I- A lei aplicável ao regime de bens do casamento é a que vigorar ao tempo da celebração do casamento, quer se trate de regime de bens estipulados convencionalmente, quer fixados supletiva ou imperativamente, pelo que a nova lei que venha alterar o regime de bens não se aplica aos casamentos anteriores;
II- Assim, ao casamento celebrado sob o regime imperativo da separação de bens por quem tenha filhos legítimos, imposto pela alínea c) do n.º 1 do art. 1720º, na primitiva redacção do Código Civil aprovado pelo DL n.º 47344, de 25.11.1966, continua a aplicar-se esse regime apesar ulteriormente, por via de alteração legislativa, ter cessado aquela imperatividade.
1)-No Tribunal de Albergaria-a-Velha foi instaurado inventário por óbito de A..., ocorrido 18.11.2001, sendo nomeado cabeça-de-casal o cônjuge sobrevivo B..., que foi casado com aquela, em primeiras núpcias suas e segundas da inventariada, havendo esta uma filha do primeiro casamento e dois do segundo.
Apresentada a relação de bens pelo cabeça-de-casal, a interessada C..., filha do primeiro casamento da inventariada, requereu
-o relacionamento de todos os bens a partilhar e adquiridos pelo cabeça de casal na vigência do matrimónio com a inventariada, aplicando-se ao caso em apreço, o disposto no art. 1717º do CC, ou seja, o regime da comunhão de adquiridos,
- a declaração de ilegalidade da norma da alínea c) do n.º1 do art. 1720º do CC, quando interpretada no sentido de impor aos contraentes de casamento a regime da separação de bens, por violação do princípio da liberdade contratual,
-e, ainda, a declaração da inconstitucionalidade de tal norma, por violação do art. 36º da CRP ao criar desigualdades entre os cônjuges e os filhos nascidos fora do casamento, para além do princípio geral de igualdade e direito fundamental vertido no art. 13º.
O cabeça-de-casal respondeu, alegando, em resumo, que o casamento foi celebrado sob o regime imperativo da separação de bens, por força da alínea c) do art. 1720º do CC, em vigor na data do casamento (10.08.1975), não sendo aplicável o regime supletivo da comunhão de adquiridos, não obstante a nova redacção conferida ao citado artigo pela reforma do Código Civil de 1977 (DL n.º 496/77, de 25.11), que excluiu do regime imperativo da separação de bens o casamento celebrado por quem tenha filhos legítimos, ainda que maiores ou emancipados.
Foi totalmente indeferida a pretensão da interessada C..., fixando-se em 4 Uc a taxa de justiça devida pelo incidente.
Irresignada, agravou de tal despacho, reiterando a sua tese, e extraindo da sua alegação as seguintes conclusões:
1ª-A Requerente é filha em primeiras núpcias da inventariada A...;
2ª-A inventariada casou em segundas núpcias com B... (cabeça-de-casal) em 10 de Agosto de 1975, sem convenção antenupcial, conforme consta da certidão de casamento, junta aos autos;
3ª-Em 1975, o ordenamento jurídico aplicado era o Código Civil de 1966;
4ª-Para os casamentos em segundas núpcias, de nubentes com filhos legítimos, era imperativamente imposto o casamento no regime da separação de bens conforme dispunha a alínea c) do n.º1 do art. 1720º do CC;
5ª-Tal norma era imperativa, aos nubentes naquelas condições, constituindo lei especial;
6ª-O legislador do Código Civil de 1966 ao introduzir tal norma, inequivocamente quis proteger os bens ou o património levado para o casamento do nubente em segundas núpcias com filhos legítimos;
7ª-Celebrado o casamento, ambos os cônjuges constituíram família e a partir daí adveio-lhes património, perante uma plena comunhão de vida em comum, baseado na igualdade de direitos e deveres, tendo em conta o bem e os interesses patrimoniais da família;
8ª-Quando celebraram o casamento a inventariada possuía 33 anos e o cabeça-de-casal 27, portanto jovens;
9ª-A inventariada trabalhou 27 anos - casou a 10.08.75 e faleceu a 18.12.2001-para o património comum conjugal, tal como o fez o cabeça de casal;
10ª-O cabeça-de-casal não levou quaisquer bens próprios para o casamento;
11ª-Ao cabeça-de-casal também não lhe advieram bens nos termos do art.1722º do CC (actual);
12ª-À inventariada na vigência do matrimónio advieram bens monetários por sucessão no valor de 1.500 contos ou € 7.500;
13ª-Todo o património existente em nome do cabeça-de-casal ou em compropriedade pertence ao património comum conjugal de ambos, resultante de uma plena comunhão de vida, com excepção dos bens monetários no dito valor de e 7.500;
14ª-A norma do alínea c) do n.º1 do art. 1720º do CC, de 1966, foi revogada pelo DL n.º 496/77, de 25.11;
15ª-A revogação da norma, afastou a restrição ao princípio da liberdade contratual dos nubentes naquela situação, podendo a partir daí escolher o regime de casamento pretendido ou na ausência de escolha, aplicar-se-lhes o regime de bens supletivo, considerando-se o casamento celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos (art. 1717º do CC);
16ª-O regime imperativo da separação de bens (alínea c) do n.º1 do art. 1720º do CC) foi assim revogada pelo actual Código Civil;
17ª-As convenções antenupciais não podem ser celebradas por quem tenha filhos ainda que maiores ou emancipados para o regime da comunhão de adquiridos, nem estipular a comunicabilidade dos bens nos termos do n.º1 do art. 1722º do CC, mas tão só convenções antenupciais;
18ª-O que o legislador do Código Civil de 1966 pretendeu através da norma em causa foi só defender os bens do nubente com filhos levados para o casamento em segundas núpcias, não mais do que a defesa prevista no n,º1 do art. 1722º do CC;
19ª-E não retirar ao nubente em segundas núpcias o seu direito na meação dos bens que constituem o património, obtido em plena comunhão de vida durante o casamento;
20ª-Porque este património é-lhe devida a meação como se fosse o regime de bens supletivo ou a compropriedade;
21ª-Assim os bens móveis, como também os imóveis adquiridos em nome do cabeça-de-casal, no regime da separação de bens, e durante a comunhão de vida na constância do casamento, pertencem a ambos os cônjuges, com excepção da referida quantia de € 7.500, e devem, por isso, ser chamados à colação da massa da herança para igualação de partilha e que enumera do corpo da alegação;
22ª-O cabeça-de-casal não possuía bens móveis ou imóveis à data do casamento nem lhes adveio bens nos termos do n.º1 do art. 1722º do CC;
23ª-A Requerente apenas pretendeu defender os seus interesses, tendo toda a urgência na prossecução do processo até final, fazendo valer o património da inventariada na meação da totalidade dos bens adquiridos na vigência do matrimónio.
O cabeça-de-casal contra-alegou em defesa da manutenção do julgado.
Foi mantido o despacho impugnado.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
2)- Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha ( arts. 690º, n.º1, 684º, n.º3, e 660º, n.º2, todos do CPC), submete a Agravante a julgamento deste Tribunal o problema de saber se os bens adquiridos pelo cabeça-de-casal, na vigência do casamento com a inventariada, devem ser relacionados como integrando o património comum do dissolvido casal e como tal integrando a herança da inventariada.
Para indagar sobre os bens que constituem a herança do cônjuge falecido e que devem ser partilhados, importa ter em conta o regime de bens sob que foi celebrado o casamento. Constituindo o regime de bens um conjunto de regras cuja aplicação define a propriedade sobre os bens do casal, isto é, a sua repartição entre o património comum, o património do marido e o património da mulher1. Definindo relações patrimoniais entre os cônjuges que cessam pela dissolução, declaração de nulidade ou anulação do casamento (arts. 1688º do CC2), pela separação judicial de pessoas e bens (art. 1795º-A) e pela simples separação judicial de bens (art. 1770º). E cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que deve a este património (n.º1 do art. 1689º).
No caso ajuizado, é incontroverso que o casamento entre o cabeça-de-casal e a inventariada, em segundas núpcias desta e primeiras daquele, foi celebrado sob o regime imperativo da separação de bens. Resulta, na verdade, da certidão de fls. 106, que o casamento foi celebrado no dia 10.08.1975, e a Agravante é fruto do primeiro casamento da inventariada. Assim, e ex vi do preceituado na alínea c) do n.º1 do art. 1720º, em vigor na data do casamento3, considera-se celebrado sob o regime da separação de bens o casamento celebrado por quem tenha filhos legítimos, ainda que maiores ou emancipados.
Como tal, e nos termos do art. 1735º, se o regime de bens imposto por lei ou adoptado pelos esposados for o da separação, cada um deles conserva o domínio e fruição de todos os seus bens presentes e futuros, podendo dispor deles livremente. Inexiste, pois, uma comunhão de bens como um património autónomo, embora possa existir propriedade em comum, conforme o regime do art. 1403º e segs., em que os dois cônjuges são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa.
O legislador ao impor o regime da separação, naquela hipótese, visava proteger os filhos do primeiro casamento em face dos filhos nascidos do segundo, impondo uma incomunicabilidade total4.
Todavia, ao art. 1720º foi dada nova redacção pelo art. 87º do DL n.º 496/77, de 25.11, diploma que procedeu a profunda reforma da lei civil, visando, deixando de ficar sujeitos ao regime imperativo da separação de bens os casamentos celebrados por quem tenha filhos legítimos, ainda que maiores ou emancipados, tendo, pois, sido revogada tal norma (n.º2 do art. 7º). As alterações introduzidas ao n.º1 desse artigo resultaram da afirmação dos princípios da igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges e da não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, os então chamados filhos ilegítimos. Princípios expressamente sublinhados no preâmbulo do citado diploma, e decorrentes da Constituição de 1976, consignando-se que “relativamente ao casamento de quem já tenha filhos apenas se proíbe a estipulação do regime da comunhão geral de bens ou a estipulação da comunicabilidade dos bens que são próprios no regime da comunhão de adquiridos (art. 1699º, n.º2); a aplicação do regime da comunhão de adquiridos não parece lesar por forma injusta os filhos anteriores ao casamento”. Tal ficou consagrado como uma restrição ao princípio da liberdade de convenção antenupcial (arts. 1698º e n.º2 do art. 1699º), relativamente ao nubente que tiver filhos, sendo indiferente que case em primeiras ou mais núpcias. Ou seja, pela reforma de 1977 o legislador substituiu, em tal caso, a imposição do regime da separação pela proibição dos nubentes convencionarem o regime da comunhão geral, com o aditamento de que também não pode ser estipulada entre eles a comunicabilidade dos bens referidos no n.º1 do art. 1722º.
Tendo as alterações ao Código Civil, introduzidas pelo mencionado DL n.º 496/77, de 25.11, entrado em vigor no dia 01.04.1978, conforme determina o art. 176º, e deixando de estar sujeito ao regime da separação de bens o casamento de cônjuge que tenha filhos legítimos, ainda que maiores ou emancipados, argumenta a Agravante que passou a ser aplicável ao casamento o regime da comunhão de adquiridos, previsto como regime supletivo no art. 1717º. Tudo se passando, afinal, a partir da entrada em vigor do novo regime, como se tivesse faltado convenção antenupcial, e daí que deveriam ser integrados na comunhão os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei (alínea b) do art. 1724º).
Será assim? Tal regime ou alteração legislativa é de aplicar aos casamentos celebrados antes de 01.04.1978, como acontece no casamento dos autos, ocorrido em 10.08.1975?
Estamos face a um problema de aplicação de lei no tempo, cujo princípio geral emana do art. 12º. Problema que, por vezes, o diploma que procede à alteração legislativa, logo resolve mediante disposição transitória, determinando qual das leis (nova ou antiga) se aplica às situações jurídicas constituídas no passado e que se prolongam no futuro. Significativamente o DL n.º 47.344, cujo art. 1º aprovou o CC de 1966, prevê no art. 15º que “o preceituado nos artigos 1717º a 1752º só é aplicável aos casamentos celebrados até 31 de Maio de 1967 na medida em que for considerado como interpretativo do direito vigente, salvo pelo que respeita ao n.º2 do art. 1739º”. Tais normas dizem respeito ao regime de bens do casamento.
Também o art. 180º do DL n.º 496/77 estabeleceu que “a partir de 1 de Abril de 1978 não podem ser celebrados casamentos sob o regime dotal, mas os dotes constituídos relativamente a casamentos anteriores ficam sujeitos ao regime até agora em vigor”.
Deste conjunto de normas se depreende que o legislador tinha em mente não aplicar as alterações normativas sobre o regime de bens aos casamentos anteriormente celebrados à entrada em vigor daquelas alterações, a não ser que revestissem carácter interpretativo e não inovador. E de acordo como o n.º2 do art. 12º, pode dizer-se que a alteração introduzida pelo DL n.º 496/77, ao excluir do regime imperativo da separação de bens o casamento celebrado por quem tenha filhos legítimos, ainda que maiores ou emancipados, regulando, assim, o regime de bens ou os efeitos patrimoniais sem abstrair da situação jurídica do casamento que lhes deu origem, só pode a lei nova visar os casamentos que venham a ser celebrados no futuro.5 Como resulta da 2ª parte do n.º2 do art. 12º, só quando a lei nova dispuser directamente sobre o conteúdo de certas situações jurídicas, abstraindo ou sendo indiferente dos factos que lhes deram origem, se poderá entender que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor. Qualquer que seja o regime de bens (convencional ou imperativo) do casamento, assim se manterá imune tal regime a qualquer alteração legislativa, sendo sempre regulado pela lei vigente ao tempo da celebração do casamento6. É essa a regulamentação jurídica patrimonial, no caso imperativa, que os nubentes contavam ao celebrar o contrato do casamento, sendo certo que, pela imediata aplicação duma lei nova, a normal previsão dos cônjuges e as suas expectativas seriam perturbadas. Como observa Baptista Machado7, os regimes de bens configuram situações patrimoniais estreitamente conexas com o contrato de casamento. Diversamente, porém, estando em causa o “estatuto do cônjuge” ou o “estado de casado”8, poder-se-á dizer que o mesmo é indiferente ou se desliga da sua fonte geradora e vai ficando sujeito às mutações legislativas. Nesse caso, a lei nova é de imediata aplicação à situação jurídica, porque é dirigida à tutela dos interesse de uma generalidade de pessoas que se encontram ou possam vir a encontrar ligadas por certa relação jurídica, podendo dizer-se que a lei nova atinge as pessoas, não enquanto contraentes, mas enquanto pessoas ligadas por certo vínculo contratual9.
No caso em apreço, perdurando o regime da separação de bens, apesar de uma nova lei que revogou tal imperatividade, os bens adquiridos pelo cônjuge supérsite na constância do matrimónio, após a entrada em vigor da nova lei, não integram, pois, a comunhão, sendo antes bens próprios dele, não devendo ser relacionados e partilhados. Contrariamente ao defendido pela Agravante, o casamento, celebrado no dia 10.08.1975, não passou a ser regulado pelo regime da comunhão de adquiridos, como regime supletivo, após a entrada em vigor do DL n.º 496/77, no dia 01.04.1978, sob pena de aplicação retroactiva da lei.
Não é, pois, de acolher a pretensão da Agravante, e tão-pouco merece censura a sua condenação em custas pelo incidente suscitado.
3)-Nos termos e pelos motivos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso e confirmar o despacho impugnado.
As custas do recurso ficarão a cargo da Agravante.