CIRE). O que equivale a afirmar que a preferência concedida pela hipoteca ao respectivo credor é transferida para o produto da venda[16]. Resultado que surge sustentado pelas modalidades de alienação conferidas ao administrador de insolvência que, para além de poder escolher qualquer das modalidades previstas em processo executivo, está legitimado a optar por qualquer outra que repute mais conveniente (artigo 164º, 1, do CIRE). Esta norma, no seu n.º5, prevê uma excepção à disciplina da caducidade dos direitos de garantia que oneram os bens vendidos em processo executivo, facultando a venda acompanhada da garantia que onera o bem, quando ela assegura dívidas de terceiro não exigíveis, pelas quais o devedor insolvente não responde pessoalmente. Até nesta hipótese assiste ao administrador da insolvência o direito de optar pela venda livre de garantia, justificadamente porque o processo de insolvência é um processo de execução universal (artigo 1º do CIRE)[17]. Processando-se a venda livre, a protecção do beneficiário da garantia resolve-se pelo recurso ao commodum de representação na modalidade a que alude o artigo 692º do Código Civil, por forma a que a garantia, sendo a venda livre, passa a incidir sobre o produto da venda, em substituição da coisa, ficando o administrador da insolvência inibido de distribuir esse produto aos credores de insolvência, salvo no que exceder as forças do crédito garantido, e conservá-lo para garantir o pagamento do crédito hipotecário. Evidentemente que se a coisa for vendida com a garantia, deixa de existir qualquer responsabilidade da massa perante o beneficiário da garantia e o produto obtido é distribuível pelos credores nos termos gerais[18]. Por isso, a regra geral é a de que a venda seja feita com libertação das garantias incidentes sobre o bem vendido, visto ser essa a melhor forma de assegurar a protecção dos direitos que as garantias visam proteger. A ratio destes direitos de terceiro serem caducáveis reside na sua transferência para o produto da venda, embora se considere não uma verdadeira caducidade mas uma sub-rogação objectiva[19]. Daí que, in casu, a solução não surja com a linearidade descrita, porque o imóvel encontra-se na posse do promitente-comprador, que havia pago integralmente o preço ao devedor, antes da declaração de insolvência, o que determina a que a formalização do contrato prometido não tenha o correspondente incremento pecuniário da massa, que possa garantir a preferência do pagamento da hipoteca que recai sobre o imóvel. Alcançando o promitente-comprador a tutela do seu direito sem a participação no concurso falimentar, já não pode ser directa a satisfação do direito do credor hipotecário, uma vez que não existe na massa a correspectiva contraprestação.
Admitimos que, na situação concreta, a recusa do cumprimento do contrato pudesse conciliar mais eficazmente os direitos do promitente-comprador e do credor hipotecário, mas não nos cabe censurar, nesta sede, a opção do administrador da insolvência, a quem pareceu mais favorável e proveitosa para a tutela dos interesses dos credores o cumprimento daquele contrato. A questão a decidir, iteramos, centra-se no destino da garantia que onera o imóvel objecto do contrato-promessa. É inquestionável que a hipoteca de que beneficia a E… não pode deixar de conferir ao credor o direito a ser pago pelo valor da coisa hipotecada com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou prioridade no registo (artigo 686º, 1, do Código Civil). Só que não vislumbramos exequibilidade prática na sub-rogação objectiva, face à inexistência de produto da venda.
A massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos adquiridos na pendência do processo (artigo 46º, 1, do CIRE). Visto o auto de apreensão, dentre os bens apreendidos não consta qualquer quantia pecuniária que eventualmente pudesse garantir o crédito hipotecário da E… até ao valor de transacção do bem garantido – 74.819,68 euros. Caso em que ainda seria possível ponderar a hipótese de transferir a hipoteca do imóvel onerado para esse bem, protegendo, desse modo, o direito do credor hipotecário e assegurando ao promitente-comprador a aquisição do imóvel livre da garantia. Assim não sendo, cremos que a única solução compaginável com a defesa do crédito hipotecário da E… será a de admitir o cumprimento do contrato-promessa com a oneração da fracção, conferindo ao promitente-comprador a faculdade de recusar o seu cumprimento e de exercitar os seus direitos na insolvência, reclamando o seu crédito, já reconhecido pelo administrador da insolvência, beneficiando, se for caso disso, do direito de retenção que evoca.
Sabemos que beneficiário da promessa de transmissão que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido goza do direito de retenção sobre essa coisa pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte (artigo 755º, 1, f), do Código Civil). Assim, para além da função de coerção que está na origem do direito de retenção, o retentor tem faculdade de realização pecuniária com pagamento preferencial pelo valor da coisa. E no concurso do direito de retenção com a hipoteca aquele prefere a esta, a significar que o crédito garantido por direito de retenção é graduado antes do crédito hipotecário, ainda que a hipoteca tenha sido registada anteriormente (artigo 759º, 2, do Código Civil). Sabemos que, no tocante às promessas de eficácia obrigacional com traditio rei, se considera duvidoso que o promitente-comprador possa invocar o direito de retenção em sede insolvencial, salvo se o incumprimento definitivo for anterior à declaração de insolvência[20]. De todo o modo, se for caso disso, bastará o surgimento de um beneficiário da promessa tradiciária reclamar em sede insolvencial o crédito que lhe assiste para ficar comprometida a satisfação do credor hipotecário.
Desta asserção facilmente intuímos que, a verificar-se o evocado direito de retenção do promissário recorrente, o credor hipotecário poderá ver esbatida ou consumida a garantia conferida pela hipoteca, o que nos poderia levar a ajuizar que ficaria tão desprotegido como se o imóvel tivesse sido transferido livre de ónus e encargos, isto é, num e noutro caso, seria tratado como um credor comum. É, no entanto, uma questão redundante, porque nem o Tribunal de recurso foi confrontado com esta problemática, nem a decisão impugnada ou as alegações de recorrentes e recorrida a ponderaram, nem os autos fornecem elementos para a sua apreciação. Termos em que, perante a única matéria que foi sujeita a exame deste Tribunal da Relação, nada mais nos resta que, embora por diversos fundamentos, confirmar a decisão impugnada.
Em súmula:
1. A intervenção do administrador da insolvência, mesmo no âmbito do cumprimento de um contrato-promessa de compra e venda, cai no domínio do regime geral das vendas realizadas em insolvência e para liquidação do património.
2. Por isso, o bem objecto do contrato-promessa deve ser transmitido livre dos direitos de garantia que o oneram, sem que daí possa resultar qualquer prejuízo para o credor garantido, porque a preferência no pagamento transfere-se para o produto da venda desse bem.
3. Porém, tendo o promitente-comprador pago integralmente o preço antes da declaração de insolvência e não sendo possível assegurar a preferência no pagamento do credor hipotecário através do mesmo, se o promissário mantiver interesse no cumprimento da promessa e o administrador da insolvência o aceitar, a transmissão do imóvel terá de operar-se com a oneração da hipoteca.
4. Doutro modo, a transmissão do imóvel livre da hipoteca deixaria desprotegido o credor hipotecário, que veria o seu crédito tratado como comum.
V. Decisão
Ante o expendido, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em confirmar a decisão recorrida, ainda que por diversos fundamentos.
As custas da apelação são suportadas pelos apelantes (artigo 446º, 1, do Código de Processo Civil).
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Porto, 3 de Dezembro de 2012
Maria Cecília de Oliveira Agante dos Reis Pancas
José Bernardino de Carvalho
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
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[1] Beneficiam de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos do processo.
[2] Aprovado pelo Decreto-Lei 53/2004, de 18 de Março, actualizado pelos Decretos-Lei nºs 200/2004, de 18 de Agosto, 76-A/2006, de 29 de Março, 282/2007, de 7 de Agosto, 116/2008, de 4 de Julho.
[3] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, 2ª ed., pág. 19.
[4] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 3.ª ed., I, pág. 122.
[5] Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 4ª ed., pág. 671.
[6] José Lebre de Freitas, “A Acção Executiva Depois da Reforma da Reforma”, 5ª ed. Reimpressão, pág. 335.
[7] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Reimpressão, 2009, pág. 225.
[8] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, ibidem, págs. 182 e 183.
[9] “Cadernos de Direito Privado”, 2008, n.º 22, págs. 21 e 26.
[10] Catarina Serra, “Cadernos de Direito Privado”, 2012, n.º 38, pág. 60.
[11] Catarina Serra, ibidem, pág. 61.
[12] Ac. STJ de 20-10-2011, in www.dgsi.pt, processo 273/05.2TBGVA.C1.S1.
[13] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, ibidem, pág. 114.
[14] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, ibidem, pág. 271.
[15] Anselmo de Castro, “A Acção Executiva Singular, Comum e Especial”, 3.ª ed., pág. 228.
[16] Ac. R. P. de 16-03-2010, in www.dgsi.pt, processo 2384/08.3TBSTS-AA.P1.
[17] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, ibidem, pág. 550.
[18] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, ibidem, pág. 550.
[19] José Lebre de Freitas, ibidem, pág. 338.
[20] José Carlos Brandão Proença, “Cadernos de Direito Privado”, n.º 22, Abril/Junho de 2008, pág. 8.