O A. conferiu poderes à ré, entre outros, para vender bens imóveis pelo preço e condições que entendesse, e, como o A. os conferiu também no interesse da ré, a ré “moveu-se exactamente dentro do acervo de poderes conferidos” ao vender (embora a si mesma) o imóvel. E, diversamente do que o A. defendera, a procuração não tinha de especificar o imóvel em causa, porque, se assim fosse, a cláusula segundo a qual a ré podia vender imóveis ficava esvaziada de conteúdo. Quer dizer, entendemos nós: o A. consentiu naquela venda efectuada pela ré a si própria, ao conferir os poderes para a venda de imóveis pelo preço e condições que entender, e a ré moveu-se dentro dos poderes conferidos.
Para tal alegou, em suma:
O A. viveu maritalmente com a ré desde Fev./92 até Março/98 e presta serviço no estrangeiro desde 1980. Passou à ré a procuração notarial de 17-3-95 documentada a fl. 9 a 11 dos autos, conferindo poderes para, com livre e geral administração civil, reger todos os seus bens, mas não lhe deu o consentimento para a celebração daquele contrato. Conferiu poderes para vender imóveis pelo preço e condições que a ré entendesse, mas tal venda não foi especificada na procuração. É proibido o contrato a semet ipso, nos termos do art. 261º do CC. A ré utilizou a sua qualidade de representante voluntária do A. para conseguir para si um benefício ilegítimo, pelo que o contrato deve ser anulado.
A ré contestou, pugnando pela improcedência do pedido, para o que alegou:
A procuração foi passada de acordo com o previamente combinado entre ambos, pois a propriedade do imóvel (conforme escritura de 8-8-94 a fls. 35) e de outros bens havia sido passada da ré para o nome do A. face a problemas entre a ré e seu ex-cônjuge, e o A., vivendo com a ré, sabia disto. Posteriormente celebraram um contrato-promessa de compra e venda da dita fracção Q (cujo doc. comprovativo veio a ser junto a fls. 390/392). Não pode agora o A. vir invocar o seu não consentimento. Há venire contra factum proprium (art. 334º do CC). O A. assinou os documentos porque assim o entendeu. O A. não tinha bens em seu nome antes de viver em comum com a ré. A procuração é irrevogável e no interesse da mandatária. O negócio consigo mesmo decorre da procuração e do contrato-promessa e a celebração daquele foi o motivo que levou o A. a outorgar a procuração.
A fls. 172 foi proferido o saneador, com redacção dos factos assentes A) a J) e da base com 10 quesitos, tendo sido desatendida uma reclamação.
A fls. 394 foi junto o comprovativo da dispensa, concedida pela O. A., do sigilo profissional da Ex. ma Advogada aí referida, a fim de poder depor em audiência.
Conforme acta de fls. 400 ss, realizou-se a audiência de julgamento, que culminou nas respostas aos ditos quesitos. A fls. 407 foi junta certidão do registo predial.
Na sentença a fls. 480 ss, foi a acção julgada improcedente.
Da sentença recorre o A., impugnando as decisões de facto e de direito e apresentando a sua alegação as seguintes conclusões:
A)
Não oferece credibilidade o depoimento de uma testemunha que foi advogada de uma das partes, com respeito aos factos em causa, para mais quando foi Autora dos documentos em causa, pois terá sempre a tendência à defesa dos interesses da sua cliente e do trabalho que executou.
A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação.
Correram os vistos legais.
Nada obsta ao conhecimento do objecto do recurso.
II- Fundamentos:
De facto:
Da 1ª instância vêm provados os seguintes factos, acrescentando-se porém a sua numeração e pequenas precisões formais, rectificando-se no 6º a quantia em euros conforme doc. autêntico junto a fls. 14 a 16 com a petição (a indicação de 66.349,64 euros provém de lapso evidente do art. 8º da p. i.) e completando-se o último facto provado com o conteúdo do doc. de fl. 390/392 para que remeteu:
1. O Autor e a Ré viveram maritalmente entre Fevereiro de 1992 e Março de 1998.
2. O Autor e a Ré foram também sócios em duas sociedades, a saber, a sociedade F... e a sociedade G... .
3. O Autor exerce a profissão de técnico de electrónica, encontrando-se a prestar serviço no estrangeiro, pelo menos desde 1992.
4. O A. constituiu a R. sua bastante procuradora, por procuração outorgada no dia 16 de Março de 1995, no Cartório Notarial de Odivelas.
5. Através desse instrumento, o A. declarou conferir à R. «os poderes necessários para, com livre e geral administração civil, reger e gerir todos os bens dele outorgante. E, assim, para (...)», designadamente:
(...) e) «representá-lo junto de quaisquer repartições públicas ou administrativas (...)»;
(...) f) «comprar, vender, permutar ou hipotecar bens ou direitos móveis ou imóveis pelo preço e condições que entender»;
(...) i) «receber preços e dar quitação»;
j) «assinar os respectivos contratos promessa e as escrituras devidas (...)».
6. O A. tomou conhecimento, em Dezembro de 2002, de que, por intermédio de escritura de compra e venda, lavrada em 24-10-2002, a fls. 32, do livro 184-A, do Cartório Notarial de Odivelas, a R., outorgando por si e na qualidade de procuradora do Autor, e utilizando para o efeito a procuração referida em 4 e 5, vendeu a si mesma, pelo preço de 62.349,74 euros, a fracção autónoma designada pela letra "Q", destinada a habitação, que corresponde ao 1º andar esquerdo do prédio urbano sito na Rua Parque de Campismo, lote 24, Santa Cruz, freguesia de A-dos-Cunhados, concelho de Torres Vedras, descrito na CRP de Torres Vedras sob o nº 1013 da dita freguesia, a qual era propriedade do A.
7. O A. e a R. celebraram o contrato promessa de cessão de quota, datado de 10 de Setembro de 1997, que se encontra junto de fls. 66 a 68.
8. Por escritura de compra e venda, e mútuo com hipoteca, lavrada em 8 de Agosto de 1994, a fls. 26, verso, do livro 11-M, do 3° Cartório Notarial de Lisboa, a R declarou que vendeu ao A, e este declarou que aceitava a venda, pelo preço de Esc. 9.000.000$00, a fracção autónoma identificada em F).
9. O A outorgou a procuração que se encontra junta a fls. 82, datada de 23 de Setembro de 1998, a favor da R, em que lhe concedia os poderes que se encontram aí descritos [assinar a escritura de hipoteca com o Banco...dando como garantia a fracção autónoma individualizada pela letra B que constitui a garagem na cave...], e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
10. Consta ainda do final do texto do instrumento referido em 5: "Estes poderes são conferidos também no interesse da mandatária pelo que esta procuração é irrevogável e não caduca por morte da mandante, bem como por sua interdição ou inabilitação, nos termos dos artigos 265°, nº3 e 1.170 e 1.175, do Código Civil".
Das respostas à base instrutória:
11. A propriedade do prédio referido em F), para além de outros, foi propositadamente passada para o nome do A, tendo em conta os vários problemas que a R. estava a ter relativamente ao seu ex-marido (resp. ao quesito 2º).
12. Situação que era conhecida pelo A, que vivendo com a R. estava a par de todo o seu património e das consequências que poderiam advir dos referidos problemas com o seu ex- marido (resp. ao quesito 3º).
13. Foi com base em conversas previamente encetadas entre os dois, que foi tomada a decisão de transferir para o A. a propriedade de alguns bens, inclusive a fracção referida em F) (resp. ao quesito 4º).
14. O fundamento subjacente a tal decisão foi tão só a salvaguarda dos bens em causa (resp. ao quesito 5º).
15. O A. e a R. sempre pretenderam manter o direito de disposição inerente à propriedade dos bens por parte da R. (resp. ao quesito 7º).
A sentença acrescentou ainda um facto--«O A. celebrou um contrato promessa de compra e venda referente ao prédio referido em F). doc. de fl. 390 a 392»--que, devido à sua incompletude face ao conteúdo do documento, se substitui pelo seguinte nos termos dos art. 712º nº1 al. a) e 659º nº3 do CPC:
16. O A. e a R. celebraram o contrato promessa de compra e venda datado de 26-3-1998 e com as suas assinaturas reconhecidas notarialmente, documentado a fls. 390 a 392, nos termos do qual o ora A. prometeu vender à ora ré e esta prometeu comprar-lhe o prédio referido em 6 (dita fracção Q) pelo preço de 12 500 contos, dando o A. quitação de 12 400 contos já recebidos e aí clausulando em 7º que «a escritura de compra e venda será efectuada em nome da segunda outorgante (a ré) ou de quem esta designar».
Sobre a impugnação da decisão de facto (conclusões A a G):
Em termos formais a impugnação pode considerar-se regularmente deduzida, nada obstando à sua apreciação. Porém, a decisão de facto, nos pontos a que se refere tal impugnação, não nos merece qualquer censura.
Com efeito, a testemunha Advogada acima aludida estava numa situação privilegiada para depor com ciência dos factos a que foi ouvida (redigiu como advogada da ora ré e das sociedades de que o ora A. também era sócio os contratos referidos nos autos e a dita procuração), tendo deposto com isenção e fidedignidade no sentido do provado. As ligeiras discrepâncias do depoimento relativamente ao conteúdo dalguns documentos juntos aos autos não obstam ao aproveitamento do depoimento, porquanto aquelas são inócuas. Acresce que as outras duas testemunhas referidas na alegação do apelante limitaram-se, no que poderia interessar, a avançar com meras suposições.
As respostas dadas aos quesitos 1º a 5º e 7º (objecto da impugnação) harmonizam-se com o merecimento do conjunto da prova produzida.
Improcede pois tal impugnação da decisão de facto.
De direito:
Antes de mais cumpre sublinhar que os factos dos pontos 7 e 9 surgem como irrelevantes para qualquer solução plausível da causa.
O que racionalmente se conclui da petição e da factualidade apurada é que foi a escritura de compra e venda de 24-10-02 (que o A. em 11 e 12 dessa peça taxou de “negócio consigo mesmo”—doravante NCM por brevidade), negócio constante do provado 6, que despoletou a reacção do A. e daí a instauração do pleito. É esse o negócio anulando. Para o efeito, o A. fez menção à procuração que lhe passara em 16-3-95 (factos 4, 5 e 16). Não fez menção ao contrato-promessa de compra e venda datado de 26-3-1998 relativo ao mesmo imóvel e celebrado entre A. e R. Foi a R. quem introduziu na acção a celebração desse contrato-promessa, factualidade que bem vistas as coisas funciona como excepção (meio de defesa indirecta impeditivo do direito feito valer pelo A.), como melhor veremos adiante. Sobre esse documento pronunciou-se o A. na resposta a fls. 93 ss, mais incisivamente nos art. 11 ss.
A acção improcedeu com esta fundamentação de direito da sentença, que por ser sucinta se reproduz integralmente:
«Nos autos a compra e venda do imóvel configura um negócio consigo mesmo.
«Nos termos do nº 1 do art. 261º do C. Civil, o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo («negotium a semet ipso»), seja «nomine proprio» seja «nomine alieno» (em representação de terceiro), é anulável, a não ser que o representado tenha especificamente consentido na celebração, ou que o negócio exclua, por sua natureza, a possibilidade de um conflito de interesses [1] .
«Cotejando o conteúdo da procuração verificamos que o A conferiu à Ré poderes para “comprar, vender, permutar ou hipotecar bens ou direitos móveis ou imóveis pelo preço e condições que entender”.
«Consta ainda da procuração referida que: "Estes poderes são conferidos também no interesse da mandatária pelo que esta procuração é irrevogável e não caduca por morte da mandante, bem como por sua interdição ou inabilitação, nos termos dos artigos 265°, nº3 e 1.170 e 1.175, do Código Civil".
«Parece assim, ser evidente que, a Ré, «procuradora», ao proceder à alienação, moveu-se exactamente dentro do acervo dos poderes que lhe haviam sido conferidos - vender, mesmo a si própria, pelo preço e condições que entender, bens imóveis - e daí que, por força do disposto no art. 258º do C. Civil, o negócio jurídico por ela celebrado houvesse de produzir os seus efeitos na esfera jurídica do seu representado, (ora Autor) .
«Alega no entanto o autor que, não tendo sido especificado e descriminado na procuração o imóvel ora em causa, estaria afastado do conteúdo da procuração.
«Manifestamente tal alegação não procede já que, a ser essa a interpretação, ficaria esvaziada de qualquer conteúdo aquela “cláusula” – podendo assim o A invocar tal fundamento em todo e qualquer contrato já que não foi especificado qualquer bem móvel ou imóvel.
«Mas, mesmo a não se entender assim – ou seja de que não basta a cláusula genérica “a procuração é outorgada no interesse do procurador” para que se conclua pelo interesse efectivo do mandatário – (v.g. a propósito Ac. STJ de 3-6-1997, in BMJ n.º468, pág. 361) sempre nos autos a prova obtida permite, à saciedade, tal conclusão;
«Na verdade provou-se que:
«A propriedade do prédio referido em F), para além de outros, foi propositadamente passada para o nome do A, tendo em conta os vários problemas que a R. estava a ter relativamente ao seu ex-marido.
«Situação que era conhecida pelo A, que vivendo com a R. estava a par de todo o seu património e das consequências que poderiam advir dos referidos problemas com o seu ex- marido.
«Foi com base em conversas previamente encetadas entre os dois, que foi tomada a decisão de transferir a propriedade de alguns bens, inclusive a fracção referida em F), para a propriedade do A.
«Mais, provou-se ainda que o A celebrou um contrato promessa de compra e venda à Ré referente ao prédio referido em F).
«Carece pois de todo e qualquer fundamento jurídico a pretensão do A.».
Analisemos as questões postas através das conclusões da alegação do recurso, posto que tais conclusões demarcam o âmbito deste.
1ª Questão:
Na conclusão H, o apelante discorda da posição do tribunal por na sentença se defender que é incorrecto entender-se como obrigatória a descrição na procuração, do imóvel objecto da outorga de poderes, com justificação no facto de que dessa forma ficaria a referida cláusula vazia de conteúdo, ou seja, a cláusula segundo a qual o A. conferia poderes à ré para «comprar, vender, permutar ou hipotecar bens ou direitos móveis ou imóveis pelo preço e condições que entender».
A decisão recorrida ter-se-á fundado no disposto no art. 261º nº1 do CC (único preceito legal aí citado além do art. 258º). E como daquele preceito se podem extrair várias normas, à falta de melhor especificação e tendo a acção sido julgada improcedente crê-se que o tribunal considerou o contrato de compra e venda válido por “o representado ter especificadamente consentido na celebração”, porquanto o tribunal citou a cláusula concedendo poderes para “comprar, vender, permutar ou hipotecar bens ou direitos móveis ou imóveis pelo preço e condições que entender”, bem como a cláusula de que «Estes poderes são conferidos também no interesse da mandatária pelo que esta procuração é irrevogável...», e concluiu «ser evidente que, a Ré, «procuradora», ao proceder à alienação, moveu-se exactamente dentro do acervo dos poderes que lhe haviam sido conferidos...».
De resto, a fundamentação de direito da sentença não é clara.
Na verdade, lê-se na fundamentação da sentença que «a Ré, procuradora, ao proceder à alienação, moveu-se exactamente dentro do acervo dos poderes que lhe haviam sido conferidos - vender, mesmo a si própria, pelo preço e condições que entender, bens imóveis». Só que da procuração, ou seja do provado, não consta qualquer cláusula conferindo à ré poderes representativos para vender, mesmo a si própria, pelo preço e condições que entender, bens imóveis!
A inclusão dessa eventualidade nos poderes conferidos (a venda pela procuradora a si mesma) não se extrai do clausulado da procuração segundo as regras legais de interpretação: não há qualquer correspondência no texto (v. art. 236º a 238º do CC).
O raciocínio, se bem o entendemos, terá sido este: como o A. conferiu poderes à ré, entre outros, para vender bens imóveis pelo preço e condições que entender e como o A. os conferiu também no interesse da ré, a ré “moveu-se exactamente dentro do acervo de poderes conferidos” ao vender (embora a si mesma) o imóvel. E, diversamente do que o A. defendera, a procuração não tinha de especificar o imóvel em causa, porque, se assim fosse, a cláusula segundo a qual a ré podia vender imóveis ficava esvaziada de conteúdo. Quer dizer, entendemos nós: o A. consentiu naquela venda efectuada pela ré a si própria, ao conferir os poderes para a venda de imóveis pelo preço e condições que entender, e a ré moveu-se dentro dos poderes conferidos. Esse, ao que nos parece, o raciocínio vertido na sentença.
A questão volver-se-ia assim em saber se—de acordo com a sentença—a acção devia improceder por ter havido consentimento para o negócio consigo mesmo, consentimento a cuja conclusão se chegava pela redacção da dita cláusula (concessão de poderes para vender imóveis...) sem necessidade de na dação de poderes se especificar o imóvel que depois a ré comprou para si, ou se—de acordo com a posição do apelante—a acção deve proceder porque para se concluir pelo consentimento no NCM ( [2] ) era necessário que na procuração se especificasse o imóvel a vender que depois a ré comprou para si.
No nosso entender, a posição defendida pelo apelante não é a correcta, nem o fundamento de improcedência da acção pode ser aquele que parece ressumar da fundamentação de direito da sentença. Ou seja: o consentimento, a ter existido, não se bastaria com a especificação do imóvel a vender, nem o fundamento para a improcedência (não anulação do NCM) consiste em ter havido consentimento para o NCM. O que passamos a justificar.
Há representação quando uma pessoa, investida de poderes para o efeito, age em nome e no interesse de outra. A procuração promove a concessão de poderes de representação. Mas é possível que o representante aja também no seu próprio interesse, munido ou não de procuração in rem suam, ou aja também no interesse de 3º. O dador de poderes de representação pode consentir especificadamente que o representante aja também no seu próprio interesse, seja através de procuração in rem suam, seja através da relação de gestão (negócio causal ou subjacente à procuração), hipóteses em que o representado não se pode mais tarde valer de qualquer conflito de interesses daí resultante porque ele próprio assumiu ou afastou o risco de lesão do seu interesse. Se o dador de poderes não consentiu especificadamente em que o representante aja também no seu próprio interesse e este assim agiu, o caso pode mudar de figura, pois a lei presume que houve conflito de interesses e dá à pessoa em nome da qual se agiu a possibilidade de fazer prevalecer o seu interesse (ainda que apenas potencialmente lesado), promovendo a anulação do negócio celebrado pelo procurador, ou considerando-o ineficaz perante si representado, até que este o ratifique, se quiser.
Em sede de representação (actuação em nome de outrem), a lei regula os conflitos de interesses entre representante e representado nos casos de: NCM (art. 261º), representação sem poderes (art. 268º) e abuso de representação (art. 269º), cominando no 1º caso a sanção de anulabilidade e nos dois restantes a de ineficácia, aliás sob requisitos diferentes.
No NCM em sentido estrito, a pessoa age simultaneamente em nome próprio e como representante, enquanto na dupla representação ou representação plural a pessoa age em representação (orgânica ou voluntária) de duas partes.
A relação de representação (entre representante e representado) está destinada por natureza a operar nas relações com terceiros, i. é, destinada naturalmente a que o representante celebre contrato ou negócio unilateral ou pratique acto jurídico com terceiro e não consigo próprio ( [3] . Daí que, em regra, o NCM seja anulável, ou seja: o NCM só se considera válido se e enquanto o representado não obtiver a sua anulação.
Com efeito, preceitua o art. 261º nº1 do CC:
«É anulável o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, seja em nome próprio, seja em representação de terceiro, a não ser que o representado tenha especificadamente consentido na celebração, ou que o negócio exclua por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses».
A regra é pois a da anulabilidade. Mas o preceito abre duas excepções: 1ª) ter o representado especificadamente autorizado, consentido na celebração do NCM; 2ª) quando o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo exclua por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses.
Quanto à 1ª, não basta uma autorização genérica, do tipo “autorizo o procurador a celebrar negócios consigo mesmo”. Mas também não se vai ao ponto de exigir a fixação das condições do negócio consentido; a autorização não carece de pré-determinar as condições do contrato a celebrar. O que a lei pretende é apenas a individualização (especificação) do NCM, de modo que é suficiente a autorização especial, do tipo “autorizo o meu procurador A a fazer a partilha da herança x consigo mesmo” ou “ a celebrar a compra e venda dos meus prédios consigo mesmo” ou “do prédio x consigo mesmo” ( [4] ). Só assim, e desde logo assim, há a garantia de que o representado formou consciência dos riscos que corre com a procuração.
Ainda que no instrumento dito procuração (ou noutro) se tivessem individualizado os imóveis em relação aos quais se atribuíam à ré poderes de gestão e de venda, isso não bastava para se considerar ter havido consentimento no NCM. É que, na falta de outra especificação, se deve entender que a dação de poderes de representação era destinada a operar nas relações com terceiros e não em NCM. E assim é porque em nenhum instrumento idóneo se mostra ter o A. autorizado a ré a celebrar algum NCM. E a autorização nunca poderia ser posterior ao NCM.
Refere a sentença que, a não se entender deste modo a dita cláusula, esta fica esvaziada de conteúdo. Mas assim não é porque a ré poderia, nos termos da autorização genérica contida no instrumento da procuração, vender os imóveis em nome do A. e a qualquer 3º em vez de a ré comprar para si, hipótese aquela em que não se pode afirmar que a cláusula ficava sem conteúdo.
Posto isto, porque não vem provado o consentimento do A. em que a ré celebrasse o NCM, o NCM celebrado só não é de anular se se verificar a 2ª excepção, ou seja, se se concluir que o negócio exclui por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses.
Ao sancionar a celebração do NCM com a anulabilidade, a lei presume haver entre representante e representado um conflito de interesses, com sacrifício do interesse do representado. Mas a lei prevê a hipótese de assim não ocorrer, permitindo ao representante que o prove, caso em que não actua aquela sanção.
Ao comprar, o representante realiza um seu interesse; ao vender em nome do representado, realiza um interesse deste. Mas nem sempre a existência desses interesses implica haver entre eles conflito ou colisão, ou seja, sacrifício do interesse do representado à custa da prossecução do interesse do representante que negociou consigo mesmo. Só se o provado puder levar a concluir que inexistiu a possibilidade de tal conflito ou colisão é que ao NCM não deverá ser aplicada a sanção de anulação. No caso estará afastada a possibilidade de tal conflito?
Afigura-se-nos que no caso a natureza do negócio afasta a possibilidade de tal conflito ou colisão de interesses. A natureza de negócio que afaste a possibilidade de conflito de interesses não se resume à gratuitidade, v. g. aos casos de doação feita pelo representante ao representado. O que releva é que se conclua do negócio não poder o representante ter-se valido da sua qualidade para extrair benefícios a seu favor (ou de outrem), com lesão para o representado (ou um dos representados, conforme a modalidade de NCM), como em princípio é de concluir por exemplo nos casos em que: (a) haja predeterminação do conteúdo do NCM de modo a só ficar ao critério do representante a escolha do outro contraente [5] , v. g. o empregado da bilheteira compra para si próprio um dos bilhetes para o espectáculo; (b) se trate de cumprimento de uma obrigação; (c) se trate de doação feita pelo representante ao representado [6] . Como veremos, a hipótese (b) é a que se verifica no caso dos autos.
Também na doutrina do Prof. C. A. Mota Pinto se apresentam exemplos semelhantes: compra e venda de produtos tabelados ou com preço de venda ao público anunciado (v. g. a dita compra de bilhete pelo empregado); a compra e venda em cumprimento de contrato-promessa anterior; cumprimento de obrigação; o caso em que o NCM só traz vantagens para o representado (v. g. doações) ( [7] ).
Ora, está provado que o A. e a R. celebraram o contrato promessa de compra e venda datado de 26-3-1998 e com as suas assinaturas reconhecidas notarialmente, documentado a fls. 390 a 392, nos termos do qual o ora A. prometeu vender à ora ré e esta prometeu comprar-lhe o prédio referido em 6 (dita fracção Q) pelo preço de 12 500 contos, dando o A. quitação de 12 400 contos já recebidos e aí clausulando em 7º que «a escritura de compra e venda será efectuada em nome da segunda outorgante (a ré) ou de quem esta designar».
Esta expressão «em nome da segunda outorgante» não oferece rigor técnico mas, no contexto, só pode razoavelmente significar que a compra pode ser feita a favor da segunda outorgante, a ré, ou a favor de quem esta designar, portanto à escolha da ré.
Sucede que posteriormente a esse contrato promessa a ré veio a celebrar a compra do prédio a seu favor e a venda em nome do A. (portanto, o NCM em causa), como pelo contrato promessa o A. se obrigara e pelo preciso preço convencionado entre promitentes, além de o contrato definitivo, celebrado em cumprimento da promessa, respeitar as demais cláusulas convencionadas.
Desta feita, está demonstrado que o NCM não afectou qualquer interesse do A., pelo que o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo exclui por natureza a possibilidade de um conflito de interesses, no sentido do art. 261º nº1 do CC. O mesmo é dizer: o NCM em causa é excepcionalmente válido, porque o contrato de compra e venda em que a ré outorgou como compradora foi celebrado em cumprimento daquele contrato-promessa anterior.
Nestes termos e com este fundamento (impossibilidade de conflito de interesses) a acção tinha de improceder. A sentença falhou no fundamento (o consentimento) mas acertou na decisão do litígio.
Note-se que na petição o A. invocou a proibição do contrato consigo próprio celebrado pela ré, discorrendo que não lhe deu o consentimento para a celebração daquele contrato e que tal venda não foi especificada na procuração. A causa de pedir consiste apenas na invocação da celebração do contrato consigo próprio, o que é suficiente, em regra, para a sua anulação. O restante (a falta de consentimento...) é mera defesa antecipada, na suposição de que a ré se iria defender excepcionando a existência de consentimento para a celebração do NCM, mas de facto a ré excepcionou a existência do contrato-promessa a cujo cumprimento o celebrado contrato de compra e venda se cinge.
Restantes questões:
Em relação às conclusões H e I ainda cumpre dizer-se que o NCM é, no caso, válido independentemente de na procuração não ter sido identificado o imóvel que depois veio a ser objecto desse NCM celebrado. É o que já se explicou ao tratar-se da 1ª questão.
Ainda quanto à conclusão I, verifica-se que o recorrente tem defeituoso entendimento sobre as funções notariais. A função do notário não consiste em (só) atestar “a veracidade das pessoas...”. O notário, em suma, zela pela legalidade dos actos negociais que lhe cabe lavrar, pode aconselhar nesse âmbito os interessados para que estes outorguem os actos dentro dos parâmetros legais, certifica-se da capacidade e consciência dos declarantes, etc.
Quanto a J), não se pode concluir que a ré tenha abusado da procuração ou da boa fé do A. por a procuração conter referência à alienação de imóveis sem os identificar, como resulta do que já acima se expôs sobre a 1ª questão e considerando que o caso entra na margem de risco própria de quem se propõe agir através de representante passando procuração livremente.
Quanto a L), o provado não sustenta a ideia de falsidade do contrato-promessa, nem o processo-crime constitui causa prejudicial a considerar para a suspensão da instância cível. Aliás, não consta pronúncia da 1ª instância na sentença sobre tal questão, nem vem arguida nulidade por falta dessa pronúncia.
Quanto a M), N) e O), cumpre dizer que se o A. conferiu os poderes como constam da procuração, tal é imputável ao A., mais: imputável unicamente ao A. é que a procuração é negócio unilateral, no caso de sua exclusiva outorga. E os poucos anos que decorreram entre tal outorga e a celebração do contrato-promessa e do contrato definitivo não permitem concluir pela “alienação de uma faculdade pessoal ad aeternum”. Não se vislumbra qualquer ofensa às normas ou princípios da Constituição da República e, ainda que por mera hipótese houvesse alguma tal ofensa, esta seria apenas imputável ao dador de poderes, o A.
Quanto a P), conclusão segundo a qual não existia, no caso, qualquer relação subjacente ao mandato de representação que suportasse o carácter de irrevogabilidade à procuração em causa, desde logo se verifica haver alguma confusão no modo como o apelante se exprime, tornando praticamente ininteligível o fundamento argumentativo. É que procuração não se confunde com mandato. E há mandato com representação e mandato sem representação. Mas o que é para o apelante um «mandato de representação» é algo que fica por explicar. Por outro lado, a uma procuração pode não subjazer um contrato de mandato mas sim outro contrato ou negócio (e no caso o instrumento de procuração não contém qualquer contrato de mandato pois que se trata de negócio unilateral, assinado aquele apenas pelo A. único declarante). De resto, nem a causa configura alguma questão baseada em que o A. tenha revogado a procuração ou tenha pretendido revogá-la, nem se trata de questão posta em apreciação na sentença recorrida: é antes uma questão nova e não de conhecimento oficioso, que portanto extravasa o âmbito do recurso, e aliás de contornos ininteligíveis como se referiu.
Em face das conclusões da alegação, não se verifica algum fundamento para revogação ou anulação da sentença.
III- Decisão:
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a decisão impugnada embora por diferente fundamento.
Custas pelo apelante.
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[1]Estes parágrafos são, quase ipsis verbis, transcrição dos primeiros dois parágrafos da 1ª coluna a fl. 124, tomo II, da CJ/STJ de 2003, do texto do Ac. STJ de 26-6-2003 aí publicado a fls. 122 ss, incluindo a cláusula com a expressão « vender, mesmo a si própria, pelo preço e condições...», cláusula que no caso do Ac. tinha realmente essa redacção como resulta do relatório publicado, mas que não tem correspondência com o provado no presente processo. O caso do Ac. tem contornos factuais diversos e há que ter-se cuidado com a transposição das soluções. Tal Ac. não aparece citado na sentença. A sentença devia ter encarado a exacta situação factual a julgar.
[2] Assim se designará no texto, por brevidade, o negócio consigo mesmo.
[3] Assim, Jorge Duarte Pinheiro, O NCM, in Estudos em Homenagem do Prof. Doutor I. G. Telles, IV, pág. 143.)
[4] Cfr. Jorge Duarte Pinheiro, op. cit., p. 164, e I. G. Telles, aí citado na nota 90. Referem P. de Lima e A. Varela, in CC Anot., I, p. 242 s: «O consentimento tem de especificar o acto que se autoriza, pois só assim há a garantia de que o representado tem consciência do risco que corre».
[5] Algo há-de ficar ao critério do representante, caso contrário tratar-se-ia de núncio (simples transmitente da declaração de outrem). O representante não transmite, antes emite uma declaração em nome de outrem, e daí que a falta ou vícios da vontade se hão-de verificar em princípio na pessoa do representante e não do representado.
[6] Cfr. Jorge Duarte Pinheiro, op. cit., p. 165 s
[7] Cfr. Teoria Geral do Direito Civil, 2005, nota 769 a p. 552.