O crime de abuso de confiança só se consuma a partir do momento em que se verifica a inversão do título de posse, isto é, quando o agente, detentor ou possuidor legítimo, a título precário ou temporário, faz entrar a coisa no seu património ou passa a dispor dela como se fosse sua.
RELATÓRIO
Nos presentes autos de instrução vindos do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Covilhã, o Mmº Juiz proferiu despacho de não pronúncia da arguida A...., por inexistência de indícios suficientes do cometimento do crime de abuso de confiança p. e p. pelo artº 205º nº 1 do CP.
Dessa decisão recorreu o assistente B....., que conclui a sua motivação nos seguintes termos:
“ 1. - Resultam dos autos à saciedade todos os indícios que permitem pronunciar a Arguida, em ordem a submetê-la a julgamento, pela prática de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo Art° 205°, n° 1 do Código Penal.
2. - Dúvidas algumas podem restar, atentos os factos indiciários constantes dos autos, que se mostram completamente preenchidos e verificados todos os elementos típicos, objectivos e subjectivos integradores do ilícito penal imputado pelo queixoso à arguida.”.
O Ministério Público respondeu, concluindo que o recurso não deve merecer provimento.
Nesta instância o Exmº Procurador Geral Adjunto é de parecer que o recurso deve ser julgado improcedente.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTAÇÃO
Face à prova produzida nos autos, são os seguintes os factos indiciados, os quais estiveram igualmente subjacentes ao despacho recorrido:
“ O assistente candidatou-se a projecto de criação do próprio emprego;
O assistente, porque tivesse necessidade de indicar o local onde pretendia instalar a sua actividade, negociou com a arguida o arrendamento de um espaço destinado a tal fim, mediante o pagamento da quantia mensal de 600 euros;
A arguida assinou a declaração junta a fls. 8;
E o assistente entregou-lhe o cheque junto a fls. 9, no montante de 1200 euros;
O contrato de arrendamento viria a ser celebrado se projecto fosse aprovado;
Caso o não fosse, a arguida devolveria o cheque ao assistente;
Sem que tivesse sido outorgado o contrato de arrendamento, a arguida datou o cheque de 10/12/05 e apresentou-o a pagamento em 15/12 e 20/12, tendo o cheque sido sucessivamente devolvido por falta de provisão.”.
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões da motivação, a questão colocada à cognição deste Tribunal consiste em saber se a indiciada factualidade integra a prática pela arguida do crime de abuso de confiança, como defende a recorrente ou se, pelo contrário, não se indicia qualquer conduta delituosa, designadamente o aludido crime, como o entendeu o Sr. juiz.
Nos termos do artº 205º nº 1 CP, são requisitos do crime de abuso de confiança :
- a apropriação ilegítima
- de coisa móvel
- entregue por título não translativo de propriedade.
Quer isto dizer que no crime de abuso de confiança a coisa não é subtraída a outrem pelo agente do crime, como sucede no caso do furto, mas entra no seu poder validamente, por título não translativo da propriedade, dando-lhe contudo um destino diferente daquele para que lhe foi confiada, dispondo dela como se fosse sua, ou seja com o propósito de não a restituir, ou de não lhe dar o destino a que estava ligada, passando a agir animo domini.
Como escreve Figueiredo Dias1 “Abuso de confiança é, segundo a sua essência típica, apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio; é, vistas as coisas por outro prisma (cf. em todo o caso infra § 4 s.), violação da propriedade alheia através de apropriação, sem quebra de posse ou detenção (por isso sendo este crime chamado, em várias ordens jurídicas de diferente linguagem, «apropriação indevida»). Daqui resulta que o crime de abuso de confiança, tal como o crime de furto, é um crime patrimonial pertencente à subespécie dos crimes contra a propriedade; tem como objecto de acção, tal como o furto, uma coisa móvel alheia; e, ainda como o furto, revela-se por um acto que traduz o mesmo conteúdo substancial de ilicitude, uma apropriação.
Pese às identidades que ficam anotadas, o crime de abuso de confiança ganha autonomia e especificidade perante o crime de furto logo na contemplação do bem jurídico protegido, que é aqui exclusivamente a propriedade. Com efeito, no furto protege-se a propriedade, mas protege-se também e simultaneamente a incolumidade da posse ou detenção de uma coisa móvel, o que oferece, em definitivo, um carácter complexo ao objecto da tutela. Diferentemente, no abuso de confiança só a propriedade como tal é objecto de tutela e constitui assim integralmente o bem jurídico protegido. Dito com as palavras sugestivas de MAIWALD, diferentemente do que sucede com o ladrão, «ao abusador de confiança poupa-se o esforço de ter de 'subtrair' a coisa» (M / S / MAIWALD 1 §34 1).
A partir desta conclusão não falta quem sublinhe que o perigo para a propriedade resultante do abuso de confiança é mais pesado e grave que o resultante do furto. O argumento que a propósito se esgrime nas literaturas jurídico-penais alemã e italiana é o de que esse maior peso e gravidade deriva da circunstância de o proprietário da coisa furtada poder exigi-la de terceiro adquirente de boa fé, o que já não sucede com o proprietário da coisa apropriada através de abuso de confiança. Este argumento não vale porém perante o direito civil português, sabido como é que a aquisição a non domino, mesmo de boa fé, não é por princípio protegida em qualquer dos casos (…). Em todo o caso a conclusão apontada não deixará porventura, também entre nós, de ter o seu valor não em função de uma consideração jurídica, mas prática: a de que a posição jurídico-processual da vítima de abuso de confiança será em geral mais difícil e gravosa do que a da vítima de furto, por ser mais custoso provar a «inversão do título de posse» - que, como se dirá infra § 20, constitui a essência típica da conduta abusiva da confiança - do que a «subtracção» que se viu ser elemento essencial da tipicidade do furto.
Face a esta essencialidade, de resto, não tem hoje sentido, mesmo só em perspectiva formal - sistemática, integrar o crime de abuso de confiança nos «furtos», seja como «furto impróprio» (assim CARLOS ALEGRE, «Crimes contra o Património», Cadernos da RMP 3 1988 77 ss.), seja como «furto especial» (assim J. A. BARREIROS, Crimes contra o Património 1996 82): uma tal integração representaria, salvo melhor opinião, o retrocesso de mais de um século na elaboração dogmática dos crimes contra o património (a propriedade).
Por quanto fica já exposto não deixa de ser em alguma medida equívoca a redução da essência do abuso de confiança à apropriação de coisa móvel alheia, sem quebra de posse ou detenção (supra § 1; e sobre a questão que se segue, entre nós e por último, PEDROSA MACHADO, RPCC 1997 495 ss.). Sendo isto em si exacto, toma-se em todo o caso indispensável que o agente tenha detido a coisa (que a coisa «lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade», como claramente se exprime o art. 205º-1). Assim, entra na própria conformação do bem jurídico um elemento novo, que serve inclusivamente para contrapor o abuso de confiança à mera apropriação indevida. Depara-se aqui com uma linha de pensamento e uma orientação legislativas de segura tradição francesa. Com efeito, já o C.P. napoleónico de 1810 (art. 408º) era muito claro no sentido de que a apropriação só poderia ter lugar depois do recebimento da coisa.”.
E continua o referido autor, afirmando agora a propósito do elemento – apropriação - “ Em função do que fica exposto toma-se agora seguro determinar em que consiste concretamente o elemento típico que exprime por excelência o bem jurídico protegido: a apropriação. Não deve aqui repetir-se pura e simplesmente o que ficou dito sobre o mesmo elemento - a apropriação - no contexto do crime de furto: cf. supra art. 203º § 27 s.: no furto a apropriação intervém como elemento do tipo subjectivo de ilícito (como «intenção de apropriação»), no abuso de confiança, diferentemente, na sua estrutura de apropriação qua tale, isto é, na sua veste objectiva de elemento do tipo objectivo de ilícito (realce nosso). Por isso ensinava já EDUARDO CORREIA, RLJ 90º 36, com plena pertinência e seguindo a lição de SCHRODER, que a apropriação no abuso de confiança «não pode ser... um puro fenómeno interior - até porque cogitationis poenam nemo patitur - mas exige que o animus que lhe corresponde se exteriorize, através de um comportamento que o revele e execute» (doutrina que a jurisprudência portuguesa assumiu de forma absolutamente dominante). E a teoria, que não pode deixar de ser acolhida, do acto manifesto de apropriação e que tem relevo, entre outros, para efeitos de consumação (infra § 34).
A apropriação traduz-se sempre, no contexto do abuso de confiança, precisamente na inversão do título de posse ou detenção. Dito por outras palavras (como sempre ensinou EDUARDO CORREIA, p. ex. RLJ 90º 35 ss., a propósito da interpretação a conferir às expressões «desencaminhar ou dissipar» que constavam do art.º 453º do CP de 1886; e também CAVALEIRO DE FERREIRA, Direito e Justiça IV 243): o agente, que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela - naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais - uti dominus; é exactamente nesta realidade objectiva que se traduz a «inversão do título de posse ou detenção» e é nela que se traduz e se consuma a apropriação.”.
Assim no crime de abuso de confiança o agente viola a confiança em si depositada, dando a determinado bem uma utilização ou um destino diverso daquele para que o recebera.
Quer dizer no crime de abuso de confiança, a apropriação só pode ter lugar depois do recebimento da coisa.
Ou dito de outro modo, o referido crime só tem a sua concretização a partir do momento em que se verifica a inversão do título de posse, isto é quando o agente, detentor ou possuidor legítimo, a título precário ou temporário, faz entrar a coisa no seu património ou passa a dispor dela como se fosse sua.
Ora no caso dos autos, subjacente à entrega do referido cheque estava um acordo celebrado entre ambos no sentido do montante nele titulado ser levantado apenas quando o contrato de arrendamento se celebrasse.
Quer dizer a arguida recebeu o cheque não para o guardar e devolver, mas sim, como um meio de pagamento que efectivamente é, com a condição do mesmo ser levantado quando o contrato fosse celebrado.
Apresentou-o porém a pagamento antes de se verificar essa condição, tendo o mesmo sido devolvido por falta de provisão.
Ora isto indicia clara e manifestamente um eventual incumprimento de contrato, que nada tem a ver com o crime em apreciação.
Na verdade não há aqui qualquer apropriação indevida de bem ou valor.
Não se encontra pois indiciada a inversão do título de posse, o que significa que o requisito do crime de abuso de confiança – intenção de apropriação – não está preenchido.
Assim sendo, bem andou o Mmº Juiz ao não pronunciar o arguido.
DECISÃO
Em conformidade com o exposto, acordam os juizes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto e, consequentemente confirmar o douto despacho recorrido.
Condena-se o recorrente na taxa de justiça de seis Ucs (artº 87º nº 1 b) e 3 CCJ).
Notifique.