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INVENTÁRIO
LICITAÇÃO
ANULAÇÃO
Sumário
1. A licitação em inventário tem a estrutura de uma arrematação, mas não constitui uma verdadeira venda judicial, uma vez que busca uma escolha e actualização de valores. 2. Para além da hipótese prevista no art. 1372º do CPC, a licitação pode, em princípio, ser anulada nos casos em que a lei possibilita a anulação da venda judicial; 3. Como são aplicáveis as causas gerais de direito substantivo que fundamentam a anulação dos negócios ou actos jurídicos.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
1)- A... requereu, no Tribunal de Oliveira do Bairro, e por apenso a processo de divórcio por mútuo consentimento, inventário para partilha do património comum do casal que constituiu com B....
Pelo Requerente, que foi nomeado cabeça-de-casal, foram relacionadas, entre outros bens e sob a verba n.º 25, “benfeitorias constituídas por casa de habitação de rés do chão e 1º andar inacabadas, compostas de rés do chão amplo, e 1º andar com 3 quartos, sala, cozinha, e duas casas de banho, sendo uma completa, que foram edificadas em terreno pertencente exclusivamente ao cabeça de casal, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 8619, sito na Rua do Barroco, n.º 26, na cidade de Oliveira do Bairro, no valor de € 25.000”.
Na conferência de interessados a que se procedeu, no dia 11.04.2005, não tendo havido acordo relativamente à mencionada verba, foi aberta licitação entre os dois interessados, que estavam acompanhados dos respectivos Mandatários, tendo o cabeça de casal licitado tais benfeitorias pelo valor de € 33.000.
No dia 13.04.2005, a interessada B... veio requerer a anulação da licitação de tal verba, designando-se nova conferência de interessados, para o efeito aduzindo os seguintes fundamentos:
-A Requerente não cobriu o lanço oferecido pelo seu ex-marido, tendo mantido a vontade de não oferecer maior valor apesar da sua Mandatária lhe ter perguntado se pretendia continuar a licitar sobre tal verba;
-Não cobriu o lanço oferecido porque estava convencida que tal lanço constituía apenas a sua quota parte em tal verba, pelo que o valor global da verba seria de € 66.000;
-Momentos antes de proceder a licitações discutiu-se um valor aproximado daquele e que correspondia ao valor fornecido por um avaliador particular;
-O ex-marido propunha-se pagar à Requerente a quantia de € 32.000, em 12 prestações, mas não aceitou tal proposta porque pretendia que tal quantia fosse paga de uma só vez;
-O licitante sabia que a Requerente ofereceria lanço superior, não fora a confusão da Requerente naquele acto.
Com o requerimento, juntou dois documentos.
Notificado, o cabeça-de-casal pugnou pela validade da licitação e pediu a condenação da Requerente como litigante de má fé.
Foi, de seguida, foi proferido despacho a indeferir o requerido, dando por assente o que consta da acta de conferência de interessados no tocante à licitação e que acima se relatou.
Irresignada, a Requerente agravou, insistindo na anulação da licitação, e rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1ª-A lei do processo privilegia a anulação parcial da licitação, no caso de erro susceptível de viciar a vontade das partes;
2ª-Houve erro que viciou a vontade da Recorrente, assente na convicção de uma licitação seria sempre justa e equitativa, o que implica a sua anulação ainda que parcial;
3ªHouve frustração da repetição igualitária e equitativa dos bens inventariados;
4ª-O tribunal devia ter decretado a anulação parcial do acto de licitação;
5ª-Assim, foram violados os artigos 247º e 473º, n.º1, ambos do CC e os artigos 1353º, n.º2 e 1372º, ambos do CPC;
6ª- Deve o acto de licitação ser anulado bem como os demais actos subsequentes, incluindo a sentença de homologação.
O cabeça-de-casal contra-alegou em defesa do decidido e pediu a condenação da Recorrente como litigante de má fé.
Atento o regime de subida e efeitos fixados ao recurso, o processo de inventário prosseguiu os seus trâmites normais, foi, por fim, proferida sentença a homologar a partilha constante do mapa de fls. 146 e 147.
De tal sentença apelou a interessada B..., com os exactos fundamentos do anterior recurso de agravo, concluindo pela anulação da licitação e dos subsequentes actos processuais afectados pela anulação.
Contra-alegou o cabeça-de-casal em defesa da sentença homologatória da partilha e pediu a condenação da Recorrente como litigante de má fé.
Foi mantido o despacho agravado.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
2)- Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 690º, n.º1, 684º, n.º3 e 660º, n.º2, todos do CPC). Isto posto, e porque o recurso de apelação foi interposto para assegurar a subida do recurso de agravo e evitar o trânsito em julgado da sentença, verifica-se que a Recorrente submete a julgamento deste Tribunal, em ambos os recursos, a questão de saber se deve ser anulada a licitação da verba relacionada sob o n.º 25.
Importa, pois, conhecer em simultâneo dos dois recursos, sendo certo que o eventual provimento do recurso de agravo contende com a tramitação processual subsequente, onde se inclui a sentença homologatória da partilha.
Conforme prevê o n.º1 do art. 1363º do CPC[ Diploma a que pertencerão as normas a indicar doravante sem menção de origem], “não tendo havido acordo, nos termos do n.º1 do artigo 1353º, e resolvidas as questões referidas no n.º4 deste artigo, quando tenham lugar, abre-se licitação entre os interessados”. Estabelecendo o n.º 1 do art. 1371º que “a licitação tem a estrutura de uma arrematação a que somente são admitidos os herdeiros e o cônjuge meeiro, salvo os casos especiais em que, nos termos dos artigos anteriores, deva ser admitido o donatário ou o legatário”. Tratando-se, no caso vertente, de uma licitação em inventário para partilha dos bens comuns do dissolvido casal, apenas os ex-cônjuges poderiam ser admitidos na licitação.
Tendo a licitação a estrutura de uma arrematação[ A arrematação em hasta pública era uma das formas previstas para a venda judicial na acção executiva, anteriormente à reforma do processo civil de 1995-1996 ( n.º1 do art. 883º). ], como escreve Lopes Cardoso[ In Partilhas Judiciais, 1980, vol. 2º, p. 294.], não constitui, porém, uma verdadeira venda judicial, e embora equiparável a este negócio jurídico, busca mais propriamente uma escolha de bens e actualização de valores, na certeza de que não implica desde logo a atribuição da propriedade exclusiva dos bens sobre que recaiu àquele que ofereceu o maior lanço”. A transferência do domínio para o licitante apenas se dá com a sentença homologatória da partilha, devidamente transitada.
Tendo a licitação em inventário a estrutura de uma arrematação, tal significa que, sob a presidência do juiz, são postos a lanços os bens ou verbas licitáveis, tendo por valor base o constante da relação de bens ou o valor alcançado nos termos nos termos do art. 1362º, havendo reclamação contra o valor atribuído na relação de bens. E como resultava do n.º3 do art. 897º do CPC, anteriormente à reforma de 1995-1996, o oficial de justiça deveria anunciar em voz alta o primeiro lanço que aparecer acima desse valor e os que sucederem, e tomando conta dos respectivos licitantes. E só se considerava finda a licitação quando o oficial de justiça tiver anunciado, por três vezes, o lanço mais elevado e esse lanço não for coberto.
Sobre anulação das licitações apenas disciplina expressamente o art.1372º, aí se prevendo a anulação a pedido do Ministério Público se entender que o representante de algum incapaz ou equiparado não defendeu devidamente, na licitação, os direitos e interesses do seu representado.
Mas, tal como observa Lopes Cardoso[ Ibidem, p. 298 e segs; cfr., ainda, Do Inventário, p. 151, de Carvalho de Sá, p. 151], assumindo a licitação em inventário a estrutura de uma arrematação, pode, em princípio, ser anulada nos casos em que a lei possibilita a anulação da venda judicial, ou seja, nas hipóteses contempladas nos arts. 908º e 909º do CPC. E diz-se, em princípio, porque nem todos esses casos de invalidade da venda judicial são aplicáveis à licitação, porque específicos daquela venda. Assim, a licitação é anulável a pedido do interessado que licitou, ocorrendo vício nos pressupostos do acto (existência de ónus ou limitação que não fosse considerado e erro sobre o bem licitado), como é anulável a licitação quando feita com preterição das formalidades legais. Como, dir-se-á, são aplicáveis as causas gerais de direito substantivo conducentes à invalidade dos negócios ou actos jurídicos.
Revertendo ao caso dos autos, a Requerente pede a anulação da licitação da verba n.º 25, alegando que não cobriu o lanço oferecido pelo ex-marido, no valor de € 33.000,00 porque estava convencida que esse valor lhe cabia como quota da dita verba, ou seja metade, pelo que o valor global da verba corresponderia ao dobro.
A nosso ver, mesmo que se provasse tal convicção, em nada seria afectada a validade da licitação que regularmente se iniciou pelo valor atribuído na relação de bens (€ 25.000,00), porque inexistiu reclamação sobre esse valor, e findou sem que fosse coberto o lanço mais elevado de € 33.000,00. A posição jurídica do licitante em nada pode ser afectada por essa alegada errónea convicção da Requerente que deveria saber que os lanços reportavam ao valor da verba em licitação, tanto mais que até era acompanhada por Ilustre Mandatária. Qualquer interessado no inventário deve saber que através da licitação se oferece pelo bem um valor superior ao da avaliação a fim de tal bem lhe ser imputado no quinhão. Como não ficaria afectada a validade da licitação, alegando o interessado que não licitou porque estava equivocado sobre o valor do bem que, afinal, era mais elevado. A licitação não corresponde a qualquer negócio entre os interessados no inventário, mas antes a um acto judicial que permite a escolha de bens e a actualização de valores quando não há acordo sobre o preenchimento dos quinhões. Se a Requerente não cobriu o lanço mais elevado, julgando que o valor oferecido pelo licitante correspondia apenas ao valor da sua quota no património comum, e o valor do bem seria, no caso, o dobro, só de si pode queixar-se. Como é de todo irrelevante a alegação de ser do conhecimento do licitante a confusão da Requerente, no acto da licitação, e que ele sabia estar a Requerente na disposição de cobrir o lanço oferecido pelo licitante.
Em suma, e sem necessidade de mais amplas considerações, é de concluir que a Recorrente não encontra apoio legal para a sua pretensão com vista à anulação da licitação da verba n.º 25º.
Mantendo-se o despacho agravado, subsiste incólume a subsequente actividade processual. Como acima se sublinhou, o destino da sentença homologatória da partilha dependia do desfecho do recurso de agravo.
Improcedem, deste jeito, as conclusões de ambos os recursos, em que se suscita a mesma questão (anulação da licitação), sendo de manter as decisões impugnadas (despacho agravado e sentença homologatória da partilha).
Tendo o Recorrido pedido a condenação da Recorrente como litigante de má fé, verifica-se que a actividade processual desenvolvida não é de molde a ser sancionada ao abrigo do art. 456º.
3)-Nesta conformidade, e pelos motivos expostos, acorda-se em negar provimento aos recursos de agravo e apelação, confirmando-se as decisões impugnadas.
As custas, em ambos os recursos, ficarão a cargo da Recorrente.