DIREITO DE DEFESA
Sumário

O direito de defesa não implica que a autoridade administrativa esteja obrigada à prática dos actos requeridos pelo arguido mas apenas aos que se proponham atingir as finalidades da investigação e instrução. Mas deve fundamentar a recusa das diligências não efectuadas.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

O Ministério Público veio interpor recurso do despacho proferido a fls. 62/63 que, declarou a nulidade de todo o processo, desde o momento em que a autoridade administrativa competente para proferir a decisão deveria ter efectivamente colocado à disposição do arguido A... os requeridos elementos (de diligências de prova) ou proferido decisão acerca de tal pretensão.

E, da respectiva motivação extraiu as seguintes conclusões:
1- O art. 50° do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, dispõe que "Não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra--ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre."
2- É a autoridade administrativa que dirige o processo de contra-ordenação que decide pela realização ou não das diligências requeridas pelo arguido, devendo abster-se de realizar as que se lhe não afigurem de utilidade para a descoberta da verdade.
3- Nos presentes autos, o arguido requereu à autoridade administrativa que lhe fossem enviados os elementos referidos a fls. 10 e que aqui se dão por inteiramente reproduzidos, alegando que tais elementos são essenciais para exercer cabalmente a sua defesa não se preocupando minimamente em justificar tal alegação.
4- O arguido não se preocupou em justificar minimamente em que medida é que tais elementos lhe eram essenciais para o exercício da sua defesa.
5- Ora, analisando o teor do requerido pelo arguido não podemos deixar de considerar que, para além da fotografia que sustenta a acusação e que se encontra junta aos autos, tudo o que é requerido pelo arguido, não passa de diligências dilatórias que apenas têm em vista o arrastar infinitamente o presente processo não tendo qualquer interesse para a descoberta da verdade material.
6- Assim, ao não facultar ao arguido os referidos elementos, e contrariamente ao que foi decidido pelo Mmo Juiz, em nada contendeu com os direitos de defesa do arguido uma vez que os mesmos não têm qualquer utilidade para a descoberta da verdade material.
7- Violou, assim a decisão recorrida o disposto nos arts. 55° e 64°, n.º 3 do Dec-Lei 433/82, de 27/10.
8- Nestes termos, deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o douto despacho recorrido substituindo-se por outro que designe data para julgamento.

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Respondeu o arguido, defendendo a improcedência do recurso.
Nesta instância o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso ser merecedor de provimento.
Os autos tiveram os vistos legais.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
É do seguinte teor o despacho recorrido:
Em requerimento que apresentou perante a autoridade administrativa o arguido requereu a realização de diversas diligências probatórias para organizar a sua defesa.
Nada foi realizado nem sequer proferida qualquer decisão acerca do requerido.
Nos termos do disposto no art. 50° do DL n.º 433/82, de 27.10 não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre.
A decisão impugnada afirma que "o arguido veio pronunciar-se relativamente à gravidade da infracção ou sanção acessória de inibição de conduzir aplicável, conforme defesa junta aos autos ... ".
Na prática o que ocorre nesta situação concreta é que, embora dê cobertura aparente ao direito de defesa, materialmente a mesma fica postergada porquanto tal corresponde a uma afirmação do cumprimento meramente formal de uma norma legal que consagra um direito de defesa fundamental.
Mesmo na fase administrativa do processo de contra-ordenação, tal falta constitui nulidade insanável (vd. ac. RE de 24.03.92: CJ, 1992,2°-308).
Assim sendo, a decisão impugnada sofre de nulidade insanável por ter sido preterido um direito fundamental do arguido.
Pelo exposto, declaro a nulidade de todo o processo desde o momento em que a autoridade administrativa competente para proferir a decisão deveria ter efectivamente colocado à disposição do arguido os requeridos elementos ou proferido decisão acerca de tal pretensão.
Notifique.
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Devolva o processo à autoridade administrativa para que os autos sigam os termos legais.
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APRECIANDO
Atendendo ao disposto no n.º 1 do artigo 75º do DL n.º 433/82 este tribunal conhece apenas da matéria de direito, isto sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente os vícios indicados no artigo 410º, n.º 2 do CPP, de acordo com o acórdão do STJ para fixação de jurisprudência de 19-10-1995, publicado no DR, 1-A Série de 28-12-95.

Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, a questão suscitada consiste em saber se no despacho recorrido o tribunal a quo fez correcta interpretação do disposto no artigo 50º do DL n.º 433/82, de 27.10 (RGCO).

Estatui o artigo 32º, n.º 10 da CRP que “Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa”.
Também o direito de defesa do arguido se encontra previsto no artigo 61º, n.º 1, al. f) do CPP – quando lhe é conferido o direito de intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurem necessárias -, aplicável ao processo contra-ordenacional ex vi do artigo 41º do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO).
E, preceitua o citado artigo 50º que “Não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”.

Vejamos os autos.
Notificado o arguido nos termos e para os fins previstos no art. 50º do RGCO veio requerer o envio de vários elementos de prova, que considerou “essenciais para exercer cabalmente a sua defesa”.
Conforme o requerimento de fls. 10, eram os seguintes os elementos de prova pretendidos:
- cópia da fotografia que sustenta a acusação,
- cópia do Documento Homologatório do aparelho Troffipax Speedofhoto utilizado pelos Agentes autuantes para monitorar a velocidade do Arguido Recorrente, com nome do Radar, do Fabricante do Modelo e do número,
- cópias dos Registos de Manutenção e Calibração do referido aparelho,
- cópia de Certificação do Aparelho pela DGV e do Certificado Homologatório do Instituto Português da Qualidade, com referência ao seu prazo de validade,
- cópias dos Certificados de Formação de Operador de Radar, informando quem ministrou a Formação e havendo cursos de reciclagem, quando foram efectuados,
- cópia dos registos dos Testes efectuados antes do início da Operação com informação da sua tipologia e metodologia,
- cópia da Homologação da placa limitadora de velocidade ali existente.

Face aos elementos de prova solicitados, a autoridade administrativa ordenou a notificação do arguido para, no prazo de 10 dias, proceder à consulta do processo (cfr. despacho de fls. 12). Consulta que o arguido fez, tendo então observado o registo fotográfico de fls. 7, onde consta visível a matrícula da sua viatura e, averbado manualmente, o número do auto de contra-ordenação a que a mesma respeitava.
Dando conta do resultado da consulta do processo, onde dos elementos de prova que requereu apenas pode observar a foto de fls. 7, fez o arguido novo requerimento (cfr. fls. 15/16), reiterando o interesse nos elementos anteriormente solicitados, dos quais não prescindia para o exercício do Direito de Defesa, e requerendo “o deferimento do requerimento oportunamente apresentado (…)”.
Foi então proferida a decisão de fls. 18 e 19, que o arguido impugnou.
Como sabemos, o processo de contra-ordenação tem duas fases; a fase da investigação e da instrução, da competência da entidade administrativa, e a fase judicial que se inicia com o recurso de impugnação judicial.
Como referem Oliveira Mendes e Santos Cabral ( - in Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, Almedina, 2ª Ed., pág. 139. ) “O arguido tem o direito de se pronunciar sobre a contra-ordenação e sobre a sanção ainda na fase administrativa. Igualmente não se vislumbra motivo para se negar naquela fase a possibilidade de o arguido requerer a prática de diligências relevantes para a sua defesa em termos perfeitamente equiparados aos que sucedem em sede de inquérito relativamente à autoridade judiciária.
Questão diversa será a de saber se a autoridade administrativa está obrigada à prática dos actos requeridos pelo arguido e aí entendemos que a resposta terá de ser negativa. Na verdade, se aquela entidade preside à investigação e instrução apenas deverá praticar os actos que se proponham atingir as finalidades daquela fase processual o que pode não coincidir, necessariamente, com os actos propostos.”

Muito embora se nos afigure que alguns dos elementos de prova solicitados pelo arguido, designadamente os três últimos, sejam de interesse e necessidade duvidosa para a defesa do arguido, ou até mesmo dilatórios como salienta o recorrente, não se pronunciou a autoridade administrativa sobre a pertinência das diligências requeridas pelo arguido, como foi expressamente solicitado por este a fls. 16.
E, no entanto, na decisão que proferiu tal entidade, a fls. 18, refere-se à análise da defesa apresentada e que o arguido não apresentou prova, quando o arguido expressamente referiu que não prescindia de tais elementos para o exercício do seu direito de defesa.
Ora, como alega o recorrente « É a autoridade administrativa que dirige o processo de contra-ordenação que decide pela realização ou não das diligências requeridas pelo arguido, devendo abster-se de realizar as que se lhe não afigurem de utilidade para a descoberta da verdade.». Porém, a mesma autoridade administrativa quando recusar as diligências solicitadas pelo arguido, por extemporaneidade ou impertinência das mesmas, deverá fundamentar, por despacho, os motivos dessa recusa. Só assim se compreende a possibilidade de impugnação das decisões e despachos proferidos pelas autoridades administrativas, prevista no artigo 55º do RGCO, aliás em harmonia com o disposto no artigo 97º do CPP.
Em conformidade, não tendo a autoridade administrativa realizado as diligências de prova requeridas pelo arguido, ou proferido despacho fundamentado a recusar tais diligências, não foi observado o direito de defesa previsto no citado artigo 50º, o que importa a nulidade da decisão administrativa, nos termos do artigo 120º, n.º 2, al. d) do CPP, aplicável ex vi do artigo 41º, n.º 1 do RGCO, nulidade que foi arguida no acto de impugnação judicial daquela decisão – cfr. Ac. RC de 7-12-2000, in www.dgsi.pt.
Por conseguinte, entendemos que nenhum reparo há a fazer à decisão recorrida.
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De realçar, no entanto, que face à data da prática da alegada contra-ordenação imputada ao arguido, à coima abstractamente aplicável, e ao prazo máximo da prescrição, independentemente das interrupções e suspensões que tenham acontecido, atento ao disposto nos artigos 27º-A, n.º 2 e 28º, n.º 3 do DL n.º 433/82, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dez., em breve ocorrerá a prescrição do procedimento contra-ordenacional.
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III- DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:
- Negar provimento ao recurso.
Sem custas.