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DIREITO DE QUEIXA
INDIVISIBILIDADE
Sumário
I- Se o advogado, conhecedor do carácter difamante de uma qualquer descrição, por não corresponder à verdade, opta por transcrevê-la em articulado, incorre em responsabilidade criminal. II- Mas só se houver sinais evidentes nos autos de que o mandatário actuou com conhecimento da veracidade dos factos é que estamos perante uma situação de comparticipação criminosa.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
Inconformado com a decisão da Mmª Juiz de Instrução Criminal que declara extinto o seu direito de acusar a arguida pelo crime de difamação corporizado em articulado processual (artºs 115º, nº2, e 117º do Código Penal), o assistente A... interpôs recurso e formula as seguintes conclusões:
1.- A decisão recorrida baseia-se nas seguintes conclusões alternativas:
Ou o mandatário actuou sponte sua e é o único responsável pelos factos;
Ou a arguida lhe deu informações precisas nesse sentido e ambos são responsáveis ( . . . ).
Em ambas as conclusões (únicas alternativas possíveis de acordo com a decisão) está assim subjacente e imanente uma prévia concepção da figura do advogado como um mercenário da palavra.
2.- A tomarmos tal juízo como válido, secundando-nos na vox populi, seguir-se-ia que deveríamos porfiadamente abater os poderes legislativo, executivo e judicial, uma vez que, ainda a vox populi, exprime ainda pior opinião sobre juízes e políticos. . .
3.- A aceitar-se o raciocínio inscrito na decisão recorrida quanto à autoria mediata e imediata, teremos que todo o agente judiciário que subscreva o que quer que seja será sempre responsável pelo conteúdo integral de tais escritos. Por generalização temos, então que essencial é saber quem assina, pois que este, enquanto autor imediato é sempre responsável pelas imputações que o escrito contenha, ganhando assim o estatuto de arguido se tais imputações se revelarem falsas e difamatórias.
4.- Se a decisão recorrida se revela profundamente infeliz quanto ao exercício da função de advogado, se atentarmos nas normas do art. 305° CPP, veremos que a doutrina da decisão revela iguais perigos e desacerto quanto ao próprio juiz de instrução e funcionário de justiça que o acompanhe. Na verdade, a aceitar-se o decidido nos seus termos teríamos que quaisquer declarações prestadas em sede de debate instrutório, se se revelarem falsas e injuriosas e/ou difamatórias darão fatal e necessariamente ao sr. juiz de instrução e ao sr. funcionário de justiça, o estatuto de arguidos, uma vez que só eles assinam a acta.
5.- O estatuto de arguido não é nem ética, nem socialmente neutro. Mais, o mesmo é apto a causar grave desconsideração e desconfiança sobre o cidadão que o carrega.
6.- Recordemos ainda que o aparelho judiciário precisa de advogados, juízes e funcionários. E precisa, mais ainda, do prestígio de tais classes. Não pode, pois, disfuncionar, impondo a par e passo a tais agentes e por motivos de forma, o estigma da condição de arguido.
7.- A acusação particular versa a imputação de factos feitos pela arguida em articulado subscrito pelo seu mandatário.
8.- Na relação advogado-cliente pertence a este último ser a fonte dos factos que justifiquem a sua pretensão.
9.- A honestidade e confiança inerentes ao mandato (com dignidade legal - arts. 83°,2 e 92°, 1 EOA) mais reforçam a conclusão anterior.
10.- Também a experiência comum determina que em peça processual subscrita por advogado os factos devam ser reportados à parte representada enquanto os juízos, pelo contrário, devem ser
atribuídos ao mandatário.
11.- O concreto comportamento da arguida no caso é apto a fazer crer que tudo se passou dentro da normalidade, ou seja, que o mandatário se limitou a narrar os factos que lhe foram transmitidos pela mesma arguida.
12.- A arguida apesar de invocar a irregularidade da queixa, não indicou qualquer facto (nomeadamente a quebra do dever de honestidade, ou da relação de confiança) que indicie que possa o seu (também aqui) mandatário ser o autor dos factos por que está acusada.
13.- Há, pois de concluir-se que em casos como o dos autos, só o apuramento em concreto e no inquérito do comportamento patológico do mandatário, ou seja o desvio da experiência comum e das regras deontológicas da profissão, farão com que a apresentação de queixa se estenda ao mandatário que não tenha honrado o seu munus.
14.- Ou seja, no que ao caso reporta e finalmente haverá ainda de concluir-se que a norma do art. 115°, 2 CP não era aplicável ao caso, sendo, essa sim, aplicável a norma do art. 114° CP .
15.- Foi assim por diversas formas e fundamentos violada a norma do art. 115°, 2 CP por indevida aplicação, assim como o foi a norma do art. 117° Código Penal
O recurso foi admitido.
Em resposta o Ministério Público, sufragando o entendimento acolhido pela decisão recorrida, pugna pela sua manutenção.
Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto é de parecer que o recurso da assistente deverá obter provimento.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
O recurso tem com única questão decidir se proferidas afirmações difamatórias em peça processual, subscrita por mandatário forense, é aplicável o princípio da indivisibilidade do direito de queixa, devendo esta ser necessariamente dirigida também contra o advogado subscritor sob cominação de desistência de queixa contra o mandante.
Para melhor percepção do diferendo é oportuno reproduzir a decisão recorrida:
O assistente, A..., apresentou queixa e acusação particular contra B..., a quem imputa a prática de um crime de difamação, p.p. pelos artºs 180º e 183º, nº1 al. b) do Código Penal. Segundo o relato acusatório as expressões consideradas atentórias da honra e bom-nome do assistente foram escritas em peça processual apresentada no âmbito de um processo de regulação do exercício do poder paternal, tratando-se da peça cuja certidão se encontra a fls. 3, a qual se encontra subscrita pelo mandatário da aí requerente e ora arguida. A instrução destes autos foi suscitada pela arguida. Ministério Público, Assistente e arguida foram notificados para se pronunciarem quanto ao tema da indivisibilidade do direito de queixa. Ministério Público e assistente expuseram as respectivas posições a fls. 179 e ss e 191 e ss. Ora, como já expôs o Ministério Público, o texto do articulado processual que constitui o escrito onde se encerram as expressões consideradas ofensivas foi redigido por outrem (mandatário forense) que não a arguida, pelo que o primeiro (advogado) será sempre o autor imediato do escrito que poderá constituir crime. Destarte, o primeiro responsável pelo que assim foi escrito é o próprio autor da peça processual por ser ele quem gizou materialmente o texto final. Daqui não decorre que à mandante (única arguida nos autos) não possa imputar-se o crime em apreço. Com efeito, são conjecturáveis as seguintes hipóteses: Ou o mandatário actuou sponte sua e é o único responsável pelos factos; Ou a arguida lhe deu instruções precisas nesse sentido e ambos são responsáveis, pois tratando-se do cometimento de um crime o advogado que redige peça processual com determinado conteúdo e o faz por instruções do constituinte não pode alegar desconhecimento, ausência de intenção, conflito de deveres, obediência desculpante ou outra dirimente (e se fosse acto de execução de ilícito mis grave?...). Na verdade, para que possa assacar-se à arguida (mandante) a autoria exclusiva do crime teria que ser alegado e demonstrado que só a ela (arguida) é de imputar o domínio do facto (as expressões, a sua redacção e colocação em peça processual e a respectiva divulgação). Só assim se excluiria a situação da alçada do nº2 do artº 115º do Código Penal (aplicável por força do disposto no artº 117º), normativo que exige que, em caso de comparticipação, a queixa e acusação devem ser exercidas contra todos os comparticipantes. De outra forma, a arguida (mandante), não sendo autora imediata do escrito (animus in re ipsa), só por via da comparticipação (designadamente de co-autoria, numa das formas previstas no artº 26º do Código Penal), poderia também ser acusada. Todavia, o autor material do escrito nunca foi constituído arguido nestes autos e nem contra o mesmo foi formulada queixa nem, por isso, acusação. Ora, tratando-se de crime de natureza particular para cujo procedimento é necessária queixa e acusação particular (artºs 113º e 188º do Código Penal), a queixa contra a arguida deveria ter motivado a constituição como arguido do executor material do escrito (o advogado). Como consequência do artº 114º do Código Penal, a queixa contra a mandante relativamente a factos materialmente praticados por mandatário deveria ter determinado a constituição como arguido deste último, a não ser que tivesse sido invocado fundamento comprovado para o excluir da comparticipação que abstractamente sempre resulta (designadamente, demonstrando nos autos de inquérito que este actuou sem conhecimento da inveracidade dos factos). Ora, in casu, de autoria mediata pela arguida não se trata posto que o autor mediato tem de instrumentalizar o autor imediato e não é crível que o mandatário actue em situação de inimputabilidade ou por total e irresistível manipulação pela mandante. Quando muito poderia verificar-se um caso de instigação, se se demonstrasse que o advogado apenas decidiu redigir a peça processual naqueles termos porque tal ideia lhe foi inculdada pela mandante, de modo a poder afirmar-se que esta última, não tendo o domínio de execução do facto (redacção e entrega do articulado), teve o domínio da decisão. No extremo, ter-se-ia verificado cumplicidade, mas sempre a ambos é imputável o facto. Ora, o Código Penal, exactamente para impedir que o queixoso escolha contra quem pretende exercer o procedimento criminal, em caso de comparticipação, tornou extensível aos demais comparticipantes a queixa apresentada apenas contra um deles (artº 114º do Código Penal). Por outra parte, a fim de evitar válvulas de escape a este princípio, erigiu a não divisibilidade da queixa em pressuposto negativo do nº2 do artº 115º, estipulando aí que se o queixoso não exerceu em tempo queixa contra um dos comparticipantes nos seis meses após o conhecimento do facto e do autor, tal facto impede-o de o fazer posteriormente contra os demais comparticipantes. Resta saber se este princípio rege igualmente para a acusação, por força do disposto no artº 117º do Código Penal. Isto é, se a não apresentação de acusação contra um dos comparticipantes extingue o direito de acusar os restantes. Quanto ao tema Figueiredo Dias expôs: “Susceptível de alguma dúvida é saber se devem considerar-se correspondentemente aplicáveis à acusação particular as normas e princípios que vimos aplicar-se à queixa em matéria do seu alcance ou da extensão dos seus efeitos (…). Parece, tudo ponderado, dever negar-se uma tal aplicabilidade e considerar-se que o titular do direito de acusação pode exercê-lo só contra algum ou alguns dos comparticipantes; até por aquele, mesmo discordando do Ministério Público, entender que só quanto a esse ou esses existem indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem é (são) o (s) seu (s) agente (s)”[ Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 681 e 682.]. O raciocínio exposto está conforme à disciplina geral que rege a matéria: é que se a queixa contra um dos comparticipantes dá origem automática a procedimento criminal quanto aos demais, como resulta do artº 114º do Código Penal, pode muito bem suceder que, findo o inquérito, o que poderia parecer comparticipação à partida não tenha resultado suficientemente apurado ou não tenham resultado indícios suficientes para acusar um ou mais dos comparticipantes. Nessa situação não pode forçar-se o assistente (nos crimes de natureza particular) a apresentar acusação contra todos sob pena de extinção do direito de acusar. Todavia, o que assim vai exposto pressupõe que nos autos tenha sido expressamente equacionada a questão da existência de indícios quanto ao comparticipante não acusado, até porque a abstenção injustificada de acusar tem consequências ao nível das custas (artº 515º, nº1 al. d) do Código de Processo Penal). Quando sucede, como aqui acontece, que a única denunciada não é a autora material do escrito que corporiza as afirmações tidas por difamatórias e que a queixa contra esta não deu origem a procedimento criminal também contra o autor imediato e material do mesmo crime, com a consequente formulação de acusação particular apenas contra um dos comparticipantes sem que, contudo, o assistente tenha feito preceder a acusação de uma explicação quanto à decisão de não acusar aquele co-autor, então conclui-se que houve violação do princípio da indivisibilidade contido no artº 115º, nº2, do Código de Processo Penal, e que, injustificadamente, o assistente escolheu de forma arbitrária o comparticipante que pretendia vir perseguido criminalmente. É, pois, inequívoca aquele violação da lei, não se afastando in casu a regra do artº 115º, nº2, do Código Penal, também para a acusação e direito de a apresentar (artº 117º do Código Penal). Pelo exposto, não tendo sido exercido tempestivamente o direito de apresentar acusação contra o executor material da peça processual que contém as expressões tidas por difamatórias, nos termos dos artºs 188º do Código Penal e 285º do Código de Processo Penal está extinto o direito de o assistente acusar a arguida (mandante) pelo crime de difamação corporizado em articulado processual (artºs 115º, nº2, e 117º do Código Penal). Arquivem-se os autos. Custas pelo assistente com o mínimo de taxa de justiça. Notifique.
Da Condição de procedibilidade
Perante um articulado que reproduz factos manifestamente difamatórios considera a Srª Juiz que o advogado subscritor dificilmente se pode eximir à co-responsabilidade criminal.
Embora conjecture a exclusão da ilicitude ao escalpelizar as várias soluções deixa um espaço muito apertado ao mandante e praticamente cobre-as todas com comparticipação ou no limite com a forma criminal de cumplicidade.
Admite três hipóteses:
Ou o mandatário actuou sponte sua e é o único responsável pelos factos;
Ou a arguida lhe deu instruções precisas nesse sentido e ambos são responsáveis, pois tratando-se do cometimento de um crime o advogado que redige peça processual com determinado conteúdo e o faz por instruções do constituinte não pode alegar desconhecimento, ausência de intenção, conflito de deveres, obediência desculpante ou outra dirimente (e se fosse acto de execução de ilícito mis grave?...).
Ou o advogado apenas decidiu redigir a peça processual naqueles termos porque tal ideia lhe foi inculcada pela mandante, de modo a poder afirmar-se que esta última, não tendo o domínio de execução do facto (redacção e entrega do articulado), teve o domínio da decisão.
No extremo, ter-se-ia verificado cumplicidade, mas sempre a ambos é imputável o facto.
Efectivamente embora estas sejam as hipóteses possíveis, está subjacente em todas elas que o mandatário tem conhecimento que os factos reproduzidos no articulado não correspondem à verdade e mesmo assim não se inibe de os reproduzir. Por isso a conclusão jurídico criminal não é necessariamente a extraída na decisão recorrida.
Não o pode ser, porque essa não é a regra do exercício do mandato forense.
Sobre esta questão foram proferidos vários acórdãos que no essencial acabam por reproduzir as premissas do acórdão deste tribunal de 1 de Março de 1989[ CJ ano 1989 tomo ll pag. 76]. Neste aresto parte-se do princípio que o advogado serve para joierar o que pode sair para o conhecimento de outras pessoas ou para os processos, dada a sua posição objectiva e os seus conhecimentos técnicos.
Daí que seja possível configurar três situações:
- Uma em que o advogado transfere para a peça processual aquilo que o cliente lhe disse depois de o advertir expressamente das consequências que daí podem ocorrer e ambos serão co-autores do crime de difamação que vai ser cometido;
- Outra em que o autor do escrito é apenas o advogado, sem qualquer interferência do cliente, que, inclusive, é surpreendido por aquilo que é difundido e então, é só o advogado o autor do crime que é cometido;
- Finalmente, aquela em que o cliente relata factos que sabe não serem verdadeiros para que o advogado os verta para o articulado, no convencimento de que correspondem à verdade, e que, dessa forma, não integrariam qualquer crime, e neste caso, o crime seria apenas do cliente.
Neste acórdão, porque tudo indiciava a colaboração directa do advogado no texto difamatório, considerou-se que estavam verificados os pressupostos da comparticipação.
Desconhecendo os factos, esta conclusão de per si é inquestionável.
Já o Ac. da Relação do Porto de 5/03/03, onde a decisão recorrida acolhe algum conforto, merece da nossa parte algumas reservas e até, com base nos mesmos argumentos, outra conclusão. Também se considera que só na última hipótese o cliente é o único agente do ilícito. O que só por si, mais uma vez também nos parece inquestionável.
O que já questionamos é que a responsabilidade exclusiva do cliente deva ser liminarmente excluída quando na peça processual seja relatado um facto ofensivo da honra de outrem [Segundo a fundamentação do acórdão: Isto porque o advogado, profissional forense com a responsabilidade de conduzir técnica e processualmente a lide, em nome e em representação dos seus constituintes, está vinculado por um dever geral de urbanidade (art. 89º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo DL n.º 84/84, de 16.03), devendo, no exercício da sua actividade, evitar a prolação de factos susceptíveis de ofender a honra e a consideração de outrem. Aliás, «melhor do que ninguém o advogado deve saber em que consiste o crime de difamação e avaliar quando esta não é necessária para a defesa da causa que lhe foi confiada» (L. da Silva Araújo, Crimes Contra honra, Coimbra, 1957, pgs. 66-67). Assim, cabe-lhe a função de filtrar aquilo que lhe é relatado pelo cliente, não deixando transparecer quaisquer expressões que se não contenham dentro das margens da veemência e da energia que a defesa dos interesses daquele exigem - cfr. Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, VIII, Coimbra, 1933, pgs. 513 - 514, e Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, Coimbra, 1996, pgs. 79 e 55..
] .
Com base nesta argumentação, se nenhuma prova (nem sequer alegação) for feita nos autos no sentido de se concluir que o arguido relatou factos que sabe não serem verdadeiros para que o advogado os vertesse para o articulado, no convencimento de que correspondem à verdade o advogado está necessariamente em situação de comparticipação. De onde se concluiu que só se tal facto constar da acusação é que se pode afastar a responsabilidade do Ilustre Mandatário.
Neste aresto, tal qual na decisão recorrida, considera-se que os factos da acusação, tal como dela constam, são de imputar ao arguido e seu Mandatário. Consequentemente, há um caso de comparticipação criminosa.
E porque não abordar a questão no sentido inverso? Só quando constar dos autos e da acusação que o mandatário tinha conhecimento do carácter difamante das expressões, por não corresponderem à verdade, é que se verifica a comparticipação criminosa.
Sem desprimor de outro entendimento, necessariamente comprometido com a situação concreta, consideramos que face ao ordenamento jurídico a responsabilidade jurídico criminal do mandatário forense deverá constituir excepção.
Nos termos do artigo 114 n.1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais assegura-se aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula-se o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça.
A imunidade necessária ao desempenho eficaz do mandato forense é assegurada aos advogados pelo reconhecimento legal e garantia de efectivação, designadamente: do direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de actos conformes ao estatuto da profissão, al. b do n.3 do mesmo preceito
No fundo reafirma e detalha o princípio de exclusão da ilicitude plasmado no art. 154º n.3 do Código Processo Civil quando não considera ilícito o uso de expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa. Uma regra importante que concilia o dever de urbanidade com o direito do advogado a ser firme e veemente nas suas intervenções, requerimentos ou alegações
O advogado, quando intervém em representação judicial de um seu constituinte, não defende interesses próprios mas alheios, actuando profissionalmente no exercício de mandato forense que lhe foi conferido, justamente para discutir a conflitualidade de interesses e direitos em colisão. Daí que, desde que o advogado não exceda os meios necessários à defesa dos interesses dos seus constituintes – meios esses que têm muitas vezes de ser contundentes, firmes e incómodos para com os intervenientes – a sua acção não pode ser limitada ou coarctada, sob pena de poderem ficar irremediavelmente diminuídos e limitados os direitos dos seus representados [ Acórdão do CSOA nº Al-9/2002 de 7 de Fevereiro de 2003].
Por princípio o advogado tem de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas. Neste exercício deve proceder com urbanidade.
Os Professores Figueiredo Dias e Costa Andrade sustentaram, em parecer, que as expressões necessárias à defesa do cliente estão a coberto de justificação bastante, devendo, por isso, considerar-se dirimida a respectiva ilicitude penal. Isto em nome do exercício de um direito (art. 31º n.2 al. b) do Código Penal ); e um direito com a eminente e singular dignidade jurídico - constitucional do direito de defesa em processo penal cometido ao advogado do arguido [ Confº ROA n.52-273 e anotação ao art. 90º do Estatuto da ordem dos Advogados de António Arnaut.]. Para estes professores deve considerar-se excluída a responsabilidade penal dos atentados à honra sempre que eles resultem da realização, exercício ou defesa de direitos. O advogado gozaria, assim, de uma verdadeira imunidade, porque as expressões necessárias à defesa da causa « estão a coberto de justificação bastante, devendo, por isso, considerar-se dirimida a responsabilidade penal».
O advogado deve considerar-se no lugar do cliente, para cumprir a sua missão com êxito e denodo, advogado precisa de ter a palavra e a mão inteiramente livres. Tudo quanto seja conveniente ao bom desempenho do mandato, é garantia, absolutamente imprescindível, do exercício da advocacia. O advogado tem o direito de referir ao tribunal o que julga útil para a causa, sem ter de apurar se revelações são ou não difamatórias, injuriosas ou ultrajantes [ Confº Iniciação à Advocacia de António Arnaut pag. 134/135].
Face aos princípios gerais colhidos no Estatuto da Ordem dos Advogados, com primazia para o princípio da liberdade plena de defesa dos interesses do constituinte e seus reflexos na ordem jurídica, perante a descrição de uma situação que pode ser difamante parece-nos mais consentâneo o raciocínio inverso ao da decisão recorrida: em regra o advogado é a voz do cliente e não lhe é exigível, ao contrário do que vem defendido, qualquer exercício de censura, quando aquilo que lhe é transmitido expresse a defesa de um direito.
Se o advogado conhecedor do carácter difamante de uma qualquer descrição, por não corresponder à verdade, opta por transcrevê-la em articulado, incorre em responsabilidade criminal. Mas neste caso viola flagrantemente o dever de urbanidade a que está sujeito e como tal perde a protecção legal que lhe é concedida.
Não há dúvida que a situação reproduzida na petição inicial da regulação do poder paternal [ Petição esta que dá origem a acusação particular contra a constituinte peticionante.], subscrita pelo advogado, exprime, em abstracto, exercício de direito legítimo, mesmo quando se insinua que o pai sentia um prazer, algo anormal, ao dar banho a filha cuja tutela se pretendia regular.
Por isso, ao contrário do que é expresso na decisão recorrida, consideramos que só se houver sinais evidentes nos autos de que o mandatário actuou com conhecimento da inveracidade dos factos é que estaremos perante uma situação de comparticipação criminosa.
Nesta perspectiva, porque nada indicia nos autos que o advogado tenha extravasado as regras deontológicas, não tinha que ser constituído arguido e como tal está fora de questão a sua comparticipação criminosa.
Termos em que se acorda declarar inexistente a extinção do procedimento criminal, devendo os autos prosseguir seus termos.