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CRIME DE DANO
DANO
ACÇÃO DIRECTA
LEGÍTIMA DEFESA
Sumário
1. O crime de dano pode ser praticado pelo agente apenas com conhecimento e vontade da realização dos elementos objectivos do crime e consciência da censurabilidade da sua conduta perante o dever-ser jurídico-penal, não se exigindo que o dano seja praticado sem justificação ou sentido aparente. 2. Para se agir em acção directa, o dano só pode ser praticado para desobstruir uma servidão se for impossível ao dono do prédio dominante recorrer, em tempo útil, aos meios coercivos normais para evitar a inutilização prática do direito; não pode exceder o que for necessário para evitar o prejuízo e os interesses sacrificados não podem ser superiores aos que o agente vise realizar ou assegurar.
Texto Integral
Acordam , em audiência , na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
Relatório
Pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco , sob acusação do Ministério Público , foi submetido a julgamento em processo comum, perante Tribunal Singular, o arguido
A..., natural da freguesia de Retaxo, Castelo Branco e residente, na Rua de Santana, Vila Velha de Ródão,
imputando-se-lhe os factos constantes de folhas 40, pelo quais teria cometido , em autoria material e na forma consumada, um crime de dano, previsto e punido pelo art. 212.º, n.º 1 do Código Penal.
B... deduziu pedido de indemnização contra o arguido/demandado A..., pedindo que este seja condenado a pagar-lhe o montante global de € 350,00 a título de ressarcimento pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhe causou com a sua conduta ilícita .
O arguido contestou a acusação do Ministério Público alegando , em síntese , não ser líquido que o Ministério Público tenha legitimidade para acusar nos presentes autos; que o cabo partido pelo arguido não tinha qualquer valor económico, não tendo sido inutilizado e sendo recuperável como tal; à data os factos o arguido albergava num seu prédio vários animais que tinha de alimentar, só tendo acesso a tal prédio pelo local onde havia sido colocado o cabo, facto que o levou a cortar o mesmo, tendo actuado em legítima defesa de parte do seu património de valor manifestamente mais alto do que aquele cabo de aço, não sendo o seu acto punível nos termos dos artigos 31.º, n.º 2, al. a) e 32.º do Código Penal e artigos 336.º e 337.º do Código Civil.
O demandado contestou ainda o pedido de indemnização civil formulado, reproduzindo o essencial da contestação da acusação e impugnando os factos alegados pelo demandante.
Realizada a audiência de julgamento , o Tribunal Singular , por sentença proferida a 24 de Outubro de 2005 , decidiu julgar procedente , por provada , a acusação deduzida pelo Ministério Público e , em consequência :
- condenar o arguido A... , como autor material de um crime de dano , p. e p. pelo art.212.º, n.º 1 do Código Penal , na pena de 40 dias de multa , à taxa diária de € 7.
Mais decidiu o Tribunal:
- julgar parcialmente procedente , por provado , o pedido de indemnização civil deduzido por B... contra o arguido A... , e condenar este a pagar ao demandante o montante de € 150,00 a título de danos patrimoniais e € 100,00 a título de danos patrimoniais , sendo que a tais quantias acrescerão juros à taxa legal de 4% ao ano a partir da data da sentença , já que os valores foram actualizados àquela data. Do demais peticionado foi o arguido/demandado absolvido.
Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o arguido A... , concluindo na sua motivação:
1 - A procuração de fls. 6 , outorgada pelo António Gonçalves ao António Pereira, não concede a este quaisquer poderes para ele colocar no prédio daquele o cabo de aço em causa.
2- O corte daquele cabo, por parte do arguido/contestante, não constitui ilícito criminal, previsto e punido no artigo 212/1, do Código Penal, mas, sim, matéria do fôro cível, visto o contestante ter querido molestar tal cabo apenas para desimpedir a passagem a que se considera com direito.
3- Pelo que o Tribunal a quo, entendendo como entendeu então, e condenando o recorrente por aquele crime, violou aquele normativo.
4- No entendimento do recorrente, as normas aplicáveis ao caso subjudice eram, e são, as previstas nos artigos 336.º, n.ºs 1 e 2, e 337.º, n.º 1, todos do Código Civil, de per si, ou num máximo permissivo, conjugados eles também com os artigos 31, n.º 2, alínea a), e 32.º, do Código Penal.
5- As quais o Tribunal a quo violou, também, por as ter ignorado por completo.
6- O Tribunal a quo opinou que o recorrente não provou que ele não pudesse, em tempo útil, recorrer aos meios judiciais normais, mas tal facto está mais que provado pelos próprios factos em si, e pela própria experiência da Vida.
7- Pois, a passagem foi obstruída em 22/09/2002, e desobstruída restos de dois dias depois,
8- Mas, no dia 22 era Domingo que é dia de encêrro dos Tribunais, pelo que antes daquele dia 24, só mediou 1 (um) único dia útil e tinha de chegar para: o recorrente procurar advogado, este estudar o assunto, formular a respectiva petição, angariarem-se as provas úteis ao caso, entregar a petição em Juízo, a qual só então ali seria conhecida (e a que horas, já?) para Despacho de Meritíssimo Magistrado.
9- Que, só então, teria conhecimento do caso que não se sabe quando viria a ser julgado, não obstante a sua sempre urgência legal, dadas as dificuldades dos Tribunais, públicas e notórias, de poderem agir rápidamente.
10- Pelo que o recorrente aguardou até ao dia 24 seguinte, na esperança de que, entretanto, fosse retirado o cabo de aço, o que não aconteceu, pelo que agiu então em acção directa.
11- E para defender valores seus, superiores aos postos em causa por aquela sua actividade.
12- De resto, e como já acima ficou dito entre parêntesis, no dia do julgamento destes autos, em 1ª instância, o ilustre Advogado nos autos, Dr. Simão Ferreira, por sua boca, embora então acompanhado do subscritor destas alegações, sugeriu ao Tribunal para adiar o julgamento, para irem ao local ver se era encontrado um local para a mudança da servidão em causa, (sic)
13- O que não deixa de ser significativo, pois não se muda o que não existe.
14- Ao tempo dos factos em causa o recorrente nem sequer sabia que o António Pereira tinha alguma procuração do António Gonçalves (a qual, aliás, nem abrangia casos como o destes autos).
Por todas as razões ou motivações apresentadas e, pelo mais que será suprido por esse Alto Tribunal, o recorrente requer e espera que a Decisão recorrida seja revogada, com todas as inerentes consequências, directas ou conexas.
O Ministério Público a Comarca de Castelo Branco respondeu ao recurso interposto pelo arguido , pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
O Ex.mo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
O demandante B... respondeu ao parecer do Ex.mo P.G.A. dizendo concordar com o mesmo.
Colhidos os vistos e realizada a audiência , cumpre decidir.
Fundamentação
A matéria de facto e respectiva motivação constante da sentença recorrida é a seguinte: Factos provados
1. No dia 24 de Setembro de 2002, cerca das 11 horas, no local denominado Ribeiro do Enxarique, Vila Velha de Ródão, o arguido cortou um cabo de aço, que tinha sido colocado na propriedade pertença de C... sita naquele local.
2. O cabo de aço tinha sido ali colocado no dia 22 de Setembro de 2002, por B... com autorização do aludido proprietário, o qual subscreveu a favor daquele a procuração cujos termos constam de fls. 6 dos autos e aqui se reproduzem integralmente.
3. Com a descrita actuação o arguido provocou estragos no valor de, pelo menos € 150,00, causando ao ofendido B... um prejuízo de igual montante.
4. O arguido agiu com o propósito de provocar os referidos estragos, não obstante saber que o aludido objecto não lhe pertencia e que agia contra a vontade do seu legítimo dono.
5. Agiu de formal livre e voluntária, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
6. O demandante sentiu-se aborrecido e arreliado ao ver o seu esforço e trabalho despendidos na colocação do cabo inutilizados pela actuação do arguido.
7. O cabo que o arguido partiu era constituído por três pedaços ligados entre si e tinha óleo.
8. O cabo não foi totalmente inutilizado.
9. Oarguido é dono de um prédio rústico fronteiriço ao mencionado em 1.º da acusação e deste separado pelo leito de um pequeno ribeiro, muitas vezes seco.
10. Desde sempre, até agora, sempre o arguido ali praticou agricultura e ali albergou várias espécies de animais, como galinhas, porcos e cabras.
11. O arguido necessita de se deslocar todos os dias a esse prédio para cuidar, apascentar/alimentar tais animais.
12. Para chegar a esse prédio o arguido desde há mais de 20 anos, vem passando pelo prédio referido em l., à vista de toda a gente, na convicção de que tinha direito de o fazer, a pé ou com o seu tractor e reboque, utilizando, há pelo menos 14 anos, uma passagem bem visível existente nesse prédio e à entrada da qual havia sido colocado o referido cabo de aço.
13. Na altura dos factos em causa o arguido albergava no seu prédio porcos e cabras.
14. Para ir tratar desses animais, alimentá-los e dar-lhes beberagem o demandado tem de se deslocar de sua casa, em Vila Velha de Ródão, à sua propriedade, de automóvel ou de tractor, utilizando a passagem referida em 12.
15. Para esse efeito é necessário transportar para aquela propriedade rações e água no reboque no tractor do caminho.
(…)
Factos não provados
(…)
8. No dia 24-09-2002 se tinham acabado os víveres e a água e o arguido não dispunha de outra solução, em tempo útil, para poder transportar aqueles produtos até ao seu prédio, além daquela que utilizou de cortar o cabo de aço em causa. Convicção do Tribunal
(…)
*
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , o Ac. do STJ de 19-6-96 , no BMJ 458º , pág. 98 ).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos , face às conclusões da motivação do recorrente A... as questões a decidir são as seguintes:
- se a procuração de fls. 6, outorgada pelo António Gonçalves ao António Pereira, não concede a este quaisquer poderes para colocar no prédio daquele o cabo de aço em causa ;
- se o corte daquele cabo por parte do arguido não constitui o ilícito criminal, p. e p. no artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, mas matéria do foro cível, visto o contestante ter querido molestar tal cabo apenas para desimpedir a passagem a que se considera com direito; e
- se o Tribunal recorrido violou o disposto nos art.s 336.º, .ºs 1 e 2 e 337.º, .º 1 do Código Civil , de per si ou , num máximo permissivo, conjugados com os artigos 31.º, n.º 2 , alínea a) e 32.º do Código Penal , uma vez que o arguido agiu em acção directa e legitima defesa.
Passemos ao conhecimento da primeira questão.
O recorrente alega nas conclusões do seu recurso que a procuração de fls. 6, outorgada pelo António Gonçalves ao António Pereira, não concede a este quaisquer poderes para colocar no prédio daquele o cabo de aço em causa.
O recorrente não é claro sobre as consequências que pretende retirar desta alegação.
Na contestação à acusação do Ministério Público refere o arguido que da ausência da concessão de poderes na procuração de folhas 6 resultará a ilegimidade do Ministério Público para acusar.
Na falta de qualquer referência , no recurso , à ilegitimidade processual do Ministério Público para deduzir acusação , parece-nos prima facie que esta não estará aqui em causa.
De todo o modo , caso se entenda que essa ilegitimidade está implicita na questão em apreciação , sempre diremos que atento o disposto nos art.s 48.º e 49.º do Código de Processo Penal o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal pelo crime de dano, p. e p. pelo art.212.º , n.º1 do Código Penal , que reveste natureza semi-pública ( n.º 3 , deste tipo penal ) .
Efectivamente , tendo o Tribunal recorrido dado como provado, nomeadamente , que no dia 24 de Setembro de 2002 o arguido cortou um cabo de aço colocado pelo ofendido B... numa propriedade de C... , com autorização deste , causando ao dito ofendido um prejuízo de pelo menos € 150,00 , temos de concluir que o B... é o titular do interesse que constitui o objecto jurídico imediato do crime de dano.
Sendo ele o titular do direito de propriedade sobre o cabo de aço danificado , tem ele legitimidade para apresentar queixa e , consequentemente , tem também o Ministério Público legitimidade para promover o processo penal.
Olhando à motivação do recurso , parece-nos mais provável que o arguido pretenderá agora não tanto alegar a ilegitimidade do Ministério Público para deduzir acusação , mas impugnar o ponto n.º 2 da matéria de facto , uma vez que argumenta não ser verdade que através da procuração junta a folhas 6 o B... tenha sido autorizado a colocar o cabo de aço pelo C....
Vejamos.
Nos termos do art.428.º , n.º 2 do Código de Processo Penal , sem prejuízo do disposto no art. 410.º, n.ºs 2 e 3 do mesmo Código , a declaração referida no art.364.º, n.ºs 1 e 2 do C.P.P. vale como renúncia ao recurso em matéria de facto.
Constando da acta da audiência de julgamento de folhas 114 que o Digno Magistrado do Ministério Público e os Ex.mos advogados do arguido e do demandante declararam , antes do início das declarações do arguido , que nos termos do art.364.º, n.º 1 do C.P.P. , prescindem da documentação dos actos de audiência , o Tribunal da Relação apenas poderá conhecer da matéria de facto nos apertados limites do art.410.º do C.P.P..
O art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal estatui que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito , o recurso pode ter por fundamento , desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida , por si só ou conjugada com as regras da experiência comum :
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ; ou
c) O erro notório na apreciação da prova .
Os vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P. , que são de conhecimento oficioso ( Ac. do Plenário do STJ de 19 de Outubro de 1995 , in D.R. , I-A Série , de 28-12-1995) , têm de resultar do texto da decisão recorrida , por si só ou conjugada com as regras da experiência comum , sem que seja possível a consulta de outros elementos constantes do processo.
No presente caso , face à alegação do recorrente na motivação , o vício em causa apenas poderia ser o erro notório na apreciação da prova , a que alude o art.410.º, n.º 2 do C.P.P. .
Este vício tem lugar “... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável , quando se dá como provado algo que notoriamente está errado , que não podia ter acontecido , ou quando , usando um processo racional e lógico , se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica , arbitrária e contraditória , ou notoriamente violadora das regras da experiência comum , ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto ( positivo ou negativo ) contido no texto da decisão recorrida”. - Cfr. Cons. Simas Santos e Leal-Henriques , in “Código de Processo Penal anotado”, Rei dos Livros , 2ª ed. ,Vol. II , pág. 740. No mesmo sentido decidiram , entre outros , os acórdãos do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º , pág.182 ) e Ac. da Rel. Porto de 27-9-95 ( C.J. , ano XX , 4º, pág. 231).
O Tribunal recorrido deu como provado no ponto 2 da douta sentença que o cabo de aço cortado pelo arguido foi colocado no Ribeiro do Enxarique “ …no dia 22 de Setembro de 2002, por B... com autorização do aludido proprietário, o qual subscreveu a favor daquele a procuração cujos termos constam de fls. 6 dos autos e aqui se reproduzem integralmente.”.
O recorrente defende na sua motivação que naquele ponto .º 2 se diz que o ofendido foi autorizado pelo António Correia a colocar o cabo de aço “ através da procuração que ele próprio juntara a fls. 6 dos autos”.
Salvo o devido respeito , não consta daquele ponto n.º 2 o termo “ através ” colocado entre a autorização e a subscrição da procuração de folhas 6 . Apenas se diz que o ofendido colocou o cabo de aço com autorização do proprietário do prédio , o qual subscreveu a favor daquele a procuração cujos termos constam de fls. 6 dos autos.
Do texto da decisão recorrida , mais concretamente da fundamentação da matéria de facto, consta que o Tribunal a quo teve em consideração para a sua convicção , quanto aos factos provados , as declarações do queixoso/demandante cível B... que, nomeadamente , confirmou os factos vertidos na acusação , ou seja, que tinha autorização do proprietário do prédio para colocar o cabo de aço.
Não se diz aí que essa autorização resulta desse documento ou só através desse documento. Apenas na parte final da fundamentação da matéria de facto , quanto aos factos provados , é que o Tribunal menciona o teor do documento de folhas 6.
Também da procuração de folhas 6 não resulta , em face das regras da experiência comum , que o ofendido agiu sem autorização do proprietário do prédio sito no Ribeiro do Enxarique , onde aquele colocou o cabo de aço.
Da procuração junta a folhas 6 dos autos verifica-se que em 12 de Setembro de 2002 , o C... , constituiu seu procurador o ora ofendido B... , concedendo-lhe plenos poderes para proceder à venda de um prédio rústico sito no Ribeiro de Enxarique. Mais lhe concedeu poderes para o representar em instituições públicas , constituir advogado e confessar , transigir ou desistir em qualquer litigio.
Do texto da procuração resulta expresso que o B... foi mandatado pelo C... para , no interesse e conta deste , proceder à venda de um prédio rústico pelo preço e com as cláusulas e condições que entendesse . Dado , porém , o âmbito de poderes conferido na procuração ao B... é possível entender que do mesmo constam , pelo menos implicitamente , os poderes de defender a plenitude do direito de propriedade do C... relativamente ao prédio rústico para o vender nas condições e cláusulas que entendesse .
Em suma , não vemos que o Tribunal recorrido , ao dar como provada a matéria de facto do ponto n.º 2 que o recorrente impugna, tenha seguido um raciocínio ilógico , arbitrário ou contraditório , por si só ou conjugado com as regras da experiência comum , de onde se possa concluir pela existência de um erro notório na apreciação da prova.
Deste modo , concluímos que a sentença recorrida não padece de qualquer daquele vício, nem de qualquer outro dos enunciados no art.410.º, n.º 2 do C.P.P..
Num parentesis não deixar de referir que com a procuração de folhas 12 do C... , junta aos autos pelo ofendido na sequência de notificação que lhe foi feita pelo Ministério Público , resulta claro que aquele está de acordo os actos praticados pelo ofendido , uma vez que os ratifica.
Passemos agora ao conhecimento da segunda questão : se o corte do cabo de aço por parte do arguido não constitui ilícito criminal, p. e p. no artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, mas matéria do foro cível, visto o contestante ter querido molestar tal cabo apenas para desimpedir a passagem a que se considera com direito.
No entender do recorrente o crime de dano “…só vigora para os casos intencionais de dano puro e simples” ; uma vez que “… o recorrente não tivera intenção de danificar o referido cabo de aço” o caso deve ser discutido apenas no foro cível.
Vejamos.
O art.212.º, n.º 1 do Código Penal estatui que “ quem destruir , no todo ou em parte , danificar , desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia , é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”.
O bem jurídico protegido pelo tipo é a propriedade , esta determinada pela lei civil.
No âmbito dos elementos do tipo objectivo de ilícito importa referir que o objecto da acção típica é uma coisa alheia , aqui se compreendendo qualquer substância materialmente apreensivel , de valor juridicamente relevante , que não é propriedade ( ou não é propriedade exclusiva ) do agente agressor .
Nas modalidades típicas de desvalor da conduta do agente abrangem-se situações de perda total ou parcial da coisa , a alteração da imagem exterior da coisa e a redução da utilidade da coisa segundo a sua função.
Quanto ao tipo subjectivo importa referir que o crime de dano é um crime doloso ( art.13.º do Código Penal) .
O Código Penal não define o dolo do tipo , mas apenas , no seu art.14.º , cada uma das formas em que ele se analisa ( directo , necessário ou eventual) .
A doutrina dominante define o dolo do tipo , na sua formulação mais geral , como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito.
O dolo enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo é elemento constitutivo do tipo-de-ilícito ; como expressão de uma atitude pessoal contrária ou indiferente perante o dever-ser jurídico-penal e , nesta parte , é ainda elemento constitutivo do tipo-de-culpa dolosa. – Cfr. neste sentido , o Prof. Figueiredo Dias , in “Direito Penal – Parte Geral , Tomo I , Coimbra Editora , 2004 pág. 333.
O crime de dano não contém no tipo especiais elementos subjectivos , como a exigência de uma intenção ou finalidade própria da acção , a adicionar ao dolo do tipo.
Por outras palavras , o tipo em causa não exige – como defende o recorrente – “ uma intenção de dano puro e simples” , deixando antever que o crime de dano seria apenas praticado por quem tivesse causado um dano sem justificação ou sentido aparente .
Não exigindo o tipo subjectivo de ilícito uma qualquer intenção , como finalidade própria da acção , pode o crime de dano ser praticado pelo agente apenas com conhecimento e vontade de realização dos elementos objectivos do crime e consciência da censuralibilidade da sua conduta perante o dever-ser jurídico-penal.
A pretensão do recorrente , de que a sua conduta apenas pode ser conhecida no fôro cível e sancionada civilmente , mas não criminalmente , por falta de intenção dolosa , não pode assim proceder.
Posto isto , vejamos se o arguido/recorrente tinha o direito de passagem pelo prédio do António Correia e consequentemente de desimpedir essa passagem , cortando o cabo de aço que a impedia , colocado pelo ofendido B....
O arguido/recorrente defende que , pese embora o Tribunal recorrido tenha dado como não provado , no ponto n.º 5 dos factos não provados , que à data dos factos ele já tivesse adquirido por usucapião uma servidão de passagem pelo prédio do António Correia , efectivamente já tinha adquirido esse direito por usucapião em face dos factos dados como provados.
Vejamos .
A servidão de passagem pode constituir-se , entre outros meios , por usucapião ( art.1547.º do C.C.).
Nos termos do art. 1548.º , n.º1 , do Código Civil , “ As servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião.” O n.º 2 acrescenta que “Consideram-se não aparentes as servidões que não se revelam por sinais vísiveis e permanentes.”.
A permanência da obra ou sinal torna seguro que não se está a praticar um acto a título precário , que se possa confundir com actos de mera tolerância do proprietário do prédio serviente , ou por este ignoradas.
Se o dono do prédio serviente , não obstante a existência do sinal ou sinais exteriores visiveis e permanentes , por si mesmo denunciadores da existência e exercício de servidão , consente no exercício desta durante um determinado prazo , longo , não era justo que pudesse dizer , ao fim de tal prazo , que se trataram de actos de mera tolerância , duma expressão de amabilidade. Nesse caso , do que se tratou foi da afirmação dum direito do dono do prédio dominante.
Para que se possa decidir da existência da servidão é necessário ainda que haja a prática de actos materiais correspondentes ao exercício do direito defiitivo - o corpus da posse - e ainda que ao agir na prática de tais actos o dono do prédio dominante se comporte como se a servidão existisse de direito , ou seja, como se fosse titular do correspondete direito - o animus da posse.
Em matéria de prazos para a usucapião estatui o art.1296.º do Código Civil que “ não havendo registo do título nem da mera posse , a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos , se a posse for de boa fé , e de vinte anos , se for de má fé.”.
Nos termos do art.1260, n.º1 , do Código Civil , “ A posse diz-se de boa fé , quando o possuidor ignorava , ao adquiri-la , que lesava o direito de outrem.” . “A posse titulada presume-se de boa fé , e a não titulada , de má fé.” ( n.º 2 ) .
No presente caso , o Tribunal recorrido deu como provado que o arguido é dono de um prédio fronteiriço ao prédio do denominado Ribeiro do Exarique , propriedade do António Correia , deste separado pelo leito de um pequeno ribeiro muitas vezes seco , e que para ali chegar desde há mais de 20 anos que passa pelo prédio do António Correia , à vista de toda a gente, na convicção de que tinha direito de o fazer, a pé ou com o seu tractor e reboque, utilizando, há pelo menos 14 anos, uma passagem bem visível existente nesse prédio , à entrada da qual havia sido colocado o cabo de aço cujo dano está em causa.
Desta matéria resulta ser seguro que apenas há 14 anos , pelo menos, existem sinais de passagem bem visiveis no prédio do António Correia para o prédio do arguido.
Esses sinais , porém , não são permanentes , uma vez que o Tribunal recorrido não deu como provado que a passagem referida no ponto n.º 12 dos factos provados seja em terra batida e bem assinalada , com uns 16 metros de comprimento ( ponto n.º 3 dos factos não provados).
Por outro lado , o prazo dos sinais visiveis de passagem é ainda insuficiente para permitir a aquisição da servidão de passagem , uma vez que seriam exigiveis 20 anos para a usucapião , pois a posse não titulada presume-se de má fé e esta presunção não foi ilidida . A posse só é de boa fé quando , sendo na sua origem pacífica , se tenha constituido pensando o possuidor que tinha ele próprio o direito e que ninguém tinha direito algum sobre a coisa – cfr. Prof. Menezes Cordeiro , in Direitos Reais , 1979, pág. 675.
Deste modo , e como decidiu também o Tribunal recorrido , em 24 de Setembro de 2002 , não se tinha ainda constituido por usucapião , a favor do prédio do arguido , uma servidão de passagem que onerasse o prédio do António Correia , e que este ou o ofendido devessem respeitar.
E não se invoque , em contrário , eventuais conversas que poderão ter existido entre os Ex.mos advogados no dia do julgamento sobre a “mudança da servidão em causa” , uma vez delas nada consta na sentença recorrida, nomeadamente na matéria de facto , já definitivamente fixada.
Posto isto , vejamos se a ilicitude da conduta do arguido , de inutilização parcial de coisa alheia , pode ser excluida por força da acção directa ( art.336.º do Código Civil ) ou da legítima defesa ( art.s 337.º , n.º 1 do Código Civil e 31.º, n.º 2 , alínea a) e 32.º do Código Penal ) , como defende o recorrente.
Acerca da acção directa estatui o art.336.º, n.º1 do Código Civil , que “ é licito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito , quando a acção directa for indispensável , pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais , para evitar a inutilização prática desse direito , contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo.”.
Sobre a legítima defesa diz o art.337.º , n.º 1 do Código Civil que “ considera-se justificado o acto destinado a afastar qualquer agressão actual e contrária à lei contra pessoa ou património do agente ou de terceiro , desde que não seja possível fazê-lo pelos meios normais e o prejuízo causado pelo acto não seja manifestamente superior ao que pode resultar da agressão.”
Também o Código Penal considera no art.31.º, n.º 2 , alínea a) , que não é ilícito o facto praticado em legítima defesa.
A noção da legitima defesa em direito penal não se afasta da noção civil – até porque deve existir unidade na ordem jurídica . Nos termos do seu art 32.º “ Constitui legitima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.”.
O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso , fruição e disposição das coisas que lhe pertencem , dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas ( art.1305.º do C.C.).
Uma das limitações ao direito de propriedade é a existência de uma servidão de passagem a favor de outro prédio. Quando tal servidão exista o proprietário do prédio serviente é obrigado a permitir o atravessamento do prédio pelo local onde existam os sinais visíveis e permanentes da passagem .
Se em algum momento o proprietário do prédio serviente impedir essa passagem através da criação de um obstáculo físico e for impossível ao dono do prédio dominante recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais para evitar a inutilização prática desse direito , contanto que não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo e os interesses sacrificados não sejam superiores aos que o agente vise realizar ou assegurar , pode este agir em acção directa.
No caso em análise o arguido A... cortou o cabo para assegurar a passagem pelo prédio do António Correia , uma vez que o cabo de aço impedia a passagem para um prédio dele.
Uma vez , porém, que o mesmo arguido não tinha qualquer direito de passagem pelo prédio do António Correia , nomeadamente o de servidão de passagem , ao cortar o cabo de aço não estava a realizar ou a assegurar um direito . Deste modo , a invocação da acção directa não tem razão de ser.
Do mesmo modo , não constituindo a colocação do cabo de aço , por quem de direito , uma agressão ilícita - por contrária à lei civil - aos interesses do arguido A..., pois que nenhum direito tinha ainda de passagem pelo prédio do António Correia , não pode o mesmo invocar a legitima defesa para cortar o cabo de aço.
As considerações que o recorrente faz a nível de impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais para pedir o desimpedimento da passagem onde estava colocado o cabo de aço ficam assim prejudicadas.
A exclusão da ilicitude da conduta do arguido poderia eventualmente colocar-se no âmbito do estado de necessidade , a que alude o art.34.º do Código Penal , uma vez que está provado que o arguido A... utiliza a passagem para ir tratar de porcos e cabras que tem no seu prédio.
Acontece , no entanto , que o Tribunal recorrido deu como não provado ( ponto n.º 5 dos factos não provados) que no dia 24-09-2002 se tinham acabado os víveres e a água e o arguido não dispunha de outra solução, em tempo útil, para poder transportar aqueles produtos até ao seu prédio, além daquela que utilizou de cortar o cabo de aço em causa.
Assim , a razoabilidade inerente ao estado de necessidade que poderia impôr o sacrificio do direito de propriedade do ofendido , com o corte do cabo de aço a este pertencente , não se provou que existisse quando este inutilizou parcialmente aquele objecto.
Resultando da matéria de facto provada ainda uma atitude de contrariedade do arguido A... perante o dever-ser jurídico-penal , pois que sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, estão preenchidos todos os elementos do tipo de ilícito e do tipo de culpa exigidos pelo art.212.º, n.º1 do Código Penal para o cometimento do crime de dano.
Deste modo impõe-se julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido.
Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes este Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A... e manter a douta sentença recorrida.
Custas pelo recorrente , fixando em 6 Ucs a taxa de justiça.