EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
CASO JULGADO
AUTORIDADE
Sumário

I – A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não possa subsistir por motivos atinentes ao sujeito ou ao objecto do processo.
II - Estando pendente uma acção em que o autor reivindica um prédio do réu, mas se entretanto correu uma outra acção, na qual foi decidido, por trânsito em julgado, reconhecer o direito de propriedade do mesmo prédio ao réu, esta decisão funciona como autoridade do caso julgado, que implica a extinção da instância da acção de reivindicação, não por inutilidade superveniente da lide, mas por julgamento de forma (art.287º, a), do CPC), inviabilizando uma pronúncia de mérito.
III – Quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

1.1. - Os Autores – A... e marido B... - instauraram ( 4/7/95 ) na Comarca de Trancoso acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra os Réus – C... e mulher D... , pedindo a condenação dos Réus:
a) – A reconhecer que o prédio urbano composto por armazém, sito na Zona Industrial em Trancoso, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Trancoso sob o artigo 994 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Trancoso sob a ficha 13.662, a fls. 38 verso do Livro B-35 é propriedade da A. e marido;
b) – A reconhecer que ocupam o mencionado prédio a título gratuito e por mero favor;
c) – A restituir o prédio livre e desembaraçado aos seus legítimos proprietários, designadamente a ora Autora, até 30 dias depois da citação;
d) – A reconhecer que, se não o entregarem até à data referida, causarão prejuízos à Autora;
e) – A pagarem aos Autores no caso de não entregarem o prédio na data designada, uma indemnização pelos prejuízos que causaram pela ocupação indevida, contados desde aquela data, à razão de 2.493,99 € por mês (fls. 6).
Contestaram os Réus, defendendo-se, em síntese:
Embora reconheçam o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio, alegaram terem feito obras, que lhes conferem o direito às benfeitorias, com o consequente direito de retenção até serem pagos.
Concluíram pela improcedência da acção, com ressalva do reconhecimento do direito de propriedade dos Autores, e em reconvenção pediram:
a) - A condenação dos Autores a pagar-lhes a quantia de € 99.759,58, referente às benfeitorias realizadas, com juros moratórios à máxima taxa legal a partir da notificação da reconvenção;
b) - Seja declarado o direito de retenção dos Réus sobre o imóvel até integral pagamento do valor reclamado pelas mencionadas benfeitorias;
Replicaram os Autores, contraditando a reconvenção
No saneador afirmou-se tabelarmente a validade e regularidade da instância.

1.2. - Em 5/5/2002, os Réus requereram a suspensão da instância, com fundamento em causa prejudicial, visto estar pendente a acção ordinária nº88/1995, na qual pediram o reconhecimento do direito de propriedade sobre o mesmo prédio, com base na acessão industrial imobiliária.
Os Autores opuseram-se.
O tribunal, por não dispor de elementos, relegou para momento posterior a decisão sobre a requerida suspensão da instância.
Em 11/1/ 2005, os Réus juntaram cópia da petição inicial e do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra referentes à mencionada acção de processo ordinário n.º 88/1995 (fls. 493).
Em 7/2/2005, os Réus informaram que o Supremo Tribunal de Justiça já havia proferido acórdão no processo ordinário n.º 88/1995, no qual confirmou o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no sentido de reconhecer que os Réus haviam adquirido o imóvel em causa nestes e naqueles autos por acessão industrial imobiliária, sendo certo que tal acórdão, de que juntam cópia, não havia, ainda, transitado em julgado, pelo que voltaram a requerer a suspensão da instância até ao trânsito em julgado do acórdão do Supremo.
Os Autores opuseram-se, dizendo inexistir fundamento para a suspensão da instância ( fls.579 ).
Na sequência da notificação, para o efeito, os Réus juntaram certidão, com nota de trânsito em julgado, ocorrido em 26 de Abril de 2005, do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, que confirma integralmente o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, tendo este julgado a acção de processo ordinário n.º 88/1995 procedente e, consequentemente, declarado que os ali AA., aqui RR., adquiriram o prédio urbano em causa em ambos os autos por acessão industrial imobiliária ( fls.611 ).
O tribunal mandou juntar cópia de determinadas peças processuais da acção nº88/95 ( fls.628 ).

1.3. – Na acção ordinária nº88/95, C... demandou ( em 4/9/95 ) os Réus A... e marido B... – pedindo:
a) - Sejam os Réus condenados a reconhecer que o Autor tem a faculdade de adquirir o imóvel identificado nos autos por acessão industrial imobiliária, mediante o pagamento do valor que ele tinha antes das obras referidas no articulado inicial e, na medida em que já o pagou, deverá o Autor ser dispensado de novo pagamento, transmitindo-se-lhe o direito de propriedade sobre tal prédio;
b) - Se assim não se entender, devem os Réus ser condenados a restituir ao Autor a importância que este pagou, devidamente actualizada, no montante de 174.579,26 €; ou
c) - Se assim não se entender, a importância a restituir será do montante de 22.445,91 €, acrescida de uma indemnização pela não conclusão do negócio, sendo sempre o valor a receber pelo Autor de 174.579,26 €;
d) - A estas quantias, devidamente corrigidas pelo tribunal, se for caso disso, acrescem juros de mora a contar da citação.
Contestaram os Réus e em reconvenção o Réu marido pediu:
a) - A condenação do Autor reconvindo a pagar ao Réu marido a quantia total de 231.442,22 €, acrescida de juros de mora desde a data do conhecimento do pedido reconvencional;
b) - Subsidiariamente, no caso de se entender que é de condenar o R. marido ao pagamento da quantia de 22.445,91 € acrescida de juros ou de taxa de correcção, deve o Autor ser condenado a pagar juros à taxa legal sobre os respectivos montantes devidos pela ocupação do imóvel desde 1981, operando-se a compensação do crédito do Réu marido sobre o Autor com o deste sobre o Réu marido, condenando-se o Autor. a pagar o remanescente.
O tribunal da 1ª instância proferiu sentença a declarar a nulidade, por vício de forma, do contrato-promessa celebrado entre Autor e Réus, condenando estes a restituírem àquele a quantia de 4.500.000$00, acrescida de juros de mora, e condenou o Autor a pagar aos Réus a quantia de 9.600.000$00, bem como 100.000$00 por mês, desde Novembro de 1993 até entrega do imóvel, absolvendo Autor e Réus dos demais pedidos.
A Relação de Coimbra, revogando a sentença, condenou os Réus a reconhecerem que o Autor adquiriu o imóvel por acessão industrial imobiliária, mediante pagamento, já efectuado, do valor que o mesmo tinha antes das obras nele realizadas, transmitindo -lhe o direito de propriedade sobre o mesmo.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 18/1/2005, transitado em julgado, confirmou o decidido pela Relação ( fls.613 a 626 ).
1.4. - Por sentença de 10/7/2006, decidiu-se julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art.287 alínea e) do CPC ( fls.779 a 808).

1.5. - Inconformados os Autores recorreram desta decisão, sendo o recurso admitido como de apelação, mas corrigido na Relação para agravo, cujas conclusões se passam a resumir:
1º) - A decisão recorrida, ao julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, consubstancia uma flagrante e grave violação do direito constitucionalmente consagrado a uma tutela jurisdicional efectiva.
2º) – Os efeitos de uma decisão sobre outra acção limitam-se às situações de excepção dilatória de litispendência ou caso julgado, em que a instância de extingue naturalmente e não por inutilidade superveniente da lide.
3º) – Na situação concreta não existe caso julgado, na medida em que não há identidade de pedidos, nem de causa de pedir.
4º) – O tribunal já se pronunciou, decidindo pela improcedência da excepção de litispendência, tendo de concluir-se no mesmo sentido quanto ao caso julgado.
5º) – Tendo a presente acção sido proposta em momento anterior à acção intentada pelo recorrido, não podem os recorrentes arcar com as consequências da impressionante morosidade processual, por violação do direito à tutela jurisdicional efectiva.
6º) – A decisão recorrida violou os arts.1º, 2º, 9º b), 13º, 20º nº4 e 2002 da CRP e arts.493, 494 i), 497, 498 do CPC.
Contra-alegaram os Réus, preconizando a improcedência do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO

A pretensão dos Autores reconduz-se a uma acção de reivindicação contra os Réus, tendo por objecto o prédio urbano composto por armazém, sito na Zona Industrial em Trancoso, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Trancoso sob o artigo 994, cumulando o pedido de indemnização, pela não entrega do bem reivindicado.
A acção de reivindicação, enquanto manifestação do direito de sequela, visa afirmar o direito de propriedade e pôr fim a situações ou actos que o violem, tendo como primeiro desiderato a declaração de existência do direito ( “ promuniatio “ ) e, como escopo ulterior, a sua realização ( “ condennatio “ ).
Daí que na acção de reivindicação concorram dois pedidos: o do reconhecimento do direito e o da restituição da coisa, objecto desse direito ( art.1311 nº1 do CC ).
Trata-se de uma cumulação aparente, visto que o pedido de entrega já contem implícito o do reconhecimento do direito de propriedade, podendo ainda acrescer a estes pedidos o de indemnização pelos danos causados.

Contudo, na acção nº88/95, instaurada pelo aqui demandado C..., contra os agora Autores, foi-lhe reconhecido o direito de propriedade sobre o imóvel reinvindicado, em virtude da acessão industrial imobiliária.
A questão essencial submetida a recurso consiste em saber das implicações da decisão, transitada em julgado, que reconheceu o direito de propriedade ao aqui Réu marido sobre o imóvel, na pendência da presente acção.
A sentença recorrida considerou tratar-se de uma causa de extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide ( art.287 e) do CPC ).
Sustentam os agravantes inexistir fundamento legal para a extinção da instância, com base na inutilidade superveniente da lide, porquanto os efeitos da decisão proferida na acção nº88/95 só relevariam em sede de excepção de caso julgado, mas que aqui não se verifica por ausência de identidade de sujeitos e de causa de pedir.
A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não possa subsistir por motivos atinentes ao sujeito ou ao objecto do processo.
Consubstancia-se naquilo a que a doutrina processualista designa por “modo anormal de extinção da instância”, visto que a causa normal é a sentença de mérito ( cf., por ex., ALBERTO DOS REIS, Comentário, vol.III, pág.364 e segs., LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, vol.I, pág.512 ).
Entre outros, são exemplos de impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, por motivo atinente ao objecto, o perecimento ou desaparecimento da coisa infungível reivindicada, a entrega do pedido na pendência da acção de reivindicação ( cf., Ac RC de 26/2/80, BMJ 296, pág.342, Ac RE de 12/6/80, BMJ 301, pág.479 ), o mesmo sucedendo), o mesmo sucedendo na acção de despejo com a desocupação do prédio arrendado (cf. Ac RC de 15/1/80, BMJ 295, pág.466), se no decurso de uma acção de indemnização o réu pagou a quantia requerida, ou o conhecimento superveniente de alienação, anterior à acção de execução específica de coisa prometida vender.
Perante a superveniente impossibilidade ou inutilidade da lide, o tribunal declara extinta a instância, ou seja, a relação jurídica processual, sem apreciar o mérito da causa, assumindo a decisão natureza meramente declarativa ( cf., por ex., RODRIGUES BASTO, Notas, II, pág.60, Ac STJ de 5/11/92, BMJ 421, pág.338 ).
No caso concreto, o que justifica a extinção da instância da presente acção em virtude da decisão definitiva proferida na acção nº88/95 é precisamente a autoridade do caso julgado daquela decisão, que não se confunde com a excepção do caso julgado, conforme, aliás, se decidiu no Ac do STJ de 12/1/90, BMJ 393, pág.563, invocado pelos agravantes.
Definindo o âmbito de aplicação de cada um dos conceitos, refere TEIXEIRA DE SOUSA:
“A excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contraria na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (...), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (...).Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva a repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente ( “ O objecto da sentença e o caso julgado material”, BMJ 325, pág.171 e segs. ).
A autoridade do caso julgado tem o efeito positivo de impor a primeira decisão e como elucida LEBRE DE FREITAS “ “Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.
A jurisprudência tem acolhido esta distinção ( cf., por ex., Ac do STJ de 26/1/94, BMJ 433, pág.515, Ac RC de 21/1/97, C.J. ano XXII, tomo I, pág.24 ), sendo que para a autoridade do caso julgado não se exige a coexistência da tríplice identidade, prevista no art.498 do CPC ( cf., por ex., MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, pág.320, Ac RC de 21/1/97, C.J. ano XXII, tomo I, pág.24, Ac RC de 27/9/05, em www dgsi.pt ).
Considerando que a força e autoridade do caso julgado visam evitar que a questão decidida pelo órgão jurisdicional possa ser validamente definida, mais tarde, em termos diferentes por outro ou pelo mesmo tribunal e que possui também um valor enunciativo, que exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada e afasta todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele que seja excluído pelo que foi definido na decisão transitada, uma vez que a presente acção tem como pressuposto o direito de propriedade sobre o imóvel, já se vê que não pode subsistir a acção de reivindicação de um bem cujo direito de propriedade foi, entretanto, julgado pertencer ao demandado.
Bem vistas as coisas, foi precisamente na autoridade do caso julgado que a decisão fundamentou a extinção da instância:
“ Na verdade, não podem os AA. exigir ao tribunal que declare que os mesmos são donos e legítimos proprietários do imóvel em causa nos autos no dia em que fosse proferida a decisão quando já existe uma decisão anterior transitada em julgado que diz que os aqui RR. “adquiriam tal imóvel dos AA” (diga-se assim) por acessão industrial imobiliária em momento muito anterior.
É que, nesta parte, aquela decisão transitada em julgado constitui verdadeiro caso julgado face ao peticionado pelos AA. nos presentes autos” ( sic ).
Como a autoridade do caso julgado consubstancia uma excepção dilatória de conhecimento oficioso ( arts.494 i) e 495 do CPC ), tal implica a extinção da instância, não por inutilidade superveniente, mas por julgamento de forma ( art.287 a) do CPC ), que, de igual modo, inviabiliza uma pronúncia de mérito.
A segunda objecção dos agravantes prende-se com a pretensa violação do direito constitucional a uma tutela jurisdicional efectiva, mas sem consistência, conforme se justificou na decisão recorrida, para a qual se remete.
Basta atentar, além do mais, que os agravantes tiveram intervenção na acção ordinária nº88/95, na qual se decidiu pela atribuição do direito de propriedade do imóvel ao Réu marido, pelo que não podiam desconhecer das implicações sobre o objecto desta acção.
Improcede o agravo, confirmando-se a sentença recorrida, embora com diversa fundamentação.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar improcedente o agravo e confirmar a decisão recorrida.
2)
Condenar os agravantes nas custas, sem prejuízo do apoio judiciário concedido à agravante A... ( fls.188 e 189 ).